1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 22 de Março de 2012:
Olá Vinhal
Saúde boa, disposição em cima, força que baste? Óptimo.
Segue novo “lanço” na “Viagem…” que a vai aproximando do final que, é uso dizer-se ser normalmente “o mais difícil de esfolar”. Assim também aconteceu na ”viagem real “, por lá.
Um abraço , saúde e boa disposição para todos
Luís Faria
Viagem à volta das minhas memórias (51)
Bula – A guerra das minas
Pela fresca da manhã os “eleitos” preparam-se para montar nas viaturas escoltadas rumo à nova guerra onde o IN eram uns engenhos diabólicos montados por nós (NT), camuflados em quilómetros de terrenos muitas vezes adulterados pela pluviosidade e diferente bicheza autóctone, fazendo com que por vezes a sinalética mapeada transformasse a sua localização correcta em verdadeira “caça ao tesouro” por tentativas, raramente infrutíferas mas vezes demais extremamente dolorosas!
(Google) Estrada Bula - Pta S Vicente - Ingoré
Ao que tenho na ideia, este “campo de mutilação” que tínhamos que enfrentar nascia pelo quilómetro oito, alongando-se para Norte por uns bons quilómetros (creio que seis?) ao longo da lateral Leste da estrada Bula – S. Vicente (onde se fazia a travessia do rio Cacheu para Ingoré).
Era constituído por uns largos milhares de minas plásticas (“encriers” devido à sua forma de tinteiro) e portuguesas (metálicas de fragmentação) na proporção de quatro para uma, ao que lembro dispostas em cachos orientados e compostos por quatro plásticas em quadrado e uma portuguesa ao centro, afastadas entre elas o suficiente para não estourarem por simpatia. Já não recordo se era uma ou duas filas paralelas de cachos. Não encontro essa nota, mas tenho ideia de que seriam umas dez mil minas (?), a passar.
Para enfrentar este desafio demoníaco o equipamento base do pequeno grupo de “eleitos” era simples e fiável: pica em verga de aço, bússola, mapa, croquis de implantação e claro está faca de mato. Ah, convém não esquecer a “vara-medida” com 1,5 ou 2 metros de comprimento (já não recordo mas era da medida que distava entre a central portuguesa e as exteriores), instrumento muito útil que simplificava a localização aproximada dos engenhos desde que detectado o principal, a mina metálica. Tínhamos também à disposição um detector de metais que se necessário usávamos na detecção destas minas portuguesas de fragmentação extremamente perigosas.
Para alem deste equipamento havia quem lhe acrescesse outros que julgasse conveniente para segurança e até quaisquer amuletos que acreditasse protectores e da sorte! Pelo que me tocava havia três ou quatro coisas que faziam parte integrante do equipamento: pistola no coldre, a, para mim fundamental, bota de fuzileiro e o lencito vermelho usado ao pescoço, este sim uma espécie de talismã mas também útil! Não posso esquecer a varinha de vime ou o pingalim de tiras de couro entrelaçadas l!
Tinha uma explicação para o uso destes “complementos”que passo a expor o mais concretamente possível:
- Pistola “Walter” – não estorvava e podia vir a ser útil em defesa ou mesmo resolutiva noutro tipo de situação!
- Botas tipo Fuzileiro - em couro, de meio cano-alto ajustado por fivelas laterais, que acreditava darem-me uma certa protecção à extensão dos “estragos” em caso de pisar um engenho. Não convinha nada que a perna tivesse que ser amputada acima do joelho!!!
- Pequeno lenço vermelho - tinha-me sido oferecido no “Puto”e usava-o muitas vezes em operações, amarrado ao cano da G3 ou ao pescoço. Era uma espécie de amuleto e que podia ser útil pelo menos com os suores.
- Varinha / pingalim – preênsil nos dedos, usada(o) para ajudar a detectar eventuais arames de tropeçar interpostos pelo IN no acesso ao “campo de trabalho”.
Sobre esta estória da varinha explico:
Um belo dia, antes deste trabalho mas creio que por causa dele também, fui incumbido de verificar, desarmar e levantar várias armadilhas por mim montadas e “croquisadas” ano e tal antes, lá para a frente da zona da “curva do café” onde se pensava ser zona de atravessamento do IN e onde, para além disso, havia por baixo da estrada uma conduta pluvial (?) larga que a atravessava e que se queria não viesse a ser aproveitado pelo IN para quaisquer utilizações bélicas. Por essa área tinha montado uma dezena, talvez mais, de armadilhas a meu ver bem “engendradas” e para “vários gostos”! Como tal deveriam também ser bem descritas e sinalizadas em “croquis” fiéis, com referência a pontos considerados seguros e de difícil mutação, o que facilitaria uma posterior desactivação das mesmas.
No dia aprazado, dirijo-me para a zona, acompanhado como não podia deixar de ser por segurança que tomou posição do outro lado da estrada. Pés ao caminho, munido dos apetrechos necessários e do croqui por mim feito anteriormente, vou desactivando os engenhos, concentrado mas sem dificuldades de maior até que a dada altura e em local não referenciado, ao dar um passo senti no tacão da bota atrasada uma resistência que me inquietou. Não podia ser?! O chamado “sexto sentido” terá feito o automatismo funcionar preventivamente e à contagem “um - dois” estava aterrado e espalmado no chão um pouco mais adiante!
O estouro não se fez esperar.
Afinal sempre era, sendo que a “geringonça” não era nossa e sim uma intrusa, posteriormente confirmado por contagem. Mais uma vez por Graça, e talvez um pouco por Lamego (onde colados ao terreno detonámos granadas que pousávamos à distancia de um braço) nada me aconteceu, para além do valente susto. Coisa para não esquecer!
O que aconteceu fez-me pensar que tinha que tentar prevenir situações semelhantes. O engenho a par da nossa bela “arte do desenrasca” veio ao de cima : a solução seria uma fina e lisa varinha, pênsil dos polegar e indicador que, ao quase varrer o chão dianteiro sinalizaria e faria investigar qualquer resistência anormal ou entrave à sua progressão. Também cheguei a usar o meu ”chicote” de tiras de couro entrelaçado, mais cómodo e à mesma sem peso suficiente para descavilhar qualquer engenho munido de arame de tropeçar.
Algumas vezes parei para investigar mas felizmente foram alarmes falsos.
Chegados à zona de apeamento e após a segurança estar montada em proximidade não intrusiva, os “eleitos” dirigiam-se, creio que em equipas para os locais determinados, dando início a uma luta em que facilitar era potenciar o risco de rebentamento e suas consequências nefastas.
Acabou por ser uma batalha que se ganhou, mas infelizmente e quase logo de início à custa de sangue, dor e em que o esforço e sofrimento ao que sei não foram agradecidos ou reconhecidos, muito menos louvados ou premiados e onde até o prometido (pelo menos a mim) não foi sequer cumprido, antes pelo contrário. Creio que também ninguém estava a contar com quaisquer “honrarias” mas, falo por mim, esperava que o prometido fosse cumprido!
Apesar dos alguns “briefings” havidos com o Comando, o que não permitia evocar “desconhecimento” dos acontecimentos, os “mandantes” andavam de certeza absorvidos e distraídos com outras coisas de maior interesse próprio naqueles finais de comissão!
Bom… é sabido que havia Comandantes e comandantes por aquelas guerras!
Luís Faria
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2012 >
Guiné 63/74 - P9536: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (50): Bula, uma nova missão