quinta-feira, 4 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14698: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (11) - Reportagens da Época (1967): Buruntuma

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 17 de Março de 2015:

Prezado Luis Graça:
Envio mais alguns dados, respeitantes aos últimos dias do mês de Junho de 1966, que poderão ser publicados.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

11 - Buruntuma

Dia 24 de Junho de 1966

Ainda cedo saí de Nova Lamego escoltando seis viaturas carregadas de géneros alimentícios.
Deixando para trás uma imensa nuvem de pó as viaturas fizeram-se à estrada.

Ao fim de três quilómetros uma viatura avariou-se e a coluna-auto imobilizou-se na estrada.
Impacientes, os soldados murmuravam:
- Raios partam as viaturas... Linda maneira de entrar na guerra...

Apoiando-os, um furriel insinuava, convencido:
- Sempre a mesma porra... Mandam-nos escoltar umas viaturas que já deviam estar na sucata. Isto é tudo uma porcaria...

Como não havia solução para a avaria mandei distribuir a carga que a viatura transportava pelas restantes, pedi o reboque para levar o camião avariado ao ponto de partida e segui viagem.

Em Piche juntaram-se à coluna duas viaturas militares e quatro civis.

No destacamento da Ponte do Caium esperava-me um pelotão da companhia de Buruntuma, que picou a estrada.

Sem qualquer incidente atingi Buruntuma pouco depois do meio-dia.

Estrada Nova Lamego-Buruntuma

Os cerca de quarenta homens que comandava praticamente nada almoçaram após a chegada.

Em Nova Lamego não nos distribuíram a ração de combate com a desculpa de que haveria uma refeição quente quando chegássemos a Buruntuma...
Em Buruntuma não havia a tal refeição quente porque não esperavam que chegássemos antes do almoço.
Valeu a todos a camaradagem da guarnição local e o desenrascanço imaginativo de cada um.

De tarde o capitão levou-me a casa de um comerciante branco que nos ofereceu Whisky com Água Castelo.
Diz-se que o homem é um ex-degredado que, após o cumprimento da pena, ficou por estas paragens.
O capitão de Buruntuma é um homem de aspecto pachorrento, alto e gordo, compreensivo e bondoso. Parece-me um homem inteligente e sensato.

O aquartelamento e a povoação localizam-se quase sobre a linha da fronteira com a República da Guiné-Conakry.
É a única povoação no raio de alguns quilómetros.

A guerra obrigou as populações ao abandono das tabancas de que, um pouco por todo o lado, ainda restam vestígios.
Uns retiraram-se mais para o interior do território português. Outros fugiram para o Senegal, ou para a República da Guiné-Conakry. É principalmente entre esses que fugiram, que os terroristas recrutam os seus combatentes.

À noite ouviu-se um tiro dentro do aquartelamento. Gerou-se alguma confusão mas, afinal, não se tratou de ataque do inimigo.


Dia 25

De manhã saí com duas secções e alguns “milícias” à procura de lenha para a cozinha do quartel. Carregaram-se, sem grande dificuldade, duas viaturas de madeira seca, utilizada na construção das tabancas abandonadas.
O ambiente que reina entre a tropa é bom.
O calor não deixa de ser um martírio mas o trabalho ao Sol não é muito.

À noite, pelas dez horas, não longe do arame farpado, ouviu-se uma explosão, talvez de granada de morteiro.
A tropa manteve-se serena e não aconteceu mais nada.
No entanto, basta isto para manter todas as pessoas num “stress” permanente, num ambiente de medo e angústia... São os nervos sempre à flor da pele...


Dia 26

Às quatro horas e meia da manhã o capitão acordou-me e deu-me ordem para mandar equipar o meu pelotão com a finalidade de abrir o itinerário até ao Caium.

Piquei a estrada de Buruntuma a Caium, escoltei uma coluna de viaturas de Caium, Buruntuma e de novo até Camajábá.
Pela manhã, quando nos dirigíamos ao Caium, ouviram-se rajadas de armas automáticas lá para os lados da fronteira.
Estes disparos têm um efeito psicológico bastante negativo. Obrigam-nos a uma tensão quase permanente.

Ao entardecer rebentou uma armadilha colocada pelas nossas tropas perto da fronteira.
Um alferes da guarnição local com o respectivo grupo de combate, reforçado por alguns dos soldados do meu grupo, comandados por mim, foi verificar as causas da explosão.
Junto do local das armadilhas, que não sei se era em território português, ou da Guiné-Konacry, encontravam-se duas vacas quase mortas. Com alguns tiros de G3, acabou-se-lhes com a vida.
Imediatamente, do outro lado da fronteira, bastantes armas pesadas começaram a disparar sobre Buruntuma, enquanto que, as armas ligeiras, alvejavam o terreno fronteiriço onde nos encontrávamos.

Cautelosamente conseguimos retirar do local, mais para o interior, sem, contudo, conseguir entrar no nosso aquartelamento que, durante cerca de uma hora, ficou sob o fogo cerrado das armas do inimigo.
Abrigados por um ligeiro declive do terreno, e pela protecção do arvoredo, sentíamos nos ares o silvar das granadas que, às dezenas, choviam sobre Buruntuma.
Aqui e além as explosões provocavam incêndios, principalmente nas casas dos nativos, cujo telhado era feito de capim.

Quase em simultâneo as armas de Buruntuma também abriram fogo. As bazookas e o canhão sem recuo vomitavam granadas ininterruptamente. Os morteiros cuspiam, para o outro lado da fronteira, os seus tenebrosos projécteis. Através das seteiras dos abrigos as metralhadoras consumiam centenas de munições. As armas ligeiras, os canos já aquecidos, disparavam, um pouco ao acaso, contra um inimigo que não tinham capacidade de atingir.
De um e outro lado era ensurdecedor o ruído da fuzilaria e o detonar das granadas.

Anoiteceu.

De ambos os lados começou a abrandar a intensidade do combate.
Lentamente, o silêncio foi caindo sobre a povoação martirizada. Era o fim de uma pequena batalha.

Cautelosamente, os soldados que estávamos fora do aquartelamento, longe da protecção dos abrigos subterrâneos, fomo-nos aproximando do arame farpado e entrámos no quartel.

Dirigi-me ao posto de socorros. Lá dentro, aguardando tratamento, já havia muitos feridos. Outros, brancos e negros, foram depois chegando.
O médico, que na vida civil era cirurgião, trabalhava afanosamente, ajudado pelos enfermeiros, extraindo estilhaços, colocando ligaduras, injectando soro... Só muito tarde deu por findo o seu trabalho.

Contabilizados os prejuízos verificou-se que havia três mortos entre a população e bastantes feridos tanto entre os soldados como entre os civis.
Para além disso o nosso sistema de transmissões estava inutilizado, as instalações danificadas e alguns indígenas tinham perdido as suas casas.

Trabalhava em Buruntuma um agente da PIDE que, através do sistema de transmissões particular, de que dispunha, alertou Bissau para o sucedido e pediu que fossem evacuados para o Hospital Militar os feridos mais graves.

Eram já altas horas da noite quando nós, os oficiais, nos fomos deitar.
No abrigo onde dormíamos comentavam-se os acontecimentos com alguma insensibilidade.

Já deitado, o capitão murmurava:
- Os filhos da puta não nos deixam em paz...

A guerra para ele era algo a que já estava habituado e pouco o impressionava. Quando em conversa se referia a acções de combate transmitia até a ideia de gostar das sensações da guerra.
Eu sentia-me de certo modo aterrorizado com a baptismo de fogo que, sem o desejar fui obrigado a receber.
Foi um baptismo sério e prolongado... E cheio de calor!...


Dia 27

A noite passou-se rapidamente.
Pela manhã, o que já era hábito na localidade, a tropa levantou-se cedo.
De tronco nu, os oficiais abandonaram o abrigo, subiram para o jeep, deram um volta pela tabanca para verificar os estragos causados pelo ataque, contemplaram as cinzas de algumas moranças dos nativos, as ruínas da capelinha da virgem onde os soldados costumavam rezar, as viaturas danificadas, as paredes das casas esburacadas pelos estilhaços das granadas, e dirigiram-se para o edifício da messe.

Enquanto tomavam o pequeno almoço, descontraído, o capitão comentava:
- O pior foi terem-nos causado bastantes feridos e haver mortos entre a população. Os prejuízos materiais podem remediar-se. São transitórios, superáveis. O sangue é que não tem preço. Mas chegará o dia em que eles (os terroristas) receberão o pagamento com os respectivos juros.

Os alferes apoiavam-no e expunham também os seus pontos de vista.
Espíritos calmos e frios, habituados, pela força das circunstâncias, à dureza da guerra, aqueles homens enfrentavam-na com a maior das naturalidades.
Foi no meio deles que a guerra me surpreendeu. Em nenhuma outra parte da Guiné eu teria, por certo, oportunidade de a sentir tão sinistra e tão dura.

*

A manhã ia alta.
O Sol surgia misterioso, quase triste, rompendo, a custo, num céu plúmbeo, carregado de vapores e neblina.

Ao longe, nos ares, sentiu-se um ruído, a princípio quase imperceptível, que foi aumentando de intensidade, até que no céu tristonho de Buruntuma se avistou a “Dornier 27”, a pequena aeronave que vinha proceder à evacuação dos feridos do ataque do entardecer anterior, para o hospital militar de Bissau.
Um pelotão de atiradores deslocara-se já do aquartelamento para a zona da pista de aterragem, que ficava muito perto do arame farpado, para que tudo decorresse com a segurança necessária.

Quando das imediações se transmitiu a ordem para aterrar, o pequeno avião começou a perder a altitude e iniciou a manobra de aterragem.
De repente, a avioneta começou a ser alvejada com rajadas de armas automáticas instaladas do outro lado da fronteira.
Avisado pelas transmissões das tropas terrestres o piloto tomou de novo altitude e manteve-se afastado da localidade.

Entretanto começou uma nova batalha. De ambos os lados os morteiros e as bazookas funcionaram de novo, os canos das espingardas voltaram a vomitar centenas de projécteis, e os tiros do canhão fizeram de novo tremer o céu e a terra.
As explosões sucederam-se por mais de uma hora martirizando, do nosso lado, a população e a tropa de Buruntuma, e do lado deles, República da Guiné-Konácry, a população civil e a tropa estacionada em Kadica, antigo posto fronteiriço.

E o funcionar das armas trouxe de novo a morte e mais sofrimento às povoações martirizadas.

De repente, quando a batalha parecia não ter fim, surgiram no céu dois bombardeiros da FAP, em auxilio das forças terrestres.
Eram os FIAT, aviões a jacto, que pela primeira vez fizeram a sua aparição no teatro de guerra da Guiné.
Os aviões salvadores sobrevoaram, a pequena altitude, a área do combate, e foi o suficiente para que o inimigo calasse as suas armas.

Entretanto, chegavam mais quatro aviões T6, que se mantiveram nos céus de Buruntuma até que os helicópteros e a “Dornier 27 levassem os feridos para o Hospital Militar.
Mais tarde soube que os aviões FIAT que sobrevoaram, naquela manhã, a tropa de Buruntuma, andavam ainda desarmados.
Bastou apenas o efeito psicológico dos seus voos rasantes para que o inimigo se retirasse.

As consequências do ataque foram graves. Tivemos um militar que morreu com os ferimentos causados pelos estilhaços de uma granada, dois alferes feridos, um dos quais com bastante gravidade, e bastantes feridos ligeiros.
Entre a população civil voltou a haver mortos e feridos.

*

Fixei, com dor, aquele corpo quase nu, mutilado e coberto de pó.
E senti pena, medo, tristeza, horror...Quantas coisas mais...
Ajudei a retirar do abrigo, que não abrigou nada, o corpo do soldado morto, e o sangue, ainda quente, tingiu-me as mãos...
E pensei na morte... A morte que todos pressentimos e adivinhamos à nossa volta, mas que não entendemos.
Li algures, ou alguém me disse ou ensinou, que a alma é igual à diferença entre o cadáver e o homem vivo. E que diferença avassaladora e enorme!...

Olhando a corpo inerte e ensanguentado do jovem soldado, assim de forma tão súbita e cruel arrancado ao fulgor da juventude e à vida ainda por viver, pensei:
- O corpo é o nada!... A sombra!... A miragem!... A ilusão!...
A alma é tudo!... Confunde-se com a vida!...
E dizem-nos tantas mentiras sobre a morte!...
Ensinam-nos que é isto... Que é aquilo...
E, afinal, o que será?
Ninguém sabe!...
É uma experiência individual, a última, da qual, que se saiba, ninguém regressa para dizer como é.
Acontece à nossa volta sob as formas mais bizarras
É o passar sereno e imperceptível... E é, também, convulsão e violência...
É suave como o lento apagar de uma ténue luz, e é rápida e fogosa quando chega montada no veloz projéctil cuspido por uma espingarda, ou no estilhaço quente de uma qualquer granada de morteiro...
Mas, é sempre ela... O fim... Ou, talvez, o princípio de uma realidade nova...
De uma realidade que todos desejam que nunca chegue... Que permaneça longe... Muito longe... Para além do tempo.
Mas, que me leva a estar aqui a martirizar-me com estes pensamentos, se não é com este tipo de ideias, ou de ilusões, que a vida se constrói? O mais importante é, efectivamente, pensar em viver... É pensar no hoje... No amanhã...No futuro que é preciso construir...


Dia 28 e seguintes

O major das transmissões, do Quartel-General, veio instalar um novo sistema de rádio.
Mandaram para cá, também, um pelotão de Cavalaria, com as auto-metralhadoras blindadas.
A tropa e os nativos iniciaram a construção de novos abrigos, e a melhoria dos já existentes.
Quem sabe...Talvez estejam para vir dias ainda piores...
Temos que estar preparados para o que der e vier... Buruntuma fica mesmo junto da linha de fronteira e os gajos não têm grandes dificuldades em se aproximar do aquartelamento para nos atacar.
Eles têm a protecção de um santuário.
Nós encontramo-nos em terreno descoberto.

*

Buruntuma esqueceu depressa aqueles dias terríveis e regressou a uma vida pacata e normal, feita do labutar diário dos seus homens, das orações balbuciadas em comum, na pequena mesquita, várias vazes ao dia, e da esperança em Alaah, o Deus que maioritariamente este povo adora.
As populações enterraram os seus mortos, com mágoa e preces, e embora vivendo no receio de um novo ataque, ao verificarem que chegavam mais reforços militares continuaram a confiar na protecção do homem branco.

De além fronteira, quando os ânimos se acalmaram, começaram a chegar algumas informações trazidas pelos nativos que se deslocavam ao nosso território.
Os ataques que sofremos tinham sido concretizados pelas tropas regulares da República da Guiné-Conakry, aquarteladas em Kadica. Mas, o preço que pagaram foi bastante pesado. Grande parte das suas instalações ficaram arrasadas pelo fogo dos nossos morteiros, e a guarnição, devido às pesadas baixas sofridas teve de ser imediatamente substituída.

Por outro lado, vendo quanto era frágil a protecção que o Governo de Conakry lhes garantia, as populações começaram a abandonar a zona fronteiriça, o que para as nossas tropas não deixou de ser negativo.
Com efeito, não havendo tabancas habitadas e movimento de pessoas, deixa de haver fluxo de informações sobre o movimento das forças da guerrilha e sobre a sua localização, o que dificulta a programação das nossas actividades.

A partir do ataque, como nas casernas e messes a protecção contra armas de tiro curvo (morteiros) era quase nula, todos os soldados passaram a dormir em abrigos subterrâneos.
À entrada dos abrigos, que mais não eram do que pequenos antros, improvisaram-se pequenas plataformas cobertas com panos de tenda, e todas as noites permanecíamos ali jogando as cartas e bebendo Whisky. Só mesmo quando os mosquitos se mostravam insuportáveis, ou os últimos cubos de gelo acabavam por derreter-se, ao mesmo tempo que o Whisky desaparecia da garrafa, cheios de sono, íamos dormir.

De noite, quando acordava, sentia os ratos, sem grandes cuidados, mexerem-se por entre os toros da madeira de que era feito o tecto do abrigo.
Pelas seteiras daquela espelunca, durante a noite, entrava uma aragem muito branda, ligeiramente fresca, que enchia de prazer o meu corpo seminu, estendido sobre a cama, que em simultâneo ia ficando coberto pelo pó que os ratos, ao deambular pelo tecto do abrigo, iam soltando do madeirame.

As noites passavam-se depressa e o despertar era sempre muito cedo.
Na messe, ao pequeno almoço, havia sempre café com leite condensado, chá gelado e pão com manteiga.
Ao meio da manhã era sempre costume fazer-se algum petisco.

De quando em quando, de jeep, fazíamos visitas à tabanca.
Era sempre o capitão a conduzir a viatura.
Ele andava sempre em tronco nu, muito à vontade, exibindo sem qualquer complexo os quilos de banha que se lhe escapavam dos calções, superiormente apertados por um cinto de lona.
Ele parava a viatura à porta das palhotas, recebia cumprimentos da população que o estimava, abraçava-se às bajudas que se lhe vinham sentar sobre os joelhos e, sempre a sorrir, o jeep superlotado de criançada, regressávamos ao quartel..

E foi assim que Buruntuma esqueceu os últimos dias de Maio de 1966, o terror e a morte, o sangue e as lágrimas, o desespero e o ódio, regressando a uma existência pacífica, despreocupada e feliz, da qual todos os homens sentem a fome.
Após uns dias de pesadelo, sombrios e sinistros, a gente boa e simples desta terra teve de novo a existência calma que merece.

As preces a Allah, o Deus que este povo adora, e a quem se reza muitas vezes ao dia, puderam de novo, serenamente, sair dos lábios destes muçulmanos bons e generosos, convictamente devotos.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14394: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (10): Operação Cernelha

Guiné 63/74 - P14697: Inquérito online: "Os 'nosso filhos da guerra' deveriam poder ter acesso à nacionalidade portuguesa"... A grande maioria (84%) dos respondentes (num total de 94) está de acordo


Foto de Júlio Tavares (1945-1986), publicado no blogue da sua filha Marisa Tavares, Are  you my brother ? (http://omadragoa.blogspot.com/ ) (*).

 O Júlio Tavares, mais conhecido por "O Madragoa",  foi sold cond auto, CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69), a mesma unidade a que pertenceu o nosso saudoso Victor Condeço (1943-2010).

O blogue foi criado em 2010, com o objectivo de encontrar um irmão  guineense, um filho que o seu pai terá tido em Catió, conforme confissão feita por ele na hora da sua morte, em 1986. Qualquer informação sobre o paradeiro do seu meio-irmão guineense (,hoje com 46/47 anos, se  ainda estiver vivo,) pode ser enviada para o email da Marisa Tavares, hoje canadiana,  e de quem também já não temos notícias há muito:  mt_iphone@rogers.com



I. SONDAGEM: OS "NOSSOS FILHOS DA GUERRA" DEVERIAM PODER TER ACESSO À NACIONALIDADE PORTUGUESA


Resultados finais (n=94):


1. Discordo totalmente  (n=1) / 2. Discordo  (n=1)  (2%)

3. Não discordo nem concordo / Não sei  (n=13) (14%)

4. Concordo (n=38) (40%)


5. Concordo totalmente  (n=41) (44%)


A sondagem fechou às 22h do dia 30 de maio p.p.


II. Comentários,  para quê ? 

A grande maioria dos amigos e camaradas da Guiné, leitores deste blogue, estão de acordo quanto á possibilidade de atribuição da nacionalidade portuguesa àqueles/as dos/as filhos/as, concebidos/as durante a guerra colonial (grosso modo, entre 1961 e 1974), filhos de pais, militares portugueses,  e de mães guineenses.

A nossa sondagem parece ser conclusiva: 84% dos respondentes (numa amostra não aleatória de 94 votantes) está de acordo com a proposição, segundo a qual "os 'nossos filhos da guerra' deveriam poder ter acesso à nacionalidade portuguesa", se assim o desejarem ou requererem.

Os também conhecidos como filhos do vento poderão ter hoje entre 40 e 50 anos e, no caso da Guiné-Bissau, não deverão ultrapassar os 500 indivíduos de ambos os sexos, a viver em Portugal e a Guiné-Bissau, segundo estimativas da Conservatória de Registo Civil de Bissau que recebe os pedidos de nacionalidade com base na paternidade portuguesa (Fonte: Catarina Gomes, "Embusca do pai tuga", Público, 14/7/2013).

 A Associação "Fidju di Tuga", com sede em Bissau, que luta pela defesa dos direitos destes homens e mulheres, achava a estimativa conservadora. O mesmo pensam outros observadores (e atores) da realidade guineense como o nosso amigo Cherno Baldé.

A jornalista Catarina Gomes, que é uma profunda conhecedora deste dossiê, recorda a situação, algo similar, dos filhos dos soldados americanos no Vietname:

(...) "A história de guerras em que os combatentes que vão lutar fora do seu país deixam filhos não é uma realidade nova. No século XX, há, por exemplo, casos de alemães que, na Segunda Guerra Mundial, deixaram filhos de francesas que depois foram ostracizadas.

"Nos Estados Unidos, os filhos dos soldados americanos com mulheres vietnamitas até têm nome, chamam-lhes amerasians (fusão das palavras americanos com asiáticos). De tal forma o assunto se tornou público, que estes 'filhos do pó', como eram conhecidos no Vietname - cresceram muitos deles em orfanatos ou tornaram-se sem-abrigo - ganharam direito ao estatuto de imigrante americano de forma automática. Em 1987, o Amerasian Homecoming Act deu-lhes esse direito, sem necessidade de haver provas de paternidade, bastava terem a mínima presença de traços físicos ocidentais. 

"Ao abrigo da lei, emigraram para os Estados Unidos 26 mil filhos e mais 75 mil dos seus familiares.
Um estudo publicado no Journal of Multicultural Counseling and Development sobre este universo concluiu que 76% desejavam conhecer os seus pais, mas só 33% sabiam os seus nomes. Outros 22% tinham tentado estabelecer contacto, mas só 3% tinham tido a oportunidade de conhecer os seus pais biológicos" (...) (Fonte: Catarina Gomes, "Embusca do pai tuga", Público, 14/7/2013).

Pode perguntar-se: amigos e camaradas, o que é que o nosso blogue pode fazer, mais e melhor, por estes "nossos filhos da guerra" ? Para já vai dando visibilidade a um problema que era também, até há alguns anos atrás, mais um dos "esqueletos guardados no armário" da história da guerra colonial.

A Catarina Gomes tem um endereço de email expressamente destinado ao envio de informações julgadas relevantes para "a busca destes filhos de ex-militares portugueses":
filhosdovento@publico.pt.

O seu trabalho de investigação jornalístico já se estendeu entretanto também a Angola. No dia 29 de maio último, ela voltou á Guiné-Bissau, "por sua conta e risco". Ou seja, ele já não é apenas uma jornalista, é uma também  ativista na luta pela defesa dos direitos destes homens e mulheres, "nossos filhos da guerra",  que carregam às costas um passado de humilhação. discriminação e sofrimento. Na realidade, é esperado que os governos de Portugal e da Guiné-Bissau possam fazer algo mais por estas vítimas, colaterais, da guerra.

Apraz-nos registar, por outro lado, que a reportagem Filhos do Vento, de Catarina Gomes (texto), Ricardo Rezende (vídeo) e Manuel Roberto (fotografia), foi distinguida, em 2014, com o Prémio Gazeta na categoria Multimédia, atribuído pelo Clube de Jornalistas.

E, por fim, recorde-se que não são apenas os filhos (guineenses) a procurar o "pai. tuga".. São também os irmãos (portugueses) a procurar os irmãos guineenses... Recorde-se aqui o caso, comovente,  da Marisa Tavares, que vive no Canadá (*). O seu blogue ainda continua ativo; Are you my brother ? [Em português, és meu irmão ?], sinal de que ainda não encontrou o irmão de Catió, que a estar vivo deverá ter 46/47 anos...  O pai, ex-sold cond auto, esteve em Catió e Ganjola, entre 1967/69 (vd. foto acima).

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quarta-feira, 3 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14696: Efemérides (192): finalmente uma justa homenagem às enfermeiras paraquedistas, no 10 DE JUNHO de 2015; programa do Encontro Nacional dos Combatentes no próximo 10 de Junho, em Belém, Lisboa (Rosa Serra)

1. A nossa Camarada Enfermeira Paraquedista Rosa Serra enviou-nos o programa das cerimónias do próximo 10 de Junho - Encontro Nacional dos Combatentes em Belém. 







Caros Amigos e Amigas:


Se quiserem reencaminhar para os vossos amigos e conhecidos tal como estou eu a fazer, aqui envio o programa para o dia 10 de Junho. 

Beijinhos,  Rosa


Vivam, bom dia. 

Envio este poster com o programa do Encontro Nacional dos Combatentes no próximo 10 de Junho em Belém.

Este ano teremos finalmente uma Homenagem ás Enfermeiras Paraquedistas, acto da maior justiça e satisfação para todos nós.

Convocamos todos a participarem e a divulgarem esta tão importante Cerimónia!

Francisco Van Uden 
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

31 DE MAIO DE 2015 > Guiné 63/74 - P14682: Efemérides (191): Aquele dia inextinguível (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52)

Guiné 63/74 - P14695: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte I): Op Jigajoga, 24 de junho de 1967, o meu dia de São João


Guiné > Zona leste >  Carta de Bambadinca (1955) > 1/50 mil > Posição relativa de Sinchã Jobel, no regulado de Massomine. Bambadinca ficava a sul, e Bafatá a leste.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015)


I. Por sugestão do nosso grã-tabanqueiro nº 2 (em termos de antiguidade), Sousa de Castro,  e por empenho do nosso coeditor Carlos Vinhal, resolvemos republicar alguns postes do A. Marques Lopes, e nomeadamente sobre Sinchã Jobel, uma base ("barraca") do PAIGC, em pleno coração da Guiné, na zona leste, no regulado de Mansomine, a norte de Geba. São os postes nº 35, 36, 39, 40 e 45... Mais tarde, o A. Marques Lopes escreveu um outro, o nº 763, na sequência de uma das suas viagens de "viagem de saudade". Fizemos a revisão de texto (e atualizámos o texto de acordo com a ortografia em vigor). (*)

Como muito bem lembra o Sousa de Castro, "são postes publicados há 10 anos, numa altura em que o número de tabanqueiros era diminuto, o blogue [, I Série,] era visto por poucas pessoas", pelo que, em sua opinião, "deveriam voltar a ser reeditados, não só estes como muitos outros".

Pois aqui vai a nossa resposta ao repto do Sousa de Castro, Recorde-se, entretanto,  que o A. Marques Lopes, coronel inf, DFA, na situção de reforma, foi alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967/1968)  e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), era membro, em 2005,  da direção da delegação do norte da Associação 25 de Abril (A25A), e é em termos históricos, o nosso quarto grã-tabanqueiro mais antigo, depois de mim, do Sousa de Castro e do Humberto Reis.

Por outro lado, ele acaba de lançar o seu primeiro livro de memórias "Cabra-cega: do seminário à guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015),  (**) E as estórias/histórias de Sinchã Jobel não podiam deixar de lá entrar... (LG)



Guiné-Bissau > Bissau > Restaurante Colete Encarnado > 21 de Abril de 2006 > Dois homens que combateram, um contra o outro, em 1967/68: nosso camarada A. Marques Lopes e o comandante do PAIGC Lúcio Soares. (***)

Foto: © Xico Allen (2006). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


II. Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte I)


1. Na primeira metade de 1967, o PAIGC montou uma base de guerrilha em Sinchã Jobel (*). Sem querer, fui eu que dei com ela. O responsável militar dessa base era o comandante Lúcio Soares, que foi, depois da independência, ministro da Defesa. O responsável político era Cabral de Almada, conhecido como comandante Gazela, que foi depois vice-presidente da Assembleia Nacional Popular.
Quando estive na Guiné-Bissau, em 1998, pouco antes do golpe de Ansumane Mané, tive uma conversa muito interessante com o comandante Gazela: lembrámos muita coisa sobre Sinchã Jobel, falámos dos problemas do povo guineense, concordámos que era melhor não termos andado aos tiros uns aos outros (pediu-me desculpa por me ter mandado para o hospital, “mas teve de ser assim”...)... e demos um abraço de despedida.

O objetivo do que mando hoje é lembrar tudo aquilo que nenhum de nós pode esquecer. Para mim também pode ser a, tão vilipendiada, por alguns, catarse de mágoas e fantasmas, não tenho problemas em ter consciência daquilo que fui e daquilo que sou.

2. Operação Jigajoga. 24 de Junho de 1967:

"Situação particular:

"O IN tem-se revelado em operações realizadas no regulado de Mansomine, ataques a tabancas, a aquartelamentos e outras flagelações. Deve existir algum acampamento que lhe sirva de base para a execução de ações sobre as NT e populações que nos são fieis.

"Missão:

"Assegura a ocupação do Setor, tendo em atenção os regulados da faixa oeste e as linhas de infiltração que conduzam ao interior. Deteta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no setor, impedindo que a subversão alastre. Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afetadas.

"Força executante:

- 1 Gr Comb da CART 1690 reforçada 1 PEL MIL/CMIL 3 [Dest A]
- 1 PEL do EREC 1578  [Dest B]

"Desenrolar da acção:

"O PEL REC/ EREC 1578 saiu de Bafatá pelas 05h00, tendo-se-lhe reunido em Sare Geba o Gr Comb da CART 1690 e em Sare Gana o PEL MIL. Entretanto o Dest da CMIL 3 em Sare Madina efetuava a picagem do itinerário Sare Madina-Ponte Rio Gambiel.

"Em Sucuta (Madina Fali) o Dest A iniciou a progressão apeada em direção a Sinhã Jobel e o Dest B o patrulhamento do itinerário Cheuel-Ponte Rio Gambiel. Depois de atravessar a bolanha de Sucuta, o Dest A detectou pegadas bastantes recentes, deduzindo que se tratasse de una sentinela IN. Junto a Sinchã Jobel as NT foram emboscadas por um grupo IN numeroso, com mort. 82, LGF, MP e Armas Aut., tendo sofrido um ferido grave e 5 feridos ligeiros. Da reação das NT o IN sofreu 3 mortos confirmados e 3 prováveis.

"Em consequência do pequeno efetivo das NT, da manobra efetuada com pequenos grupos, do grande potencial de fogo IN e da mata bastante densa desapareceu o cmdt do Dest A,  Alferes Lopes, que havia saído de um grupo de manobra para ir a outro trazer um LGF. 

"Como o grupo já não se encontrasse no local previsto pelo Cmdt do Dest A, este viu-se sozinho e a ser alvejado pelo fogo IN pelo que se internou na mata. Pelo que em cada grupo se pensava que o cmdt estava no outro, não foi dado grande importância ao facto. Só depois de reunidos todos os grupos se verificou a falta do cmdt. O furriel, agora cmdt do grupo de combate, resolveu - porque sendo o seu efetivo reduzido, para o potencial de fogo IN, porque tendo 6 feridos, um dos quais grave e tendo ainda o LGF avariado - regressar a Sucuta para pedir reforços. 

"Em Sucuta, onde já se encontrava o Dest B ao corrente do sucedido por via rádio, foi resolvido pedir reforços ao comando do BCAÇ 1877.

"Comunicado ao comando do BCAÇ 1877, saiu imediatamente um Gr Comb / CCS constituído pelo PEL REC Inf e pelo PEL Sap. que juntamente com forças da CART 1690 efetuou uma batida na área de Sinchã Jobel até cerca das 21h30, sem resultado e sem contacto com o IN. 

As forças empenhadas na batida e o PEL EREC 1578, que estava a fazer a segurança às viaturas e o patrulhamento do itinerário Cheuel-Ponte Rio Gambiel regressaram a Geba e Bafatá cerca das 23h30.

"Pelas 09h30 do dia 25 de junho de 1967  saiu o Gr Comb CCS/BCAÇ 1877 que, juntamente com as forças da CART 1690, iriam novamente bater a zona de Sinchã Jobel. Ao chegar a Sare Geba foi-lhes comunicado que o alferes Lopes já tinha aparecido, tendo o Gr Comb CCS regressado a Bafatá.

"Resultados obtidos:

-A deteção de um grupo IN numeroso e bem armado na região;
-A morte confirmada de 3 elementos IN mortos e alguns feridos prováveis.»

3. Foi o meu dia de S. João,  em 1967. O alferes Lopes referido era eu. Fui o principal interveniente, mas não fui eu que fiz o relatório (foi feito antes de eu aparecer e enviado para Bissau logo que apareci, e eu fui dado como desaparecido em combate antes de aparecer).

O que sucedeu é que eu tive uma certa sensação de perigo (o subconsciente a funcionar?...) e deixei duas secções na clareira de Sinchã Jobel (onde havia essa aldeia, mas que estava destruída já) e avancei eu e um furriel com outra para atravessar a clareira. 

Talvez um dia, quando eu acabar de escrever a minha estória, se saiba tudo o que aconteceu. Não vale a pena referir todas as inverdades nele contidas - há gente ainda viva e culpas no cartório. Só uma: eu que estive lá e que passei lá toda a noite (e sobre isso escrevi o tecto "Na bolanha dá para pensar"...). Eu sei muito bem que não morreram nem ficaram feridos quaisquer elementos do IN!

E uma outra coisa: como podem ver pelo início do relatório ("Situação particular"), os burocratas já suspeitavam que podia haver ali uma base de guerrilha. MAS NÃO ME DISSERAM NADA! Eu e trinta mecos fomos carne para canhão!! Por alguma razão deram à operação o nome de Jigajoga: em qualquer dicionário de português, quer dizer jogo da cabra-cega, ou, em sentido figurado, ludíbrio, engano, coisa pouco firme... Foi assim que nos trataram.

Vou contando, depois, mais estórias de Sinchã Jobel.

_________________

Notas do editor:

(*) Vd, poste de 30 de maio de 2005 > Guiné 63/74 - P35: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

(**) Vd. poste de 26 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14662: Agenda cultural (403): Lançamento do livro de memórias "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", Biblioteca Florbela Espanca, Matosinhos, 3 de junho, 15h30: convite do nosso camarada A. Marques Lopes, cor inf DFA, reformado

(***) Vd. poste de 16 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - P761: Do Porto a Bissau (16): Encontro com o IN (A. Marques Lopes)

(..) Desta vez, este encontro não meteu tiros, como sucedeu naquele dia 24 de Junho de 1967, durante a operação Jigajoga (...). Ao invés, tivemos que nos haver, em conjunto, com os belos pratos do restaurante Colete Encarnado, em Bissau, e isto sucedeu na noite do dia 21 de Abril de 2006, já eu e o Allen estávamos sozinhos (os restantes tinham regressado a Portugal no avião da tarde).

Através do nosso grande amigo Pepito, consegui o telefone do comandante Lúcio Soares, convidei-o para jantar e ele acedeu prontamente a estar comigo e com o Allen. Não tenham dúvidas que foi um encontro emocionante para mim, estar com o chefe guerrilheiro que montou a emboscada que me fez ficar uma noite na bolanha de Sinchã Jobel (...) e que, mais tarde, me mandou nove meses para o hospital (...).

Falámos sobre isso, e mostrou ser um homem calmo e comedido. Ele tem agora 64 anos e chegámos, pois, à conclusão que andámos aos tiros um ao outro, eu com 23 anos e ele com 25, eu mandado para lá sem quaisquer objectivos pessoais, a não ser sobreviver durante a missão que me foi imposta, e ele, como me disse, com o objectivo muito assumido de lutar pela independência da sua terra.

Concordámos que foi pena as coisas se terem passado como passaram, que era melhor ter encontrado outra forma menos dolorosa de resolver o conflito imposto.(...)

Guiné 63/74 - P14694: Os nossos seres, saberes e lazeres (97): Tomar à la minuta (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 4 de Maio de 2015:

Queridos amigos,
Junto mais alguns retalhos alusivos à magnífica cidade de Tomar.
A fatia de leão vai para o Convento de Cristo e depois para a Igreja dos Templários, chamam-na Santa Maria dos Olivais.
Não querendo cansar-vos, informo que a viagem não acaba tão cedo, porque há matas e arvoredos, há o Nabão, há monumentos soltos que nos prendem a atenção, há detalhes de edifícios que são assombrosos, há casas de pasto onde apetece estar, para além do bom comer, há arte, há natureza e acima de tudo a calma peculiar desta cidade que já foi fabril em terrenos de lezíria.

Um abraço do
Mário


Tomar à la minuta (2)

Beja Santos


O passeio é mesmo despretensioso, qual Salomé a dançar em frente a Herodes, procuro cativar o leitor para os múltiplos atrativos da cidade do Nabão. Já se falou no Museu dos Fósforos, percorreu-se a Igreja da Misericórdia, aqui fica o seu belo teto de caixotão, tão severo como a arte da Contra-Reforma que D. João III impôs lá em cima no Convento, bem perto da Charola Templária, subimos ao castelo e deu-se conta de que a deambulação tem sempre melhores resultados quando se pode contar com guia fiável. O Paço está arruinado, corre-se o risco de olhar para aquilo como boi para palácio. Há que descodificar, ler sinais esfumados, veja-se este fresco que não sabemos interpretar.


Um desses orgulhos efémeros dos fotógrafos amadores tem a ver com os ocasos da sorte, veja-se este céu turquesa, a quase transparência das pedras e o fresco a exigir um comentário, uma contextualização. Por aqui andou quem comandou a Ordem de Cristo, muitos cavaleiros templários e por aqui passam os visitantes ansiosos de contemplar a charola renovada. No fim deste texto, indica-se um link onde o leitor mais interessado encontrará matéria para refletir sobre o futuro deste edifício ímpar, foi sempre um encontro de culturas, é compreensível que continue assim, com muitos acertos e boas intervenções pelo caminho.


É a janela mais bonita que há em Portugal, chamada do capítulo por corresponder à claridade por ela pode entrar para iluminar a Sala do Capítulo, dele se avista, num ângulo espetacular a entrada da charola, D. Manuel I deve ter feito deste espaço um dos acometimentos da sua magnificência, não se poupou a gastos para ser cantado na posteridade, deve ter um entusiasmo muito sui generis, e acertou, ninguém lhe leva à palma, toda a janela é esplendorosa bem como os motivos ornamentais que a cercam.


Não é por acaso que os apaixonados pelo esoterismo, pela cabala e pelos mistérios demiúrgicos aqui vêm buscar sinais de um transcendente que um dia se decifrará mais além das investigações da pujança do estilo manuelino. A guia falou-nos da apoteose entre o mundo terreno e o do altíssimo, aqui bem espelhados pelo génio do cinzel, e o mais curioso de tudo é que as dezenas de visitantes olhavam para isto tudo com estupefação, não é só o inesperado, é o delírio caligráfico e, como é óbvio, haver aqui enigmas que permitem que cada um tenha a sua verdade.


Passa-se pelo claustro de D. João III, anda-se pelos corredores conventuais, encontra-se uma cela monástica com a porta aberta. E estamos frente a frente com o delírio manuelino, o cordame marítimo, os elementos náuticos, o céu e a terra, a ascensão até Cristo. É uma pena o líquen amarelecer a pedra, nem quero imaginar a despesa para pôr a pedra ao tempo do século XVI. Há felizmente na cela um assento em pedra para ficar a meditar sobre certas grandezas deste Portugal, este arroubos de uma vontade indómita que certamente foram tidos em conta quando Fernando Pessoa escreveu a Mensagem.


Tem havido intervenções no convento, esta que vos mostro é bem feliz, patenteia a sobriedade com harmonia, gosta-se do equilíbrio da escala, sente-se que tudo resultou bem, nas dimensões, na entrada de luz, no contraste entre alvenaria e a pedra trabalhada.


Houve hesitação: passear à volta do Aqueduto de Pegões ou mostrar ao leitor um outro local de mística, a igreja onde os cavaleiros templários iam rezar antes de partir para Jerusalém. Optou-se pela igreja, aqui o número oito é uma constante: o oito como sinónimo do infinito com oito degraus, oito colunas, sempre o número oito para decifrar. Temos aqui um túmulo riquíssimo, o surpreendente é que é do bispo do Funchal, mas que nunca chegou a essa diocese.


Eis Nossa Senhora do Leite, no altar-mor, deram-lhe o lugar preponderante. Faltou ao fotógrafo mestria para evidenciar que o Menino amarinha o peito da mãe, à cata do seio. Tenho pena de não estar sensível a todos estes sinais religiosos que emanam desta igreja dos templários. Atenho-me a certos pormenores, que me enchem de contentamento, uns como preservação de memória e outros como sinais da antiguidade de Tomar. Ora vejam.




Alinho aqui três imagens: sinal de que temos túmulo em pleno interior da igreja, entre os bancos onde se celebra o culto; uma capela lateral deparou-se uma imagem um pouco exótica, a santa com dois meninos, aqui precisávamos de um intérprete, um dos meninos tem a cabeça coroada; e a cor desta abside é esplendorosa, é do melhor tardo-gótico que conheço.


Sai-se da igreja e temos esta torre, parece mesmo uma torre de atalaia, domina tudo à volta, ou muito me engano ou temos aqui uma porta visigótica, quando os templários chegaram a Tomar já havia bastante história. A meu lado, alguém questionou: não será mesmo árabe? As dúvidas pairavam no ar, um dia destes vou estudar a preceito o que houve antes daqui chegar o cristianismo da Ordem do Templo.


Ficamos hoje por aqui. Fascinou-me esta nesga de céu com nuvens em movimento, o castelo ao fundo, a mata à esquerda e no primeiro plano os vestígios da vida urbana que se adensam centenas de metros à frente. Tenho muita satisfação em mostrar mais coisas ao leitor, outras dimensões da arte, registos dentro do casco histórico, e por aí adiante. Até breve. E não se esqueçam de abrir este link e mergulhar no passado, presente e futuro do Convento de Cristo: http://z3950.crb.ucp.pt/Biblioteca/mathesis/Mat18/Mathesis18_177.pdf
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14669: Os nossos seres, saberes e lazeres (96): Tomar à la minuta (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14693: Fotos à procura de... uma legenda (53): Ou le(ge)ndas e narrativas.. à procura de fotos (Luís Graça)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3



Foto nº 4



Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8



Foto nº 9



Foto nº 10

Lisboa, 2015... Um fotógrafo à procura de fotos para as le(ge)ndas e narrativas de guerra... Talvez o leitor o possa ajudar, ao pobre do editor de serviço... Em boa verdade,  é um lugar solitário, este, como o do sentinela na sua guarita.... Que importa que o blogue tenha tido ontem quase 8 mil visualizações de página, se nem bom dia, boa tarde ou boa noite os apressados visitantes dizem ao camarada que está de serviço no seu posto solitário, à espera das lendas e narrativas dos bravos do pelotão ?...


Fotos: © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados


 Legendas... à procura das suas fotos

Às veses o pobre do editor 
olha para o ecrã vazio do computador,
vasculha a caixa de correio, 
mexe e remexe no lixo do SPAM 
que lhe chegue todos os dias,
e desespera de esperar por novas da guerra
que já devia ter acabado há manga de luas,
no século passado,
no minúsculo território da Guiné,
que ia do Cacheu a Cacine...

Pode ter acontecido
que a batalha tenha demorado 
mais do que o planeado pelo major de operações,
e que alguém se tenha aleijado,
na ida ou no regresso pela picada do inferno,
e venha agora,
numa improvisada maca feita de ramos de arbusto e de lianas,
aos ombros dos exaustos, famintos e desidratados 
bravos do pelotão.

Pode ser que tenha sido decretada uma pausa na guerra 
para lamber as feridas dos combatentes
ou simplesmente para comer a maldita ração de combate.
Pode ser que o capitão
já tenha pacificado a terra e as suas gentes.
Pode ser que os negociadores da paz
tenham chegado a um acordo de cavalheiros.
Pode ser, quem sabe ?!
Ou pode ser, 
e até ordem em contrário,
que a guerra continue dentro de  momentos.

Dizem, os mais cínicos, 
que a guerra nunca acaba
para os que a fizeram, ganharam e perderam.
Mas dizem também as amantes,
as noivas,
as viúvas,
as bajudas que ficaram por casar,
as madrinhas de guerra
que soldado tem saudade,
saudade mórbida,
como diz a letra do fado,
e que seria  capaz de voltar ao local
onde penou, amou, sofreu, morreu, matou, 

viu e venceu, ou não.
Mas ele nunca fala dessa ideia obsessiva
que o atormenta,
tanto na alcova
como nos convívios das tabancas, 

pequenas e grandes, 
espalhadas por esse mundo fora,
que esse mundo é pequeno
e a sua tabanca deveria ser grande,
mas não o é,

suficientemente grande
para nela poder caber tudo o que haveria para dizer
e nunca se diz,
não tanto por pudor,
mas sobretudo pelo nó na garganta,
que se segue ao dedo emperrado no gatilho.


Nas noites de insónia e de febres palúdicas,
nas emboscadas do medo,
nas corridas loucas de bagabaga em bagabaga,
ao som da costureirinha, da kalash e do RPG,
era a pura adrenalina da coragem animal
que te levava a enfrentar a cabra da morte,
olhos nos olhos,
cornos nos cornos,
mas isso nunca ficou escrito,
muito menos gravado e fotografado
para a posteridade,
os sobrevientes,
os descendentes, 
os vindouros,
os coveiros,
os padres que absolviam os pecados e davam a extrema unção,
os historiadores, ao serviço dos vencedores,
enfim, os burocratas dos contabilistas 
do deve e do haver das guerras perdidas e achadas...

Mas não sabes, palavra de honra,
o que é que esta merda de escrita
tem a ver com as fotos à procura das tuas lendas e narrativas ?!
Sempre ouviste dizer
que uma imagem valia mais do que mil palavras.
Mas hoje estás a atravessar uma crise de fé,
o mesmo é dizer de palavra...
E o que vale um homem sem fé ?
O que vale um homem,
para mais editor,
quando lhe falta(m) a(s) palavra(s) 
e lhe sobejam as fotos ?

Só lhe resta ir dormir,
que amanhã é outro dia...

LG - 2jun2015,  23h59...

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Guiné 63/74 - P14692: Parabéns a você (915): António Azevedo Soares, ex-1.º Cabo At do CMD AGR 2957 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14687: Parabéns a você (914): António Barbosa, ex-Alf Mil Op Esp do BART 6523 (Guiné, 1973/74) e Osvaldo Colaço Pimenta, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3566 (Guiné, 1973/74)

terça-feira, 2 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14691: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (6): Chegada a Nhala

1. Em mensagem do dia 29 de Maio de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

6 - CHEGADA A NHALA

29 de Abril de 1973 (domingo) 

NHALA – É o nome de uma das palmeiras de onde se extrai sura (o célebre vinho de palmeira). 
Mia Couto, in “Pensageiro Frequente”.

À chegada da coluna a Nhala, e ainda antes de termos descido das viaturas, num ápice, formou-se uma pequena multidão vinda da tabanca, sobretudo mulheres e crianças, que nos receberam com palmas, cânticos, enfim..., se não em apoteose, pelo menos com grande euforia. Fiquei entre contente e surpreso, a achar tudo um bocado exagerado. Seria sempre assim? Não foi preciso passarem muitos dias para ter uma explicação, plausível, para aquele acolhimento tão efusivo.

Nhala, 1973 – Pórtico de entrada na tabanca.

E cantavam acompanhando com palmas:
Periquito vai pró mato / Ó lé, lé, lé!, Velhice vai no Bissau / Ó lé-lé – lé-lé!.

Esta cantilena, soube depois, era conhecida em quase todo o território da Guiné. E eram-lhe acrescentados outros versos, que só aprendi mais tarde, muito brejeiros e, pareceu-me, ao sabor da inspiração do momento:

"Mulher grande cá tem cabaço, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dele / Ó lé-lé – lé-lé"
"Mulher grande cá tem catota, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dela / Ó lé-lé – lé-lé"

E voltavam ao princípio com o Periquito vai pró mato, etc. etc.

Desembarcados com armas e bagagens, havia que distribuir o pessoal pelas acomodações previamente preparadas pelo comando da Companhia que iríamos render, (após um longo período de sobreposição das duas companhias para o nosso treino operacional e para conhecimento da nossa área de acção).

Verificámos que o aquartelamento estava ainda em obras, com alguns edifícios inabitáveis e valas a rasgar o chão. Mas em vias de conclusão. Não foi fácil acomodar duas companhias numa área pensada para apenas uma e em vias de conclusão. Parte de nós fomos distribuídos por pequenas palhotas na tabanca. Apesar disso foi com satisfação que constatámos que iríamos ter condições condignas de alojamento. Eu, confiante, imaginava já os melhoramentos de conforto a introduzir, o arranjo e embelezamento dos exteriores que tornassem a nossa estadia mais agradável, sobretudo no regresso das saídas para o mato. Até lá, havia que desenrascar. A mim também foi destinada uma pequena palhota mesmo no início da tabanca, portanto, fora da área militar. Cabiam apenas, lado a lado, duas camas de ferro e aí fiquei com outro camarada até à conclusão das obras no aquartelamento. Nalguns casos foi até ao fim da comissão dos “velhinhos”. Pouco espaço nos restava dentro da palhota, mas era um abrigo e, além disso, tinha qualquer coisa de exótico a condizer com os cheiros, o pó e o calor de África. Pessoalmente, gostei da experiência.

Nhala, 1973 – Panorâmica (fotomontagem). 
Cortesia do meu amigo J. Roque, ex-Fur Mil Trms, a quem agradeço. Editada por mim.

Nós, a 2.ª Companhia do BCAÇ 4513, por ora estamos instalados com a companhia anfitriã 3400 do Batalhão 3852. A 1.ª CCAÇ do nosso batalhão, que chegou a Buba connosco, ficará aí instalada. Ontem (28-04-1973) a 3.ª CCAÇ e a Companhia de Comandos e Serviços (CCS) já tinham chegado a Aldeia Formosa, sede do Batalhão. Tal como a nossa 2.ª CCAÇ, todas as outras ficarão em sobreposição para treino operacional com as companhias que mais tarde renderão.

A CCAÇ 3400 que viemos render, já tem 22 meses de comissão. Não se apercebem bem mas estão todos muito “apanhados do clima”, desde o soldado ao mais graduado, às vezes com reflexos na disciplina. Dizem-nos que nunca tiveram problemas nem dentro nem fora do aquartelamento. Julgam que isso se deve à proximidade de vários “carreiros” – ou trilhos – dos turras que cruzam a sua área de intervenção. É uma teoria. Mas a informação que nos dão do resto do Sector, (por onde passam alguns destes “carreiros”), é preocupante. Os problemas têm acontecido um pouco por todo o lado: Cumbijã, (ocupada recentemente (03-04-1973) pela CCAV 8351), Colibuia, Mampatá e, até, Aldeia Formosa.

Mais grave que tudo isto, para mim, é que a nossa chegada à Guiné em Março, coincide com a introdução no território, dos mísseis antiaéreos STRELA de origem soviética. O que parece significar que os voos, principalmente os militares, vão ficar condicionados. Perante estas perspectivas, num cenário de guerra que já é muito cinzento, o capitão “velhinho” da CCAÇ 3400, que me pareceu muito afectado pela longa comissão, muito pessimista e sombrio, disse, a certa altura referindo-se a nós: ... Se ficarem muito tempo por cá, vai acontecer-vos como aconteceu na Índia: serão empurrados até ao mar e atirados à forquilha para dentro dos barcos. Animador!

Nhala em 30-06-1973, vendo-se viaturas e máquinas da Engenharia que estão em trânsito.

Já noite, (primeira noite em Nhala), deu-se o primeiro acidente dentro do aquartelamento: um soldado que transportava um garrafão de vidro desempalhado de dez litros, com o vinho, caiu numa vala que atravessava o aquartelamento, completamente às escuras. Tendo-se partido o garrafão, fez um corte na parte interior do antebraço que ia do cotovelo até ao pulso. Eu nunca tinha visto nada assim. Assustador. O corte não era muito profundo, mas como era longo, a pele, muito elástica, contraiu-se e ficou toda, como uma tira, do lado oposto do braço deixando-o completamente à mostra. Já na enfermaria, quando o enfermeiro começou a coser, sem qualquer anestesia, foi um espectáculo medonho. (...).

A população de Nhala é Fula. Os adultos parecem muito indiferentes em relação a nós, ou mesmo frios. Dependem muito da tropa, mas estão fartos de tropa. As mulheres e as bajudas atravessam o aquartelamento para se deslocarem à fonte que fica a pequena distância, num baixio. Está sempre alguém a passar para um lado e para o outro com bacias à cabeça e com a roupa que nos lavam.

Nhala, 1973. Centro do aquartelamento com mulheres que vem da fonte.

Fonte de Nhala, 1973. 
Fotografia cedida pelo meu amigo J. Roque, ex-Fur Mil Trms, a quem agradeço.

As bajudas, algumas bonitas, e toda a criançada são uma simpatia. É contagiante a alegria delas e um bálsamo para a nossa saúde mental. Ainda assim, como já disse, os “velhinhos” de Nhala parece que já não beneficiam desse bálsamo. Aproveitando as recomendações deles, vamos escolhendo as nossas lavadeiras. A oferta é grande, de modo que se fazem “contratações” despreocupadamente. E em matéria de sexo, como é? Já em Bolama aprendemos que há lavadeiras “que lavam tudo” por pouco mais que a mensalidade da roupa lavada. «Desiludam-se!». As fulas são muito reservadas e pouco permissivas. Contam-nos um caso ou outro de envolvimento com militares, mas excepcionais e por questões de afecto. A tropa em geral vai brincando, mais ou menos inocentemente, com as bajudas mais velhitas, mas sem consequências nem gravidade. De vez em quando, por ocasião da entrega da roupa lavada aos soldados, lá vem uma delas fazer queixa:
- Alfero, o soldado Manel do teu pelotão, apalpou minha mama!
E eu perguntava:
- Ai, sim? E não lhe deste uma estalada?
E estava o caso resolvido.

Logo nos primeiros dias após a nossa chegada, realizou-se um encontro de futebol entre “velhinhos” e “periquitos”, que era simultaneamente uma forma de boa recepção e de integração de todos os militares. Tudo foi organizado a preceito para o grande embate: equipamentos a rigor; marcação das áreas do campo; escolha da equipa de arbitragem; colocação de viaturas ao longo do campo para a assistência; enfim..., tudo indicava que ia ser uma tarde bem passada em sã camaradagem. Mas não foi, pois ainda na primeira parte, devido a qualquer desentendimento que não recordo e que originou algumas agressões, fez com que tudo descambasse numa violenta e generalizada batalha campal. Mais grave, é que envolveu parte da assistência constituída por militares e numerosos nativos. Ora, estes, que no decorrer da partida tinham tomado partido pelos “periquitos” mas de forma muito agressiva e exaltada, saltaram para o campo e usaram de toda a brutalidade na refrega, a que os “velhinhos” responderam de igual modo. Eu, que estava a assistir, ainda tentei intervir aos berros, separando aqui e ali mas, quando vi um “branco” bater com toda a violência com um barrote na cabeça de um “preto” que estava deitado no chão, percebi que aquilo estava fora de controle e desatei acorrer para ir avisar o capitão dos “velhinhos” e o da minha companhia para que tomassem medidas. Ainda corria para o aquartelamento e já alguns nativos corriam para a tabanca aos gritos:
- Traz morteiro! Traz morteiro!
À entrada do aquartelamento também um soldado se agachava virado para a população a tentar montar uma HK-21.

Depois de ter comunicado a situação aos superiores ainda corri ao campo mas, o que vi, fez-me desistir e voltar para trás. Foi então que assisti, incrédulo, à situação mais insólita da minha comissão: a meio caminho e a marchar na direcção do campo, passa um pelotão de velhinhos, talvez uns dez, formados dois a dois e comandados por um furriel, todos muito sérios e cadenciados, com a G3 ao ombro como se fossem arrear a bandeira. Mas o que me deixou perplexo e me fez parar para os ver passar, foi que todos usavam um capacete feito de cabaças cortadas ao meio tendo na frente pintadas as letras PM.

À noite na messe de oficiais todos comentámos os incidentes que poderiam ter tido um desfecho irremediável. O capitão anfitrião foi peremptório: os ânimos foram acirrados pelos elementos da população que, desde o início, estavam a tomar partido pelos “periquitos”. Era a forma deles colherem as simpatias da nova tropa, de quem iriam depender no futuro. Disse, ainda, que já conhecia a “receita” de experiências anteriores, para além das suas alianças interesseiras. Já não precisavam dos “velhinhos” que estavam de saída! Era uma opinião. Que carecia de confirmação. Mas, a ser assim, estava explicada a calorosa recepção que nos fizeram no dia da nossa chegada a Nhala.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14637: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (5): A caminho de Nhala