Amiga Felismina,
Obrigado por este bonito quadro da vida portuguesa dos anos 60, pleno de doçura e de reconhecimento que me encantou sobremaneira.
Hoje lamento muito o facto de ter estado em Portugal (Lisboa) e nunca ter visitado uma aldeia do interior a fim de conhecer o Portugal real.
Afinal, éramos tão "diferentes" e tão "iguais" naquilo que de essencial existe nos povos.
Durante muito tempo, na inocência do nosso universo infantil de 7/8 anos, a percepção que tínhamos dos brancos "soldados portugueses" era que eles eram mais felizes porque:
(i) comiam bem e não precisavam de trabalhar a terra
(ii) deslocavam-se ágil e facilmente porque não precisavam carregar os mais variados apetrechos de que uma família precisa no dia-a-dia e
(iii) sobretudo, porque viviam e dormiam tranquilos sem as habituais chatices com os filhos e a família no meio das birras com as mulheres. Afinal, a realidade era bem diferente.
A descrição que fazes da tua mãe, salvaguardada a diferença do contexto, claro, corresponderia na perfeição a minha mãezinha, um pouquinho só mais alta (um metro e sessenta) talvez, inteligente e incansável no trabalho.
Ela assumia a sua condição de mulher africana, extremamente dócil e obediente, mas ao mesmo tempo, sabia mostrar os limites da tolerância, quando era necessário.
Uma vez, estalou na família uma discussão sobre se eu devia ou não continuar na escola portuguesa. A minha mãe não vacilou nem um palmo e disse na cara do meu pai:
- O meu filho vai continuar na escola. - E ai o meu pai ficou completamente confundido, afinal o filho era dela?... desde quando?
- Desde o momento em que ele ainda vivia na minha barriga de mulher, - respondeu ela, sem pestanejar. - Não é agora, depois de tantos anos de trabalho e de pancadas é que ele vai abandonar, para ir onde?
A sua decisão prevaleceu diante de todos os Almames e Califas da aldeia.
As características típicas da sociedade africana com que os etnólogos europeus pintaram os africanos, onde o homem é o centro do mundo e decide tudo, não corresponde sempre a realidade destes povos, é tudo muito mais complexo e muito mais difícil de destrinçar e de catalogar.
Um grande abraço amigo,
Cherno Baldé
2. Aproveitando o facto de no comentário acima se ter referido a sua mãe, pedimos ao Cherno que nos falasse um pouco mais dela e nos mandasse algumas fotos de família. Hoje mesmo recebemos esta sua mensagem:
Sobre a minha mãe podia dizer muito e não dizer nada, na verdade, ela nunca foi p'ra além daquilo para que tinha sido moldada, isto é, ser uma mulher de casa, camponesa activa, devota e dedicada ao seu marido e à sua família. Cumpriu a sua missão, foi uma autêntica escrava, uma máquina de trabalho, nunca teve tempo para o repouso e muitas vezes comia de pé, a andar, os restos da panela e não sabia o que era o cansaço. Era a ultima a dormir, quando dormia, e a primeira a por-se de pé, antes das 5 da manhã.
Logo de manhã, tinha que pilar (moer) o milho, separar as partes para o almoço e jantar, caminhar alguns quilómetros para fora da aldeia e tirar o leite das vacas (ordenhar?), no regresso apanhar lenha e preparar o pequeno almoço e servir a toda a gente, de seguida os trabalhos da preparação da bolanha estavam à espera para o cultivo do arroz, se fosse na época das chuvas, e se fosse na época seca havia a horta para limpar ou regar, ir buscar os condimentos vegetais (djamboh) para o preparo do almoço ou jantar, a água da fonte para encher os recipientes (potes) para uma família numerosa, a lenha para a cozinha, sem falar de pequenas ocupações domésticas como a limpeza à volta da casa, lavar as crianças, a roupa do marido que era preciso passar a ferro, as crianças que deviam ir à escola bem limpas; cumprir com as 5 orações diárias, obrigatórias, etc. Enquanto isso, o meu pai, empregado de uma casa comercial, estava a atender mulheres bonitas com os seus galanteios ou a dormitar no seu balcão.
A minha mãe, quando era caso para isso, dizia brincando que, se a cabeça da família era ele, o meu pai, a garganta era ela e perguntava, rindo:
- Agora, digam-me lá uma coisa, entre estas duas, a cabeça que se encontra em cima, baloiçando, e a garganta que a suporta, quem é a mais importante? Mas isto era a brincar e em família.
Hoje, com mais de 80 anos de idade (disse-me que por volta de 1936/7, quando o pai voltou de Canhabaque, ela teria aproximadamente 9/10 anos de idade), e como se ela soubesse do futuro, é cega e sou eu e a minha esposa que cuidamos dela. A saúde e a boa disposição começam a faltar mas ainda encontra-se fisicamente bem e de sentido bem lúcido, a sua memoria é prodigiosa.
Mas o paradoxo e a/o moral da historia é que, tendo tomado conta do meu pai e da sua morança durante anos, hoje eu cuido não só dela, minha mãe, mas também tenho sob os meus ombros a pesada responsabilidade de ajudar os meus irmãos mais novos (homens e mulheres) que não tiveram a mesma sorte que a minha de poder frequentar a escola dos "portugueses" que na altura, devido à pressão social e sobretudo religiosa, muitos repudiavam.
Hoje são os filhos dos Almames e dos Marabuts que ocupam a parte dianteira das carteiras nas nossas escolas.
Quero agradecer a todos os Editores e Co-Editores do Blogue da Tabanca Grande por se interessarem por uma pessoa tão simples como é a minha mãe que, espero possa representar, mesmo que de forma simbólica a mãe africana, em particular, e as mães de todos nós, de forma geral, exemplos de humildade e de abnegação.
Um forte abraço a todos,
Cherno Baldé de Fajonquito
Fajonquito, 1973 > A mãe Cadi acompanhada da minha irmãzinha nos trabalhos da bolanha
Bissau, Maio de 1977 > Eu e a minha mãe
A família reunida em Cambaju, ano de 1965/66 > Em cima: Mãe (Cadi Candé), pai (Aliu Tamba Baldé) e Aua (prima irmã). Em baixo: Tulai (minha irmã), Eu (de boina verde), Carlos (hoje médico) e Aissatu (irmã da Aua) .
Nota: Esta foto foi tirada por um soldado português amigo da família.
El-Hadj Aliu Baldé (Tamba), Fajonquito > Festa de Ramadão de 1991. Em 1937 fez parte do grupo de jovens que saiu de Canhamina para Contuboel na recepção dos combatentes de Sancorla que participaram na última guerra de Canhabaque (Ilhas Bijagós).
Faleceu em Bissau em Setembro de 1999.
Grupo de alunos da escola de Fajonquito em 1973 > Sou o último da esquerda na segunda fila (cabeça cortada ao meio), vestido com a camisa verde da Mocidade Portuguesa.
Bissau, 2009 > Cerimónia de reza numa festa Muçulmana > Eu e os meus quatro filhos: Luís, Domingos, Yussuf e Abdurahamane, a contar da esquerda.
Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 14 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9041: Memórias do Chico, menino e moço (30): A propósito do poema K3, de Nuno Dempster: Relembrando dois malogrados capitães de Fajonquito, Carlos Borges Figueiredo (CART 2742) e José Eduardo Marques Patrocínio (CCAÇ 3549) (Cherno Baldé)