1. No dia do seu 69.º aniversário, o nosso camarada Mário Beja Santos presenteia-nos com alguns extratos do seu livro, em preparação, "O Fedelho Exuberante".
Queridos amigos,
É proverbial nesta data recebermos saudações de todos os irmãozinhos da tabanca.
Nos meus 69 anos, com imensa alegria, com milhares de leituras para fazer e vazar neste terreno fecundo das nossas lembranças, ofereço-vos uns extratos de um livro que tenho em preparação,
“O Fedelho Exuberante”, uma crónica familiar à volta das nascituras Avenidas Novas onde, no pós-guerra, vinham viver, em espaços próprios, as diferentes classes sociais decorrentes da expansão económica em curso.
Coube-me o bairro social de Alvalade, e tive o privilégio de ver nascer a Avenida dos EUA e a Avenida de Roma, era este o meu admirável novo mundo, cercado do afeto de três mulheres admiráveis que me moldaram no que sou.
Aqui a amostra, com muito júbilo,
Mário
A Mãezinha escreveu no verso:
O Mário António no dia em que fez 2 anos, 31/5/47
AS PRIMEIRÍSSIMAS LEMBRANÇAS
O episódio parece macabro, talvez de mau gosto ou mesmo fantasioso, mas foi exatamente assim que o retive. Em frente à velha Igreja de S. Jorge de Arroios ficava a agência funerária onde pontificava a minha madrinha de registo, D. Isaura, tenho dela uma lembrança ténue, dizem-me que nada devia à beleza mas nunca recusei acompanhar a minha Mãezinha tal o enlevo com que a prestadora de serviços fúnebres a acolhia e me beijocava. Instituiu-se um ritual, passava-me para a mãozinha uma moeda de dez escudos, as madrinhas também servem para dar presentes, aquela moeda era um dinheirão na época, e eu entregava-a à minha criadora. Conversavam, às vezes juntava-se uma amiga de ambas, D. Olga, uma angolana imponente, se fosse possível o recurso a uma similitude seria a da Mahalia Jackson, seios fartos, ancas possantes, sorriso panorâmico. Ora, em circunstâncias impossíveis de especificar, um dia fartei-me de as ver em comunicação vivacíssima naquele espaço ornado de mãozinhas de cera, litogravuras do Padre Cruz, estelas funerárias em perspetiva, até as cadeiras eram fúnebres, entediado rumei silenciosamente para o armazém da agência, pejado de urnas, panejamentos, havia coisas de outras eras, dos tempos em que as carretas funerárias levavam cavalos com panos negros, andei por ali a dessedentar a curiosidade, subi e desci escadas a mirar o interior das urnas com tecidos recamados, pregueados, mas também havia urnas muito austeras, apropriadas para gentes de poucas posses, importa relevar que naquele tempo ainda era de uso frequente a vala comum, vi uma urna com um aspeto de ser tão fofinha num expositor que nela me deitei, não há puto que não se maravilhe com o imprevisto daquele conforto. Não sei se adormeci, mas a dada altura ouvi a vibração
“Oh Mató, onde é que tu andas, vem depressa, tenho que ir às compras!”. Não sei o que é que me deu, deixei-me estar no conforto, não tugi nem mugi, houve insistências, sempre a clamar pelo Tó, era esse o maldito diminutivo que me acompanhou até aos cinco, seis anos, houve mesmo familiares que se compraziam a chamar-me Mató, coisa mais horrível não me podia ter acontecido, depois entraram, Mãezinha e madrinha, e vasculharam pelo armazém, o que é que o miúdo andaria a fazer por aquele espaço tumular, sem enfeites próprios para atrair a criançada?
Passaram perto de mim, eu quedo, e resolvi fazer uma cabriolice, empurrei a tampa da urna, ali encostada, estatelou-se com estrépito aos pés da D. Isaura, gritou em transe e espavorida. Eu respondi com uma risada, e a minha mãe deu-me uma nalgada, corretivo vezeiro na época.
A CHEGADA ÀS QUINTAS DO VISCONDE DE ALVALADE
E em 8 de março de 1952, a meio da primeira classe, fez-se a mudança para uma zona residencial, ainda a cheirar a fresco, em frente de uma enorme quinta, o Campo Grande ali perto, em baixo, frondoso, bem ajardinado, na parte de cima notava-se que havia imensas obras, estavam a desbravar a Avenida de Roma, um enorme estaleiro com prédios, parecia-me, assombrosos, tudo aquilo me parecia modernaço, nada tinha a ver com a arquitetura de Arroios nem mesmo com a de Algés. Nem me passa pela cabeça o tempo que vou viver em Alvalade, será aqui que frequentarei a Escola Primária nº 151, entre a Rua Mário de Sá Carneiro, Rua Fernando Pessoa e Rua Branca de Gonta Colaço, seguir-se-á o Colégio Moderno, na Estrada de Malpique, e upa-upa, até me apetecia saltar já para a Biblioteca das Galveias, no Campo Pequeno, onde fiz aprendizagem das publicações destinadas aos jovens e li tantos livros.
Se havia a obsessão de que eu devia ser autónomo, não constituir um peso para os meus irmãos, e se ficasse órfão de mãe não podia contar com o pai para coisa nenhuma, ele não me reconhecia como seu filho, nem me queria ver, se me apresentasse seria um empecilho de todo o tamanho, pois bem, aparecera agora outra obsessão, os estudos, eu tinha que provar a outra dimensão de autonomia de que ainda não se falara, eu teria que singrar na vida, ela tudo faria, dizia repetidamente, para que eu tirasse um curso, se tivesse aptidões para tanto. Assim, era primordial que estudasse, que ganhasse gosto pelos estudos, com disciplina e fervor. Estas conversas culminavam sempre com uma promessa, que eu não entendia muito bem: serás um homem livre, vencerás a ignorância, acredita em mim. E eu acreditava.
Mas tive um desgosto de todo o tamanho quando dias depois de termos chegado a Alvalade fomos à Escola Primária nº 151, aí a uns 150 metros da nossa casa, onde disseram à Mãezinha que eu só podia entrar na primeira classe em outubro, porque ainda não tinha completado sete anos, vim a soluçar todo o caminho até casa, a dar pontapés nas pedras, eu queria fugir dali, eu queria voltar para Algés pelo menos até acabar o ano letivo, dera provas de ser um aluno aplicado, o que é que eu ia fazer aqueles meses todos à boa vida, não conhecia ninguém na rua, os vizinhos do lado tinham dois filhos crescidos, nos outros andares havia também gente mais crescida, com quem é que eu podia brincar, com aquela quinta e aquele olival mesmo à porta, parecia que tínhamos recuado séculos atrás?
A Mãezinha, imperturbável, dava-me cópias e contas para fazer, leituras avulsas, como aquelas latinidades de que já falei, havia outras mais entusiasmantes, levava-me muitas vezes para a Maternidade Alfredo da Costa, trabalhava aí no serviço de contabilidade, depois fiz sete anos, estava cada vez mais ansioso que o tempo passasse velozmente para eu ir para a escola, ganhei simpatia por uma senhora chamada Natércia que estava no serviço de registo dos recém-nascidos da maternidade. Sentava-me a um canto, sem tugir nem mugir, a Natércia chamava a família que vinha proceder ao registo e cedo me apercebi que havia mães solteiras, apareciam pais felizes mas também outros com o ar mais desgostoso deste mundo, parecia que aquelas crianças em vez de ser uma fonte de alegria já estavam a ser um estorvo, a Natércia pedia identificações e no final fazia a leitura em voz alta da certidão, os presentes assinavam, saiam felizes, menos felizes e até contrafeitos. Na minha cabecinha eu dava voltas para apurar por que é que vimos ao mundo e não damos todos o mesmo contentamento que eu tinha trazido à Mãezinha e até à avó Ângela, era tão bom ter manos como eu tinha, um mano que me levava ao cinema, eu ficava nos seus joelhos embasbacado a ver os cowboys e os índios, ele levava-me para as suas brincadeiras, eu assistia a tudo, maravilhado, e uma mana que me contava histórias e me tratava tão bem. A vida tem destas coisas, terei mais tempo para aprender o que hoje me está a confundir.
E os meses passaram depressa, a Mãezinha inscreveu-me na catequese da Igreja dos Santos Reis Magos do Campo Grande, já perto da Avenida Alferes Malheiro, hoje do Brasil. Não havia dinheiro para passar férias fora de Lisboa, mais tarde iria para colónias balneares e depois a madrinha Anita passou a levar-me para a Foz do Arelho. Naquele ano, no verão, a avó Ângela gostava de me ter na Junqueira, apanhávamos o elétrico até Algés ou Cruz Quebrada, íamos com farnel e eu tinha direito a comer barquilho ou uma Bola de Berlim.
E um dia, alvoraçado, entro na escola e passo a ser aluno da D. Emília numa turma de perto de quarenta alunos, metade de meninos viviam em Alvalade e outra metade de meninos vinha de Telheiras, umas quintas, umas casas apalaçadas e umas azinhagas para lá do Campo Grande, ali não havia escola. Acamaradámos todos, os meninos de Telheiras viviam nitidamente com mais dificuldades que nós, traziam roupas remendadas, bonés sujos e vinham descalços. Gostavam muito da escola porque tinham a cantina onde comiam gratuitamente uma sopa bem adubada, recebiam um quarto de carquejo, umas lascas de torresmos, às vezes sardinhas ou carapaus fritos, e uma peça de fruta como almoço, à saída havia um copo de leite com chicória, um naco de pão e uma fatia de marmelada. Em linguagem de hoje, a aculturação não foi fácil, lembro-me perfeitamente que a D. Emília estava no estrado em frente ao quadro elaborando uma sofisticada diminuição, terá ouvido um ruído insólito, virou-se e apanhou o Hermenegildo em flagrante, a parede a fumegar de urina. “Tu és um selvagem, Hermenegildo, porque é que não pediste para ir à casa de banho?”. E o Hermenegildo, com cara de caso e com toda a inocência: “Eu estava à rasca Senhora Professora, ou mijava agora ou sujava-me nas calças!”. E D. Emília insistia: “Meu bruto, para que é que se fizeram as casas de banho?”. E o Hermenegildo replicou, com a mesma inocência: “Lá em casa não há casa de banho, Senhora Professora!”.
Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, Praça Mouzinho de Albuquerque (até 1933), à entrada do Campo Grande, fotografia de 1967, do Arquivo Municipal de Lisboa, com a devia vénia
A DESCOBERTA DOS ARRABALDES
A Mãezinha ia diariamente, de segunda a sexta, fazer as compras no mercado do Saldanha, a avó Ângela e eu colaborávamos nas compras de mercearia. A padaria ficava à entrada do Campo Grande, a mercearia no términus da Rua de Entrecampos, a confluir com o Campo Grande, lembro-me perfeitamente de quando se começou a fazer a Avenida dos Estados Unidos da América ao tempo em que apareceram os quatro edifícios de arquitetura arrojada no cruzamento entre a Avenida de Roma e o troço da Avenida dos Estados Unidos da América que naquele tempo ligava com a Avenida Gago Coutinho e com o descampado que era a Avenida de Roma. Havia muitas artérias assim em Lisboa, recordo que a Avenida João XXI começava na Praça do Areeiro, atravessava a Avenida de Roma e não chegava ao Campo Pequeno, só anos mais tarde é que se fez a ligação e tudo ficou transformado quando a fábrica de cerâmica Lusitânia deu lugar à sede da Caixa Geral de Depósitos.
Nunca esqueci a mercearia da Rua de Entrecampos, o prédio já desapareceu, está lá hoje um serviço do Centro Nacional de Pensões. Comprava-se quase tudo a granel, as leguminosas secas estavam em tulhas, havia medidas em madeira e rasoiras e cartuchos, meio litro de grão, meio litro de feijão manteiga, uma quarta de banha, meio quilo de açúcar, uma garrafa de azeite enchida no momento. A mobília era imponente, armários até ao teto, alguns com portas de vidro, onde se recolhiam alimentos e bebidas de preço mais sofisticado, levava-se um saco das compras, o plástico ainda não tinha feito a sua aparição. Mas toda a Rua de Entrecampos acolhia o comércio e serviços de primeira linha: livraria e tabacaria, retrosaria, barbeiro e cabeleireira, sapateiro, ferrador, loja de eletrodomésticos, pelo menos duas mercearias, talhos, taberna e carvoaria (se bem que no Campo Grande esta atividade estivesse mais desenvolvida, recordo que entre a Avenida da Igreja e a Igreja dos Santos Reis Magos do Campo Grande havia oficinas de reparação de automóveis, de bicicletas, tascas com carvoarias noutra dependência, lojas de adubos e rações, etc.). Parecia que a Rua de Entrecampos assegurava praticamente as nossas necessidades básicas, dispensavam o mais elementar, assim se evitava as idas à Baixa, era aqui que se comprava o excecional e se aproveitava para conhecer as modas.
Escusado é dizer que a comida era caseira: cachucho com arroz de tomate; iscas com batata cozida; feijoada… os restos de um cozido à portuguesa davam origem a um prato gostoso chamado sopa fervida, com pão e hortelã. A leiteira passava de manhã cedo, fervia-se o leite e eu bebia-o com um aromatizante, cedo passei a gostar da mistura popular de café, só muito mais tarde houve condições para comprar o Milo ou o Ovomaltine. Usava-se muito a salsa e o coentro. Recordo-me da fúria da avó Ângela quando um dia bateram à porta, era uma senhora de bata branca a oferecer uma amostra de sopa em pacote e uma caixa com cubos que se destinavam a dar gosto às sopas, a avó barafustava: “Como é que é possível deitar água neste pó e sair sopa, diz aqui que temos uma refeição pronta em cinco ou seis minutos, tenho que mexer a sopa em lume brando?”.
Era nestes queixumes que eu sentia que estava a crescer num mundo em transição, aquelas manadas de bois que atravessavam o Campo Grande a caminho do Mercado Geral de Gados, onde hoje estão os vestígios da Feira Popular que veio para aqui nos anos 1950, depois da Fundação Gulbenkian ter comprado o Parque de Santa Gertrudes, em Palhavã, era aqui, que desde os anos 1940 funcionava a feira, lembro-me muito bem. A Câmara Municipal de Lisboa ainda guardou algumas destas instalações do Entreposto durante muitos anos, era uma correnteza de edifícios em frente à linha de comboio de Entrecampos.
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2. Nota do editor:
Caro Mário, muito obrigado por este bocadinho da tua infância. Eu, que quase não conheço a Lisboa de hoje, através da tua escrita "fiz" o retrato da Lisboa do teu tempo. Quase senti os cheiros. Bem bonita e bem cheirosa.
No teu dia de anos resolves presentear a tertúlia com este texto tão belo que ainda por cima nos abre o apetite para a obra final. Quando sai "O Fedelho Exuberante"? O título é sugestivo.
Acho que posso agradecer em nome da tertúlia a prenda que nos ofereceste hoje, dia do teu 69.º aniversário.
Bem hajas.
Carlos Vinhal
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Nota do editor
Último poste da série de 31 DE MAIO DE 2014 >
Guiné 63/74 - P13216: Parabéns a você (741): Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1968/70)