Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 > Abril de 1968 > Fase de construção do aquartelamento (que o PAIGC, através da rádio Libertação, em Conacri, chamava "campo fortificado de Mansambo")... Os alferes milicianos Cardoso e Rodrigues apanham banhos de luar... Mosquitos ? Rede mosquiteira ? Não há... Estamos na época seca...
Legenda do Carlos Marques dos Santos, o primeiro dos Viriatos a chegar ao nosso blogue, tendo depois trazido com ele o Torcato Mendonça: "A propósito!... Sabem onde foi tirada esta foto? Em Mansambo, a céu aberto. Camas de ferro nos fossos que iriam ser o aquartelamento fortificado de Mansambo. Data: Abril de 1968. A foto é do Henrique Cardoso, alferes da CART 2339 e seu comandante. Os 3 Capitães, que comandaram a Companhia anteriormente estiveram sempre doentes !!! Ele assumiu o comando. Era miliciano e responsável. Podes publicar, se quiseres. O Cardoso autorizará. Tenho o seu aval".
Foto: © Henrique Cardoso / Carlos Marques Santos (2005). Todos os direitos reservados [Edição: LG]
1. Os comentários ao poste P11556 (*), encorajaram-nos a abrir uma nova série sobre um tema até aqui pouco abordado: a nossa experiência de doença em tempo de guerra...
Eu próprio comentei:
"Amigos e camaradas, ora cá está um bom tema para a gente discorrer, escrever, comentar, acrescentar, melhorar, aumentar, delirar...
Temos falado pouco, muito pouco, nestes nove anos a blogar, da nossa experiência (pessoal, única mas transmissível...) de doença em tempo de guerra... Como é que a gente lidava com os esquentamentos, os ataques de paludismo, as lesões cutâneas, as depressões, as diarreias, os problemas musculoesqueléticos... E, mais do que isso, como é que a gente viveu e sobreviveu nos hospitais militares (Bissau, Estrela/Campolide...), aqueles de nós que foram feridos gravemente em combate ou evacuados por doença grave (por ex., hepatite, tuberculose; felizmente ainda não havia o HIV/SIDA)
O meu primeiro ataque do paludismo, em Bambadinca, já no final da época das chuvas ou até mesmo no princípio da época seca (já não posso precisar, talvez no último trimestre de 1969), foi uma experiência brutal para mim... Um pesadelo. A imagem que ainda tenho é a do ciclo (curto) da temperatura do corpo que ia do muito baixo (abaixo dos 36!) ao muito alto (quase a roçar os 42!)... Pensei que morria...Sozinho, no meu quarto (que aliás não era só meu, era de mais 4 ou 5), com o meu amigo 'Pastilhas' (ex-fur mil enf João Carreira Martins, da CCAÇ 12, que se reformou como enfermeiro chefe do Hospital Curry Cabral e é hoje pai de 2 médicos) a vigiar-me de tempos e a medicar-me com doses de cavalo...
Como se tratava o paludismo, na época, não sei... Mas a sensação que tinha, era a de abandono, solidão, desespero... Ora ardia em febre, ora tiritava de frio, entrando em hipotermia... Um dia vou ter que transfiormar esta "descida ao inferno" em posia... Emfim, não sei quantas vezes tive paludismo na Guiné... E cá tive ressacas (ou recidivas, em linguagem médica), como muita malta... Por outro lado, trouxemos o fígado em mau estado, de tanto uísque, água da bolanha, gin tónico, cerveja, tintol, brancol e outras merdas que emborcávamos. (...)
Foto: © Henrique Cardoso / Carlos Marques Santos (2005). Todos os direitos reservados [Edição: LG]
1. Os comentários ao poste P11556 (*), encorajaram-nos a abrir uma nova série sobre um tema até aqui pouco abordado: a nossa experiência de doença em tempo de guerra...
Eu próprio comentei:
"Amigos e camaradas, ora cá está um bom tema para a gente discorrer, escrever, comentar, acrescentar, melhorar, aumentar, delirar...
Temos falado pouco, muito pouco, nestes nove anos a blogar, da nossa experiência (pessoal, única mas transmissível...) de doença em tempo de guerra... Como é que a gente lidava com os esquentamentos, os ataques de paludismo, as lesões cutâneas, as depressões, as diarreias, os problemas musculoesqueléticos... E, mais do que isso, como é que a gente viveu e sobreviveu nos hospitais militares (Bissau, Estrela/Campolide...), aqueles de nós que foram feridos gravemente em combate ou evacuados por doença grave (por ex., hepatite, tuberculose; felizmente ainda não havia o HIV/SIDA)
O meu primeiro ataque do paludismo, em Bambadinca, já no final da época das chuvas ou até mesmo no princípio da época seca (já não posso precisar, talvez no último trimestre de 1969), foi uma experiência brutal para mim... Um pesadelo. A imagem que ainda tenho é a do ciclo (curto) da temperatura do corpo que ia do muito baixo (abaixo dos 36!) ao muito alto (quase a roçar os 42!)... Pensei que morria...Sozinho, no meu quarto (que aliás não era só meu, era de mais 4 ou 5), com o meu amigo 'Pastilhas' (ex-fur mil enf João Carreira Martins, da CCAÇ 12, que se reformou como enfermeiro chefe do Hospital Curry Cabral e é hoje pai de 2 médicos) a vigiar-me de tempos e a medicar-me com doses de cavalo...
Como se tratava o paludismo, na época, não sei... Mas a sensação que tinha, era a de abandono, solidão, desespero... Ora ardia em febre, ora tiritava de frio, entrando em hipotermia... Um dia vou ter que transfiormar esta "descida ao inferno" em posia... Emfim, não sei quantas vezes tive paludismo na Guiné... E cá tive ressacas (ou recidivas, em linguagem médica), como muita malta... Por outro lado, trouxemos o fígado em mau estado, de tanto uísque, água da bolanha, gin tónico, cerveja, tintol, brancol e outras merdas que emborcávamos. (...)
Até ao séc. XIX dizia-se que "em Lisboa nem sangria má nem purga boa", ou mesmo é dizer que as técnicas terapêuticas da época eram agressivas, invasivas, brutais e ineficazes... Chegava-se a sangrar um doente dez, vinte, trinta vezes... E quanto purgas, bom, "purgai-o e purgai-o e se morrer enterrai-o"... Parafraseando este dichote, podia dizer-se que, no nosso tempo, "em Mansoa, nem mezinha má nem picada de mosquito boa"... Em Mansoa, em Catió, em Cacine, em Bedanda, em Nova lamego, em Bissorã, e por aí fora... havia a crença de que a Guiné não era para brancos...
As principais doenças que afetam hoje a Guiné-Bissau não serão muito diferentes das do passado colonial, com exceção do HIV/SIDA: são o paludismo, a diarreia, as doenças respiratórias agudas, a tuberculose, as doenças sexualmente transmissíveis (incluindo o HIV/SIDA), as parasitoses intestinais, a oncocercose (ou "cegueira dos rios") e outras endemias tropicais. Estávamos expostos a estas doenças, mas também tínhamos problemas de saúde específicos da nossa "condição militar", devidas à duras de condições de vida e às deficiências da alimentação e do abastecimento de água potável...
As principais doenças que afetam hoje a Guiné-Bissau não serão muito diferentes das do passado colonial, com exceção do HIV/SIDA: são o paludismo, a diarreia, as doenças respiratórias agudas, a tuberculose, as doenças sexualmente transmissíveis (incluindo o HIV/SIDA), as parasitoses intestinais, a oncocercose (ou "cegueira dos rios") e outras endemias tropicais. Estávamos expostos a estas doenças, mas também tínhamos problemas de saúde específicos da nossa "condição militar", devidas à duras de condições de vida e às deficiências da alimentação e do abastecimento de água potável...
Fica aqui dado o mote para a elaboração, remessa e publicação de postes sobre o paludismo [ou malária] e outras doenças que nos afetaram no TO da Guiné, a sua prevenção, profilaxia, tratamento... Recorde-se que algumas dava direito a evacuação imediata para a Metrópole: estou-me a lembrar da Hepatite.
O pontapé de saída vai ser dado pelo nosso coeditor, Eduardo Magalhães Ribeiro: fomos recuperar um velho e delicioso texto seu, da I Série do nosso blogue (**).
2. Um mosquiteiro barato para um pira
por Magalhães Riberio [, foto à esquerda, Mansoa, setembro de 1974]
Uma das características na Guiné é a variação bidiária da sua área total de território seco de 31 800 Km2 — devido à subida das águas do mar, nas marés altas — para cerca de 28 000 Km2. Isto acontece devido a dois factos: a cota territorial média que é muito baixa e a existência de múltiplos rios.
Por isso, durante a maré baixa, ficam a descoberto, mais ou menos 3 800 km2 de zonas pantanosas que, localmente, se designa por “bolanhas”.
Ora, este é o habitat natural da mosquitada, que por ali prolifera aos milhões e se espalha por todo o lado em busca de alimento. Um dos seus “pratos” favoritos é o sangue humano.
Durante a Guerra do Ultramar as vítimas preferidas por estes parasitas incomodativos e asquerosos, eram sem dúvida os incautos periquitos ou piras (nome dado pelos tropa mais velha aos recém-chegados à Guiné).
Dizia a sabedoria destes velhinhos — talvez com alguma razão — que os mosquitos eram atraídos, pelo tom de pele branquinha e/ou pelo sangue fresco e puro dos periquitos. E, acrescentavam mais:
— Do nosso sangue, envenenado e apanhado pelo clima como está, os mosquitos até fogem!.
Acredite-se ou não nesta teoria, a verdade, é que de cada vez que um pira se expunha à fúria daquela praga com asas, ficava completamente crivado das picadelas.
Estas picadas, além de dolorosas e irritantes, eram temidas porque através delas se transmite ao ser humano, o paludismo, uma doença muito debilitante fisicamente e, consequentemente, muito perigosa.
Em Mansoa, quando entrei pela primeira vez na camarata verifiquei que nas cabeceiras das camas todos tinham, de maior ou menor tamanho, ventoínhas, e adaptadas nas armações das camas encontravam-se estruturas de tubos e verguinhas metálicas, com cerca de 0,75 metros de altura, todas revestidas até ao chão com redes de malha muito fininha.
O velhinho e meu grande amigo Furriel Ranger Marques, com a sua calma e longa experiência de vinte e muitos meses, deu-me, então, uma lição sobre “Como dormir sem zumbidos nem picadas dos mosquitos na Guiné”, assim:
1º) Não se faz mal às osguinhas e salamandras que deslizam ali no tecto — estavam lá três de vários tamanhos —, apesar do seu aspecto repelente elas são nossas amigas, e ajudam-nos a eliminar os mosquitos que, à noite, abundam e atacam muito mais, comendo-os;
2º ) O "aparelho de ar condicionado" está com problemas de falta de ar e foi para consertar para o continente há onze anos, pelo que, para dormir fresquinho só com as janelas todas abertas; mas em contrapartida os mosquitos entram e picam-te durante toda a noite;
3º ) Evitas os mosquitos e as respectivas picadelas, fechando todas as janelas e frinchas, mas ficas sujeito a morrer aqui abafado;
4º ) Pedes para ir a Bissau, compras o material (verguinha de aço, e rede ou tule) e constróis um mosquiteiro;
5º ) Como estou para ir embora, podes fazer como eu fiz quando cá cheguei, compras a um de nós o mosquiteiro e só pagas o material, com desconto e tudo; olha, o meu está bem conservado !?... Novo custou 570$00, mas devido ao uso e tal, vendo-to por 350$00.
Os mosquitos continuavam à minha volta a comer-me vivo! Que fazia [um gajo] no meu lugar?...
Eu também fiz! Comprei logo!
RANGER Magalhães Ribeiro
Fur Mil
CCS/BCAÇ 4612/74
Guiné, Mansoa, 1974
____________
Notas do editor
(*) Vd. poste de 12 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11556: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (3): Era do caraças o paludismo
Não me lembro exactamente quantas crises de paludismo sofri na Guiné nem de quantas recaí já civil. Lembro-me que a primeira me aterrou em febre/frio e dores de cabeça. Na altura, deitado no meu catre que ficava no último edifício na parte mais alta do quartel de Aldeia Formosa, comecei a ouvir uns soldados a abrir latões de gasolina para chapas à porrada de martelo e o barulho rebentava-me a cabeça. A custo vim à porta pedir-lhes que fossem fazer aquilo para outro lugar e responderam-me que eram ordens superiores. Pouco me importavam tais ordens e avisei que não aguentava aquilo. Pararam um pouco, voltei à cama e ouvi recomeçarem. De novo me levantei, peguei na G3, meti um carregador e fui à porta pedir de novo mas já de canhota na mão. Disseram-me que seria melhor ir falar com o Alf PG e eu já nem pensei mais, culatra atrás e bala na câmara, um tiro pró ar. 'Tá bem, chamem lá o PG'... Foram embora e o PG veio ao meu quarto e percebeu tudo. Recaí duas vezes, dramaticamente, já a voar na TAP, uma no hotel no Algarve e outra em Nova Iorque, assustando ingleses e americanos, mas isso fica, talvez, para uma próxima. (...)
O pontapé de saída vai ser dado pelo nosso coeditor, Eduardo Magalhães Ribeiro: fomos recuperar um velho e delicioso texto seu, da I Série do nosso blogue (**).
2. Um mosquiteiro barato para um pira
por Magalhães Riberio [, foto à esquerda, Mansoa, setembro de 1974]
Uma das características na Guiné é a variação bidiária da sua área total de território seco de 31 800 Km2 — devido à subida das águas do mar, nas marés altas — para cerca de 28 000 Km2. Isto acontece devido a dois factos: a cota territorial média que é muito baixa e a existência de múltiplos rios.
Por isso, durante a maré baixa, ficam a descoberto, mais ou menos 3 800 km2 de zonas pantanosas que, localmente, se designa por “bolanhas”.
Ora, este é o habitat natural da mosquitada, que por ali prolifera aos milhões e se espalha por todo o lado em busca de alimento. Um dos seus “pratos” favoritos é o sangue humano.
Durante a Guerra do Ultramar as vítimas preferidas por estes parasitas incomodativos e asquerosos, eram sem dúvida os incautos periquitos ou piras (nome dado pelos tropa mais velha aos recém-chegados à Guiné).
Dizia a sabedoria destes velhinhos — talvez com alguma razão — que os mosquitos eram atraídos, pelo tom de pele branquinha e/ou pelo sangue fresco e puro dos periquitos. E, acrescentavam mais:
— Do nosso sangue, envenenado e apanhado pelo clima como está, os mosquitos até fogem!.
Acredite-se ou não nesta teoria, a verdade, é que de cada vez que um pira se expunha à fúria daquela praga com asas, ficava completamente crivado das picadelas.
Estas picadas, além de dolorosas e irritantes, eram temidas porque através delas se transmite ao ser humano, o paludismo, uma doença muito debilitante fisicamente e, consequentemente, muito perigosa.
Em Mansoa, quando entrei pela primeira vez na camarata verifiquei que nas cabeceiras das camas todos tinham, de maior ou menor tamanho, ventoínhas, e adaptadas nas armações das camas encontravam-se estruturas de tubos e verguinhas metálicas, com cerca de 0,75 metros de altura, todas revestidas até ao chão com redes de malha muito fininha.
O velhinho e meu grande amigo Furriel Ranger Marques, com a sua calma e longa experiência de vinte e muitos meses, deu-me, então, uma lição sobre “Como dormir sem zumbidos nem picadas dos mosquitos na Guiné”, assim:
1º) Não se faz mal às osguinhas e salamandras que deslizam ali no tecto — estavam lá três de vários tamanhos —, apesar do seu aspecto repelente elas são nossas amigas, e ajudam-nos a eliminar os mosquitos que, à noite, abundam e atacam muito mais, comendo-os;
2º ) O "aparelho de ar condicionado" está com problemas de falta de ar e foi para consertar para o continente há onze anos, pelo que, para dormir fresquinho só com as janelas todas abertas; mas em contrapartida os mosquitos entram e picam-te durante toda a noite;
3º ) Evitas os mosquitos e as respectivas picadelas, fechando todas as janelas e frinchas, mas ficas sujeito a morrer aqui abafado;
4º ) Pedes para ir a Bissau, compras o material (verguinha de aço, e rede ou tule) e constróis um mosquiteiro;
5º ) Como estou para ir embora, podes fazer como eu fiz quando cá cheguei, compras a um de nós o mosquiteiro e só pagas o material, com desconto e tudo; olha, o meu está bem conservado !?... Novo custou 570$00, mas devido ao uso e tal, vendo-to por 350$00.
Os mosquitos continuavam à minha volta a comer-me vivo! Que fazia [um gajo] no meu lugar?...
Eu também fiz! Comprei logo!
RANGER Magalhães Ribeiro
Fur Mil
CCS/BCAÇ 4612/74
Guiné, Mansoa, 1974
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Notas do editor
(*) Vd. poste de 12 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11556: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (3): Era do caraças o paludismo
(...) Comentário de José Brás:
(**) Vd. I Série, poste de 7 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVI [346]: Cancioneiro de Mansoa (3): um mosquiteiro barato para um pira... [Magalhães Ribeiro]