Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Galomaro, hoje... Foto da Missão Dulombi (com a devida vénia...)~
Guiné > Zona leste > Setor L5 > Galomaro > c. 1972/74 > O aquartelamento, sede do comando e CCS/BCAÇ 3872. Foto de Juvenal Amado
1. Texto e e fotos enviados pelo nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º cabo condutor auto, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 19 do corrente:
Na vida nada há tão certo como a morte e ela não é sempre de valor igual. Se não, vejamos os comentários que nós próprios fazemos;
“Era ainda tão jovem, vai fazer tanta falta! Ou, “Já tinha muita idade e até foi uma esmolinha”!
A nossa geração foi confrontada tantas vezes com ela. Encará-la e esquecê-la seguidamente, faz parte de alguma irresponsabilidade e capacidade de dádiva dos nossos verdes anos que dizem respeito ao primeiro terço da nossa idade adulta.
Foi assim que ela enfrentou a morte durante 13 anos. Enfrentou-a com alguma leveza, inconsciência e espirito de aventura, a que se predispunha e o facto de aquela guerra não pôr directamente em risco as nossas cidades e as nossas famílias, resguardadas das bombas e restante violência, que uma guerra acarreta no chão sagrado dos nossos avós.
Por vezes de forma sorrateira, outras vezes com a violência, com o horror, a surpresa de sermos confrontados com a morte e sofrimento de quem momentos antes falava, ria, bebia, ou partilhava um cigarro.
Os gritos, os tiros e as explosões, levavam tempo a passar para o subterrâneo do nosso consciente, o que tanto temíamos tinha acontecido, o nosso mundo ficava virado do avesso.
Pensávamos que só acontecia aos outros.
Chorávamos ali no chão vermelho e sol escaldante e perante a incredulidade de quem nos pudesse observar procurávamos e recolhíamos os bocados, desde os membros aos restos de farda e até ao mais pequeno pedacinho de atacador. Nada ficava para trás. Talvez quiséssemos apagar o que tinha acontecido e não deixar nenhuma prova da tragédia da nossa passagem ali naquele dia de má memória.
É da natureza Humana rejeitar o sofrimento e ao afastarmo-nos daquele momento o mais rapidamente possível, ansiavámos assim que a dor se tornasse cada vez mais suave e menos presente. Depois ajudávamos a recolher os seus pertences e revíamos tudo o que se poderia enviar às famílias.
Víamos o homem para além do que connosco lidava no dia a dia. As cartas da namorada, as fotos, a garrafa de whisky cuidadosamente guardada para festejar o regresso, o robe chinês, o serviço de chá, e os corpiés que aos poucos adquiriram para fazer parte do enxoval dos dias felizes.
Comprados na loja do libanês, eles seriam o orgulho na cama de casal após o casamento. Essas coisas eram compradas à custa de não se beberem umas cervejas ou mesmo uma viagem de férias a casa, pois o magro pré não dava para muito mais.
Mas esses objectos valiam agora mais do que quem os tinha comprado porque, parafraseando o poeta, eles prestavam ainda para alguma coisa, ao contrário os donos jaziam inertes para sempre sem utilidade.
Passavam a ter um valor inestimável como recordação para quem eram destinados, até que outro amor surgisse, pois a dor castradora da vida não pode nem deve ser para sempre.
As caras e as situações, voltaram quando a idade mais nos aconselhava a uma vida sem preocupações e passeios à beira mar.
Com o envelhecimento essa dor visita-nos mais amiúde. A morte aparece de várias formas, porque ela tem muitas caras e, ao contrário da nossa juventude, aos poucos todos ganhamos consciência de que somos finitos esperando no entanto que esse dia ainda seja longínquo.
Acabamos por nos despedirmos dos nossos avós, pais, tios e por fim dos amigos que nos são queridos. Pela ordem natural esperamos partir um dia, deixando para trás os nossos descendentes para nos honrar a memória, como nós honramos a memória dos nossos ascendentes.
Hoje as nossas memórias estão cheias de sombras que todos os dias crescem. Ficam os momentos vividos, as gargalhadas, as celebrações da vida a felicidade dos momentos únicos.
Cada um que parte, leva um bocado de nós e do nosso Universo, porque a morte é o tempero que nos faz dar valor à vida.
Juvenal Amado
Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > O "suplício de Sísifo": os homens-toupeira construindo (e defendendo) a sua "casa" no "corredor da morte", em tempo recorde... [Construindio aquartelamentos, 'bunkers', abrigos, espaldões, abrindo valas, picadas, etc., também fomos "coveiros de nós próprios"... LG]
Foto: © Idálio Reis (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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Nota do editor:
Último poste da série > 15 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12718: Blogoterapia (248): In Memoriam: Maria da Graça (1922-2014): Foste uma boa mãe, como todas as mães do mundo... e eu, da minha parte, nunca esquecerei que, com as minhas irmãs e o meu pai, rezavas por mim, todos os dias, nos quase 700 dias em que estive lá longe, na guerra, na Guiné (Luís Graça)
Nota do editor:
Último poste da série > 15 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12718: Blogoterapia (248): In Memoriam: Maria da Graça (1922-2014): Foste uma boa mãe, como todas as mães do mundo... e eu, da minha parte, nunca esquecerei que, com as minhas irmãs e o meu pai, rezavas por mim, todos os dias, nos quase 700 dias em que estive lá longe, na guerra, na Guiné (Luís Graça)