Na década de 60 éramos uma juventude antiquada como os pais, como os mestres e os governantes que tínhamos. A revolução das ideias, dos costumes, sexual, musical, desfraldava bandeiras empunhadas por uma juventude insatisfeita e eufórica da Europa desenvolvida, mas embatia nos Pirinéus que dificultava a sua entrada na Península Ibérica de Franco e Salazar.
Somente algumas camadas de jovens urbanos e universitários conseguiam decifrar algum do significado dos novos tempos que se anunciavam. Maio de 68, tumultos, greves, a revolução nas escolas e na rua, a adesão dos sindicatos quase o caos na França, com De Gaulle, esse herói e patriota da 2.ª Grande Guerra, amedrontado a convocar as Forças Armadas para suster essa revolta que os velhos do regime não entendiam pois toda essa juventude, filha da sociedade de consumo tinha atingido o melhor nível de bem-estar da terra de todos os tempos.
Juventude que reclama outra ordem de prioridades e valores que as suas necessidades espirituais exigem. Ter tudo, falando de bens materiais cria no homem uma insatisfação maior do que não ter nada, ter tudo é o fim dos desejos. Os ideais não se compram nem se vendem, são um estado de espírito que não é transacionável, estão para lá da sociedade de consumo A sociedade capitalista nada oferece a não ser bens consumíveis e descartáveis, a juventude quer ideais que a galvanizem e por vezes à falta de melhor foi copiá-los ao leste ou ao oriente.
Nesse tempo a juventude portuguesa no geral pobre e pouco instruída, habituada a ler e estudar pelos livros que o regime aprovava era conduzida para três guerras longe de casa, que não compreendia muito bem, mas que estava de acordo com os manuais de história que tinha lido. Em levas sucessivas embarcavam no cais de Alcântara como guerreiros, em defesa do Império Português, o último baluarte da cristandade e dos valores da civilização ocidental. No cais uma multidão de familiares e amigos, chorosos mas conformados que acenavam lenços num último adeus e que a televisão única transmitia como sinal de dor e de patriotismo das nossas gentes.
No Uíge, no Príncipe Perfeito ou outros, seguiam viagem a sulcar o Atlântico somente ou também o Índico, em navios superlotados e com muitos soldados no porão em condições miseráveis para quem ia defender uma causa tão nobre. Foi a segunda cruzada dos pobres, agora liderada não por Pedro o Eremita, mas por Salazar que não a comandou, pois nunca conheceu África. Mal alimentados, mal treinados, mal armados mas com a cruz ao peito e com a fé inabalável éramos os novos cruzados prontos a dar a vida pela reconquista de Jerusalém. Alguém que sempre nos quis humildes, miseráveis e tementes a Deus, exigiu-nos também no final da sua vida o sacrifício supremo da nossa.
Os ingleses na Índia, os franceses na Argélia, os russos no Afeganistão, os americanos no Vietname, grandes potências mundiais, nada comparáveis connosco em poder económico e militar, perderam essas lutas militares e políticas. Nós para infelicidade de muitos compatriotas nossos: militares que por lá ficaram mortos ou mutilados e civis que por acreditarem na propaganda do regime alimentaram esperanças de que a nossa bandeira nunca seria desfraldada nessas áfricas e depois sofreram o choque dessa descolonização abrupta, com as perdas emocionais e materiais que todos conhecemos.
Infelizmente a guerra criou desconfianças e atritos que uma descolonização mais antecipada teria evitado.
Foto e legenda: Com a devida vénia a Escomm Brasil
Aos que dizem que hoje os povos da Guiné, Angola e Moçambique estão com piores condições de vida, tanto alimentar, como de saúde, para falar só das essenciais, eu respondo que têm razão. Também é verdade que há falta de democracia (isso já antes era assim) e a corrupção é muito maior do que em Portugal. Porém a História tem-nos ensinado que as nações se constituem e fortalecem quando os povos que as integram, com o decorrer dos anos e a experiência acumulada aprendem a libertar-se dos corruptos e tiranos internos, depois de se terem libertado dos colonizadores externos.
Esse esforço demora anos, por vezes séculos.
Era importante que os povos soubessem guardar a memória dos males e sofrimentos passados, o que por vezes se torna difícil, ou porque não são instruídos para ter acesso à sua leitura ou porque a História foi escrita a pedido de réis e ditadores.
Depois de voltar da Guiné tive um sonho que se repetiu muitos anos: Sonhava que tinha voltado lá como combatente e eu perguntava sempre aos meus comandantes, porquê eu, se já lá tinha estado. Nunca obtive resposta e nunca consegui decifrar bem este sonho.
O meu gosto pela história e pelo estudo do passado leva-me a sonhar, que sou um velho crente da Idade Média, ou que sou um monge templário do tempo das cruzadas e do tempo das grandes catedrais góticas, Catedrais que parecem autênticas moradas de Deus, onde reina o silêncio ou onde o som do órgão e dos cânticos se difunde com tanta suavidade. Tão imponentes que subjugam pela imensidão, pela altura e pelos contornos e beleza das esculturas dos arcos, colunas e volutas.
Sonho que sou esse velho crente ou que sou esse monge regressado das cruzadas que pede a um sábio, a um filósofo, a um deus que dê resposta às minhas perguntas sobre, a vida, a morte, a paz e a guerra.
Já não há mosteiros com monges em meditação, já não há santos vivos, as catedrais hoje são monumentos vazios à espera da visita dos turistas.
A sociedade civil hoje é cada vez mais laica, a sociedade religiosa é cada vez mais farisaica.
Os filósofos modernos morreram depois de matarem os deuses. Lançados no mundo sem motivo nem explicação, estamos sós no cumprimento desta missão difícil de levarmos a nossa vida a um final digno.
Grande abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 16 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13407: (In)citações (67): A Exposição Colonial Portuguesa de 1934 versus A literatura sobre os "impérios europeus" (Mário Beja Santos / Carlos Nery / José Brás)