quarta-feira, 6 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11204: Álbum fotográfico do Jorge Canhão (ex-fur mil inf, 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74) (4): Mansoa, julho de 1974: os primeiros encontros de paz com o PAIGC


Foto nº 1 - Encontro com o PAIGC


Foto nº 2 - Encontro com o PAIGC 


Foto nº 3 - Encontro com o PAIGC 


Foto nº 4 - Encontro com o PAIGC 


Foto nº 5 - Encontro com o PAIGC 


Foto nº 6 - Mansoa, guerrilheiros do PAIGC

Foto nº 7 - Mansoa, ponte sobre o Rio Mansoa



Foto nº 8 - Mansoa, o "ninho", espaldão do obus 14


Foto nº 9 - Mansoa, a tabanca


Guiné > Região do Oio  > Mansoa  > 1974 > BCAÇ 4612 (1972/74) > 1974 > Legenda do Jorge Canhão:

"Os oficiais que eu identifico,estão todos na 1ª foto.São da esquerda para a direita: Comandante da 2ª CCaç/BCaç 4612/72 (Jugudul), Almada Contreiras, assíduo participante (e já organizador) dos encontros da sua CCaç. O seguinte é o saudoso capitão de operações do BCAÇ  4612/72 (CCS), Fernando Pereira Vicente,também um assíduo presente nos encontros das diversas companhias do Batalão.  O 3º oficial é o já falecido Cmtd do BCAÇ  4612/72, Ten Cor Eurico Simões Mateus, conhecido entre nós por 'O Libelinha'.  Sobre o local,  parece-me ser Jugudul, mas em breve tentarei saber. Sobre o outro capitão que aparece numa outra foto, talvez o Magalhães Ribeiro ou alguém do destacamento do Polibaque possa esclarecer". 

Fotos: © Jorge Canhão (2011). Todos os direitos reservados


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso amigo e camarada Jorge Canhão, que vive em Oeiras (ex-Fur Mil At Inf da 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74).

Estas fotos, relativas a Mansoa.  chegaram-nos às mãos através de outro grã-tabanqueiro, o Agostinho Gaspar, ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74), residente em Leiria. Os nossos especiais agradecimentos aos dois, e muito em especial ao nosso camarada Jorge Canhão, que está a recuperar dos problemas de saúde. Já aqui lhe desejámos publicamente  rápidas melhoras e o rápido regresso, em boa forma, ao nosso convívio. Vamos, por isso,  fazer-lhe uma grande receção em Monte Real, no dia 22 de junho de 2013, por ocasião do VIII Encontro Nacional da Tabanca Grande, evento para o qual ele já antecipadamente  se inscreveu.

Não sabemos quem é o autor (ou quem são aos autores) das fotos: as seis primeiras têm a ver com os primeiros contactos com o PAIGC; uma delegação do PAIGC passa a estar sediada, permanentemente em Mansoa, a partir de 19 de julho de 1974. As três últimas (nºs 7, 8 e 9) podem não ser de 1974. Estas fotos constam de um CD, do Agostinho Gaspar, estão sob um ficheiro com a seguinte designação: Jorge Canhão > Vários Batalhão.

Reproduz-se aqui as páginas 111, 112 e 113 da História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa e Gadamael, 1972/74). (*)






Guiné 63/74 - P11203: PAIGC: Dispositivo militar, antes do 25 de abril (História do BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74, ed. revista, melhorada e aumentada por Jorge Canhã0)











N a zona oeste,. e ao longo da fronteira senegalesa, o PAIGC beneficiava das bases de M' Pacck, Campada, Sikoum, Cumbamory, e Hermacono






Na região leste, o PAIGC dispunha das bases,  situadas em território da Guiné-Conacri, de Foulamansa / Kaorané / Missirá, Foulamory, Kambera [, também designada por Madina do Boé]  e Koundara (centro logístico)


Na região sul, o PAIGC dispunha de duas bases fundamentais, situadas na Guiné-Conacri, Kandiafara e Boké (centro logístico).





1. Dispositivo militar do PAIGC. Infografia constante da História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74), conforme versão em formato pdf, revista, melhorada e aumentada por Jorge Canhão, ex-fur mil at inf, 3ª CCAÇ.

Desconheço  a origem deste documento, o mapa  com a distribuição das forças do PAIGC. Mas presumo que seja de meados de 1973, e seja nosso, oriundo do próprio Quartel General (QG).  O mapa, inserido logo no início do documento, ocupa uma página. Foi recortado por mim, em diversas partes (quadrantes), de modo a tornar-se mais legível. È pena que o Jorge não tenha citado a fonte. Mas tudo indica que é, de facto,  um documento nosso,  até pelas  letras desenhadas a escantilhão.(Repare-se que há correções, a "corretor branco",  da responsabilidade do Jorge Canhão):

No início da história da unidade  há uma nota do Jorge Canhão, que diz o seguinte: 

"As páginas deste documento em pdf não correspondem, como é obvio,  às páginas dos documentos originais, devido às alterações de forma, feitas por mim.

Fiz este trabalho no sentido de não se perder através dos tempos como mais facilmente acontece com documentos em papel, fi-lo também e principalmente como homenagem aos camaradas mortos na Guiné, assim como todos aqueles que já não estão connosco, mas que fizeram parte deste grande grupo de camaradas que pertenceram ao Batalhão de Caçadores 4612/72.

Quero também agradecer aos camaradas que nos forneceram fotocópias da História do Batalhão, e aqueles que por outros meios também me ajudaram e deram o pontapé de saída para que este trabalho fosse possível.

Os mapas aqui presentes foram tirados de livros editados, e outros documentos foram conseguidos na internet. Abraços para todos. Jorge Canhão, ex-furriel miliciano atirador de infantaria da 3ª Compª do BCaç 4612/72.

É também chegada a altura de homenagear o nosso camarada Jorge Canhão, que está a recuperar de recentes problemas de saúde. Desejamos-lhe rápidas melhoras e queremos que regresse, em boa forma, ao nosso convívio. Vamos fazer-lhe uma grande receção em Monte Real, no dia 22 de junho de 2013, por ocasião do VIII Encontro Nacional da Tabanca Grande.

2. Uma leitura rápida do mapa permite-me tirar as seguintes conclusões:

(i) O PAIGC nunca conseguiu um presença efetiva, em homens e armas, no chão manjaco (Teixeira Pinto), no chão felupe (São Domingos), no chão bijagó  (Bolama), no chão fula (zona leste, eixo Bambadinca-Bafatá-Nova Lamego, com centro em Bafatá);

(ii) Foram muito importantes, para o PAIGC, ao longo da guerra (1963/74) as suas bases de retaguarda, nos dois países limítrofes, a começar pela Guiné-Conacri, que sempre apoiou abertamente a guerrilha, como no próprio Senegal, que tolerava a presença dos guerrilheiros...

(iii)  Com tempo e pachorra, poder-se calcular os efetivos totais do PAIGC, sabendo-se que, de acordo com o Supintrep 31, as equivalências numéricas eram as seguintes:

Bigrupo = 44
Bigrupo reforçado= 70
Grupo de artilharia= 50
Grupo de morteiros 82= 23
Grupo de canhões s/r= 23
Grupo de foguetões 122= 16
Pelotão de antiaéreas= 16
Grupo de morteiros 120= 40
Grupo de comandos= 50
Grupo especial de bazucas (RPG)=  20

(iv) Na zona do Xime/Xitole,  no final da guerra, parece haver apenas 2 bigrupos de infantaria (= 90 homens) e 2 grupos especiais de RPG (= 40), o que totaliza menos de 130 homens em armas, cerca de metade das forças estimadas no meu tempo, em 1969/71 (, estimativa que apontava para 5 bigrupos + artilharia);

(v) Os grupos especiais de artilharia (míssil terra-ar Strela), estão referenciados nas regiões fronteiriças: Kandiafara, e Kambera (no sul); Foulamannsa e Coumbamory (no norte);  no interior, a exceção parece ser o Morès e Sara, a norte do Geba; e o sul (Regiões de Quínara e Tombali): ao todo 4 grupos...

(vi) Os grupos de foguetões 122 mm (Graad ou "jato do Povo)" também estão localizados de preferência nas zonas fronteiriças; 

(viii) Enfim, esta infografia vale o que vale, sabendo-se que o PAIGC e as NT tinham  estratégias diferentes ao nível da sua implantação no terreno...

3. Reproduz-se a seguir um excerto (pp. 18/19) do relatório da 2ª Rep., já aqui transcrito na íntegra:

Vd. poste de 4 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9443: Situação Militar no TO da Guiné no ano de 1974: Relatório da 2ª REP/QG/CTIG: Transcrição, adaptação e digitalização de Luís Gonçalves Vaz (Parte V): pp. 10/21








[Admitimos que esta estimativa peque por excesso... Em toda a parte do mundo os burocratas militares tendem a revalorizar  poder bélico do inimigo para se valorizarem a eles próprios ou poderem negociar mais meios com o  poder politico... Aliás, foi justamente isso que o PAIGC fez, depois da morte de Amílçcar Cabral, com os seus aliados internacionais...

Mas, ao fim de mais de um a década de guerra, o PAIGC tinha graves problemas de recrutamento humano, tal como nós... Em 1974,  a população civil e a guerrilha (Exército Popular e milícias) estão exaustos, cansados e com graves problemas de saúde, a avaliar por várias fontes internas... O tema do "mútuo cansaço da guerra" é glosado, por exemplo, no notável filme do Flora Gomes, de 1978, Mortu Nega (a morte negada), que passou há dias, em 2 de março,  na RTP África... Diga-se de passagem que se trata da primeira longa metragem do cinema do novo país lusófono... e que me surpreendeu agradavelmente; um grande filme de um grande cineasta, Tenho pena de o não ter visto exatamente desde o início].

Guiné 63/74 - P11202: (In)citações (49): Quando os vencidos é que fazem a história... Ou, como lá diz o provérbio, "dunu di boka más dunu de mala" [, mais vale ter uma grande boca do que uma grande mala] (Cherno Baldé)


1. Comentário de Cherno Baldé ao poste P11190:

Caro Mário,

O conteúdo deste texto policopiado reporta-se as crónicas guerreiras do reino mandinga do Gabú, na sua última e derradeira fase que coincide com a revolta dos Fulas encabeçados por "Alfa" Molo Baldé rei do Firdu pai de Mussa Molo, este último bem conhecido pelos portugueses pelas suas frequentes incursões e razias nos territórios ainda em disputa dos regulados de Ganadu/joladu, Sancorla e Mancorse, antes da conquista final pelos Almames de Timbo e Kadé(Futa-Djalon).

Relativamente ao Djanké Uali, penso que se trata, como já referi, de crónicas guerreiras e não lendas, por tratar-se de um periodo mais ou menos recente (2ª metade do sêc. XIX), mais ou menos bem conhecido da historiografia africana ou europeia, tanto escrita como oral.

As localidades de Beré-colon (Sector de Contuboel, arredores de Fajonquito) e Kansala (Sector de Pirada) são bem conhecidas e os seus vestígios são objeto de visitas de pesquisadores e simples curiosos.

O mais interessante nestas crónicas, popularizadas pelos Djidius,  mandingas de Korá, é o facto de que são os vencidos que fazem a história, transformando os derrotados (os guerreiros de Djanké Uali) em heróis invencíveis, cujo fim deve ser visto como o fim do mundo (Turban) o que, a meu ver, constitui um enigma ou, no mínimo, um paradoxo da nossa história que a discrição prática, própria dos fulas,  permitiu crescer até atingir dimensões delirantes. Isto é tão real que quase ninguém conhece os nomes dos comandantes e chefes dos exércitos fulas que estiveram na origem das derrotas dos mandingas tanto em Beré-colon como Kansala.

É, como diz um provérbio krioulo, "dunu di boka más dunu de mala",  ou seja, mais vale ter uma grande boca do que uma grande mala [, mais ou menos equivalente ao português "ter mais fama do que proveito", ... se bem que "fama sem proveito faz mal... ao peito"... LG].

Um abraço amigo,

Cherno Baldé
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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11169: (In)citações (48): Vídeo "A Outra Guiné / The Other Guinea", de Hugo Costa e Francisco Santos, ou o regresso ao passado do Albano Costa, ex-1º cabo, CCAÇ 4150 (Guidaje, Bigene, Binta, 1973/74)

Guiné 63/74 - P11201: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (7): Patrulhamentos no Pilão

1. Em mensagem do dia 28 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense. CSJD/QG/CTIG, 1973/74), enviou mais uma crónica para a sua série Um amanuense em terras de Kako Baldé.


Um Amanuense em terras de Kako Baldé

(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné) 

6 - Patrulhamentos no Pilão

Durante os cerca de 30 meses em que permaneci nas fileiras do Exército, em cumprimento do Serviço Militar obrigatório, muito enriqueci o meu vocabulário à custa da chamada "linguagem de caserna", particularmente na Guiné. E se em relação aos vocábulos "ordinários", pouco tinha a aprender, confesso, já no que se refere a expressões mais "pacíficas", o ganho foi substancial.

Efectivamente aprendi e usei expressões (e ainda uso algumas) que, embora sendo consideradas calão, não são pejorativas e fazem, também elas, parte integrante da história de uma época e de um contexto onde todos nós, ex-combatentes, vivemos durante algum tempo da nossa juventude. Com o fim da guerra colonial, muitas daquelas expressões caíram em desuso e, para que se preserve este valioso património, tentarei usar e abusar, nesta "Tabanca", de expressões usadas entre os militares em serviço na Guiné e que me ficaram na memória.

Dito isto, vamos aos "famosos" patrulhamentos no Pilão.

O Pilão (assim designava-mos habitualmente o Cupilom) era o maior bairro negro de Bissau e situava-se perto das instalações militares de Santa Luzia, onde estava instalado o QG/CTIG. Era composto por numerosas tabancas, sem energia eléctrica, sem água canalizada e sem rede de esgotos. Era ali que vivia a maior parte da população pobre de Bissau. Era também ali que havia "manga de fudi-fudi"(1) e onde muitos militares iam "desenferrujar o prego". À noite era perigoso andar por ali sozinho.

Recordo-me de, ainda na Metrópole e terminadas a férias que antecediam o embarque, ter-me deslocado a uma barbearia para um corte de cabelo curto, e o barbeiro que me atendeu ter-me perguntado se ia para a tropa. Tendo-lhe respondido que não, que já lá andava há quase um ano, mas que ia para a Guiné, ele logo me avisou:
- Cuidado com o Pilão, um 'gajo' entra e sai de lá com a cabeça debaixo do braço!.

Fiquei esclarecido.

Efectivamente, vim a constatar depois que, à noite no Pilão, havia constantes conflitos por variadíssimas razões, entre as quais o "fudi-fudi". Era também habitual o rebentamento de granadas naquela bairro e constava até que por lá havia muita gente simpatizante do PAIGC e que alguns guerrilheiros ali vinham passar os fins de semana, recolhendo informações.

Os patrulhamentos estavam a cargo do pessoal da CCS do QG/CTIG e eram efectuados em três turnos; 20h-24h, 24h-04h, 04h-08h e eram controlados por um Capitão do COMBIS (Comando de Defesa de Bissau).

E é neste contexto que este vosso camarada "operacional do ar condicionado", apenas com alguns dias de Guiné, é chamado a efectuar o seu primeiro patrulhamento nocturno ao Pilão. "Piriquito"(2) como era, estava decidido a seguir à risca todas as instruções que me fossem transmitidas para o efeito.
Munido de G3, telemóvel matulão (já não sei como se chamava aquilo) e um croquis mal-ajambrado, com notas escritas à máquina e envolto num plástico transparente, lá vou eu comandar uma patrulha de seis homens, transformados em guardas-nocturnos.

Vamos de Unimog e largam-nos no local indicado no croquis. Este, tinha aspecto de já ter cumprido dezassete comissões e apresentava-se com a farda toda esfarrapada. Isto é: o plástico estava a desfazer-se e o papel mal se conseguia ler. Então de noite, sem luz, era giro!

Mas eu estava determinado a fazer tudo certinho e direitinho (era mesmo muito "pira"!(2)) e esforço-me por estudar o croquis, quando um elemento da patrulha me diz que o "télélé" tinha lanterna o que me levou a concluir que, afinal, a tropa portuguesa estava bem equipada. Às apalpadelas tentei acertar com o botão respectivo, mas acabou por ser o tal elemento da patrulha a dar à luz. Logo pensei: "este deve ser Engenheiro".

Os caracteres esbatidos daquele croquis já se me apresentavam mais legíveis e tratei de perceber qual o trajecto que teria de seguir para cumprir cabalmente a missão que me havia sido confiada, quando dou com o seguinte fragmento de texto: "(...) junto a um mangueiro com uma faixa branca (...).

Porra! Esta merda está toda rota, a luz é fraca comó caraças, um gajo num bê a ponta dum chabelho e, ainda por cima, estes gajos num sabem escreber, ou estom a gozar comigo?! Como é que bou encontrar uma mangueira com uma risca branca, no meio desta escuridom?! Tá tudo doido! (Em 1973, com 4 ou 5 dias de Guiné, sabia lá eu que existiam mangueiros!)

Fartei-me de olhar para o chão à cata da tal mangueira! Resumindo: perdi-me completamente e, a páginas tantas:
- kalar, kalar, aqui celta, diga se me ouve, escuto. - kalar, kalar, aqui celta, diga se me ouve, escuto.

O "télélé" tinha acordado - era o Capitão do COMBIS! Respondo:
- celta, celta, aqui kalar, diga se me ouve, escuto - celta, celta, aqui kalar, diga se me ouve, escuto - (duas vezes - tinham-me dito que era assim).

Do outro lado respondem:
- kalar, kalar, aqui celta, diga se me ouve, escuto - kalar, kalar, aqui celta, diga se me ouve, escuto.

E eu novamente:
- celta, celta, aqui kalar, diga se me ouve, escuto - celta, celta, aqui kalar, diga se me ouve, escuto.

Aquilo até estava a ser giro, mas o tal "engenheiro" diz-me:
- Meu Furriel, tem de carregar num botão aí ao lado! (o tipo sabia mesmo daquilo!).

Carreguei no botão, mas a conversa continuava monótona como tinha começado:
- kalar, kalar para cá - celta, celta para lá -  e já começava a chatear!

Então o "engenheiro" diz:
- Meu furriel, tem um botão de cada lado, tem de carregar nos dois ao mesmo tempo! - Aí convenci-me mesmo que o "bacano" era Engenheiro, e dos bons! Talvez electrotécnico.

Bom, lá consegui chegar à fala com o Capitão que me perguntou onde é que eu estava, e eu lá tive de lhe dizer que me tinha enganado no autocarro, que era a primeira vez, etc. e tal e ele lá me disse que estava junto à igreja, o que me deixou mais sossegado pois, provavelmente, estaria em meditação e dava-me algum tempo para lá chegar. Como não fazia a mínima ideia onde ficava a igreja, perguntei ao pessoal e um dos negros que compunham a patrulha lá nos encaminhou.

Chegados lá, nem Capitão, nem Padre, nem Sacristão, nem o raio que os parta! Recomeça a cantoria:
- kalar, kalar...

A sério que me apeteceu mesmo mandá-lo calar, mas lá carreguei nos dois botões (a gente está sempre a aprender) e o Capitão pergunta-me:
- Então, onde é que você anda?!

O tom de voz dele já não me estava a agradar. Respondi-lhe com alguma sobranceria:
- Estou junto à Igreja!

E ele:
- Junto à Igreja estou eu e não vejo aqui ninguém!

Eu, afinal, estava junto a uma mesquita!!!
Ai meu Deus que desta é que eu vou parar a São Crincalho! - (Já me estava a imaginar no centro de Madina de Boé a fazer patrulhamentos com uma moca de Rio Maior na mão e uma fisga no bolso!)

Lá me explicou mais ou menos onde ficava a Igreja e, como o pessoal mostrou conhecer o caminho, para lá avançamos a todo o vapor! Lá chegados, continuei com as minhas desculpas e não notei nele grande ressentimento. Julgo que era Capitão Miliciano. Assinei o mapa de controlo e lá me embrenhei novamente na "densa mata", até ser rendido.

 Tabanca do Pilão
Foto: © Arménio Estorninho

Eu era de rendição individual, estava há três ou quatro dias na Guiné e ainda não tinha tido tempo para conhecer todos os "cantos à casa". Vim mais tarde a saber como a "coisa" funcionava e, até ao fim da comissão, agi de acordo com as regras vigentes e..., "tá na mala!"(3)

Então era assim: O Capitão do COMBIS ligava para o Oficial de Prevenção - Alferes Miliciano - informando-o da hora e local onde seria efectuado o controlo. O Oficial de Prevenção avisava o Sargento de Ronda. Este seguia directamente com a patrulha para perto do local de controlo e, minutos antes da hora marcada, avançava destemido para o "objectivo". Nunca falhava!

Eu nunca dormia (forte sentido de responsabilidade), mas algum pessoal era "tiro e queda!".  Uma das vezes dei comigo a guardar seis "bacanos" a ressonar! "Oh c'um carago, mas que é isto?! Tudo a "ferrar o galho" e eu aqui feito camelo, de sentinela a velar por eles?!"
- Toca a acordar pessoal, vamos dar uma volta que estou a ficar com frio! - Acordaram e lá foram, meio a resmungar.

Em Setembro de 1973, vim de férias à Metrópole e, regressado a Bissau, "tungas, bora lá alinhar" numa rondazinha ao Pilão.

Era o turno das 20h às 24h, o pior em termos de conflitos. Eu tinha regressado no dia anterior e estava atarefado a tentar descansar da azáfama das férias. Sossegadinhos no canto de uma tabanca (do lado de fora, claro), fomos sobressaltados com o rebentamento de uma granada. Ouvi, registei e esperei. Logo de seguida, rebenta outra, depois outra... Mau, vim ontem de férias e ainda me sinto em convalescença e com pouca vontade de entrar em "festas"!. Continuam a rebentar - tenho de ir, pois vai aparecer o COMBIS de certeza.

Inicio, então, a deslocação das tropas exactamente em sentido contrário ao do som dos rebentamentos (cautelas e caldos de galinha...). O pessoal alerta-me, mas eu não ouço. É para este lado e "mai nada!"

Rebenta mais outra e aqueles "camelos" insistem:
- Meu Furriel é para ali! -  (militares impreparados!).
Lá tive de inverter o sentido da marcha. Aqueles "gajos" não estavam a facilitar nada.
- Calma, nada de pressas-, ordenei eu!

Entretanto rebenta uma granada incendiária que provocou um grande clarão e pude ver que já lá se encontrava alguma tropa e,  aí sim, acelerei a marcha. Não façam já juízos precipitados! Acelerei a marcha, não porque me sentisse mais seguro, mas porque estavam lá camaradas meus que podiam necessitar da minha ajuda (a isto chama-se altruísmo!).

O Capitão da COMBIS manda-me fazer um cordão de segurança ao local (eu mais 6 homens, quando muito uma cordinha!), pois estava uma granada descavilhada junto à porta de entrada da casa de um 1º Sargento e era preciso fazer segurança aos homens que iriam tentar resolver o assunto. Aquela granada podia rebentar por simpatia a qualquer momento. Colocaram sacos de areia junto à entrada da casa.
Pensou-se em dar um tiro de longe à granada, mas não seria fácil acertar-lhe e, além disso, parece que havia uma determinação qualquer que não permitia tiros em Bissau.

Se algum tabanqueiro tiver informações acerca do assunto, seria interessante divulgá-las aqui na Tabanca, pois sempre me pareceu absurda a ideia, tanto mais que era frequente o rebentamento de granadas, mas realmente e apesar da quantidade de armas que por ali circulavam, nunca tive conhecimento de cenas de tiroteio em Bissau. Talvez eu andasse distraído, não sei.

Aquilo demorou uma eternidade. Toda a gente dava palpites e eu, "experimentado" como era no assunto, também dou o meu.
- E se se abrissem algumas munições e se fizesse no chão um carreiro de pólvora até à granada e se espalhasse em cima desta alguma pólvora. Depois, era só chegar fogo à pólvora no início do carreiro e proteger-mo-nos.

A sugestão foi bem recebida, mas o pior veio a seguir. Era preciso um voluntário... "Querem ver que estes "gajos" estão a pensar na minha pessoa para pôr em prática o meu plano?! Estão doidos!"

Realmente, isto de fazer planos para os outros executarem é muito lindo. Não deixavam de ter razão, mas eu tinha regressado de férias no dia anterior, carago! Era só por isso, mais nada. E não é que um "bacano" do meu "grupo de combate" se oferece como voluntário?! Este gajo é maluco! Esta merda ainda rebenta, o "gajo" vai pelos ares, e eu fico com um "molho de brócolos" nas mãos, do carago!

O "bacano" lá começa a fazer o carreiro de pólvora até à granada e eu sempre a "rezar" para que ela se aguentasse muda e queda e a pedir que o "bacano" se despachasse. Quando chega à granada e começa a despejar pólvora em cima dela, eu já tremia todo só de imaginar a "gaja" a explodir, o "bacano" a ficar feito em fricassé e eu a "sentar o cu no mocho".

Lá terminou sem problemas aquela tarefa e, então, chegou fogo à pólvora. Todos nos abrigamos a aguardar os acontecimentos. A pólvora lá foi ardendo pelo carreiro e, quando chegou à granada, dá-se um clarão e... "um autêntico flato em pantufas!". A "gaja" não rebentou, chegou o pelotão para me render, eu regressei a quartéis e no dia seguinte soube que lá tinha ido o pessoal das minas e armadilhas que tratou do assunto.

A esta distância (40 anos) estes episódios são relatados com esta ligeireza da "calma, descontração e estupidez natural", mas não deixei de apanhar alguns "cagaços", pois temos de levar em conta que o meu nome completo inclui os apelidos Valente e Magro e que, o último me assentava na perfeição, à época.
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(1) - "manga de fudi-fudi" - muito sexo
(2 - "piriquito" ou "pira" (abrev.) - expressões que designavam um militar recém chegado à Guiné e cujo camuflado, com pouco uso, nos levava a assemelhá-lo ao periquito verde da Guiné (papagaio do Senegal).
(3) - "tá na mala!" - Está feito, siga! 

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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 27 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11164: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (6): Regresso a Bissau

Guiné 63/74 - P11200: Notas de leitura (462): Rosa no Pais das Flores da Luta, por Maria do Céu Mascarenhas (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 24 de Fevereiro de 2013:

Meus caros amigos e ex-camaradas de armas,
Dado o seu interesse, junto vos envio uma recensão da obra "Rosa no País das Flores da Luta" de Maria do Céu Mascarenhas relativo à sua experiência como professora cooperante na Guiné-Bissau, poucos anos depois da independência.
O livro é interessante na medida em que se trata de uma versão do conhecido livro "Alice no País das Maravillhas" do escritor inglês Lewis Carroll adaptado à realidade africana, ou, mais especificamente, à realidade bissau-guineense.

Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva
ex-Alf. Mil. de Infª. CCaç 2402,
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999


UMA NOVA VERSÃO DE ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS, NESTE CASO NA GUINÉ-BISSAU POUCO DEPOIS DA INDEPENDÊNCIA

Francisco Henriques da Silva

Maria do Céu Mascarenhas publicou recentemente uma obra que estaria há muitos anos na forja e que por vicissitudes várias, que não importa adiantar, só agora viu a luz do dia. É um livro, a todos os títulos interessante, imaginativo, bem estruturado, num português escorreito e bem elaborado e que se refere a um período da história da Guiné-Bissau, logo após a emancipação plena, sobre o qual, infelizmente, muito pouco se escreveu, nem do lado português, nem do lado bissau-guineense. Torna-se, por estas razões, uma obra obrigatória para todos aqueles que se interessam pela Guiné-Bissau, o país onde tantos, de um e de outro lado, verteram o seu sangue; o país que marcou toda uma geração que por lá passou ou cujos familiares por lá deambularam de arma na mão e que prosseguiu, anos depois por caminhos erráticos senão ínvios. Estamos a falar de “Rosa no País das Flores da Luta” (Chiado Editora, Lisboa, 2012).

A autora segue muito de perto a estrutura da célebre obra de Lewis Carroll “Alice no País das Maravilhas”, adaptando-a ao cenário de um país africano tropical, neste caso a Guiné-Bissau, alterando o nome dos personagens, o desenvolvimento das cenas, com considerações sobre um sem número de aspectos da vida quotidiana e das suas próprias elucubrações e inserindo permanentemente um relato onírico ou semi-onírico (porque, a bem dizer, não se trata de um estado de devaneio permanente, nem tão-pouco desfasado do real) com uma narração factual. Para ilustrar bem estas diferenças, a autora opta pela utilização de duas tonalidades: negrito, para o estado de vigília e regular (ou normal) para os estados sonial ou para-sonial, que vai alternando ao longo de todo o texto. Finalmente, o livro é enriquecido com inúmeras fotografias a cores da autora.

Maria do Céu Mascarenhas apenas permaneceu na Guiné-Bissau um ano lectivo (1977-78), como professora cooperante, no antigo Liceu Honório Barreto, denominado Kwame N’Krumah, após a independência. É perceptível o seu grande amor pelas crianças e o próprio título assim o indica: as “Flores da Luta” seriam as crianças, numa frase que é comummente atribuída a Amílcar Cabral e que se repete, de boca em boca, assumindo-se que a autoria pertence ao ex-líder do PAIGC, sem que, todavia, exista, tanto quanto se sabe, qualquer referência explícita a tal expressão nos seus discursos ou na sua obra escrita.

Tal como no livro de Lewis Carroll, as incursões pelo “non sense”, pelo absurdo, são permanentes e a Guiné-Bissau, que hesitava ainda em dar os primeiros passos, já lá vão 35 anos, prestava-se, magnificamente, a isso mesmo. Neste particular, refira-se a obra do embaixador António Pinto da França, contemporâneo de Maria do Céu Mascarenhas, “Em tempos de inocência” que menciona precisamente e numa linguagem meramente factual (ou seja, sem recurso ao sonho), num livro de memórias, esses aspectos absurdos da vida quotidiana bissau-guineense.

Por outro lado, a autora, ao longo do livro, revela muita da sua experiência de vida, da sua formação académica e do seu pensamento: uma vida predominantemente urbana, uma educação forjada nas escolas portuguesas dos anos 50 e 60, o Portugal do salazarismo-marcelismo, o catolicismo mitigado pelo racionalismo, as ilusões, as esperanças e os mitos da sua infância e da sua juventude. Tudo isto diz muito às gentes da minha geração e constitui um ensinamento relevante às gerações que nos sucederam e que desconhecem, quase por inteiro o que foi aquela época.

Uma das imagens eventualmente chocantes para os leitores menos avisados, mas que infelizmente se inscreve no vale de lágrimas que é – e tem sido - a política cultural portuguesa em África. Má em tempos idos e não muito melhor, diga-se de passagem, nos dias que correm. A autora salienta que em 1977-78, “a única biblioteca digna desse nome em Bissau era a do Centro Cultural Francês uma demonstração de como a França sabia aproveitar uma área de influência cultural que Portugal, em tantos anos de administração, tinha negligenciado como se de um pormenor sem importância se tratasse.” (p. 90) e acrescenta que era o embaixador português, muito empenhado e dinâmico, quem já estava nesse momento a diligenciar no sentido da fundação de um Centro Cultural Português”. Tratava-se de Pinto da França que envidava esforços insanos para tal conseguir, acabando por lograr os seus intentos. Era o “minimum minimorum”, para um PALOP como a Guiné-Bissau.

Um dos capítulos, a meu ver mais impactantes e com maior vigor da obra, é o VII “Uma festa de loucos com nome de guerra”, ou seja na estrutura de Lewis Carroll ”A Mad Tea-Party”. Trata-se de uma deslocação a Mansabá que Maria do Céu Mascarenhas, olhando para um antigo abrigo dos militares portugueses, compreende, de algum modo, toda a tragédia da guerra de África, que está ali, naquele “bunker” abandonado: o isolamento, o desconforto, o sacrifício, o próprio temor da morte, o horror da guerra. Ouçamo-la, na descrição onírica: “Era um buraco inóspito. Qualquer condenado à morte dispõe de uma cela mais confortável, pensou Rosa, contraída, com um nó na garganta, e aquele aperto no estômago” (p. 95). E agora, descendo à realidade .”Ficara como que petrificada a imaginar os jovens que teriam encontrado recolhimento num tal covil, o tempo sem fim que teriam permanecido acampados na planura desesperante que se estendia em frente” (ib.). E em seguida, descreve o que se passava na “metrópole”, em que as pessoas cumpriam a agenda do seu dia-a-dia, num Portugal que paulatinamente ia prosperando, mas que ignorava, a “guerra distante e sem fim”. Nestas curtas pinceladas bem reais, Maria do Céu Mascarenhas dá-nos conta do que foi a guerra, a nossa guerra, o que passámos, o que sentimos e a indiferença a que fomos votados. Mais adiante, depois de se referir aos direitos das mulheres (atentos os padrões da sociedade da época) remata: “ Sim, igualdades, muito bem, mas na hora da verdade eram os homens que tinham de abandonar tudo aquilo de que gostavam, família, carreira, para irem para a guerra.”(p. 99). De facto, para quem visitasse os lugares da guerra, anos depois dos acontecimentos, era uma “Mad tea party”. Tudo aquilo não se quadrava, nem se podia quadrar, nos parâmetros do real.

Um outro capítulo particularmente interessante é o IX “A Lenda do Tocador de Corá”, em que a autora estabelece algumas distinções em termos de estruturas mentais e culturais entre bissau-guineenses e portugueses e entre duas épocas, a colonial e a actual, em que Rosa, a protagonista, diz: “Demo-vos um Deus em quem acreditar oferecemo-vos uma língua de civilização.” Ao que a sua interlocutora responde: “O tempo colonial felizmente já passou, não vamos discutir. O teu Deus, o Deus dos muçulmanos e os nossos irãs não se dão mal entre nós, e a língua portuguesa, mesmo quando por cá a falamos de outra forma serve-nos perfeitamente” (p. 133)...”Minhas amigas, fiquemos com a cultura portuguesa que, como se diz, o saber não ocupa lugar, alem de que inevitavelmente faz parte da nossa História, mas conheçamos também as nossas lendas, a história dos nossos povos antes da chegada dos europeus...” (ib.). A análise comparativa é interessante, mas, no meu entender, quase epidérmica, demasiado curta e parca de pormenores. Mereceria, quiçá, um tratamento um pouco mais aprofundado, talvez sob a forma de diálogo e optando por uma forma simplificada, mas o texto tal como está carece de mais explicações - coloco-me, bem entendido, na pele do leitor interessado que pretende ir mais além.

Reveste-se de manifesto interesse, a passagem de Rosa, por uma escola internacional em Inglaterra, uns anos antes, em que o facto de ser portuguesa dá origem a algumas brincadeiras e dichotes de gosto duvidoso por parte de colegas estrangeiros. No fundo, é o eterno problema do nosso Portugal estar sempre na berlinda pelas mais variadas razões e quase nunca as melhores. Ao falarem-lhe em colónias, Rosa, candidamente, talvez sem compreender muito bem o alcance das graçolas, passa mentalmente em revista as ideias-força do Portugal da década de 60 que integravam o nosso subconsciente colectivo: “Ela, até então, só tinha ouvido chamar-lhes províncias ultramarinas, e possuía duas fotografias enviadas por um familiar Oficial do Exército, que com patriótica fé comandava tropas no norte de Angola, onde não sabia que algum tempo mais tarde haveria de perecer, nelas se viam soldados portugueses tratando ferimentos de crianças indígenas e acamaradando com elas, no âmbito de acções psico-sociais.” (pp. 148-149). Eu, próprio, fui várias vezes alvo de situações semelhantes, noutros contextos, compreendo, pois, muito bem onde a autora quer chegar.

Maria do Céu Mascarenhas fala-nos do conceito de Pátria, o que era, que significado tinha: “Achas que os rapazes que estão lá fora na guerra, em terras tão distantes da terra e da família deles, têm consciência nacional?” (p. 151) São interrogações importantes que todos os que têm sensibilidade política e sentido de portugalidade formulam. Os conceitos, aparentemente simples, tornam-se complexos e de difícil solução, atentos os parâmetros da época. O mundo apontava noutra direcção. As respostas começavam a pecar pela ambiguidade. Existiam outras soluções, outros caminhos, outras vias. Está, aqui creio todo o drama da geração de Maria do Céu Mascarenhas que é também a minha.

As deambulações pela história, em especial pela história colonial, mereceriam explicações mais pormenorizadas. Refiro-me à cobiça dos outros; ao Portugal, elo mais fraco do mundo ocidental; aos poucos quilómetros quadrados que nos sobraram na costa ocidental de África, ao porquê da mudança da capital de Bolama, uma cidade então moribunda e hoje morta e muitos, muitos outros temas, mas existem naturais limitações para a escrita e a extensão das explicações, o que é compreensível.

A aparente ausência de complexos em relação ao colonizador e até o amor a Portugal e aos portugueses está bem patente na visita à cidade de Gabú (antiga Nova Lamego) no Leste da Guiné-Bissau, em que os visitantes são, saudados de forma algo bizarra por um homem que se equilibrava num cabaço, tocava um apito e fazia a continência. “ Rosa, comovida, sentia-se num País das Maravilhas onde as coisas mais insólitas se tornavam possíveis, milagres de convivência que não saberia explicar, porque não os podia ela mesma totalmente compreender.” (p. 172).

É uma obra que deve figurar em qualquer biblioteca, que se lê com muito agrado e que, numa suave linguagem feminina, nos fala de nós, da nossa geração e do nosso relacionamento com o Outro, neste caso o bissau-guineense. Infelizmente, os rumos da História foram outros, embora, certamente, já perceptíveis quando Maria do Céu Mascarenhas por lá peregrinou.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 4 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11190: Notas de leitura (461): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P11199: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (8): A falta de notícias na retaguarda

1. Em mensagem do dia 2 de Março de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a oitava colaboração para a sua série "Carta de Amor e Guerra".

Meus queridos editor e co-editores Luís, Carlos e Eduardo:
Uns percalços vivenciais atrasaram o envio de mais um "item" desta série.
Este tema de hoje estava já alinhavado e, assim, foi o que mais depressa pude arranjar.
Vamos lá a ver se recupero aquele atraso que estou a sentir (não tenho mais nada pronto).
Receio que o tema de hoje seja "mixuruca" para muitos. Para mim não é mas, como sempre, respeito totalmente o v/ "criterioso critério".

Para o valioso "trio de ataque" deste blogue
Um grande abraço
Manuel Joaquim


CARTAS DE AMOR E GUERRA

8. A falta de notícias na retaguarda

Quando se fala da guerra colonial é normal referir o sofrimento dos combatentes mas não é comum falar-se, ao mesmo nível, da dor suportada pelos seus entes queridos (pais, avós, irmãos, namoradas, etc.).
Dizer que os combatentes, a maioria, ligavam o seu maior ou menor sofrimento ao nível de perigo que corriam, é excessivo? Acho que não. Até podiam sentir “folgas” no perigo, quer dizer, podiam passar um ou outro período mais ou menos longo em que a situação de periculosidade era como que esquecida. Acrescia ser também natural que as preocupações quanto aos seus entes queridos pudessem ser sublimadas pela ideia de que estes não corriam perigo algum a não ser de doença ou de acidente (em que, normalmente, não se pensa). Ideia esta que os podia levar a menosprezar o valor da sua comunicação. E isto aconteceu muitas vezes.

Na retaguarda a situação era diferente: quem ficou queria notícias frequentes do seu combatente querido, de modo a amenizar a sua insegurança quanto à verdade da situação. Vivia como se ele estivesse constantemente em perigo, isto é, nunca poderia saber se ele estava doente, ferido ou morto quando nele pensava ou quando para ele escrevia.

Ver, como eu vi, um monte de cartas dirigidas a quem tinha falecido umas horas antes, é coisa que não se esquece. Foi uma visão brutal que me ficou marcada para sempre. Hoje me penitencio pelo sofrimento que provoquei junto dos meus entes queridos com as minhas falhas em dar notícia. Tenho a certeza que teria mitigado algum do sofrimento que a minha ausência lhes provocava.
Termos alguém muito querido numa situação perigosa, sem notícias dele em tempo real e sem se poder fazer nada para o proteger, deve ser amargurante: sempre à espera, qual lotaria “a contrario”, ansiando que os números sorteados não nos contemplem com um “prémio” de desastre, qualquer que ele seja, desde a “terminação” à “taluda”.

Segue-se um exemplo, na parte que me diz respeito:

Vale de Figueira, 27. Set. 1965 
(… … …) 
Vou-me contentando com as tuas notícias (embora poucas) (…). Depois, se não dizes mais nada, (…), que hei-de eu fazer? Levar a mal e zangar-me? Não. Não seria razoável. Então que fazer? (…) analisar bem a situação em que te encontras para não me atormentar a imaginar, (…) problemas onde os não há. 
(… … …) 


Vale de Figueira, 5. Out. 1965 
(… … …) 
Temo a distância. E eu, (…) nem sempre sei (…) manter a calma, agir com condescendência e benevolência que sempre me foram peculiares para [com ] o teu procedimento, (…). Por vezes o sofrimento torna-nos duros, incomunicáveis e sobretudo incompreensíveis. Mas (…), continua a dar-me notícias quando e como te for possível. 
(… … …) 


Lisboa, 18 – Outubro – 1965 
( … … … ) 
As saudades são muitas, meu amor. É justamente quando preparo tudo para me dedicar à leitura ou para te escrever que o sossego e o isolamento do meu quarto avivam a lembrança de tudo o que me deixou. Essas recordações surgem mais nítidas, mais agudas, e fico liquidada. 
Ou sonho acordada contigo ou tenho tanta vontade (…) de correr para junto de ti que tudo aqui me parece odioso. Que ninguém me venha falar! Chego a ser cruel, violenta, mal-educada. Acabo sempre por chorar, por ficar abatida e enervada. Não sou tão forte como supunha e como tu imaginas. Sinto-me mesmo mais frágil, mais inútil do que nunca. Ora para que isso não aconteça é preciso que exija de mim mesma um esforço de vontade em grau mais ou menos heróico. (…). 
Mas eu vejo-te tão longe! Tu que és parte da minha vida. Tu que és complemento indispensável à continuidade da minha existência válida (…). 
(… … …). Meu Amor querido, (…), lutei para não deixar, para não te expor o que se estava passando comigo. Mas agora que estou sem notícias tuas é-me impossível resistir por mais tempo. 
(… … …)


Lisboa, 24-Outubro-1965 
Não sei porquê mas continuo sem notícias. Afinal, vives ou não vives meu M.? Há quinze dias que espero umas palavras tuas mas em vão. Já deixo de esperar para não sofrer cada dia mais desilusões. Não podes, ou não queres fazê-lo, é o que deduzo (…). 
(… … …) 
E já lá vão duas semanas, meu querido. (…) não acredito que não escrevas por de algum modo estares ressentido comigo. (…). Se algum problema surgisse, expor-mo-ias para que o discutíssemos e chegássemos a um possível acordo. Disso tenho a certeza. Mas também é certo que não deixo de estar preocupada. Mesmo com as tuas cartas semanais os dias sem ti parecem-me mais longos, sombrios, sem sentido. Agora (…), com falta de notícias, navego em mar largo sem rumo certo, vivo na escuridão.


Assim não. Não pode ser, meu querido. Não suporto esta situação desesperada em que vivo actualmente. (…) sem nada saber de ti, se isto assim continuar eu afirmo-te convictamente que não aguento. (…). 
Gostar – o simples facto de gostar de alguém – desperta poderes estranhos e emocionantes. Quanto mais gosto de ti, com mais confiança posso agir mas também mais te desejo ou, pelo menos, mais desejo algo que me fale de ti. 
Diz-me o que queres, querido! Farei tudo para te agradar. Nenhuma realização me parece impossível, não há derrotas que não possam ser superadas quando desejo, de corpo e alma, ajudar-te e buscar nessa ajuda força para mim, acreditar que a vida vale a pena ser vivida e essa crença ajudará a transformar isso numa realidade. Mas num momento tudo pode ser desfeito e todas as nossas esperanças, quais nuvens de fumo, dispersas pelo vento. 
(… … …) 
P.S. Suplico-te que me expliques o que se está passando. Quero saber a verdade. Sou a tua D.


Vale de Figueira, 8 - Nov. 1965 
(… … …) 
(…) a tua D. não vive o dia a dia alheia, insensível à dor de que são feitos os teus dias (…). É guerra. É sacrifício, incerteza em cada minuto que se segue. É duro como duras são as palavras que me dirigiste. E a guerra torna os homens duros, ásperos, insensíveis. Não era minha intenção criticar-te e parece-me que o não fiz. Aliás não havia razão que o justificasse. Compreendo muito bem que é impossível uma brevidade regular na expedição do correio. Nem tão pouco escreves quando queres mas apenas quando podes. Seria egoísta se não compreendesse isto mas tenho a certeza de que não o sou. (…). E muito menos insinuei afastamento ou esquecimento do teu lado. Só o teu mau humor poderia levar-te a deduzir isso. Não me lembro bem do que te disse mas mostrei-me preocupada apenas pelo facto de pensar que qualquer deficiência física poderia ter sido o motivo dessa falta de notícias. 
(… … …) 


Vale de Figueira, 9-Fevereiro. 1966 
Meu M. querido acho um pouco estranho não ter recebido notícias tuas (…). Esperava-as com ansiedade, (…). 
(… … …) 
Desculpa as minhas palavras de hoje, meu M. Estou descontrolada. Acredito que o atraso do correio não dependa de ti. (…). 


Lisboa, 1-Março-1966 
(… … …) 
(…), peço a tua benevolência para o facto de nem sempre saber controlar-me quando, por qualquer motivo, há um período mais longo sem informações tuas. 
(… … …) 


Vale de Figueira, 9-Março-66 
(… … …) 
Na nossa actual situação o que me interessa sobretudo é que semanalmente me dês testemunho de que ainda há vida nesse corpo tão massacrado, de que vais vivendo na esperança de ver chegar a hora do regresso. (…). (…) um “estou bem”, género telegrama, é uma felicidade para mim. É um lenitivo tão forte e um incentivo (…) para continuar a esperar. 
(… … …) 


Cacém, 4-Novembro-1966 
(… … …) 
(…) a preocupação e a angústia de que estou tomada ao riscar no calendário mais um dia, dias consecutivos, semanas, sem receber a retribuição dos meus contactos contigo. (…). É um período considerável sem receber notícias e não pode deixar de me afectar. 
(… … …) 


Cacém, 25.12.1966 
(…), com medo de uma decepção, rodo a chave na caixa do correio. Expectativa, enervação … mas zás! (…). Oh alegria, oh que felicidade, meu Amor. Que maravilhoso prémio de Natal quando os [dias] precedentes eram a escuridão, o silêncio. 
E o conteúdo será de molde a corroborar a alegria anteriormente manifestada, (…) ao encarar o envelope surpresa? 
Nervosamente (…) rasgo o envelope. Para a frente é que é o caminho (…). Os meus olhos buscam avidamente o final da carta. Talvez porque a maneira como estaria encerrada me daria já uma ideia do seu conteúdo. “Gracias”, meu M. querido. Estive feliz (…) no dia de Natal, na medida em que a felicidade é permitida e se pode viver longe dos que se amam. 
(… … …) 


Cacém, 16-Janeiro-1967
(… … …)
Acredito que nestas folhas de papel que semanalmente cortam a atmosfera transportadas num avião, voe cada um de nós para junto do seu Amor. (…). Eu iria agora mesmo, inteirinha, se pudesse ser transportada com um rótulo [selo?] de 2$50 na fronte.
Ah, meu Amor querido, cada vez com mais ardor te quero meu (…)

Técnica mista, Mario Coopé (pintor guineense). 
Imagem retirada de www.didinho.org, com a devida vénia.

Vê que até em sonhos sinto os teus contactos (…). Reflexo da necessidade insatisfeita que vivo de ti, motivada por esta maldita separação tão prolongada.
Se ainda sofresse de pudicícia exagerada diria que estava a ser tentada pelo Diabo. (…). Eu seria agora, aqui mesmo não tinha importância … (estou na cama), o mais completo diabrete.
Efusivamente, num frenesim de amor e de paixão que tu, agora, (…) me proporcionarias e eu correspondo, beijo-te (…).
(… … …)
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 27 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11163: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (7): E a morte apareceu

terça-feira, 5 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11198: Convívios (496): Rescaldo do II Almoço da Tabanca Ajuda Amiga realizado no passado dia 28 de Fevereiro (Carlos Fortunato)

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Fortunato (ex-Fur Mil da CCAÇ 13), dirigente da ONGD Ajuda Amiga, com data de 2 de Março de 2013:
 
Camaradas
Junto envio as noticias sobre o almoço da Tabanca Ajuda Amiga.
Iniciamos em Março uma campanha de recolha de cobertores e de bolas para as crianças. Os cobertores serão distribuidos em Portugal e na Guiné-Bissau, embora a maioria vá provávelmente para a Guiné-Bissau, para os antigos combatentes e alguns hospitais, e as bolas serão todas distribuidas na Guiné-Bissau.
Podem/querem apoiar esta campanha?
Se pudermos contar com o vosso apoio, faço um texto e envio.
Obrigado pela colaboração, que tem sido preciosa.

Um alfa bravo
Carlos Fortunato


Almoço da Tabanca Ajuda Amiga

Realizou-se no passado dia 28 de Fevereiro de 2013, o segundo almoço da Tabanca Ajuda Amiga, o qual contou com 20 presenças (no primeiro almoço tinham sido 13 os presentes).

Está assim definitivamente lançado este momento do convívio que ocorre na ultima 5ª feira de cada mês na cantina da Associação de Comandos, sediadas no Regimento de Artilharia de Costa, 3ª Bateria, na Laje, em Oeiras.

A divulgação efectuada neste nosso blog foi muito importante, para o sucesso desta iniciativa. e por isso este sucesso, é também de todos os que estão envolvidos neste blog.

O almoço é também um acto de solidariedade, e quem quis deu o seu donativo para a ONG Ajuda Amiga, apoiando o projecto de envio do contentor anual de ajuda humanitária e de apoio ao desenvolvimento para a Guiné-Bissau, o total somou 33 euros (um contentor vai seguir no segundo semestre deste ano, e outro no inicio de 2014).

No almoço foi comunicado o lançamento de duas campanhas de angariação de:
- Cobertores
- Bolas para crianças

Os bens podem ser entregues na Junta de Freguesia de S. Francisco Xavier, que em colaboração com a Ajuda Amiga está a realizar esta iniciativa.

A junta de Freguesia é na Rua João de Paiva, nº 11, 1400-225 Lisboa, e funciona das 10h00 às 18h00.

Os bens podem igualmente ser entregues durante os almoços da Tabanca Ajuda Amiga, o qual será no próximo dia 28 de Março.

Aproveitamos para divulgar alguns endereços onde foram publicadas noticias relacionadas com os almoços da Tabanca Ajuda Amiga:

http://pt-pt.facebook.com/pages/Tabanca-Ajuda-Amiga/156733857807547 http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2013/02/guine-6374-p11056-convivios-490.html http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2013/01/guine-6374-p11019-ser-solidario-140.html http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2013/02/guine-6374-p11152-convivios-494-ii.html http://ajudaamiga.com.sapo.pt/noticias.html


Joaquim Lourenço, António Ortet, Eugénio Gravata

Carlos Lisboa

José Diniz, Carlos Pinto

Jorge Rosales

António Bartolomeu, Nuno Bartolomeu, Manuel Patrício

Fernando Paiva, Fátima Paiva, Armando Pires, Carlos Silva

Renato Sousa, Hugo Ferreira, Ilídio Vaz

Manuel Joaquim, António Bartolomeu

Carlos Rodrigues, Carlos Fortunato
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Nota do editor

Vd. último poste da série de 27 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11165: Convívios (495): XVI Encontro do pessoal da CCAÇ 4150 - "Os Apaches do Norte", dia 14 de Abril de 2013 em Lousada (Albano Costa)

Guiné 63/74 - P11197: Do Ninho D'Águia até África (56): Contava os dias e ia sobrevivendo (Tony Borié)




1. Quinquagésimo quinto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:





DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 56



Nos últimos dois meses de comissão, o Cifra era uma pessoa diferente, e algumas vezes complicativa. Mas o seu trabalho foi sempre feito rigorosamente e com honestidade.

O aquartelamento estava práticamente acabado, todo rodeado de arame farpado, com os postes em cimento, pintados de branco, um branco que não era branco, pois por baixo tinha todas as cores, mais as cores do sangue, da amargura e do medo que o Cifra sentiu em muitos momentos, mas que ajudou a pintar.


Uns meses antes de acabar a comissão, o Comandante, um dia, chama-o ao seu gabinete, manda-o sentar, e numa conversa bastante franca, entre outras coisas, diz-lhe:
- Ouve com atenção, fizeste um grande trabalho neste aquartelamento que muito contribuiu para o sucesso de muitas operações, vou dar-te um louvor e propor outros para uma possível promoção, para que continues no exército de Portugal.

Ao que o Cifra lhe respondeu, também com sinceridade:
- Meu comandante, meta os elogios onde quiser, deixe-me ir embora, e em paz, pois quando me vir livre desta, não me vou meter em outra. Sinceramente, não tenho vocação para a guerra.

O comandante deu-lhe um louvor, do qual está uma cópia em cima, dizendo entre outras coisas que “revelava excepcionais qualidades de trabalho, ajudava os seus companheiros, era muito educado, aprumado, metódico e inteligente, e depressa se tornou digno da confiança, consideração e amizade dos seus camaradas e superiores”, e onde também, entre outras coisas menciona que o seus amigos Tchena Imbalá, Ionna Indegame e Canjura Turé, tinham trocado de número. Mas não menciona que andava quase sempre com a garrafita de coca-cola nas mãos, que continha tudo, menos coca-cola, que fumava cigarros feitos à mão, que roubava vinho e pão ao cabo rancho, que era o bom do “Arroz com pão”, às vezes roubava álcool ao Pastilhas, fugia desenfiado para a capital da província, no carro dos doentes, andava quase sempre na tabanca, para onde levava comida, umas vezes restos, que pedia ao sargento da messe, ou ao cabo do rancho, outra vezes roubada, para as pessoas suas amigas, andava sujo e a barba crescida, durante os dias de folga das suas tarefas. Que ele e o seu grupo de amigos, bebiam, fumavam e faziam toda a espécie de poluição sonora, atormentando os restantes companheiros, e andavam sempre metidos em problemas no dormitório. Tinham má fama e qualquer coisa que de mal acontecesse, era o grupo do Cifra, tudo isto entre outras coisas, que o Cifra não vai dizer, porque senão ainda vão chamar o D. Afonso Henriques e questioná-lo porque é que andou à guerra com a mãe e fundou o Estado Portucalense!

Também não menciona que nos últimos meses de estadia em cenário de guerra, o seu estado normal, fora dos dias em que estava de serviço, pois nessa altura executava as suas tarefas com toda a precisão e honestidade, era de uma pessoa, quase sempre sobre influência, para não se lembrar do cenário de guerra em que estava metido, para esquecer toda a sua angústia, medo e desespero, que chorava compulsivamente vários minutos, sem poder controlar, quando se lembrava que ia abandonar as pessoas amigas da tabanca e o seu grupo de companheiros, que já considerava família, mas não podia esquecer a sua verdadeira família, que tinha deixado em Portugal.


Mas o comandante deu-lhe este louvor, porque foi seu amigo desde o dia em que se encontraram, quando o Cifra o cumprimentou, no tal acampamento junto ao rio, perto do cais de desembarque na capital da província, com as botas e a farda amarela cobertas de lama, e o Cifra, todo picado dos mosquitos e já com manchas vermelhas na pele do seu corpo. Este mesmo comandante auxiliou-o passado uns anos, já na vida civil, pois o governo de então não lhe dava a caderneta militar, nem o passaporte, e o Cifra queria sair de Portugal, na companhia da sua esposa e companheira.


Era discriminado no País que defendeu, por ser de família pobre, de agricultores honrados, mas na vila a que pertencia, a sua aldeia do vale do Ninho d’Águia, diziam que era uma família “do contra”, e por tal motivo não tinha acesso a emprego decente, a crédito para ter uma casa, criar uma família e dar educação aos seus filhos, como era sua intenção assim como da sua companheira.

Emigrou. Eram outros tempos.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11180: Do Ninho D'Águia até África (55): O fim aproximava-se, mas havia desespero (Tony Borié)