sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15475: Inquérito 'on line' (22): Dois terços dos respondentes admitem que já caíram (ou foram tentados a cair) no 'conto do vigário", alguma vez na vida (civil e/ou militar)... Mais respostas dos nossos leitores precisam-se até 2ª feira, dia 14, de manhãzinha...

Amigos/as e camaradas:

A altura é má... É já Natal por todo o lado, há excesso de ruído, luzinhas, estrelinhas, anúncios, desperdícios, tentações, consumismos, stress, excitações, musiquinhas, futilidades, guloseimas, embrulhos, lixo, barbas postiças de pais natais,  brinquedos a mais e brincadeiras a menos, e sobretudo gigantescas máquinas de marketing comercial a funcionar... por mor do PIB nosso de cada dia...

O essencial da mensagem natalícia, essa, perde-se... num mês e num ano em que importantíssimas, dramáticas, decisões estão a (ou têm de) ser tomadas pelos grandes deste mundo, os grandes dos países ricos e dos países pobres, para ainda irmos a tempo (, se tivermos tempo,) de salvar a nossa "casa comum", o planeta azul, seriamente ameaçado com as alterações climáticas induzidas pelo bicho homem...

Mas todo o mundo adora o Natal, dizem, e não passa sem ele ... Ontem como hoje, no "mato" ou na "cidade"... Afinal, a vida é circadiana, andamos sempre à volta do mesmo....E todos os anos, felizmente, há Natal, sinal de que a vida continua e que nós ainda estamos por cá, prontos para gastar mais um par de botas e arrancar mais doze folhas do calendário...

No nosso blogue, a vida (de)corre, mais calmamente, com mais um inquérito de opinião que só serve para "aquecer o ambiente" (, no bom sentido da expressão...)  e pôr-nos em contacto uns com os outros. 

O tema foi lançado pelo Juvenal Amado, o mais recente escritor (encartado) da Tabanca Grande, com livrinho já aí está à venda nas lojas da Chiado Editora. (Recorde-se o título: "A tropa vai fazer de ti um homem")... E acarinhado pelo Valdemar Queiroz, rapaz da praça do Chile a quem um marinheiro de Alfama quis contar um esfarrapado conto do vigário a bordo do avião da TAP, aquando da vinda de férias à "metrópole", aí p'or volta de 1969 ou 1970...

Publicam- se abaixo os primeiros resultados da nossa inquirição "on line", à qual tinham respondido uns escassos 25 leitores, até ontem á noite...

Até segunda feira de manhã, todos os otários e... vigários podem responder, usando para o efeito o cantinho superior esquerdo do blogue... E se tiverem histórias, mandem também que a gente publica, não "contos do vigário" comotambém "contos de Natal"...

A Tabanca Grande e os seus bons irãs, acocorados no alto do poilão, agradecem... Bom fim de semana, bom humor e melhor ânimo para as festas que aí vêm.. Os editores.

[Ilustrações: aerograma do Movimento Nacional Feminino, edição do natal de 1967.]
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INQUÉRITO DE OPINIÃO: "SIM, JÁ CAÍ (OU FUI TENTADO A CAIR) NO CONTO DO VIGÁRIO" (RESPOSTA MÚLTIPLA)


1. Sim, pelo menos uma vez, na vida civil > 8 
(32%)

2. Sim, pelo menos uma vez, na vida militar > 4 
(16%)

3. Sim, mais do que uma vez, na vida civil > 6 
(24%)

4. Sim, mais do que uma vez, na vida militar > 2 
(8%)

5. Não, nunca caí (ou fui tentado a cair) > 5 
(20%)

6. Não sei / não me lembro > 4 
(15%)


Votos apurados: 25 
(100%)
Dias que restam para votar: 3 [até dia 14/12/2015, 2ª feira, pela manhãzinha...

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quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15474: Agenda cultural (445): Melech Mechaya, novo DVD "Ao vivo no CCB", edição especial, limitada, numerada e autografada... Uma sugestão (quente) para prenda (certa) de Natal!




1. Página oficial dos Melech Mechaya, banda de música portuguesa, do género "Party Klezmer", criada em 2006, com músicos de Lisboa e Almada : João Graça (violino); Miguel Veríssimo (clarinete); André Santos (guitarra); João Novais (contrabaixo); Francisco Caiado (percussão).

Influências: Klezmer, Música Árabe, Música Balcânica, Música Cigana, Jazz, Tango, Fado,,.

Vd. vídeos no You Tube > Melech Mechaya

2. Lê-se na página do Facebook dos Melech Mechaya


 Wdição especial limitada, numerada e autografada! 

Não há melhor prenda de Natal do que esta!

"Melech Mechaya eletrizaram o CCB" - Ardinas.pt

"Melech Mechaya levaram ao CCB um espectáculo de grande qualidade" - Hardmusica.pt


Pré-encomendas em www.melechmechaya.com (edição limitada a apenas 100 unidades)

Preço único: 15 € (Inclui IVA e portes de envio para Portugal).


3. João Graça é nosso grã-tabanqueiro,com 90 referências no blogue.

É o violinista dos Melech Mechaya. Os Melech Mechaya têm, na Tabanca Grande, alguns fãs, já de longa data, em Lisboa, no Porto, em Estocolmo, em Bissau... O João Graça esteve na Guiné-Bissau, de 5 a 19 de dezembro de 2009, tendo oferecido cinco dias suas férias para prestar cuidados médicos à população de Iemberém. E deixou-nos aqui algumas belíssimas fotos dessa jornada.



Guiné-Bissau > Bissau > 17 de Dezembro de 2009 > Bairro popular, não identificado, onde viviam os músicos do grupo Super Camarimba de quem o João Graça se tornou amigo, depois de visitar a a famosa tabanca de Tabatô,  a "catedral" da música afromandinga da Guiné >  "È de pequenino que se torce... o violino", parece querer dizer ao João Graça o grande cantor lírico, em ponto pequeno, que aparece no grupo, ao centro... A Guiné-Bissau, terra de grandes músicos, não tem um Conservatório Nacional de Música... Quarenta anos depois do fim da guerra colonial e da independência "de jure" da Guiné-Bissau, o que é Spínola e Amílcar Cabral, se fossem, vivos, poderiam dizer a estes miúdos ?

Foto: ©  João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legenda: LG]

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P15473: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXV Parte): Uns continuaram nessas guerras, outros noutras - 1

1. Parte XXV de "Guiné, Ir e Voltar", série do nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XXV

Uns continuaram nessas guerras, outros noutras - 1

Depois de um curto período de adaptação em Braga junto da família, e sem outros motivos que o prendessem, Black resolveu esquecer tudo. Mudou-se para a terra dos Beatles, casou com uma inglesa de uma família estabelecida no comércio, não quis ficar no negócio, enveredou pela carreira de vendedor internacional, os filhos a nascer em Manchester, quando deu por si, estavam do tamanho dele. Nunca perdeu o contacto com alguns amigos de Braga, até que se decidiu pelo regresso. Vive só numa linda quinta em Vila Verde, nos arredores de Braga, onde de vez em quando é visitado pelos filhos e neta. Voltaram a encontrar-se em 2015, 50 anos depois de terem partido para a Guiné no “Alfredo da Silva”. Um reencontro inesquecível.

O Tenente Tomé da PM que o encontrou na Amura numa manhã de Janeiro de 1965, continuou a carreira, fez várias comissões, foi Ajudante de Campo em Moçambique do General Kaulza de Arriaga, o da operação “Nó Górdio”, meteu-se a fundo nos Abris todos até Novembro, enveredou pela política, foi secretário-geral de um partido da extrema-esquerda, deputado uma série de anos até se retirar. Muito tempo em major foi promovido a coronel depois de tudo sossegado.

Voltou a cruzar-se com o Leite, o alferes apanhado à mão em Sare Bacar, em finais dos anos 60, na Norma, uma empresa que prestava serviços de recrutamento e selecção, quando casualmente se encontraram para os psicotécnicos para a refinaria da Sacor em Leça da Palmeira. Depois voltaram a ver-se no Porto, na rotunda da Boavista, ambos já casados e com filhos. A última vez que se encontraram foi em meados de 80, em Braga, ia o Leite ao volante de um Mercedes.


O Capitão de Cuntima, deu-se a conhecer a muitos portugueses naquela fotografia1 do 25 de Abril em que aparece ao fundo com a mão na cabeça, numa das ruas da baixa lisboeta, aquando da sua rendição ao Major Jaime Neves e ao Capitão Salgueiro Maia. O poder revolucionário de então não esteve com contemplações, passou-o à reserva.

Chegou a ser director desportivo de um dos grandes da capital. Depois de terem regressado da Guiné viu-o de relance, em Lisboa, para os lados do Areeiro, os cabelos brancos, o resto quase na mesma.

O médico açoriano, aquele de Cuntima, foi para Coimbra, especializou-se, regressou a Angra, foi durante muitos anos o único médico a cuidar dos ouvidos, do nariz e da garganta dos açorianos. Reformou-se, mas há poucos anos ainda passava as tardes no consultório de Angra. Encontraram-se duas ou três vezes, uma delas em Angra.

O Didi! Quase uma dezena de anos sem o ver, pensou que devia ter regressado para os Brasis, lá para o Leblon dele. Uma manhã, já depois do tal Abril, viram-se frente a frente no Porto, no Hospital de S. João. Estás doente? Não, venho falar com um médico que está a tratar um parente meu.

Combinaram encontrar-se num daqueles dias na avenida da Boavista ainda mais uma vez. Dentro do carro de um deles, estiveram a pôr em dia acontecimentos passados e não é que a certa altura da conversa voltaram a trocar-se de razões por causa de um caso em Cuntima? Passou-lhes depressa o amuo, foram tomar um café ao Orfeusinho da rua Júlio Dinis. Um abraço, pá! Até sempre, Didi!

O BCav 490 continuou a encontrar-se todos os anos. Muitos encontros depois telefonaram a convidá-lo para o próximo encontro. À hora marcada, lá estava em Montemor-o-Novo. E o Didi não vem? O Didi morreu o ano passado.

O Coronel Fernando Cavaleiro, Coronel com letra grande, o melhor "alferes" do Batalhão de Cavalaria 490, não aceitou o método de escolha política para promoção ao generalato, passou à reserva como Coronel. Chegou a regressar à Guiné, para chefiar uma comissão de inquérito a um acidente com uma jangada que vitimou dezenas de militares no Corubal. Nos tempos que se seguiram ao 25/4, acusado de ter sido o promotor da manifestação da maioria silenciosa ao General Spínola, foi fechado a sete chaves em Caxias.

Num dia de Março de 2008 localizou-o num lar das Forças Armadas, em Oeiras. Vivo, o Coronel Cavaleiro? Ó meu caro senhor, o Senhor Coronel está aqui para as curvas, respondeu-lhe do outro lado do fio, o bem disposto telefonista.

Quer falar com ele? Aguente aí um pouco, faz favor, que eu vou ligar para o quarto. Atendeu uma voz de senhora. Sou um ex-alferes do BCav 490, estive em Cuntima. O meu marido deve estar no 1.º piso, sentado a ler um livro numa mesa com as cartas, à espera que apareçam parceiros para o bridge. É sempre assim, no fim do almoço.

E no dia seguinte em Oeiras, no IASFA (Instituto Acção Social das Forças Armadas), ainda não eram 14 horas, lá estavam eles, o Miranda e o Raimundo, os dois da operação “Tridente”, e o que o localizou, os três às voltas, a subirem e a descerem escadas, o senhor Coronel esteve agora aqui, procurem-no no 1.º piso. Uma sala, numa mesa ao fundo, de costas para a janela, talvez para melhor ver as cartas e as caras dos parceiros, um senhor que lhe pareceu ser ele, é o nosso Coronel. Nada que se parecesse com o Tenente Coronel que conhecera nos meados dos anos 60. Mas era mesmo ele, o Coronel Cavaleiro, talvez mais baixo uns centímetros e mais leve do que naqueles tempos. Sorriso gentil nuns olhos com manchas, ar algo débil, o Coronel de pé à frente de jovens de 60 e muitos anos. Sou o Miranda, meu Coronel, o Como, Farim, Comandos. Eu sou o Raimundo, o foto-cine da operação “Tridente”, as imagens que o Joaquim Furtado tem passado na Televisão fui eu quem as filmou. Meu Coronel, eu trabalhei poucos meses consigo, estive em Cuntima, na 489 do capitão Pato Anselmo. Pois, vocês têm que falar mais alto, o dedo apontado para um ouvido. A Guiné, bom, a Guiné foi uma doença que se entranhou em nós, Coronel Cavaleiro. Quarenta e tal anos depois voltámo-nos a descobrir uns aos outros, almoçamos uma vez por mês, falamos das nossas vidas de agora e da que levámos naquelas terras.

O Coronel, que naqueles anos media para aí um metro e oitenta e pesava seguramente oitenta quilos, à frente do trio visitante era o mais pequeno e mais magro. Estou com 70 e poucos quilos, eu que pesava 80 e tal, também estou com 91 anos, é altura de ter um pouco de cuidado. Leio, jogo bridge, ando um pouco a pé, olhem, ando aqui a ver os dias escorrer. Netos? Oito filhos, muitos netos, bisnetos, não me perguntem quantos.

Sim, vi na TV a Guerra do Furtado, só não entendi porque é que não transcreveu integralmente a carta, aliás muito pequena, que nós apanhámos a um mensageiro, aquela em que o Nino dizia que já não tinha nem gente nem população para aguentar a guerra no Como.
Sempre lúcido até morrer no verão de 2012, com 94 anos.

O Fininho, do bar de oficiais de Cuntima, meteu-se no negócio de electrodomésticos. Durante a década de 70 frequentava a zona do Carvalhido na cidade do Porto, ao volante de um Mercedes azul eléctrico. Continuou magrinho durante uns anos mais, agora está mais cheio e mais baixo. Nunca falta às reuniões anuais do 490.

O Tenente Capelão, o do Dornier ferido, passou à peluda, andou pelos Brasis, regressou a Portugal, deu aulas num seminário, tomou conta de uma paróquia, baptizou, casou e foi enterrando os paroquianos até chegar a vez dele.

Pois os vivos acabam por se encontrar, é só uma questão de os procurar. Temos que nos encontrar todos outra vez, nem que seja a última coisa que a gente faça.

É só uma questão de pedir ao Fonseca as direcções.

O João Parreira marcou um encontro para um almoço, na outra banda. Quando o barco atracou no Barreiro, figuras de cabelos brancos juntaram-se. O Mário Dias, o Valente pequeno e uma figura alta, de óculos, o Miranda, o lendário Miranda, conhecido também por Lejaune, uma figura da BD da Legião Estrangeira. O Miranda regressou à metrópole em Agosto de 65. Depois de um mês de férias foi para Moçambique e por lá viveu os conturbados tempos pré-independência. Depois deu às-de-vila-diogo, foi para a Rodésia. Também aqui sopraram outros ventos, nova retirada, desta vez para Lisboa. Com o jeito para a BD sempre na ponta do lápis.
Abraçaram-se todos, puseram as memórias em dia, descobriram coisas que tinham acontecido entre eles, que nem sonhavam. Depois mantiveram-se em contacto, trocaram fotos, livros, ideias daquele tempo. Até que um dia, sentado na cadeira da dentista, o telemóvel assinalou a chegada de uma mensagem.

Já cá fora, abriu a caixa das mensagens, era do Miranda a dizer que acabava de ser internado no Amadora-Sintra.

Que está aí a fazer, Miranda? Um cancro na bexiga, dizem eles. Vou ser operado amanhã.

O Tony Ramalho, estudante de medicina em 1963, foi mandado apresentar-se em Mafra para efectuar a recruta, após a qual foi destacado para a EPC em Santarém, onde tirou a especialidade das Panhard. Logo a seguir, que o tempo urgia, foi mobilizado para a Guiné como alferes miliciano, recebendo como missão dar instrução a naturais da então Província, organizando-os em companhias de milícias.

Companheiros assíduos, sempre que coincidia estarem em Bissau, na esplanada do Bento e nos jantares à mesma mesa do Hotel Portugal, falavam dos contrastes. A guerra ainda no princípio, mas já na brutalidade em mortos e estropiados pelas minas, armadilhas, emboscadas e flagelações, enquanto os olhos se perdiam nas maravilhosas paisagens, a presença de Portugal de mais de 400 anos praticamente ausente no interior da Província, de tal forma que, em certos locais, julgavam ser os primeiros brancos a pisá-los e a vê-los. António Ramalho, que perdera a mãe muito cedo, prometera-lhe que havia de ser médico. Fiel à promessa e ao seu desejo pessoal preparou-se para o ser. Quando regressou ao Porto deixou a música, amarrou-se aos books, não parou enquanto não se formou. Foi clínico geral, abriu consultório, especializou-se em Pneumologia, foi um dos autores do Programa Nacional contra a Tuberculose, dirigiu o serviço de Pneumologia de uma das unidades hospitalares do grande Porto, ainda há anos mantinha o lugar cativo no Dragão onde ficava mais tempo de pé que sentado, a vibrar com os golos do seu clube de sempre, e em 1975 ainda teve tempo para ser médico do Boavista do Pedroto. Já depois de reformado ainda o viu nas televisões, a falar nos cuidados a ter com o aparelho respiratório e a lutar contra o tabaco.

Em 2013 publicou as suas memórias daqueles anos. Deu-lhe um título actual “Guiné Mal Amada, o Inferno da Guerra”.

O Marcelino da Mata voltou a pegar na G3 no tempo do Governador Spínola. Fez um grupo especial de naturais da Guiné, o processo de promoção por distinção que tinha sido suspenso foi retomado, num ápice passou de cabo a sargento, cruzes de guerra incluídas, quase sem saber ler e escrever que a guerrilha exige outras habilidades. 

Em Abril de 74 estava em Lisboa e por cá ficou. Quando o filme de Abril estava a ser rodado queixou-se de que tinha sido torturado por “educadores da classe operária” no famoso RALis. Considerado como um dos militares mais condecorados por feitos em combate, aparece, às vezes, em cerimónias oficiais e em convívios.

Muitos anos depois, uma filha a estudar em Londres, quis saber mais sobre o pai, que lhe tinham dito que se apanhassem o Marcelino na Guiné o metiam num forno a arder. Dias depois recebeu a resposta.

"Conheci o seu Pai, então 1.º Cabo do Exército, em Maio ou Junho de 1965, em Brá, um aquartelamento do Exército Português a meia dúzia de quilómetros de Bissau, na estrada para o aeroporto de Bissalanca. Era um jovem com bom aspecto, ar de reguila, enérgico. Optou pelo Estado Português e como militar combateu o PAIGC, o Partido que encabeçava a luta armada. Foi a decisão que tomou, tal como milhares de Guineenses e, por isso, passou a ser um inimigo do PAIGC.

Fez parte dos primeiros Comandos que existiram na Guiné. Participou em inúmeras batalhas em praticamente todo o território. Foi sempre um militar muito valente e, por isso, várias vezes condecorado, desde a Cruz de Guerra (várias) até à Torre e Espada. O 25 de Abril encontrou-o acidentalmente em Lisboa, a independência veio logo a seguir em Setembro de 1974 e o seu Pai, tal como vários militares que se distinguiram na luta, ficou com a vida em perigo.

Muitos dos que lá ficaram foram fuzilados e ele escapou-se e fez muito bem porque se lá tivesse ficado já não era vivo há muito. Penso que hoje, com tanto tempo passado, se ele regressasse ao chão que o viu nascer, nada lhe aconteceria. Mas as previsões são apenas previsões, nunca se sabe o que poderia suceder. Quanto a essa história do forno, pode ser só isso, uma história apenas.
Podíamos estar aqui a falar do seu Pai o dia todo e, se calhar, ainda nos esquecíamos de muita coisa."

O Jamanca, o Sisseco, o Justo Nascimento, o Tomás Camará, o Bacar Jassi, o Bacar Mané e tantos outros envolveram-se a fundo na guerra contra o PAIGC. No fim, quando a paz foi assinada, ficaram-se por aquelas terras, confiaram nas promessas que lhes fizeram, não quiseram sair da Guiné. De qualquer maneira, abandonados às sortes. O PAIGC do Luís Cabral, o Presidente de então, prendeu-os. Uma rajada para o peito de cada um, nalguns casos com direito a assistência, a bater palmas, entusiasmada. Os cadáveres foram exumados quando Nino tomou o poder ao Luís Cabral, como a querer justificar o golpe da destituição.

"Acabo de ler depoimentos muito impressionantes que me fizeram recuar a minha infância em Xime, que você e muitos outros bem conhecem de outros tempos. Eu, com os meus quase 11 anos, e muitos outros, em 1974, vimos os militares do PAIGC em dois camiões de fabrico russo, um deles completamente tapado com um toldo. Passaram por Xime, de manhã, para Madina Cudjido. Passados uns 30 minutos ouvimos muitos tiros. Só que por volta da hora do almoço ouvimos dizer que foram lá fuziladas 8 pessoas. E das pessoas que nós ouvimos que tinham sido fuziladas - não sei se corresponde a verdade ou não - um deles era o tal Abibo Jau que esteve na CCAÇ 12 no Xime. A outra pessoa seria o Tenente Jamanca, da CCAÇ 21 que estava em Bambadinca.”
Extracto de uma carta de José Carlos Mussá Biai, naqueles anos menino residente no Xime.

O Sany, que lhe tratava do quarto e das roupas em Brá, depois de um episódio pouco claro em 1966, foi metido na prisão e expulso dos Comandos. Meses depois foi impedido de um capitão do QG. E para mal dele ingressou no grupo do Marcelino. Morreu em combate, esfacelado por uma granada.

O Kássimo, por feitos em combate ao serviço dos Comandos, ganhou um Prémio Governador, uma viagem à metrópole de uma semana. Antes de regressar à Guiné reencontraram-se no Porto, onde jantaram.

Depois, a vida dele levou grandes voltas. Em determinada altura foi destacado com os Comandos, Páras e Fuzos para Buba e terá sido combinado que os banhos nos balneários seguiam uma regra. Num dia, os primeiros eram os Comandos, a seguir os Fuzos e por fim os Páras. No dia seguinte, alterava-se ordem.

O Kássimo, num dia em que não tinha prioridade resolveu assumi-la. Seguiram-se empurrões, insultos, ameaças. Os camaradas não sabiam que com o Kássimo era preciso ter cuidado, muito cuidado. Foi à caserna, pegou na G-3 com o carregador metido, entrou pelos banhos e terá dito "vamos ver a ordem", antes de esvaziar o carregador da G-3, matando de imediato dois fuzos e um pára e causando um número indeterminado de feridos.

Detido, não há gente capaz de explicar os motivos que levaram à sua libertação. Os Comandos tudo fizeram para o desculpar, mas não o quiseram nas fileiras. Passou para o grupo do Marcelino. Tempos depois, envolveu-se numa rixa e matou um polícia (há quem fale em dois) em Bissau. Ninguém quer dizer também como é que se evadiu. Apareceu, já depois do 25/4, nas fileiras do PAIGC.

Depois, as informações divergiram. Uns diziam que, após novo sarilho com um dirigente da segurança do PAIGC, tinha aparecido morto. Outros, que tinha sido segurança de um importante elemento do PAIGC (da mesma etina) depois de ter eliminado dois (?) polícias e que terá desertado realmente para o PAIGC,. A informação, que parece ser mais fidedigna, diz que o António Kássimo está vivo e vive em Bissau, a trabalhar para uma empresa de um português.

Adulai Jaló foi dos primeiros Comandos. Esteve em Angola, onde participou num estágio, participou na operação "Tridente", na Ilha do Como, entre Janeiro e Março de 64, foi soldado dos GrsCmds "Panteras"(64/65) e "Diabólicos"(65/66) e fez parte do Batalhão de Comandos da Guiné até morrer em Morés, em 23/12/1971.

Um camarada africano relatou: "Uma operação da 1.ª e da 2.ª CCmds Africanos foi a Morés. Eu fiquei com um grupo de reserva no aeroporto de Bissalanca, à espera que algum grupo pedisse a nossa ajuda. No primeiro dia não aconteceu nada, mas o grupo do Mamasaliu Bari sofreu várias baixas e pediu reforço, porque não podia sair do local. Tinha o grupo reduzido e foi, então, que o meu grupo foi lançado de helis, com o objectivo de contactar o grupo do Demba Chamo Seca e formarmos um bi-grupo para tirarmos o Bari daquele local. Depois de seguirmos uma linha de cajueiros, em Morés, encontrámos um Grupo de Comandos chefiado pelo comandante da operação, que era o Capitão Zacarias Saiegh. (...) Fiquei junto ao capitão, ele disse que estava no local desde o meio-dia, à espera que os outros grupos se reunissem a ele. E que íamos dormir naquele local, que ninguém nem nada tirava os Comandos dali. Mas eu tinha dúvidas. Tínhamos tropa a mais naquele local, tanta que podia atrapalhar. Quando eu estava nos Comandos em Brá, no tempo dos comandos velhos, nós saíamos sempre em grupos pequenos e era mais fácil executar uma operação, havia menos barulho e menos riscos.

Também só dávamos tiros quando era pela certa. Quanto maior é o número de pessoal envolvido mais difícil a operação ter sucesso, sem baixas. E ensinaram-me naqueles tempo, nos Comandos em Brá, que sucesso era chegar de surpresa, atacar e retirar logo, com o material que apanhávamos.

Mas, desta vez não estava a ser assim e a nossa dificuldade maior estava na coordenação dos nossos comandos. Eu, nessa altura, estava a recordar essas memórias, quando ouvimos alguém a chorar, parecia criança. Cada vez que menino chora, Capitão Saiegh dizia para ninguém abrir fogo, que devia ser população a regressar para os acampamentos para arranjar comida para meninos. Logo aconteceu um soldado, chamado Jaquité, do grupo do alferes Tomás Camará, que trazia uma HK 21, com uma fita de balas muito comprida, que rolava no corpo durante o andamento. A HK 21 é uma arma que tinha um bipé. Ele tinha-a apontado para fora dos cajueiros e viu um grupo fardado que vinha na nossa direcção. Então, ele disse ao alferes Tomás Camará, "meu alferes, disse para não fazer fogo, vem ali um grupo armado na nossa direcção e agora?" O Tomás disse "se vem gente abre fogo" e ele fez uma rajada muito comprida para eles. Quando quis sair dali, para mudar de local, uma roquetada acertou-lhe em cheio, teve morte imediata. As morteiradas começaram a chover, umas atrás das outras, saímos todos dali, a correr em direcção aos cajueiros. Não sei como foi, tinha deixado as minhas cartucheiras no local onde estivemos deitados. E agora, tinha que ir buscá-las lá. Tinha que ser, voltei para trás.

Eu, antes de sermos atacados, perguntei ao Adulai Jaló do que é que ele achava de irmos dormir naquele local, onde o Capitão Saiegh tinha dito. O Adulai respondeu-me que era melhor, para não termos contacto com o IN durante a noite e não disse mais nada. O Adulai era um soldado muito corajoso, era de 1961, tinha combatido sempre na guerra desde o início. Conhecemo-nos em Farim, éramos da mesma etnia, os nossos pais conheciam-se há muito tempo. Era mais antigo nos Comandos que eu, foi um dos que foi para Angola com o Alferes Saraiva e outros. Nunca foi graduado porque era o indisciplinado número um em todo o Batalhão de Comandos. Nenhum comandante de grupo o aguentava mais que um mês.

Levavam-no ao comandante a dizerem que não o podiam comandar, o comandante de Companhia mandava-o para outro grupo e foi assim conhecendo quase todos os grupos, sempre a fazer as mesmas coisas. Até que um belo dia, o comandante da Companhia ficou com ele. Quando o capitão sai, ele sai com ele, é o guarda-costas do Capitão Saiegh. Quando o capitão não sai, se ele quiser também não sai. Por isso ele não foi graduado em nada e foi-lhe oferecido o posto de 1.º Cabo, para que os soldados o pudessem respeitar.

Quando cheguei ao local, o Adulai estava sentado ao lado do Capitão Saiegh e, depois de ouvir o drama de passar a noite naquele local, fui juntar-me aos meus colegas. Então, quando começou a chuva de morteiros, levantámo-nos para abandonar o local e, depois de recuperar as minhas cartucheiras, vi um corpo deitado à minha frente, que na precipitação de sair dali nem reparei quem era. Depois voltei atrás e vi que era o Demba Demo, guarda-costas de Sada Candé. Era um cadáver. 

Quando eu e mais companheiros, numa grande confusão, estávamos a sair da zona dos cajueiros, onde a chuva de granadas de morteiro continuava a cair, ouvi um gemido. A voz pareceu-me do Adulai Jaló. Quando eu andava à procura, perguntando quem era que gemia, ouvi a voz do Adulai, a dizer que era ele que estava ferido. Encontrei-o e ele estava sentado. Quando me pus a observar o que ele tinha, estava muito escuro, o PAIGC lançava de vez em quando very-lights para nos ver melhor, reparei que o Adulai tinha as pernas, dos pés às ancas, esfaceladas e partidas. Achei que ele não iria viver mais que uns minutos. "Não me deixem aqui", disse-me ele. "Não te deixo cá, ficas garantido, vou buscar reforço, para te levar para um local mais seguro". Corri para um colega meu e disse-lhe que o Adulai estava com feridas muito graves e que estava também um corpo perto dele, não descobri quem. Arranjei sete homens que vieram comigo até ao local, sempre a corrermos, e quando olhei para trás só estava um comigo, o 1.º Cabo Mussa Djamanca, da 1.ª CCmds. Então, ouvi alguém dizer-nos para levarmos o Adulai e o corpo do Demba Demo, enquanto iam procurar outro ferido que gemia também na zona dos cajueiros.
Para levarmos o Abdulai éramos 4 pessoas. Como os pés estavam desfeitos, não podíamos arrastá-lo pelo chão, duas pessoas pegaram nos braços e levámo-lo até debaixo de um mangueiro, onde estava o comandante, o Capitão Saiegh. Quando depositámos o Adulai no chão, com todo o cuidado, ele perguntou quando vinha o heli buscar os feridos. "Agora não pode ser, Adulai, só de manhã". "Coitados de nós, vamos morrer, não aguentamos."

Nós na altura, tínhamos três feridos deitados neste local. Eram eles, o Adulai Jaló, o Samba Bangura e o Male Fo, todos atingidos nas pernas. Como gemiam alto, pedi ao enfermeiro, que era um Comando também, chamado Samba Tala e pedi-lhe para dar umas picadas neles todos, para as dores. Jaló foi o primeiro a quem o enfermeiro deu uma injecção e ouvi-o dizer Ala Acbar, Ala Acbar, Ala Acbar. Quando acabou de falar em nome de Deus três vezes, calou-se de uma vez, boca e olhos abertos, olhando fixo. Notei que o Adulai já tinha morrido. Então, abandonei o local e fui ao encontro do Capitão Zacarias Saiegh".
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Nota

1 - Imagem da Net - Créditos ao autor que não consegui identificar

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 3 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15439: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXIV Parte): "Regresso, dois anos depois" e "Tantos anos depois: por quê recordar?"

Guiné 63/74 - P15472: Fotos à procura de... uma legenda (67): Xitole, 2008, extraordinária fotografia, a do João Rocha!... 40 anos depois com a antiga lavadeira, é muito mais que um abraço ou "o olá como tens passado"... (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)



Foto nº 15 > Mais um encontro emocionado: Xitole, 2008, o João Rocha (ex-alf mil, Pel Rec Inf / CCS / BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70) com a sua antiga lavadeira.


Foto do álbum de José Teixeira, um dos régulos da Tabanca de Matosinhos, ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) (*)


1. Comentário do Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; , foto à esquerda, em Contuboel, 1969] (*)


Foto Nº. 15, extraordinária fotografia!

40 anos depois com a antiga lavadeira, é muito mais que um abraço ou "o olá como tens passado". É o reencontro, se calhar já com a memória confusa. (**)

Os portugueses são assim: dão-se bem com toda a gente e criam amores em todo o lado.

Foi assim na Guiné, muitos de nós caímos de amores, efémeros, com as nossas lavadeiras.

Extraordinária fotografia, os escritores têm aqui 'material', para muita escrita romanceada.
Quanto ao racismo, que não está só na cor da pele, mas principalmente [no preconceito], eu pergunto-me quem é que nos incutiu esse preconceito?

E porque é que os índios não eram considerados escravos ou vendidos com tal? 

Guiné 63/74 - P15471: Parabéns a você (998): Fernando Barata, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2700 (Guiné, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15462: Parabéns a você (997): Amaro Samúdio, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3477 (Guiné, 1971/73)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15470: História do BART 3873 [BAMBADINCA, SECTOR L1, 1972-1974]. Parte I (Jorge Alves Araújo)

1. O nosso Camarada Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CART 3494, (Xime-Mansambo, 1972/1974), enviou-nos mais uma mensagem desta sua série no passado dia 05DEZ. 

HISTÓRIA OU HISTORIAL
DO BATALHÃO DE ARTILHARIA 3873
[BAMBADINCA, SECTOR L1, 1972-1974]

(Parte I)

Distribuição do Dispositivo das NT e Lideranças: 

Omissões e Negligências

1. – INTRODUÇÃO

A elaboração da presente narrativa, também ela de natureza histórica, nasce da análise à publicação integral, no nosso Blogue, dos vinte e três fascículos [mais um, considerando que o 9.º está repetido] que constituem a «História da Unidade - BART 3873, à qual estão adicionados factos [alguns] das suas subunidades: CART 3492, CART 3493 e CART 3494», cujo documento original dactilografado foi facultado pelo nosso camarada António Duarte [ex-furriel da CART 3493 / ce da CCAÇ 12, 1971/1974].

O propósito deste meu novo texto, que se inscreve na linha dos anteriores aqui divulgados, é partilhar convosco, na primeira pessoa, mais um conjunto de novas informações relacionadas com o mesmo contexto onde, nos palcos da guerra e durante dois anos, vivi, convivi e sobrevivi – Sector L1, Bambadinca – em que a «História da Unidade», enquanto colectânea de acontecimentos nela descritos pelo seu historiador [que se desconhece], peca por defeito, omitindo e negligenciando, conscientemente [digo eu], ocorrências que, acredito, ainda hoje estão bem presentes na memória da maioria do seu colectivo e que a seu tempo identificarei.

Adicionar legenda
Mas, em boa verdade, o que me fez avançar para estas linhas foi o caso particular do seu “Último Fascículo – Alguns Números” [P15349], pelo que darei início a uma nova abordagem temática sobre a «História da Unidade». Ao primeiro documento original, escrito ao longo dos meses em Bambadinca e que anos mais tarde foi transformado em brochura, conforme se pode observar na imagem ao lado, passarei a chamar-lhe, a partir de agora, de «Historial da Unidade», uma vez que são distintas as suas definições ainda que complementares. 

Entretanto, na sequência da publicação do poste anterior, outro surge de imediato [P15355], como reacção ao seu conteúdo, titulado de «Direito à indignação, da autoria do camarada António Duarte, referindo nesse âmbito: “estou a escrever este texto atabalhoado e a sentir raiva pela forma manipuladora da síntese das baixas do meu batalhão”». 

Desses números apresentados em método de apanhado estatístico, como é referido no documento, recupero ainda a tese do meu/nosso camarada António José Pereira da Costa [CMDT da minha CART 3494 entre 22JUN72 e 10NOV72 – o 2.º –, sendo que a primeira data, curiosamente, coincide com a do seu aniversário e a segunda com a do meu... coincidências] afirmando que “A História do BART 3873, ao qual pertenci, está escrita com certa fantasia. Há várias imprecisões [eu acrescentar-lhe-ia, também, omissões e negligências] entre as quais a data da minha apresentação no Xime que surge dois meses depois de se ter efectivado. Não será importante, mas dá uma ideia da "ligeireza" com que foi escrita. Não sei quem "escreveu" a História da Unidade, mas sei que, às vezes, não havia intenção de branquear nada, mas antes o querer despachar "aquele dever" chato e sem interesse ...”.

Dito isto, a proposta que vos apresento é a de identificar as principais lacunas imperdoáveis [digo eu] que o documento contém, fundamentadas nos verbos: ver, ouvir e sentir, e ainda reforçadas pelo meu comentário ao poste do António Duarte, que transcrevo: “Camaradas; uma palavra inicial de apreço pelo conteúdo do meu/nosso camarada António Duarte que nos vem agora dar mais um valioso contributo no âmbito do quadro historiográfico do BART 3873, adicionando-lhe mais alguns elementos que, embora referentes às suas diversas unidades orgânicas - as CART's - o complementam. Prometi, como deixei expresso em correio interno, escrever mais dois/três textos sobre a temática apresentada hoje no Blogue”.


Eis, então, o primeiro de outros textos, este relacionado com a distribuição do dispositivo operacional das NT, pertencentes ao contingente metropolitano do BART 3873, sediado em Bambadinca, no Sector L1, ficando no Xitole a CART 3492, em Mansambo a CART 3493 e no Xime a CART 3494, conforme se indica no mapa abaixo.

Mapa referente à distribuição geográfica inicial [JAN72/MAR73] do contingente do BART 3873 [1972/74], na zona leste, sector L1: Bambadinca (comando e CCS), Xitole [CART 3492], Mansambo [CART 3493] e Xime e Enxalé [CART 3494].

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015).

2. – DISTRIBUIÇÃO DO DISPOSITIVO DAS NT E LIDERANÇAS

Porque, neste contexto, a História/Historial do BART 3873 [princípio a seguir por outra qualquer organização humana] não devia circunscrever-se tão só e apenas a registar os factos sociopolíticos e militares, ou os eventos organizados cronologicamente num determinado tempo e lugar, na justa medida em que ela é [ou teria sido] influenciada pelo processo decisório das suas lideranças, eventualmente partilhado entre os diferentes Poderes e Saberes. 

Sabemos/sabíamos que o campo de acção de um Batalhão é/era maior que o de uma subunidade, mas a decisão sobre a distribuição do dispositivo das NT implicava o superior reconhecimento de que a actividade operacional não era apenas o local ou que o lugar não era apenas o Aquartelamento, cujo sentido dessa acção acabava por influenciar qualitativamente as crenças, as expectativas, os comportamentos e os desempenhos dos sujeitos neles envolvidos.

Porque está omisso o critério, ou o processo, que determinou a distribuição das subunidades, sob a jurisdição do Comando de Batalhão, pelos três Aquartelamentos antes identificados, e porque desconheço, em absoluto, da sua existência, esta ausência de informação suscita-me colocar a quem sabe as seguintes quatro questões: a 1.ª; quando é que ela é definida [exemplos: se antes do embarque ou se depois, durante o período do IAO]? a 2.ª; e por quem? a 3.ª; se é um processo democrático a nível do Comandante ou Comando da Unidade ou se é imposto por decisão exterior a eles? e a 4.ª; se é confidencial ou está disponível para consulta?

2.1 – O EXEMPLO DA CART 3494 (XIME-ENXALÉ-MANSAMBO)

Como referi no P15307, a minha inclusão/ingresso na CART 3494 ocorreu algumas semanas depois da sua instalação no Aquartelamento do Xime. Quando aí cheguei em 28MAR1972, procedi em conformidade com o protocolo, apresentando-me aos meus camaradas e, concomitantemente, aos meus superiores hierárquicos.

Era, então, Comandante da Companhia, o Capitão Victor Manuel da Ponta Sousa Marques [?-29SET2004], da arma de Artilharia. A sua estadia no Xime acabaria por totalizar um período de oitenta e sete dias [até 23ABR1972]. Dos vinte e seis dias em que estive sob a sua liderança, apenas contactei com ele três vezes: a 1.ª aquando da minha apresentação na Unidade; a 2.ª, num dos primeiros dias de Abril, quando pelas 23:00 horas me chamou ao seu gabinete dando-me instruções [ordens] para fazer um patrulhamento nocturno, com o meu GCOMB [o 4.º], à zona dos Cajueiros, localizados a cerca de quatrocentos metros do arame farpado e a 3.ª, e última, no dia 22ABR1972, sábado, data da 1.ª emboscada sofrida pelo mesmo GCOMB, no sítio da Ponta Coli. Quando algum tempo depois aí chegou, já com a situação controlada, perguntou-me: “então, Araújo, o que se passou…? ao que lhe respondi: “meu capitão; o furriel Bento morreu e temos mais alguns feridos que necessitam de ser evacuados” [P9698].

No dia seguinte, domingo, 23ABR1972, fomos confrontados com a notícia de que o nosso CMDT, Cap. Silva Marques, tinha preenchido e assinado a sua própria guia de marcha com destino aos Serviços de Psiquiatria do Hospital Militar 241, em Bissau, para não mais regressar ao Xime.

Já antes deste episódio se comentava, no seio da classe de sargentos, que fora o Cap. Silva Marques a oferecer a “sua” Companhia 3494 para o Xime, considerando as suas experiências anteriores, ora na Índia, como Alferes, onde foi prisioneiro no Campo de Concentração de Ponda, em Goa, em 1961/62 [ultramar.terraweb.biz ou no livro “A Queda da Índia Portuguesa”], ora na Guiné, em Mansabá, na qualidade de CMDT da CART 644, 3.ª subunidade do BART 645 (1964/66), onde foi substituído respectivamente pelo Capitão Nuno José Varela Rubim e, depois, pelo Capitão José Júlio Galamba de Castro, ambos da arma de Artilharia [P4594].


Foto 1 (Goa, 1962) – da esquerda para a direita – Alferes: Carqueja; Silva Maques [circulo]; F. Gomes; Guerreiro; Jardim Simões; Raimundo; Abrantes; Catroga Inês; Capitão Pereira; Alferes Gaspar Nunes e Pereira Leal [in; op.cit; p305, com a devida vénia].

Antecedendo a sua liderança na CART 3494, o Cap. Silva Marques esteve ainda em Angola, na região de Quicua, como CMDT da CART 1770, 2.ª subunidade do BART 1926 (1967/69) [P7068]. 

Em função do acima exposto, o Historial da Unidade BART 3873 refere, no seu anexo V (AGO72), pp 27/28, que o Cap. Artª Victor Manuel da Ponte Silva Marques foi “transferido”, omitindo e/ou negligenciando o local e a razão ou razões que determinaram tal decisão.

Deste modo e por consequência, durante sessenta dias a CART 3494 esteve sem comando institucional não deixando os seus operacionais de cumprir as missões e acções que lhe estavam confiadas.

Exactamente dois meses depois do primeiro combate [emboscada] na Ponta Coli, onde se registou a única baixa da Companhia, chega ao Aquartelamento do Xime o, então, Capitão António José Pereira da Costa, aquele que seria o nosso 2.º CMDT. Aí permaneceu durante cento e quarenta e um dias [um pouco menos de cinco meses]. Durante a sua liderança viveu algumas emoções fortes, particularmente no acidente baptizado por «Naufrágio do Rio Geba» ocorrido em 10AGO1972, onde se verificaram três mortes por afogamento [P10246 + P13482 + P13493], das quais só um corpo foi resgatado ao Geba, o do soldado José Maria da Silva e Sousa.


Foto 2 (Xime, Set/Out72) – Messe de Sargentos; da esquerda para a direita – Cap. Pereira da Costa [CMDT da 3494 (2.º)]; Alferes Sousa [estagiário]; Alferes Serradas Pereira [chegado em SET72 para liderar o 4.º GComb]; Alferes Maurício Viegas [chegado em JUN72 para liderar o 20.º Pelotão de Artilharia, em rendição do Alferes Pinho, em final de comissão] e eu.

Depois deste momento de boa disposição, vivido em atmosfera de forte coesão e solidariedade, outros se seguiram pelos mais variados pretextos. Decorridas poucas semanas ausentei-me do Xime, entre 24OUT e 27NOV72, por motivo de cumprir o primeiro período de férias na Metrópole [P15307]. 

Quando aí regressei, em 29NOV72, constatei que o meu 2.º CMDT de Companhia, o então Cap. Pereira da Costa [agora Cor Art Ref e membro activo da nossa Tabanca] havia sido substituído pelo Capitão Luciano Carvalho da Costa, o 3.º CMDT da CART 3494, e que, nessa condição, se manteve à frente deste colectivo até final da comissão, em ABR1974. A sua nomeação está correcta no Anexo VIII (NOV72), p30.

Sobre a chegada do Cap. Pereira da Costa à CART 3494, o Historial da Unidade, no seu Anexo V (AGO72), p27, refere, e mal como se indicou acima, que foi nesse mês que se deu a sua inclusão, deturpando a verdade, dando a entender que após a saída do Cap. Silva Marques logo se encontrou um seu sucessor, no caso o Cap. Pereira da Costa. 

Outra omissão no Historial da Unidade, também ela negligenciada de forma grosseira, está relacionada ainda com o nosso camarada Pereira da Costa, pois nada consta quanto à data da sua “transferência”, razão/razões para a sua saída e qual o destino que lhe foi proposto até concluir a sua comissão na Guiné.

Soubemos, mais tarde, que tinha seguido para Mansabá. 

Na síntese do seu currículo, ao qual chama de “modestas aventuras guerreiras”, o ex-Capitão Pereira da Costa refere que começou na CART 1692, a 16JAN68, em Cacine, a 3.ª subunidade do BART 1914 [ABR67/MAR69], como Alferes adjunto do Capitão Veiga da Fonseca, regressando a Lisboa exactamente um ano depois. 

A 25MAI71, embarcou de novo para a Guiné, rumo à BA 12 (antiaérea), como CMDT da BTR AA 3434. Treze meses depois, a 22JUN72 assumiu, como referido anteriormente, o comando da CART 3494, até 10NOV72. 

A 11NOV72 transitou para a CART 3567, uma unidade independente formada no RAL 5 [Penafiel], aquartelada em Mansabá, donde saiu em 09AGO73, por ter concluído a sua comissão no CTIG [P6624].

Um mês após ter chegado ao Xime, o Capitão Luciano Costa recebeu a visita do CMDT do BART 3873, por ocasião do almoço/convívio de Natal de 1972.


Foto 3 (Xime, Natal72) - da esquerda para a direita - 1º Sargento Orlando Bagorro; 1º Sargento Carlos Simões; Alferes Manuel Gomes [1948-2014]; desconhecido; Alferes Maurício Viegas [20º Pel Artª]; D. Idalina C. J. Martins, esposa do CMDT [1923-2011]; Tem Cor Tiago Martins, CMDT BART 3873 [1919-1992]; Capitão Luciano Costa [3º CMDT da CART 3494] e Alferes Serradas Pereira [de costas].


Foto 4 (Mansambo, ABR73) – 1.º plano, da esquerda/direita: Furriéis: Jorge Araújo, Cláudio Ferreira, Abílio Oliveira e João Godinho; 2.º plano (a mesma ordem); Acácio Correia [Alferes], Luciano Costa [Capitão], Luciano Jesus [Furriel] e José Araújo [Alferes, 1946-2012].

Por motivo da rotação das Companhias do Batalhão, em MAR73 a CART 3494 foi transferida para Mansambo, enquanto a CART 3493 foi colocada em Cobumba. 

Em resumo: - considerando que não estão expressos os critérios que determinaram a distribuição do dispositivo das NT, o seu conhecimento ajudar-nos-ia a compreender melhor alguns dos comportamentos dos seus líderes, nomeadamente quanto às suas motivações, incluindo as do relator da História/Historial do BART 3873, por estarem omissos e negligenciados factos relevantes com ela relacionados, como foi o exemplo apresentado neste primeiro texto relativo à CART 3494.

Um forte abraço e muita saúde.
Jorge Araújo.
05DEC2015.
Fur Mil Op Esp/RANGER da CART 3494 
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P15469: Memórias de Gabú (José Saúde) (57): “Djubi”, crianças simpáticas. Na hora de matar a sede. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

“Djubi”, crianças simpáticas
Na hora de matar a sede

Revejo, ainda hoje, com uma nostalgia gigantesca os nossos tempos como militares enviados para as frentes de combate de além-mar. Coube-nos, em sorte, que os nossos destinos fosse o então território colonial da Guiné.

Em território guineense constatámos as mais vis e ortodoxas situações que o ser humano nas suas plenas faculdades mentais e físicas jamais ousou experimentar. Reconhece-se, contudo, que a máquina humana é possuidora de engrenagens complexas que quando necessárias corresponderam às suas solicitações dizem, pomposamente, presente.

Conhecemos situações de todo impensáveis. Conhecemos, repito, o teor de uma guerra que não dava tréguas. Visualizámos imagens que farão eternamente parte dos nossos “baús” como antigos combatentes.

Compreendo que não será por certo censurado que um velho combatente debite narrativas onde os nossos quotidianos cruzaram gerações. As realidades coincidiram e os factos, esses mesmos, são verdades comuns que transcendem inquestionáveis orientações geracionais.

Ora, não falarei, presentemente, dos tempos de uma guerrilha cujo puzzle passava pelo cosmos das armas. Falarei, sim, por momentos ímpares onde a simpatia de um “djubi”, crianças simpáticas, se predispunham a uma preciosa ajuda ao militar lusitano.

Algures na região de Gabu, após alguns quilómetros palmilhados pelo denso mato e quando o cantil já reclamava um profícuo recarregamento e a elevada temperatura se definhava por um saciar de gargantas entretanto já ressequidas pelas agruras de um tórrido calor, eis que em pleno mato me deparei com uma criança que afoitamente retirava água de um poço.

O arcaico reservatório ostentava saberes que só as etnias indígenas sabiam desfrutar. Recordo que o brotado líquido apresentava uma cor insípida, creio que barrenta, mas divinal para aqueles que ambicionavam algo que lhe gotejasse as suas efémeras necessidades.

E foi assim que na hora de matar a sede que um “djubi” amigo se predispôs a satisfazer carências que o tempo de guerra impôs a jovens soldados enviados para as frentes de combate.

Fica a imagem.


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P15468: Recortes de imprensa (78): O colonialismo (suave) nunca existiu... Leopoldo Amado, atual diretor do INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, entrevistado em Bissau por Joana Gorjão Henriques ("Público", 6/12/2015, série "Racismo em português")

Excerto da reportagem de Joana Gorjão Henriques  (texto, em Bissau, Bafatá e Cacheu), Adriano Miranda (fotos) e Frederico Batista (vídeo). Série: Racismo em português

Público, 06/12/2015 - 00:00 


1. Excerto da reportagem, com a devida vénia, destacando as declarações do Leopoldo Amado, que é membro da nossa Tabanca Grande [, tem mais de 6 dezenas de referências no nosso blogue; foi cronologicamente  um dos 30 primeiros membros da Tabanca Grande (*)]:


Leopoldo Amado ma Feira do Livro de Lisboa, em 2012,
posando ao lado da Alice Carneiro, do Luís Graça
e do João Graça. Foto de LG
(...) Leopoldo Amado, historiador, director do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) [, desde 13 de janeiro de 2015], lembra a época em que um apito dava ordens de entrada e saída da população negra na cidade. Bissau começou a desenvolver-se a partir do porto e no porto havia um muro para separar as populações africanas dos moradores, que eram os comerciantes portugueses.

 “Em 1940, este muro ainda existia, foi derrubado quando o nacionalismo começou a despertar”, no final dos anos 1950, explica. “Nesse território com o muro em Bissau, na pequena cidadela, alguém usava um apito às seis da tarde e os africanos sabiam que era hora de saíram daquele espaço, a urbe colonial. Voltava-se a apitar às seis da manhã para entrarem e darem início aos trabalhos domésticos. A presença dos negros era admitida apenas para os trabalhos domésticos” ou de baixa qualificação.

A época colonial de que Fodé Mané, 50 anos, se lembra é a do governador António de Spínola (1968-73), altura em que estava em marcha a política Por Uma Guiné Melhor (que ficaria registada em livro, 1970). “Já não havia a implementação da segregação do indígena”, comenta. Era a política de criar mais escolas, mais infra-estruturas para travar a luta de libertação que estava a crescer. “Mas uma revogação não desaparece da mentalidade das pessoas”, continua. “Vivemos a diferenciação entre os que tinham beneficiado do estatuto do indigenato, dos que não tinham a possibilidade de ser assimilados e de ter o estatuto de cidadãos com plenos direitos, e aqueles que eram filhos de funcionários públicos e podiam estudar nas escolas do Estado. Para estudar, a pessoa tinha de ter registo ou certidão de nascimento ou um conjunto de documentos que o grosso da população não tinha.” (...)

Com pouco mais de 1,6 milhões de habitantes, a Guiné-Bissau foi a primeira colónia portuguesa a obter a independência em 1973, fruto da luta de libertação liderada por homens como Amílcar Cabral, iniciada no princípio dos anos 1960. Tem uma história marcada pela resistência, orgulho de muitos guineenses. Tendo feito parte do Império Mali e do Reino Gabu, a Guiné-Bissau nunca seria ocupada totalmente pelos portugueses. Historiadores como Leopoldo Amado defendem que a colonização efectiva durou apenas de 1936 (a data oficial do final das campanhas de pacificação) até ao despertar do nacionalismo, por volta dos anos 1960.

A Guiné foi administrada por Cabo Verde até 1879 como Guiné de Cabo Verde e até à descolonização eram os cabo-verdianos que formavam o grosso da administração pública colonial — daí dizer-se que a Guiné era uma colónia da colónia.

Com mais de 30 etnias, a língua portuguesa é falada por uma minoria de 14%, vigorando o crioulo. A política colonial portuguesa usou a divisão étnica a seu favor, criando cisões e adoptando aliados como os fula.

(...) Leopoldo Amado (n. 1960) é hoje um dos mais conhecidos e respeitados historiadores bissau-guineenses e é ele quem afirma: a partir de determinada altura, a Guiné era um fardo para o sistema colonial português. É uma terra com tradição guerreira que não permitiu que a colonização fosse efectiva e há relatórios que, a dada altura, mostram Portugal a ter mais despesa do que lucros com o país. Portugal não se desfez da Guiné apenas porque o império colonial era tido como um todo: se a Guiné-Bissau caísse, as restantes colónias tentariam seguir-lhe os passos, acredita.

Como Portugal tinha muito poucos meios, usou o sistema de “engavetamento étnico”: inventou etnias; dividiu para melhor reinar. “Houve casos em que os portugueses tiveram o desplante de colocar fulas a dirigir manjacos, manjacos a dirigir bijagós, provocando movimentações de etnias com o propósito de os dividir, e colocando sobre eles uma autoridade a que chamavam Assuntos Indígenas.”

No colonialismo existiam quatro categorias raciais, contextualiza: os grumetes (permaneciam na tradição, viviam à beira das cidades), tangomãos (participavam no comércio e eram uma espécie de assimilados), os brancos, e os lançados, os filhos da terra (brancos que nasceram na Guiné-Bissau). “Um dos factores de submissão foi exactamente a interiorização no negro da sua inferioridade pela via da separação”, sublinha. Por isso usavam o muro de Bissau, por exemplo. “Não que os portugueses fossem mais racistas que os outros, mas tinham de utilizar isso como método, a ideia de inferioridade para levarem avante os seus propósitos. Tudo isso foi feito num ambiente em que os portugueses, eles próprios, assimilavam valores africanos. Os colonos que se deixavam levar pela cultura africana e viviam com os africanos eram considerados ‘cafre’, o termo para classificar as pessoas que se tinham degenerado, e eram considerados do ponto de vista religioso como almas perdidas porque se submetiam à forma de estar do africano — aliás, criou-se o termo ‘cafrealização’. (...)

Como estratégia, os portugueses aproximaram-se dos fula, criaram exércitos de fula, de balanta, de outras etnias, com o objectivo de acicatar as diferenças. Com o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, criado em 1945, forneciam-se elementos ao poder político para melhor compreender as dinâmicas étnicas. “O contrário do racismo é exactamente isso, trazer à nossa convivência, viver com eles, permitir que tenham acesso à escola, à saúde, que melhorem as condições de vida. Na Guiné-Bissau isso não aconteceu: as poucas infra-estruturas só foram construídas porque havia necessidade de dar vazão às questões da guerra.”

Apesar de tudo, o sistema dava oportunidade de ascensão social a alguns guineenses. O pai de Leopoldo Amado, por exemplo, era director dos correios, posição à qual chegou no final da carreira, “não sem problemas pelo meio”, sendo “alvo de discriminação de todo o tipo”. A ideia era o sistema colonial usar uma parte ínfima da população como intermediária entre os seus interesses e as populações.

Depois apareceu uma literatura colonial etnográfica para estudar a psique do negro, adianta o historiador. “O negro praticava a gula, o pecado dos cristãos, logo era preciso civilizá-lo. O negro é um ente que tem uma potência sexual acima da média, quase boçal, quase um animal, que tem atitudes animalescas. Todas estas ideias foram reproduzidas nesta literatura colonial. Reproduziu-se também a ideia de que o negro é um irresponsável, propenso a bebedeira; no caso das mulheres, são lascivas, têm propensão para promiscuidade sexual, vivem na degenerescência moral. A par de tudo quanto era racismo, criava-se uma ideologia para poderem continuar com a empresa da colonização.”

A teoria do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre (1900-1987) suportou a ideologia do Estado Novo sobre a excepcionalidade portuguesa de estar nos trópicos, baseada na cordialidade, miscigenação, capacidade de adaptação e assimilação. Tem, para Leopoldo Amado, “algum substrato” porque “há uma maneira particular de ser português”: mas “isso não isenta de maneira nenhuma” o “ser racista”. “Salazar e Marcelo precisavam de uma teoria como a de Gilberto Freyre. A tese de Salazar era a de que havia portugueses de outra cor, mas isto era para consumo externo, porque entre os portugueses de outra cor existia o trabalho forçado, o sistema que substituiu a escravatura.” (...)


Ler aqui o resto do excelente trabalho de investigação jornalística de Joana Gorjão Henriques

Vd. também os vídeos de Frederico Batista, que estão disponibilizados no portal do Público Multimédia, com os diferentes entrevistados (onde se incluem alguns dos melhores e promissores quadros guineenses como o sociólogo e diretor executivo da ONGD Tiniguena,  Miguel Barros, o historiador Leopoldo Amado, diretor do INEP, o antropólogo Fodé Mané, a arquiteta Djamila Gomes, o sociólogo Dautarin Costa, o escritor Abdulai Sila, o investigador e doutorando Saico Baldé, o economista e político Mário Cabral (, velho militante do PAIGC), a Augusta Henriques, neta de colono português, fundadora da ONG Tiniguena, o gestor Mamadu Baldé, a jurista Samantha Fernandes, etc.:  No tempo em que ser guineense não era suficiente para ser cidadão  (**).

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P159: Tabanca Grande: Leopoldo Amado, guinense, historiador, novo membro da nossa tertúlia 

(...) Caríssimo Leopoldo:

Fui com alegria que, ao chegar de férias, vi na minha caixa do correio a sua mensagem. Começo por dizer-lhe que as suas palavras me sensibilizaram. De facto, eu e a generalidade dos meus camaradas, ex-combatentes da guerra colonial (ou do Ultramar, como outros preferem dizer), que vivemos quase dois anos das nossas vidas na Guiné, sentimo-nos guineenses e nada do que se lá passou (e até do que se lá passa hoje) nos é indiferente. É impossível não amar a Guiné e o povo guineense. E nessa medida todos somos guineenses, de alma e coração… A história aproximou-nos e afastou-nos. O nosso modesto contributo, através dos nossos escritos na Net, visam de algum modo manter e se possível fortalecer os laços (que são sobretudo culturais e afectivos…) que nos unem às gentes da Guiné.

Leopoldo: O seu nome e alguns dos seus escritos já não nos eram desconhecidos. Fico entusiasmado ao saber que tem um longo trabalho de investigação sobre os aspectos políticos e militares da guerra colonial na Guiné, e que está é está a ultimar uma tese sobre este tópico. O que é ainda mais interessante (e inédito) é a sua dupla abordagem da guerra, vista pelos dois lados. Além disso, você era djubi nesse tempo (tal como o nosso amigo de tertúlia o José Carlos Mussá Biai, natural do Xime) e, como criança, foi uma vítima especial da guerra, tal como nós fomos actores.

É, por isso, que me sinto honrado em aceitá-lo na nossa tertúlia. Falo, em meu nome pessoal. Mas creio também interpretar o sentir dos restantes membros da tertúlia (que já são quase treze dezenas). Seja bem vindo. Temos muito que conversar. Um abraço e até breve. Luís Graça (...) (***)




(**) Último poste da série > 13 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15361: Recortes de imprensa (77): Recensão ao livro "Nacionalismo, Regionalismo e Autoritarismo nos Açores Durante a I República", da autoria do Professor Carlos Cordeiro, por Santos Narciso, incluída em Leituras do Atlântico, no Jornal Atlântico Expresso

(***) Vd. também entrevsita de Leopoldo Amado ao semanário O Democrata, de 29/9/2014: "Grandes comandantes do PAIGC estavam com a PIDE".

(...) O PAIGC nunca teve mais de cinco mil homens em armas e nos picos da guerra o exército português chegava aos 40 mil homens. Mas o partido que nunca chegou mais de cinco mil homens criou uma estrutura de Estado, fez uma guerra exemplar e do ponto de vista diplomático fez uma guerra extraordinária, dado que conseguiu convencer até os aliados dos portugueses na altura a se colocarem do lado dele. Foi o caso da Dinamarca que passou a apoiar o PAIGC e as Agências das Nações Unidas já colaboravam com o PAIGC. (...)