terça-feira, 17 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P20: Foi você que pediu uma Kalash ? (David Guimarães)

Texto da autoria de David. J. Guimarães (ex-CART 2716, Xitole, Sector L1, Zona Leste, Guiné, 1969/71):

Como é possível que nós tenhamos saudades... até de armas ? É verdade, a costureirinha, os RPG 2 e 7, os morteiros 62 e 82 bem como os 120 mm, os canhões em recuo, etc...

Pois, é verdade, aquele matraquear esquisito das Kalashnikov... Nas emboscadas nunca se sabia onde estavam elas, se à frente se por detrás de nós. Só quando já se tinha experiência de guerra conseguíamos distinguir bem [o som da kalash]...Era um estampido bem diferente das nossas G3... Mas, afinal, quem não sentiu isso?!

Isto, esta guerra tremenda, também tinha os seus episódios anedóticos, por falta de experiência [da nossa parte]. Lembro-me bem primeiro ataque ao quartel do Xitole: ai que nós estávamos lá há pouquinho tempo!... Bem, foi assim: no início da noite ouve-se uns estampidos de espingardas junto ao (mas do lado de fora do) aquartelamento. Todo o mundo correu para as valas e despejou-se em toda a volta do aquartelamento uns vinte minutos de fogo!!! Sabem o que estou a dizer. Isso mesmo, todos para seu lado, direitinhos como aqui tínhamos aprendido. Disparávamos para as zonas donde poderiam vir eles! Ouvimos cessar fogo, alguém aos berros....

As armas pesadas, os nossos morteiros 81, tinham resolvido o problema e eles tinham nos assustado mesmo. Deram meia dúzia de tiros e apanharam com granadas de morteiro nas costas... É claro que estes homens de armas pesadas eram aqueles que ficavam nas sobreposições e, durante um tempo, eram quem nos valia... Não fossem eles e nem faço ideia o que aconteceria...

Então comecei a perceber por que razão, logo ao desembarcar do Xime, a caminho do Xitole, via dedos em riste a chamar-nos periquitos... É isso mesmo, a guerra também tinha que ser aprendida no terreno... Nem Caldas da Rainha nem Vendas Novas nem nenhum campo militar daqui - nem tão pouco as urzes e tojos do monte de Santa Luzia, em Viana... Qual quê?!

Lembrei-me na altura de um aspirante de Lamego que em Viana explicava assim:
-Vocês façam isto, fitem o inimigo e atirem assim!...

Sábias palavras de quem fazia a guerra em Viana e enfim estava convicto que o que vinha nos livros é que estava certo:
- Não se esqueçam, caminhem curvados, o primeiro olha para a esquerda, o segundo para a direita, a arma aperrada à cintura.... Assim, sempre até ao último homem do grupo de combate... etc., etc., etc.

Um camarada que eu rendi na Ponte dos Fulas e que era de Almada (da companhia anterior, nem sei o nome) dizia-me:

- Olha, Guimarães, aqui não é a Metrópole, nós é que sabemos o que fazemos. Eles lá não percebem puto disto...

Ele tinha razão, pois tinha!...

Hoje envio três fotografias. Queria falar um pouco de algo que não vi nos filmes tão bem feitos que o Sousa e Castro fez o favor de me enviar e que se referem à visita dos camaradas à Guiné[em Novembro de 2000].

No Xitole, para lá da pista de aviões, a 5 Km há uma ponte que atravessa(ava) o Rio Corubal, ligando a estrada de Bambadinca-Xitole à Aldeia Formosa.... Essa ponte está interrompida com um pegão dentro da água... Essa ponte mantem-se lá, inoperante, e não foi reconstruída...

A história é que essa ponte teria sido interrompida pela nossas tropas no início da guerra. Outra versão é que que tinham sido os naturais. Uma terceira versão é que tinha sido o Corubal e as chuvas que teriam causado o colapso da ponte... Fico à espera que alguém me conte a versão verdadeira. Alguém da Guiné saberá? Desconfio que não, pois dela resta a história somente.

Seguem em anexo duas fotografias da tal ponte [a Ponte Marechal Carmona], pois ela é só meia ponte: a fotografia que mostra a interrupção, não saiu, que pena! Mas, enfim, é essa. Onde estou eu é exactamente na entrada do lado do caminho para o aquartelamento... Nota-se que ela está inclinada... Era importanete esta zona, pois que, como em todas as pontes, eram feitas operações de reconhecimento regulares...

Segue aí outra fotografia de um amigo. Um rapaz que na altura trabalhava na nossa ferrugem [a oficina de mecânica auto]. Hoje é motorista do Governador (...). Logo me chamou pelo nome recordando-se muito bem de mim, 30 anos depois:
- Saido Baldé (era o Saido)... Guimarães!!! A viola???

Isso mesmo, eu tocava viola também.... Sei que, em Bambadinca, Vacas de Carvalho e um Alferes Machado, do meu Batalhão, tocavam também. Um Português combatente terá sempre um instrumento de música ao lado, e gente ligada ao fado: é o nosso fado...

David J. Guimarães

segunda-feira, 16 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P19: O festival das kalash, das "costureirinhas", dos rockets e dos katiousha (Luís Graça)

1. No Sector L1, na Zona Leste da Guiné, ao tempo da 1ª comissão da CCAÇ 12 (Maio de 1969/Março de 1971), o armamento utilizado pela guerrilha do PAIGC (o IN, para abreviar) era equivalente ou até superior ao nosso.

Esse armamento era praticamente todo de origem soviética, produzido na ex-URSS ou noutros países do bloco soviético. Mas também de origem chinesa. De facto, recordo-me de termos também apreendido material de fabrico chinês (por exemplo, granadas de RPG).

Na época, e pelo menos na Zona Leste, o IN não dispunha, naturalmente, de meios aéreos ou navais nem de artilharia pesada. Não me consta, por exemplo, que tivesse antiaéreas, apenas referenciadas no meu tempo nas zonas fronteiriças, no norte e no sul (Parece que a metralhadora mais usada pelo PAIGC, tal como pela FRELIMO, era a ZPU-4, uma arma de quatro canos, de calibre 14.5, de fabrico soviético, instalada em reboque).

De uma maneira geral, um bigrupo (40 a 50 guerrilheiros) estava equipado com o seguinte armamento ligeiro:

(i) pistolas-metralhadoras PPSH, de calibre 7.62, de origem russa(as famosas e enervantes “costureirinhas"): não tinha equivalente nas NT, já que no mato não usávamos a pistola-metralhadora fabricada na FBP; a PPSH (ou Shpagin) tinha uma cadência de tiro 700/900 por minuto, e usava dois tiposd e carregadores: um circular (tambor) e outro curvo;

(ii) espingardas automáticas Kalashnikov, dotadas de carregadores curvos de 30 munições de 7.62 (com uma cadência de tiro, portanto, superior à nossa G-3, que dispunha de carregadores de 20 munições, de 7.62); era considerada uma arma de elite, pelo que nem todos os combatentes do PAIG a podiam usar;

(iii) espingarda semiautomática Simonov, também de origem russa e do mesmo calibre, dotada de uma baioneta extensível (era vulgar encontrar-se nos acampamentos do IN, sendo possivelmenet mais utilizada por elementos da população em autodefesa, nas áeras controladas pela guerrilha);

(iv) metralhadoras ligeiras Degtyarev, também de calibre 7.62, com tambor (não sei se eram melhores ou piores que a nossa HK-21, de fita, que encravava com alguma facilidade, nas difíceis condições do mato, debaixo de fogo, com o calor, com a chuva, com o pó...);

(v) 2 morteiros de 60;

(v) vários RPG-2 ou RPG-7 (Os RPG são lança-granadas-foguetes antipessoal).

A kalash, a famosa AK-47, desenhada pelo russo Mikhail Timofeevich Kalashnikov (nascido em 1919) equipava na altura todos os exércitos de guerrilha do mundo, além dos exércitos do Pacto de Varsóvia. Até meados dos anos 90 calcula-se que se tenham fabricado mais de 70 milhões de kalash, de acordo com o modelo oficial ou em versões pirateadas.

Esta arma continua no imaginário de todos os ex-combatentes da Guiné. Recordo-me de em Bambadinca, no regresso da operação de invasão a Conakry (Op Mar Verde), alguns militares da 1ª Companhia de Comandos Africanos andarem a oferecer-nos kalash, novinhas em folha, que faziam parte parte dos seus roncos, pelo preço de três ou quatro garrafas de uísque velho ou dez de uísque novo (500 escudos).



2. Segundo informações de um prisioneiro feito pelas NT, na região do Xime, de nome Malan Mané, de etnia balanta, em Julho de 1969 o grupo especial de roqueteiros da zona do Poidon que se deslocavam todas as manhãs para Ponta Varela a fim de atacar as embarcações em circulação no Rio Geba e/ou defender a entrada do Rio Corubal, dispunham seis lança-granadas RPG-2.

O RPG (em inglês, rocket-propelled grenade launcher), e sobretudo o RPG-7, era a arma mais temida pelos nossos soldados não só nas emboscadas, nas estradas e picadas, como sobretudo no mato, nas emboscadas em L.

O RPG-2 era uma arma anticarro, de fabrico soviético. O carregamento da granada, de formato cónico, era feito pela boca. O caklibre do tubo, era de 40 mm. E o da granada, 82 mm. O seu alcance, contra pessoal, não ia além dos 150 metros. O RPG-7 era já mais sofisticado do ponto de vista tecnol+ogico: o seu sistema de autodestruição da granada permitaia que fosse disparada para o ar, tal como o nosso dilagrama, provocando uma chuva de terríveis estilhaços.

As mortíferas lâminas de aço dos rockets foram responsáveis pela maior parte das 15 baixas (6 mortos e 9 nove feridos) sofridas pelas NT no decurso da Operação Abencerragem Candente, em 26 de Novembro de 1970, que sofremos a caminho da Ponta do Inglês.

Tanto o RPG-2 como o RPG-7 também eram muito eficazes contra as nossas viaturas, embora não praticamente não utilizassemos viatuars blindas na Guuiné (No Sector L1, havia apenas um PEL REC, praticamente inoperacional...). Contra alvos fixos o RPG era eficaz até 100 metros (O RPG-7 tinha mais alcance: 500 metros).

Muito certeiro e de fácil manejo, o RPG era muito mais adequado àquele tipo de terreno (floresta tropical e savana arbustiva, de capim alto e denso) e de guerra (de guerrilha) do que o nosso lança-granadas, a pesada bazuca americana de 8.9, uma clássica arma anti-tanque... O mais caricato é que as NT só dispunham de munições anti-carro (!). Devido ao seu peso, o transporte das granadas de bazuca, sobretudo em operações no mato, eram um problema, pelo que era frequente recorrer-se a carregadores nativos. Só mais tarde passámos a usar o lança-granadas dos paraquedistas, de calibre 3.7.

Em cada um dos grupos de combate da CCAÇ 12 havia pelo menos um ou dois apontadores de dilagrama (dispositivo de lançamento de granadas de mão). Mas esta arma não gozava das nossas simpatias, por ser perigosa e pouco eficiente: a primeira morte a que assisti, a meu lado, a do Ieró Jaló, do 1º Grupo de Combate foi causada por um dilagrama (Região do Xime, Op Pato Rufia, 8 de Setembro de 1969).

A granada era uma granada de mão defensiva, m/963, sendo montada em suporte com um encaixe oco que se adaptava no cano da espingarda automática G-3. No seu lançamento usava-se um cartucho de salva (sem bala). Para o disparo tirava-se o carregador e introduzia-se manualmente o cartucho de salva. Este compasso de espera, aliado à impossibilidade temporária do uso da G-3 e ao risco do seu manuseamento, tornaram o dilagrama uma arma muito impopular entre as NT .

Nos ataques e flagelações às nossas posições fixas (aquartelamentos do exército, destacamentos de milícia, tabancas em autodefesa), os guerrilheiros utilizavam frequentemente o não menos temível canhão sem recuo (75, de origem chinesa, e 82, de origem soviética). Por razões logísticas e de transporte, era armas sobretudo utilizadas em ataques planeados. Tal como o morteiro 82, com um alcance de 3 km. EStas armas pesadas equipavam os grupos de artilharia, referenciados em Mangai, junto ao Rio Corubal, e Madina/Belel, no regulado do Cuor, a norte do Geba. (Vd. mapa do Sector L1).

Os grupos especiais do IN, quer de artilharia (canhão sem recuo e morteiro 82) quer de RPG, eram extremamente móveis. Em contrapartida, as NT praticamente não usavam o canhão sem recuo.

Por vezes O IN utilizava também a metralhadora pesada Goryunov, de calibre 7.62, que também podia ser usada como antiaérea. E sobretudo a Degtyarev, de origem russa, mas de calibre 12.7, equivalente à nossa Breda ou à nossa Browning(que estava instalada nalguns aquartelamentos: em Bambadinca, por exemplo, varria a pista de aviação). Pelo menos num dos ataques uma tabanca em autodefesa, Afiá, Candamã opu Camará (já não me lemrbo qual),no regulado de Badora, foram encontrados invólucros de 12.7, portanto da Degtyarev.

Ainda no nosso tempo apareceram, na Guiné, os primeiros foguetões Katiousha, de 122 mm, inicialmente pouco certeiros, é certo, mas com grande poder de destruição e não menos impacto psicológico junto das NT e populações. De fácil manejo e de relativamente fácil transporte, seriam utilizados preferencialmente contra os grandes alvos militares (aeroporto de Bissalanca…) e concentrações urbanas (Bolama, Bissau...).As granadas, com um peso de 18 kg. (dos quais 6.5 de explosivo), tinha um raio de morte de 160 m2, e ao explodir produzir cerca de 15 mil estilhaços.

Só mais tarde, já em 1973, apareceriam os mísseis terra-ar que os egípcios também utilizaram contra os tanques israelitas na guerra do Kippour. Com eles seria posta em cheque a nossa até então incontestada supremacia aérea.

Recorde-se que a utilização dos mísseis terra-ar Strella (SA-7 Grail-Strella) pelo IN, pela primeira vez em 25 de Março de 1973, foi responsável pela queda de um Fiat G-91 (pilotado pelo tenente Pessoa). Esta arma antiaéra embora bastante efeicaz contr as nossas aeronaves (helicópteros, avionetas, bombadeiros T-6, caças Fiat G-91, subsónicos). Este míssil era dotado de um acabeça com detector de infracvermelhos,s endo por isso atraído pela fonte de calor emitida pelos motrortes das aerobnaves. A sua velocidade era impressionante (mach 1,5 ou 1600 km/hora). O seu alcance era contudo limitado: pouco mais de 3 km. Os nossos helicópteros e restantes aeronaves, para não serem atingidos, tinham que passar a rasar a copa das árvores ou voar acima dos 1500 metros de altitude.

O Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra, tem uma boa página em que se compara os armamentos das duas partes em conflito. Sobre a artilharia onde, aparentemente, as NT levavam vantagem, o documento diz que "na Guiné, a situação em 1966 era a utilização dos obuses 8,8 cm por pequenas unidades (nove pelotões a duas bocas de fogo cada), mas a partir de 1968 passaram a existir meios mais modernos e mais potentes", a saber:

(i) 19 obuses de 10.5 cm, correspondendo a três baterias;

(ii) seis obuses de 14 cm, correspondendo a uma bateria;

(iii) seis peças de 11.4 cm, correspondendo a uma bateria.

"Estes últimos materiais, dado o seu alcance, já permitiam o apoio a vários aquartelamentos a partir de uma posição central, mas a falta de meios de aquisição de objectivos impedia uma contrabateria eficaz.  As dificuldades apontadas para os morteiros eram semelhantes às da artilharia, se bem que na Guiné, dada a sua menor extensão e a quadrícula mais apertada das unidades, os problemas fossem menores", pode-se ler-se ainda no documento em referência.

De qualquer modo, da comparação do IN e das NT, tira-se a conclusão da "equivalência" do armamento entre as partes em conflito: "se exceptuarmos a artilharia (com as limitações já apontadas) e as viaturas blindadas (de emprego também limitado), pode dizer-se que o combate terrestre se travou, salvaguardando os efectivos, 'entre iguais' "...

sábado, 14 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P18: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (5)

14 de Maio de 2005:

Caros amigos e camaradas:

Soube de vós todos através do Sousa de Castro. Aqueles que já me conhecem sabem que eu tive outro endereço, e falámos muito através dele. O que sucedeu é que tive de mudar esse endereço...A minha caixa de correio passou a ter [montes] de correspondência todos os dias, com ofertas de viagras (não é que não fizesse jeito, é claro) e outra drogas, meninas de presente e montes de outra publicidade. Enfim, era demais e fiquei farto! 

Para aqueles que eu conhecia enviei-lhes o meu novo endereço, mas não deu resultado, devido à minha nabice certamente. Devido a esta também, tive de mandar formatar o disco rígido mais de uma vez e perdi todos os endereços nele contidos.

Para todos, conhecidos e não conhecidos, é com muita satisfação que me junto ao grupo dos ex-combatentes e amigos da Guiné. 

Como vêem o meu endereço actual é cantacunda@netcabo.pt (hei-de um dia dizer-lhes o que era Cantacunda, na floresta do Oio, bem como Banjara, também na floresta do Oio).

Um abraço. A. Marques Lopes


13 de maio de 2005:

Guimarães:

Presumo que não saiba o que é feito do Banjara (António Marques Lopes, tenente coronel na reserva). Encontrei-o num site sobre a Guiné com o nome Cantacunda. Na mensagem que enviei há pouco fiz-lhe o convite para entrar no grupo. Ele possui muitos documentos sobre a guerra colonial e também sobre o 25 de Abril. "Tem de os divulgar".

Creio não ser problema no mundo de hoje podermos dizer o que nos vai na alma, temos de desabafar. Há coisas nas nossas cabeças que nem a mulher e os filhos são capazes de perceberem muito bem o que foi esse tempo. A Net é um veículo muito poderoso, temos de aproveitar este meio de comunicação para dar a conhecer à malta nova o que foi a guerra colonial na Guiné. Bom fim de semana.

13 de maio de 2005:

Humberto Reis:

Vi a mensagem que tinhas enviado ao Luís Graça, sim. Aliás ando sempre muito atento a tudo que fala na Guiné... Hoje muito mais atento ando, ainda bem que o espaço da minha companhia (todos tínhamos alguma coisa) está hoje a alargar-se. Bem para todos nós que de uma ou outra maneira andámos aquela guerra (...) No meio daquela guerra algo se saldou de extremamente positivo, a nossa fraternidade que só um combatente entende... Nem a mãe, a mulher ou o filho entenderá nunca as nossas vivências, a morte de um companheiro que, como nós era jovem e sonhava e deixou de o fazer abruptamente...

Essa operação para a Ponta do Inglês (informou-me mais concretamente o Luis Graça) ceifou aqueles nossos camaradas. Um deles que me acompanhou desde a recruta até ao momento em que desembarcámos no Xime na LDG que nos transportou... Foi a última vez que estive com aquele que um dia encontrarei no céu para lhe dar um abraço, o Cunha.

Em Bafatá, sim, conheci, mesmo no fim da minha comissão (estive lá colocado um tempinho), esse celebre café [das libanesas] e todas aquelas casas de comida e bebida... Bafatá tão linda ! Hoje como que jaz quase morta em relação áquilo que existia no nosso tempo... Tenho a sensação de que ano a ano tudo se degrada e cidades e povovoações se tornam fantasmas ... Bafatá hoje é um cortar de corações: tudo fechado, salvo uma ou outra casa...

Recordações do passado tão próximo ainda. Para isso estamos nós a recordar... ou a viver...

Continuaremos a conversa-Creio que pertencias também à CCAC 12, foste ao Xitole... possivelmente, foi lá que estive durante a minha comissão...

Um abraço... David J. Guimarães [CART 2716, aquartelada no Xitole, e pertencente ao BART 2917 > 1969/1970]

PS - Deixo aqui os meus dois endereços de e-mail: o de casa e o do local de trabalho.



12 de Maio de 2005:

É isso, David! Quer queiramos quer não acabamos a falar da "nossa", deles, Guiné.

Não sei se já viste uma mensagem que enviei para o Luís Graça sobre uma ida minha à Guiné em 1996. Voltei lá exactamente no dia em que fazia 25 anos que tinha vindo de lá (17 de Março de 71).

Por acaso também fui naquela operação dos 5 mortos, em que morreu o guia do Xime e um furriel miliciano, também do Xime (CART 2714). Coisas da vida que não deixamos de recordar, quer sejam boas quer sejam más.

Tenho "bebido" as vossas fotos de 2001 e as notícias que vão dando e lembro-me de que em 1996 quando cheguei a Bambadinca, uma ex-lavadeira (que não tinha sido a minha) me reconheceu ao fim de 25 anos. No vídeo que um amigo que ia comigo fez, nota-se perfeitamente que comecei a chorar, tal como o estou agora que estou a escrever estas linhas. Não tenho vergonha nenhuma de ter chorado.

Essa ex-lavadeira tem um sobrinho, que conheci lá nesse dia, chamado Zeca Braima Samá que é o professor de Bambadinca. Quem conheceu o célebre café das "libanesas" em Bafatá normalmente só se lembra daquelas caras bonitas, brancas, filhas da D. Rosa (ainda viva). Mas ela não tem só filhas, tem um filho, um pouco mais novo que nós, que foi páraquedista no BCP 12 de Bissalanca (já passou à peluda como tenente-coronel) e de quem tenho o prazer de ser amigo. Ele mora aqui na zona de Lisboa, mais concretamente em Linda A Velha, mas continua arreigado à terra que o viu nascer, Bafatá, e como bom libanês de antepassados, o comércio está-lhe na massa do sangue. Passa metade do ano em Bissau no negócio da castanha de cajú. Vem isto a propósito de ser ele, e o amigo que foi comigo à Guiné em 96, que me leva o material escolar para a escola de Bambadinca que eu passei a fornecer a expensas minhas desde essa data.

Esse professor, o Zeca, como eu lhe chamo, escreve correctamente o português e com uma caligrafia que faz inveja a muita gente, a começar por mim. Faz-me recordar o episódio do furriel enfermeiro do Xime da CART que teve lá um aluno que hoje é engenheiro em Portugal.

Para hoje já chega de divagações.
Recordar é viver.
Um abraço para vocês. Humberto Reis [CCAÇ 2590/CCAÇ 12 > Contuboel e Bambadina > Maio de 1969/Março de 1971]

12 de Maio de 2005:

Luís Graça:

Fiquei deveras emocionado - é bom de facto existirmos como gente de bem na altura, e fomos.... Não vamos discutir os regimes vigentes nem a justiça da guerra. A guerra é sempre injusta... Mas de todo o mal que a guerra é, uma coisa trouxe a cada combatente: um amigo mais e mais. Hoje somos milhares, tipo orfeão, afinados numa mesma voz, a solidariedade do combatente...

A companhia a que pertenci [CART 2716, Xitole] faz anualmente um convívio, no último sábado de Maio... De cada vez que nos reunimos sempre voltamos aos mesmos anos e as conversas repetem-se:
- Quando houve a emboscada e tu...; e daquela vez em que a coluna e os turras...; e naquele assalto, ena que coisa terrível, tanto fogo...; e mais isto, e mais aquilo....

Assim todos os anos são as mesmas operações, as mesmas bebedeiras, as mesmas bajudas, tudo recordações que nos assaltam o espírito e lá vem novamente a história do vagomestre que se meteu no abrigo debaixo da cama quando o quartel era bombardeado e dizia Ai maezinha!...

E aquele programa - curioso que era o João Paulo Diniz que o fazia - de discos pedidos... Alguém falava em crioulo: para o João Seissi Djaló que é de Catió, Gianni Morandi em Não sou dinho di vó...

Isto tudo para dizer o seguinte: andamos embrenhados nesta matéria e muitos mais quererão falar, expor e contar. Vamos recolher ex-camaradas e formar uma comunidade. Existe no Hotmail uma possibilidade de se abrir uma Comunidade gerenciada por nós e aí abrirmos uma frente de debate...

Acho importante. Se cada um contar um episódio de cada vez muito se escreverá e ficará um documento muito bom.... Acho essa ideia curiosa. O Sousa e Castro conhece como se manejam estas comunidades, inclusive podem-se fazer lá álbuns de fotografias... Elas só vão abaixo se não forem mexidas com participações ou se os gerentes quiserem que elas se extingam....

Creio que este será um modo de se arranjar bastantes documentos e tu, Luis Graça, por aí poderás por certo enriquecer o teu blogue que está uma maravilha... Diria eu que melhor é impossivel... É a primeira vez que vejo algo escrito sobre a nossa guerra, é verdade, a nossa guerra... Obrigado por lhe teres chamado o nosso espaço, é isso mesmo: tu arranjaste o nosso espaço... É aquele espaço da nossa juventude perdida. Obrigado.

Um abraço a todos os outros camaradas,
David Guimarães [CART 2715]


11 de Maio de 2005:

Caros amigos e camaradas:

Vocês, quer queiram quer não, já estão no ciberespaço, na Net… Pesquisem no Google os vossos nomes, sem mais nada:

http://www.google.pt/

Introduzam os vossos nomes juntos ou separadamente, com aspas. Assim, por exemplo:

“David J. Guimarães”
“Sousa de Castro”
“David J. Guimarães” + “Sousa de Castro”

Ou então os vossos apelidos seguidos de palavras-chaves como Guiné, Xime, Xitole, guerra colonial:

Castro + Xime
Guimarães + Xitole

É uma pequena homenagem ao vosso esforço para que nós, os ex-combatentes da Guiné, a malta do triângulo (que foi de morte e foi de vida, de guerra e de paz, de sofrimento e de amizade) do Xime-Bambadinca-Xitole, o Sector L1 da Zona Leste, mas também a malta de todos os outros sectores, do norte ao sul da Guiné, não caiamos no esquecimento, não nos tornemos uma espécie em vias de extinção…

Luís Graça [CCAÇ 2590/ CÇAC 12]

quarta-feira, 11 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P17: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (4)

1. O David J. Guimarães tem sido um incansável alimentador da minha/nossa memória da guerra colonial. As suas fotografias, os seus apontamentos, ajudaram-me a preencher inúmeras falhas de memória em relaçã à Guiné do meu tempo, desde Bissau a Bafatá, do Xime ao Xitole... Hoje recebi mais umas tantas fotografias de Bissau, tiradas por ocasião da sua viagem em finais de 2001. Diz o meu camarada do Xitole e de Bambadinca:

"Ora aí vai mais um pedaço daquilo que está lá, na nossa Guiné. Digo nossa porque afinal está no coração. Quanto ao resto, é deles e com todo o direito. E que eles tenham inteligência para não deixarem o país capitular. Pouco falta e é pena"...

Muitos ex-combatentes, como o David e eu, seguem com apreensão os acontecimentos políticos na Guiné-Bissau. São pessoas que têm um sentimento de afecto pelos guinéus, que querem o melhor para os filhos da Guiné, mas que receiam pelo futuro, pela paz, pela liberdade, pela independência daquele país. É um parto difícil a construção de um Estado democrático e moderno em África. Também nós levámos séculos, em Portugal e no resto da Europa, a modernizar e a democratizar as nossas sociedades e os nossos Estados. O ponto a que chegámos hoje não é, de modo algum, um ponto irreversível. A barbárie está sempre à espreita. O fascismo, o totalitarismo, podem sempre entrar-nos pela porta dentro. Historicamente não há conquistas irreversíveis. Quem sou eu para levantar o dedo acusador à Guiné-Bissau e aos guinéus ? É claro que me aflige ver que a Guiné-Bissau pode estar à beira da barbárie, do precipício,da pulverização, do golpe de Estado, da anarquia, da fome... É uma caixa de Pandora. Preocupa-me que não haja Estado, administração pública, serviços de saúde e escolas a funcionar em condições, garantias e liberdades, pão, paz, segurança... Preocupa-me o futuro da Guiné, das suas crianças, das suas mulheres, dos seus trabalhadores, dos seus desempregados... Vai haver eleições presidenciais, mais de vinte e tal candidatos e, pelo que ouvi na Rádio África, cada candidato terá direito a um subsídio de campanha no montante de vinte mil dólares. Será que ouvi bem ? Um dos países mais pobres do mundo, com um escasso milhão de habitantes, e que vive da caridade internacional, vai financiar com mais de meio de dólares a campamha eleitoral dos vinte e tal candidatos à Presidência da República!... Delirante ? Surrealista ? Burlesco ? Trágico ? Kafkiano ?

Quem sou eu, que fui combatente da guerra colonial, memso contra a a minha própria guerra, para dar lições de ética, de moral ou de civismo aos guinéus ? Mas mesmo assim tenho direito a pensar emn voz alta e em manifestar as minhas perplexidades perante ao actual momento social e político na Guiné-Bissau. SEm com isso querer ser paternalista e, muito menos, imiscuir-me nos "assuntos internos" do país que Amílcar Cabral ajudou a fundar.

2. Retomando a mensagem do Guimarães: " Envio-te esses testemunhos. Creio que todos reconhecerão a 5ª Rep, o antigo Café Bento: acho importante essa fotografia. Todos se lembrarão do Pelicano e da Marginal; da casa Gouveia, que é agora o Ministério da Economia; do Forte da Amura e do quartel-general, lá em cima, na zona de Santa Luzia...Enfim, é a Guiné.

"Muito gostaria, dado o ficheiro ser grande, de ter a certeza de que o recebeste em boas condições. Mata saudades que, afinal, é das coisas que vale a pena matar"...

Grande filósofo, grande sábio, o meu amigo David:

"Ninguém de sã espírito entenderá como um combatente gostará assim tanto dos locais onde sentiu a morte tão perto, o matraquear da metralhadora, o troar do obus, a metralha das armas ligeiras, os gritos de horror... Afinal a vida até por isso valerá a pena, não sei!"...

E com esta é que ele me mata: "Sabes, Luís, ninguém entenderá como milhares de Portugueses hoje têm saudades daquilo lá. E vale a pena, podendo, ires lá, digo eu... Para um dia dormires descansado. E se tiveres que chorar chora, porque agora temos liberdade para isso e faz-nos bem. Não, não é feio um homem chorar: feio foram outras coisas, mas isso já é política... Abraço. David".


3. Fico sem palavras. LG.