Excertos do diário de um tuga. Texto de L.G.:
7 de Março de 1970:
Sansancuta [regulado de Badora]:
1. Como esses bandos sinistros de jagudis (abutres) que pousam sobre a morança dos que estão a morrer, também o espectro negro da fome paira sobre as tabancas da Guiné. Porque a desnutrição, essa, é já endémica: facilmente se constata, sobretudo nas crianças, toda uma série de sintomas patológicos provocados pelas carências proteicas e vitamínicas de uma alimentação quase só à base de cereais (arroz, milho, fundo).
E, no entanto, trata-se dum território fértil, com umas das mais elevadas densidades demográficas do continente africano, concentrando-se as populações em especial nas bacias hidrográficas, junto às bolanhas e lalas (regiões alagadiças ricas em húmus) onde cultivam o arroz.
Mas a repressão colonialista e a escalada da guerra vêm modificar profundamente a geografia humana e económica da Guiné: por um lado, provocam o êxodo massiço de populações inteiras (balantas, manjacos, mandindas, beafadas, etc.) para as zonas controladas pelos guerrilheiros e para os países límitrofes (Senegal e Guiné-Conacri). E por outro, assiste-se ao fenómeno da militarização dos fulas (uma tribo islamizada cujos régulos detêm ainda algum do seu antigo poder feudal), através não só do reagrupamento e organização em autodefesa das suas aldeias como também da formação de milícias.
2. Eis a razão por que, a partir de 1963, se tem vindo a acentuar o decréscimo da produção agrícola (que aliás é quase estritamente para autoconsumo). Mas vejamos as duas culturas ainda comercialmente importantes: o amendoim e o arroz.
O amendoim (ou mancarra) constituiu só por si cerca de metade do valor total das exportações (da Guiné para a Metrópole).
Muito antes ainda de passar à clandestinidade, o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral (que dirigiu uma brigada técnica dos Serviços Agrícolas Coloniais em Fá, aqui perto de Bambadinca, tendo feito estudos sobre a produtividade de diversos tipos de amendoim), já tinha denunciado o perigo que representava a monocultura desta oleaginosa para o desenvolvimento económico da Guiné, e criticando implicitamente a sua importância estratégica como matéria-prima para os monopólios metropolitanos (a CUF, aqui representada pela Casa Gouveia).
Tendo sido imposta ao indígena pela administração colonial, a cultura da mancarra está hoje em declínio irreversível: os fulas ainda são os únicos que lavram mancarra (cultivam amendoim) na periferia das suas tristes tabancas, cercadas de arame farpado e de minas. É com o produto da sua venda que o camponês fula paga, no posto administrativo, a sua taxa domiciliária, colectada na base do número de mulheres (e moranças) que possui! Curiosa é a origem da mancarra, a semente do diabo, segundo a lenda fula.
O segundo produto é o arroz. Antes da guerra, dois terços eram exclusivamente produzidos pelos balantas, a maior etnia do território: 150 mil, segundo o censo de 1962. Inclusive o arroz chegou a ser exportado. Hoje mal chega para o autoconsumo, tornando-se dramática a sua carência nos anos de menor pluviosidade.
Entretanto, no circuito da economia monetorizada, devido à inflação provocada pela guerra, a população que está sob o nosso controlo vê-se muitas vezes na contingência de vender, ao pequeno comerciante português ou libanês, o arroz que produz para comer (preço por quilo: 3 pesos!) para comprar umas chinelas de plástico:
- O senhor administrador dá porrada se pessoal africano anda descalço em Bambadinca!, diz um dos meus soldados fulas.
Noutras ocasiões, trata-se de fazer dinheiro para pagar a taxa domiciliária, imposta ao guinéu e devida pelos escassos metros quadrados de superfície que ocupa a sua morança.
Entretanto, quando as reservas se acabam no tempo seco, o guinéu volta a adquir o mesmo arroz pelo dobro do preço (6 pesos).
O drama destes pobres camponeses que foram obrigados a abandonar as suas áreas de cultura, arrancadas à floresta tropical ou à savana arbustiva, de geração em geração, pude senti-lo aqui em Sansancuta onde estive em autodefesa.
3. Sansancuta faz parte dum eixo de aldeias estratégicas , como se diz no Vietname, no limite sul do regulado de Badora, no Sector L1, e que funciona como uma espécie de pequena muralha da China, cortando as linhas de infiltração das forças da guerrilha que eventualmente se dirijam para o interior daquele regulado a partir do Rio Corubal.
Estão aqui reagrupados os habitantes de três tabancas, uma das quais Sare Ade cuja população, sobretudo os mais jovens, não se conformou com a ordem de deportação dada pelo comando militar de Bambadinca, tendo fugido para o nordeste (Gabu) e inclusivamente para o Senegal, que também é chão fula (Cassamance).
Hoje, de resto, só há duas alternativas para um homem fula: (i) oferece-se como voluntário para o exército colonial, passando primeiro pela milícia; ou (ii) emigra todo os anos, na época das chuvas, para o chão de francês (Senegal) a fim de trabalhar nos campos de mancarra.
É a única maneira de fugir ao universo concentraccionário da sua tabanca,e sobretudo à fome. Essa fome visceral que leva as crianças a aproveitar tudo aquilo que nós, tugas, nos damos ao luxo de deitar fora (vi-as aqui a assaram na brasa as vísceras de um frango que o bom do Suleimane me arranjou e reparti-las equitativamente entre si).
Fome, subnutrição, doença, carências de toda a ordem (roupas, medicamentos...) contrastam, de modo chocante, com a relativa opulência com que um tuga , como eu, aqui vive: ainda ontem me vieram trazer o reabastecimento semanal e, entre outros produtos enlatados, deixaram-me cinco quilos (!) de fiambre dinamarquês, para dois mecos, para mim e para o operador de transmissões, já que as praças são desarranchadas. Tivemos de o comer em menos de vinte e quatro horas, sob pena de se estragar com o calor, e, uma vez aberta a lata, repartir o resto do fiambre pelos putos da aldeia e soldados africanos da secção. É claro que lhe chamaram um figo, não tendo desconfiado sequer que tal iguaria pudesse ser feita de carne.. de porco!
Deportado e reagrupado em aldeias estratégicas (ou tabanacs em a/d, chamem-lhe o que quiserem), o camponês da Guiné que ama os grandes espaços livres (a floresta onde vai caçar a gazela, a bolanha onde cultiva o arroz, o rio onde vai buscar o mafé) vê-se confinado a uma área de reserva onde pratica uma miserável agricultura de subsistência.
Ironicamemnte as fiadas de arame farpado que cercam as palhotas cónicas,as trincheiras e os abrigos de combate, os espaldões para as armas pesadas, as valas de comunicação e os abrigos passivos das tabancas em a/d, ficarão proventura como os únicos vestígios arqueológicos da presença duma civilização tecnologicamente superior nesta parte ocidental de África.
Luís Graça
______________
Excertos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II.26:
A secção destacada em Sinchã Mamadjai foi transferida em 24 de Fevereiro para Sansancuta a fim de controlar os trabalhos de autodefesa da tabanca, regressando definitivamente a Bambadinca a 12 do mês seguinte [Março de 1970].
Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 30 de maio de 2005
Guiné 63/74 - P31: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu (Luís Graça)
Excertos do diário de um tuga (3). Texto de L.G.:
15 de Agosto de 1969:
1. Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu, no sub-sector de Geba. Estive aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa. O que não é irónico, porque a população é fula.
Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá é uma espécie de aldeia estratégica. Aqui termina a nossa soberania territorial, a norte do Rio Geba e começa a zona de intervenção do Com-Chefe que inclui, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Óio.
É aqui que vive o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, "foram no mato" (leia-se: aderiram à guerrilha ou fugiram das NT). Hoje o seu regulado está circunscrito ao perímetro de Sare Gana e a mais duas ou três tabancas (Sare Banda, Sinchã Satu...).
Quase todos os dias ouvíamos os Fiats bombardearem Sinchã Jobel, uma base de guerrilheiros a 10 km a norte, e que é inacessível no tempo das chuvas devido às bolanhas e lalas que a rodeiam. Até Farim é tudo terra para queimar. Nenhuma tropa apeada, ao que parece, se atreve a penetrar neste santuário do IN. Fala-se aqui da "mata do Óio" como um misto de temor e de terror, domínio do sagrado e da morte...
Há hoje, de resto, vastíssimas zonas da Guiné onde só a aviação exerce os nossos direitos de soberania. Mas esses bombardeamentos massiços revelam apenas a raiva da nossa impotência.
2. Destacado ou desterrado ? O que farei eu com uma secção de combate, uma bazuca, um morteiro 60, dez G-3 e um rádio se isto der para o torto ? Estou aqui porque há dias houve um ataque malogrado a uma tabanca próxima, Sinchã Sutu, e a população fula anda inquieta... Sou como os bombeiros, sempre atrás dos fogos...
A minha missão ? ... Limito-me a estar aqui: de manhã, durmo como um porco; às onze levanto-me, porque o calor dentro da minha palhota já é insuportável. Devoro o almoço que o Suleimane entretanto já me preparou. Depois oiço velhas lendas dos tempos em que os cavaleiros do Futa Djalon eram donos e senhores destas terras. Ào fim da tarde dou um giro para fingir que me mantenho operacional.
3. Ainda ontem fiz uma bravata estúpida, bem típica de um periquito. Fui sozinho com um milícia local fazer o reconhecimento duma aldeia próxima, abandonada pela população e armadilhada. O tipo ia à frente com uma varinha feita de caule de capim seco, tentando detectar os fios de tropeçar que atravessavam os trilhos da aldeia, de resto já pouco visíveis A meio do percurso, apanho um susto: um antílope, que pastava perto, atravesssou-se-nos no caminho, em plena área supostamente armadilhada. Foi mais do que um susto, apanhei um calafrio: é que na noite anterior, um felino que vinha no encalce dos galináceos domésticos, tinha feito accionar um das armadilhas do perímetro de defesa de Sare Ganá. E de pronto comecei a ouvir,m de todos os lados, sucessivas rajadas de G-3... O pessoal anda mesmo nervoso.
4. Ainda não me habituei foi ao black-out total, imposto por óbvias razões de segurança: não posso ler nem escrever na minha morança (faz-me falta uma pequena lanterna de pilhas), o que torna ainda mais insuportáveis estas longas noites de Sare Ganà (...).
Luís Graça
______
Excertos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II.9:
De 5 a 17 de Agosto de 1969, o 4º Gr Combate [da CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12] foi reforçar o Sector L2, sendo destacada uma secção para Sare Ganà e duas para Sare Banda (Sub-sector de Geba). Dias antes o IN fizera um ataque malogrado à tabanca em autodefesa de Sinchã Satu.
15 de Agosto de 1969:
1. Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu, no sub-sector de Geba. Estive aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa. O que não é irónico, porque a população é fula.
Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá é uma espécie de aldeia estratégica. Aqui termina a nossa soberania territorial, a norte do Rio Geba e começa a zona de intervenção do Com-Chefe que inclui, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Óio.
É aqui que vive o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, "foram no mato" (leia-se: aderiram à guerrilha ou fugiram das NT). Hoje o seu regulado está circunscrito ao perímetro de Sare Gana e a mais duas ou três tabancas (Sare Banda, Sinchã Satu...).
Quase todos os dias ouvíamos os Fiats bombardearem Sinchã Jobel, uma base de guerrilheiros a 10 km a norte, e que é inacessível no tempo das chuvas devido às bolanhas e lalas que a rodeiam. Até Farim é tudo terra para queimar. Nenhuma tropa apeada, ao que parece, se atreve a penetrar neste santuário do IN. Fala-se aqui da "mata do Óio" como um misto de temor e de terror, domínio do sagrado e da morte...
Há hoje, de resto, vastíssimas zonas da Guiné onde só a aviação exerce os nossos direitos de soberania. Mas esses bombardeamentos massiços revelam apenas a raiva da nossa impotência.
2. Destacado ou desterrado ? O que farei eu com uma secção de combate, uma bazuca, um morteiro 60, dez G-3 e um rádio se isto der para o torto ? Estou aqui porque há dias houve um ataque malogrado a uma tabanca próxima, Sinchã Sutu, e a população fula anda inquieta... Sou como os bombeiros, sempre atrás dos fogos...
A minha missão ? ... Limito-me a estar aqui: de manhã, durmo como um porco; às onze levanto-me, porque o calor dentro da minha palhota já é insuportável. Devoro o almoço que o Suleimane entretanto já me preparou. Depois oiço velhas lendas dos tempos em que os cavaleiros do Futa Djalon eram donos e senhores destas terras. Ào fim da tarde dou um giro para fingir que me mantenho operacional.
3. Ainda ontem fiz uma bravata estúpida, bem típica de um periquito. Fui sozinho com um milícia local fazer o reconhecimento duma aldeia próxima, abandonada pela população e armadilhada. O tipo ia à frente com uma varinha feita de caule de capim seco, tentando detectar os fios de tropeçar que atravessavam os trilhos da aldeia, de resto já pouco visíveis A meio do percurso, apanho um susto: um antílope, que pastava perto, atravesssou-se-nos no caminho, em plena área supostamente armadilhada. Foi mais do que um susto, apanhei um calafrio: é que na noite anterior, um felino que vinha no encalce dos galináceos domésticos, tinha feito accionar um das armadilhas do perímetro de defesa de Sare Ganá. E de pronto comecei a ouvir,m de todos os lados, sucessivas rajadas de G-3... O pessoal anda mesmo nervoso.
4. Ainda não me habituei foi ao black-out total, imposto por óbvias razões de segurança: não posso ler nem escrever na minha morança (faz-me falta uma pequena lanterna de pilhas), o que torna ainda mais insuportáveis estas longas noites de Sare Ganà (...).
Luís Graça
______
Excertos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II.9:
De 5 a 17 de Agosto de 1969, o 4º Gr Combate [da CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12] foi reforçar o Sector L2, sendo destacada uma secção para Sare Ganà e duas para Sare Banda (Sub-sector de Geba). Dias antes o IN fizera um ataque malogrado à tabanca em autodefesa de Sinchã Satu.
domingo, 29 de maio de 2005
Guiné 63/74 - P30: Aerogramas de amigos e camaradas (2) (David Guimarães)
27 de Maio de 2005:
Olá, Bom dia:
Eu bem me parecia que o Marques Lopes, Coronel, não tinha desaparecido: aí está ele e com bastante força e energia... Um abraço, para ele.
Bom, estamos a constatar um facto e disso não nos podemos alhear: entramos todos novamente numa guerra, a guerra que foi de todos e é de cada um ... cruel e tão dura que é capaz de levar a fazer com que nos unamos, todos, em volta de uma causa justa e nobre, a solidariedade e a amizade, sem nos preoocuparmos com crenças e credos, raças, usos e costumes (...).
Eu sou péssimo em organização, que pena, mas começa a surgir a oportunidade de começarmos a juntar estes endereços todos (...) e começar a formar o nosso batalhão... Todos desempenhámos um papel na guerra da Guiné e sabemos, afinal, que nos faz bem falarmos sobre estes assuntos. É evidente que não se trata de recolocar as pinturas de guerra, mas com um grande cachimbo da paz contar todos as nossa histórias de guerra.
Cada um tem a sua guerra interior e bem precisa de a colocar cá fora, uma guerra que perdurou desde jovens, que nos cortou a possibilidade de sermos jovens, como os jovens de agora. A nossa juventude era a beber bazucas [cervejas de 0,75 l], a usar a G3, apanhar com granadas e manga de ronco. Eventualmente vir a Bissau ou a Bafatá, ir à meta, ao Solar dos 10, ao café Bento, ao Pelicano, dar uma volta no Pilão e depois ir comer umas ostras e beber cerveja até ao canto da boca.... Isto em Bissau porque em Bafatá era beber whisky, gin... Enfim, beber uns copos e voltar para o mato...
Há que perfilar estes nomes, todos; fazer um arquivo, sempre juntando nesse arquivo mais um e mais outro que vai chegando. Já adivinho, tudo a funcionar como uma bola de neve, a aumentar...
O Luís Graça fez o favor de pôr à disposição o seu blogue (...). Agora cumpre dividir a Guiné num espaço mais amplo. E mais sectores irão aparecer. Estávamos no L1 [, na Zona Leste], pois vamos por aí para fora. Que seja este mais um verdadeiro contributo para a história de uma guerra que foi de todos...
Sousa e Castro, o grande obreiro do congregar de direcções, faça o favor de arquivar sempre cada nova direcção que apareça...
Será este o princípio de uma narração, o mais completa quanto possível, de uma guerra que nunca se contou em pormenor... Li num livro de testemunhos de quatro generais - um deles o Bettencourt Rodrigues, o último COM-CHEF da Guiné. Segundo ele a guerra não estava perdida... Não sei se já morreu, mas se morreu e estava convencido disso, morreu efectivamente com algo de falho na cabeça e a sonhar...
Continuemos. Não sei se este mail vai chegar ao Varandas, quem dera... Ele anda a escrever um livro: será o contributo para que ele reformule muitos capítulos, quem sabe, e que a ficção fique uma história verdadeira. Para esquecer nunca, mas para que não se repita também.
Um abraço para toda a gente - amigos e companheiros, ex-camaradas de armas.
David, ou Guimarães, ou David Guimarães - ex-Furriel Miliciano da CART 2716, aquartelada no Xitole de 1970 a 1972 e pertencente ao BART 2917 com sede em Bambadinca. (Quero dizer que muitas vezes teremos que nos identificar assim).
Olá, Bom dia:
Eu bem me parecia que o Marques Lopes, Coronel, não tinha desaparecido: aí está ele e com bastante força e energia... Um abraço, para ele.
Bom, estamos a constatar um facto e disso não nos podemos alhear: entramos todos novamente numa guerra, a guerra que foi de todos e é de cada um ... cruel e tão dura que é capaz de levar a fazer com que nos unamos, todos, em volta de uma causa justa e nobre, a solidariedade e a amizade, sem nos preoocuparmos com crenças e credos, raças, usos e costumes (...).
Eu sou péssimo em organização, que pena, mas começa a surgir a oportunidade de começarmos a juntar estes endereços todos (...) e começar a formar o nosso batalhão... Todos desempenhámos um papel na guerra da Guiné e sabemos, afinal, que nos faz bem falarmos sobre estes assuntos. É evidente que não se trata de recolocar as pinturas de guerra, mas com um grande cachimbo da paz contar todos as nossa histórias de guerra.
Cada um tem a sua guerra interior e bem precisa de a colocar cá fora, uma guerra que perdurou desde jovens, que nos cortou a possibilidade de sermos jovens, como os jovens de agora. A nossa juventude era a beber bazucas [cervejas de 0,75 l], a usar a G3, apanhar com granadas e manga de ronco. Eventualmente vir a Bissau ou a Bafatá, ir à meta, ao Solar dos 10, ao café Bento, ao Pelicano, dar uma volta no Pilão e depois ir comer umas ostras e beber cerveja até ao canto da boca.... Isto em Bissau porque em Bafatá era beber whisky, gin... Enfim, beber uns copos e voltar para o mato...
Há que perfilar estes nomes, todos; fazer um arquivo, sempre juntando nesse arquivo mais um e mais outro que vai chegando. Já adivinho, tudo a funcionar como uma bola de neve, a aumentar...
O Luís Graça fez o favor de pôr à disposição o seu blogue (...). Agora cumpre dividir a Guiné num espaço mais amplo. E mais sectores irão aparecer. Estávamos no L1 [, na Zona Leste], pois vamos por aí para fora. Que seja este mais um verdadeiro contributo para a história de uma guerra que foi de todos...
Sousa e Castro, o grande obreiro do congregar de direcções, faça o favor de arquivar sempre cada nova direcção que apareça...
Será este o princípio de uma narração, o mais completa quanto possível, de uma guerra que nunca se contou em pormenor... Li num livro de testemunhos de quatro generais - um deles o Bettencourt Rodrigues, o último COM-CHEF da Guiné. Segundo ele a guerra não estava perdida... Não sei se já morreu, mas se morreu e estava convencido disso, morreu efectivamente com algo de falho na cabeça e a sonhar...
Continuemos. Não sei se este mail vai chegar ao Varandas, quem dera... Ele anda a escrever um livro: será o contributo para que ele reformule muitos capítulos, quem sabe, e que a ficção fique uma história verdadeira. Para esquecer nunca, mas para que não se repita também.
Um abraço para toda a gente - amigos e companheiros, ex-camaradas de armas.
David, ou Guimarães, ou David Guimarães - ex-Furriel Miliciano da CART 2716, aquartelada no Xitole de 1970 a 1972 e pertencente ao BART 2917 com sede em Bambadinca. (Quero dizer que muitas vezes teremos que nos identificar assim).
sábado, 28 de maio de 2005
Guiné 63/74 - P29: "Um ataque a Sare Ganá (1968)"
Texto de A. Marques Lopes, coronel (DFA) na situação na reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967/1968):
"Tal como Sare Banda, Sare Ganá ficava perto de Sinchã Jobel, de onde veio o grupo de guerrilheiros que fez o ataque. Sare Ganá era uma tabanca com população, tendo nela um pelotão da Companhia de Milícia 3, sob o comando da CART 1690.
"Um ataque a Sare Ganá, 12 de Agosto de 1968:
"Acção inicial do IN: A 12, às 00H02, um grupo IN estimado em cerca de 60 elementos atacou Sare Ganá.
"O ataque iniciou-se por tiros de morteiro 82 e 60, lança-granadas-foguete, lança -rocketes e metralhadoras.
"Após a preparação de fogo de armas pesadas durante a qual foram utilizadas muitas granadas incendiárias, o IN cortou o arame farpado do lado Norte e penetrou em Sare Ganá por este lado e pelo lado Sul, aproveitando uma pequena passagem existente que se encontrava incompletamente fechada, passando a utilizar armas ligeiras automáticas e a incendiar casas.
"Reacção das NT:
"a) Da Companhia de Milícias nº 3:
"O pelotão 109 da CMIL 3, ao qual está confiado a defesa de Sare Ganá, reagiu pelo fogo, não só instalada nos abrigos como também dispersa pela tabanca, aguentando o impeto inicial do ataque e dificultando o mais que pôde a infiltração das forças IN, no que foi apoiada por grande parte da população (a quase totalidade dos que dispunham de armas). Deve notar-se que os soldados milícias começaram a retirar apenas quando as munições que dispunham já rareavam.
"b) Da CART l690
"Em Geba, logo após os primeiros rebentamentos serem ouvidos, dei ordem para que se comunicasse pela rádio esse facto ao Comando do BCAV 1905 e ordenei que saíssem imediatamente o maior número de homens possível, sem descurar a defesa de Geba; às 00H08 um grupo de 14 soldados, 1 alferes e 1 furriel, saiu em viatura em direcção a Saré Ganá. A última parte do percurso foi feita a pé tendo Sare Ganá sido atingida às 00H20. A aproximação da povoação fez-se com as forças divididas em 3 grupos.
"A população retirava pelo acesso utilizado pelas NT na aproximação. O primeiro grupo, que seguia na frente, lançou-se para o interior da tabanca e foi imediatamente alvejado por uma granada de morteiro que feriu ligeiramente uma praça na cabeça e matou uma mulher da população. Não obstante, o grupo na sua totalidade entrou na tabanca pelo arruamento principal, progredindo de casa em casa sob fogo do IN que enfiava o citado arruamento. Para possibilitar o avanço foram feitos 4 tiros do Lança Granadas Foguete estabelecendo-se em seguida contacto pelo fogo de armas ligeiras, à vista, com o IN. A progressão continuou com o apoio de mais tiros de Lança-Granadas Foguete.
"O 2º grupo entrou na tabanca em seguida, inicialmente pelo mesmo arruamento mas tomando um outro arruamento à direita, começando a alvejar com os seus fogos os elementos IN que actuavam nesse lado. Nesse momento viu-se que o IN lançou um sinal luminoso e iniciou a sua retirada, arrastando as baixas que sofrera e carregando o respectivo material.
"O 3º grupo, à rectaguarda, cobria a acção dos outros dois. A retirada do IN fez-se duma forma ordenada e a coberto do seu próprio fogo, aproveitando a abertura feita na rede de arame farpado e através da passagem para Oeste depois de deslocado o cavalo de frisa respectivo. Moveu-se uma outra perseguição que não foi além da orla da mata próxima devido à escassos de efectivos.
"Entretanto sentia-se ao longe a aproximação de uma coluna de viaturas vinda de Bafatá.
"c) DO BCAV 1905 e EREC 2350
"Às 01H00 atingiram Sare Ganá as forças de socorro de Bafatá e enviados pelo Comando de Batalhão. Estas forças eram constituídas a primeira por um pelotão do EREC 2350 e o PEL CAÇ NAT 64 a segunda por outro PEL REC do EREC 2350 e 2 secções da CCS/BCAV 1905.
"Uma vez que a situação estava praticamente normalizada, um pelotão do EREC 2350 e as 2 secções da CCS regressaram a Bafatá levando os feridos mais graves, tanto milícias como população, enquanto as outras forças se instalavam em Saré Ganá, montando segurança a tabanca.
"Resultados obtidos:
a) Baixas causadas ao IN: 5 mortos confirmados; várias baixas prováveis
b) Material capturado ao IN: 1 Met. Lig. Dectyarev com bipé; l Pist. Metr. Sundaiev; 2 Carregadores de Pist. Met.; l Carregador de Metr. Lig. ; l Fita com 85 cartuchos para Metr. Lig.; 2 Granadas de Mão Ofensivas»
"Tal como Sare Banda, Sare Ganá ficava perto de Sinchã Jobel, de onde veio o grupo de guerrilheiros que fez o ataque. Sare Ganá era uma tabanca com população, tendo nela um pelotão da Companhia de Milícia 3, sob o comando da CART 1690.
"Um ataque a Sare Ganá, 12 de Agosto de 1968:
"Acção inicial do IN: A 12, às 00H02, um grupo IN estimado em cerca de 60 elementos atacou Sare Ganá.
"O ataque iniciou-se por tiros de morteiro 82 e 60, lança-granadas-foguete, lança -rocketes e metralhadoras.
"Após a preparação de fogo de armas pesadas durante a qual foram utilizadas muitas granadas incendiárias, o IN cortou o arame farpado do lado Norte e penetrou em Sare Ganá por este lado e pelo lado Sul, aproveitando uma pequena passagem existente que se encontrava incompletamente fechada, passando a utilizar armas ligeiras automáticas e a incendiar casas.
"Reacção das NT:
"a) Da Companhia de Milícias nº 3:
"O pelotão 109 da CMIL 3, ao qual está confiado a defesa de Sare Ganá, reagiu pelo fogo, não só instalada nos abrigos como também dispersa pela tabanca, aguentando o impeto inicial do ataque e dificultando o mais que pôde a infiltração das forças IN, no que foi apoiada por grande parte da população (a quase totalidade dos que dispunham de armas). Deve notar-se que os soldados milícias começaram a retirar apenas quando as munições que dispunham já rareavam.
"b) Da CART l690
"Em Geba, logo após os primeiros rebentamentos serem ouvidos, dei ordem para que se comunicasse pela rádio esse facto ao Comando do BCAV 1905 e ordenei que saíssem imediatamente o maior número de homens possível, sem descurar a defesa de Geba; às 00H08 um grupo de 14 soldados, 1 alferes e 1 furriel, saiu em viatura em direcção a Saré Ganá. A última parte do percurso foi feita a pé tendo Sare Ganá sido atingida às 00H20. A aproximação da povoação fez-se com as forças divididas em 3 grupos.
"A população retirava pelo acesso utilizado pelas NT na aproximação. O primeiro grupo, que seguia na frente, lançou-se para o interior da tabanca e foi imediatamente alvejado por uma granada de morteiro que feriu ligeiramente uma praça na cabeça e matou uma mulher da população. Não obstante, o grupo na sua totalidade entrou na tabanca pelo arruamento principal, progredindo de casa em casa sob fogo do IN que enfiava o citado arruamento. Para possibilitar o avanço foram feitos 4 tiros do Lança Granadas Foguete estabelecendo-se em seguida contacto pelo fogo de armas ligeiras, à vista, com o IN. A progressão continuou com o apoio de mais tiros de Lança-Granadas Foguete.
"O 2º grupo entrou na tabanca em seguida, inicialmente pelo mesmo arruamento mas tomando um outro arruamento à direita, começando a alvejar com os seus fogos os elementos IN que actuavam nesse lado. Nesse momento viu-se que o IN lançou um sinal luminoso e iniciou a sua retirada, arrastando as baixas que sofrera e carregando o respectivo material.
"O 3º grupo, à rectaguarda, cobria a acção dos outros dois. A retirada do IN fez-se duma forma ordenada e a coberto do seu próprio fogo, aproveitando a abertura feita na rede de arame farpado e através da passagem para Oeste depois de deslocado o cavalo de frisa respectivo. Moveu-se uma outra perseguição que não foi além da orla da mata próxima devido à escassos de efectivos.
"Entretanto sentia-se ao longe a aproximação de uma coluna de viaturas vinda de Bafatá.
"c) DO BCAV 1905 e EREC 2350
"Às 01H00 atingiram Sare Ganá as forças de socorro de Bafatá e enviados pelo Comando de Batalhão. Estas forças eram constituídas a primeira por um pelotão do EREC 2350 e o PEL CAÇ NAT 64 a segunda por outro PEL REC do EREC 2350 e 2 secções da CCS/BCAV 1905.
"Uma vez que a situação estava praticamente normalizada, um pelotão do EREC 2350 e as 2 secções da CCS regressaram a Bafatá levando os feridos mais graves, tanto milícias como população, enquanto as outras forças se instalavam em Saré Ganá, montando segurança a tabanca.
"Resultados obtidos:
a) Baixas causadas ao IN: 5 mortos confirmados; várias baixas prováveis
b) Material capturado ao IN: 1 Met. Lig. Dectyarev com bipé; l Pist. Metr. Sundaiev; 2 Carregadores de Pist. Met.; l Carregador de Metr. Lig. ; l Fita com 85 cartuchos para Metr. Lig.; 2 Granadas de Mão Ofensivas»
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