1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70), com data de 11 de Fevereiro de 2014:
Meu caro Luís Graça.
Camarada.
De baraço ao pescoço, quero pedir-te desculpa por só agora retomar a série "furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".
Qualquer explicação poderia suar a falso, pelo que não a apresentarei. Mas para sossego de todos que sobre a ausência se interrogam, direi que nada de grave se passou, felizmente. Outras escritas por cumprir por mim chamaram.
Aqui tens o 13º episódio da saga. Depois do relato da saída do comandante César Cardoso da Silva, era inevitável falar do homem que o substituiu.
Um abraço para ti, para os nossos editores e todos os restantes camaradas.
Armando Pires
FURRIEL ENFERMEIRO, RIBATEJANO E FADISTA
12 - Chegou Polidoro, o terrível
(...) Estou a vê-lo, ao Polidoro, galões reluzentes sobre um camuflado acabadinho de sair do Casão Militar, olhos protegidos pelas lentes escuras de uns inevitáveis Ray-Ban, pingalim tremelicando na mão direita, voz forte e decidida advertindo a força em parada:
- Não me tomem por periquito, que de guerra venho eu farto.
“in armando pires, P4778”
Queiramos ou não, a primeira imagem, a primeira impressão que causamos, acompanha-nos vida fora, cola-se-nos à pele como lapa.
Podemos melhorá-la, ou piorá-la,
“vê lá tu, pá, quem diria que aquele gajo se transformava no que é hoje”, mas a primeira impressão fica para sempre.
À primeira, eu vi o Polidoro assim.
Emproado, como um pavão.
Escreva-se, por ser verdade, ele fez tudo menos querer causar uma primeira boa impressão.
O tenente coronel João Polidoro Monteiro chegou a Bissorã nos primeiros dias de Outubro de 1969, para comandar o BCAÇ 2861 em substituição do tenente coronel César Cardoso da Silva.
Seguramente, pelas razões que, sucintamente, relato no meu
P12333, alguém em Bissau deve ter dito a Polidoro Monteiro,
“vá ali comandar aqueles gajos e meta-os na ordem".
Se foi esta a ordem, se era este o efeito pretendido, então não podiam ter escolhido melhor.
Como se diz na gíria do futebol, Polidoro fez uma entrada a pés juntos, uma entrada a matar.
Ao advertir-nos que vinha farto de guerra, fez-nos sorrir. Sabíamos da sua proveniência do comando da Guarda Fiscal, em Moçambique.
A frase seguinte do seu discurso de apresentação foi para avisar que não permitiria a nenhum militar que andasse mal uniformizado dentro do quartel e, em particular, pela vila de Bissorã. O aviso preocupou a todos. Mas o novo comandante não mandaria destroçar sem nos transmitir a informação que nos deixou incrédulos.
Iria mandar realizar um exercício de defesa de Bissorã.
Seria um simulacro de ataque inimigo, em que todos e cada um realizariam tarefas precisas e pelo comando pré-determinadas, por forma a garantir adequada protecção da população e das instalações militares.
Ainda mal refeitos da surpreendente determinação já o exercício se iniciava com um toque a rebate no sino da igreja, que teve como efeito, por entre sorrisos mal contidos, ver o padeiro correr em defesa da padaria, os artilheiros a mergulharem no espaldão de morteiros, eu na enfermaria, sentinela alerta, à espera do que desse e viesse, e, entre especialistas vários, até o pessoal das oficinas, de G3 na mão, em defesa, quiçá, das viaturas.
Ai Polidoro, Polidoro, o que tu foste arranjar. Acordaste o leão.
Três dias depois do divertido exercício, mais propriamente a 8 de Outubro, pelas 21h10, o IN flagelou a vila de Bissorã, com particular intensidade a tabanca da Outra Banda, habitada pela etnia balanta. Foram ali incendiadas várias moranças, roubaram gado, causaram vários feridos entre a população, e, mais grave do ponto de vista militar, tendo chegado ao perímetro do arame farpado, os guerrilheiros entraram num abrigo de onde tinham fugido os dois milícias ali em serviço, levando com eles a metralhadora Breda M37 que lá ficara.
O comandante Polidoro foi rápido na resposta a esta acção.
Chamou o cap. mil. João Abreu, comandante da companhia independente CCAÇ 2444, e ordenou-lhe que fosse colocado um pelotão em permanência no alto da Outra Banda, assim conhecida por ficar “do lado de lá” do Rio Armada. Era de lá que, preferencialmente, PAIGC flagelava Bissorã e assaltava as moranças.
Vila e tabanca apenas ficavam unidas por uma estreita ponte em madeira, que passava sobre o rio.
Numa tosca casa de piso térreo que lá havia, mesmo no lugar de onde partia a estrada para Binar, acomodaram-se os homens da 2444 que abriram extensas valas defensivas, em zig-zag, ao longo do arame farpado, a partir das quais reagiriam ao fogo inimigo.
Não demoraram muito as obras. Uns escassos cinco dias a partir da ordem dada pelo comandante.
Foi “inaugurado” aquele destacamento a 14 de Outubro, precisamente o dia escolhido pelo inimigo para voltar a flagelar Bissorã, mas desta vez vindo o fogo do lado da estrada do Barro.
Foto 1 - Bissorã, 1970 – O destacamento da Outra Banda. A protecção à casa já foi levada a cabo pelos homens da CCAÇ 13, à qual pertencia o fur. mil. Adriano, que se vê em primeiro plano.
Foto © cedida pelo Fur Mil Carlos Fortunato
O Comandante Polidoro Monteiro levou mais tempo a reagir ao ataque que o In levou a cabo a partir da estrada do Barro. Foi mesmo preciso que lá voltasse uma e outra vez, que a CCAÇ 2444 fosse rendida pela CCAÇ 13, que acabara de se formar, para tomar uma decisão.
Comandava a 13 o cap. mil. Aberto Durão.
Com este a seu lado, o comandante Polidoro chamou o Furriel Miliciano Carlos Fortunato, especialista de armas pesadas mas que em Bolama fez um curso suplementar de minas e armadilhas, por ser tido como um rapaz calmo e sereno, e incumbiu-o, num lugar que indiciava ser aquele onde os guerrilheiros instalavam as suas armas pesadas, de montar um dispositivo capaz de eliminar a ameaça.
O Fortunato (trato-o assim por ser aquele que preside à Associação Ajuda Amiga, da qual também faço parte), levou das oficinas auto meia dúzia de bidons do gasóleo, carregou-os com dinamite, acabou de os encher com tudo o que pudesse transformar-se em armas mortíferas, uniu-os por um fio condutor que vinha enterrado até à casa do gerador, onde foi ligado a um dínamo de manivela.
O In atacava, dava-se à manivela, os bidons explodiam e pronto.
Mas um mês depois de montada a armadilha, o furriel Fortunato voltou a ser chamado, desta vez para a “desarmadilhar”. Das razões da ordem ele não cuidou de saber. Mas, comentando o caso, é sua ideia que alguém, fosse em Bissau fosse na administração da vila, não terá gostado do plano, não terá gostado do local onde ele foi executado, por ser área agrícola, zona de cultivo das populações.
Resultado, depois de tomadas todas as providências, o furriel Fortunado deu à manivela e BUM!!! Naquele lugar não ficou terra firme para instalar morteiros inimigos, nem terra capaz de semear o que quer que fosse.
Foto 2 - Bissorã, 1970 – Em dia de festa popular, e chegado de uma deslocação ao sector, o ten. cor. Polidoro Monteiro , à direita, com o alf. capelão Augusto Baptista.
Um oficial de parada. Muitos o qualificaram assim.
Falta de jeito ou feitio, o certo é que o comandante tinha uma especial queda para “chatear” a malta. A farda era o seu alvo preferencial.
Por muito estranho que pareça, esse foi também o discurso de abertura que levou às três companhias operacionais do batalhão, a CCAÇ 2464, em Binar, a 2466, em Encheia, e a 2465, no Bissum, quando a elas se foi apresentar.
Em Bissorã, foi com particular mau estar que foi recebida punição do Furriel Miliciano do PelRec Aviz Pires, por andar sem boina.
E o voleibol, o seu desporto favorito?
Sete da manhã. Sem aviso mandava acordar um grupo de oficiais e sargentos por ele escolhido:
- O senhor comandante manda dizer que já está lá em cima no campo à espera.
E que ninguém chegasse depois das 7 e 30.
- Filipe, já aí veio o motorista dele acordar a malta.
- Que horas são?
- Sete.
- Ó Pires, não gozes, deixa-me dormir.
- Ok! Vou andando que não estou para aturar o gajo.
Pouco passava das 7h30 quando ao campo chegou o Filipe, levado pelo motorista do comandante, que o fora buscar ao quarto.
- Olhe lá, ó senhor furriel, julga que está nalguma colónia de férias?
Deixemos ficar no olvido o azar que o Dr. Oliveira lhe tinha quando, àquela hora da noite em que ele achava já não ser recomendável andar na rua, o comandante o chamava para a mesa do bridge.
E no entanto, este homem empertigado lá no alto dos seus galões, era, nas horas vagas, um tipo afável no trato, um bom conversador.
Foto 3 - Bissorã,1970 – Numa recepção oferecida pela comunidade local, eu à conversa com o ten. cor. Polidoro Monteiro. À esquerda, o comandante da CCAÇ13, cap. mil. Alberto Durão.
Carta ao tenente coronel João Polidoro Monteiro
Meu Comandante
Não sei se aí, no lugar onde se encontra, tem acesso à internet, e se, caso afirmativo, é seu hábito ler o blog do Luís Graça & Camaradas da Guiné.
O Luís é aquele rapaz furriel miliciano da CCAÇ 12, que o meu comandante conheceu em Bambadinca, quando para lá foi, depois de nos comandar a nós, comandar o BART 2917, onde, deixe-me que lhe diga, o senhor granjeou, entre aqueles que dele faziam parte, grande estima e consideração, como homem e como militar.
Eu escrevo no blog do Luís, acervo maior da nossa memória sobre a guerra e o nosso dia a dia na Guiné, e nele escrevi sobre si. Não quero, se se der o caso de me ler, que pense tratar-se de um qualquer ajuste de contas (cobardia de que não sou capaz) ou que fosse minha intenção beliscar a sua imagem de militar responsável e competente.
No local onde escrevo ninguém muda a sua condição humana depois de morto. Somos o que somos, escrevemos o que fomos, conscientes de que não escrevemos para nós, mas para assegurar que no futuro ninguém nos acusará de não termos dito ao que fomos, porque fomos e o que fizemos.
Interpretei na escrita o sentimento que o senhor deixou em nós, homens do BCAÇ 2861.
“O homem é o homem e as suas circunstâncias”, escreveu Ortega y Gasset.
Não me tomo de filósofo nem tão pouco de psicólogo capaz de ler o comportamento humano. Mas quero que saiba que muitos de nós (não posso dizer todos) sempre esteve presente, como se quiséssemos “desculpabilizá-lo”, o lugar de onde vinha e o que lá fazia, e o que de nós, e sobre nós, ainda que de forma injusta e deturpada, deve ter ouvido em Bissau.
Meu Comandante
O senhor não foi “pera doce”. Manteve as tropas em exagerado sentido.
Não granjeou particulares simpatias. Ouvindo um e todos, desculpe que lhe diga mas não deixou saudades.
Mas é certo que também ninguém esqueceu aqueles momentos em que, para defender os seus homens dos ataques “exteriores”, até os tomates lhe subiam à garganta.
E eu que o diga, quando em Bissau me que quiseram fazer a folha porque pedira uma evacuação urgente para o 1.º Cabo Catarré, na altura a fazer de barman no bar de sargentos, o qual ao meter cervejas no congelador deixou que uma garrafa caísse sobre as demais, provocando uma “explosão” de vidros, indo um deles, minúsculo, cravar-se-lhe na íris.
Ao vê-lo na enfermaria pensei, “eu aqui não toco, se isto não for tirado rapidamente ficas sem olho, vais para Bissau num fósforo”.
Ainda estou a ver o ar estupefacto da enfermeira paraquedista, ao ver
caminhar para o DO um militar com um enorme penso num olho e eu a dizerr, “é este”
Quando de Bissau chegou a ordem para averiguar os factos, saberá o meu comandante que todos ouviram os seus gritos lá dentro do gabinete.
- Se o vidro se espetasse no olho do cu dos gajos, já havia pressa.
Ainda hoje não sei com quem o meu comandante falou, ou o que falou, sei que dias depois me tranquilizou o Dr. Oliveira dizendo-me, “está tudo resolvido”.
Não podia haver maior ironia.
O meu comandante a evitar uma possível punição ao homem a quem, poucos dias depois de ter chegado a Bissorã, chamou ao seu gabinete para lhe dizer:
- Sei que andas aí armado em vivaço, mas olha que te dou uma porrada.
Coisas que lhe sopraram aos ouvidos mas que nós, eu e o senhor, por respeito a terceiros envolvidos, mantemos em silêncio.
Além de que o tempo se encarregou de dar outro e melhor rumo ao nosso relacionamento, não podendo eu esquecer o apreço que mostrou pelo trabalho da minha equipa, nem a conversa que comigo teve, no seu gabinete, pouco tempo antes de nos separarmos.
- “O primeiro sargento Portugal já tem indicações para tratar do processo da entrega da medalha de Comportamento Exemplar a que tens direito. (nota: Medalha de Cobre – A conceder aos sargentos e praças que completem 3 anos de serviço efectivo e que nunca tenham sofrido qualquer punição disciplinar ou criminal – mantendo-se na actualização feita pelo dec 566/71). Enquanto o processo não fica concluído, tens já aqui a barreta indicativa, juntamente com a barreta da Medalha das Campanhas, que passas desde já a usar no teu uniforme".
E usei, sim senhor, usei e com cagança, sendo elas bem visíveis na fotografia militar com que me identificam lá no blog do Luís Graça. Mas olhe, também deixe que lhe diga, ainda bem que o primeiro Portugal teve mais que fazer do que dar andamento ao processo e eu, chegado a Chaves, muita vontade de me meter a caminho de casa.
Aqui para nós, tendo em vista o que fui e fiz “fora das horas de serviço”, comportamento exemplar era um bocado exagerado.
Já vai longa esta carta.
Termino dizendo-lhe que lamentei não ter estado presente naquele nosso almoço de confraternização, realizado na Pateira de Fermentelos, em 1991, porque foi o único a que o meu comandante foi, e, depois disso, não mais o vi.
Tinha sido uma boa oportunidade para falarmos sobre o que agora lhe escrevo.
Mas quem sabe, ninguém sabe, se um dia não nos encontraremos “por aí”, com tempo e oportunidade para pôr a conversa em dia, e eu dizer-lhe, à minha maneira, “olhe que o senhor também foi um bom sacana”.
Um abraço do Armando Aires
ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
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Nota do editor
Último poste da série de 23 DE NOVEMBRO DE 2013 >
Guiné 63/74 - P12333: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (11): A decapitação do Comando