quinta-feira, 23 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P76: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau (Luís Graça)

[Um sargento e vários furriéis milicianos da CCAÇ 12, à mesa de jantar, a bordo do Niassa. © Luís Graça ]

Excertos do Diário de um tuga. Luis Graça (ex-furriel miliciano Henriques CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71).
A bordo do Niassa. 28 de Maio de 1969
Eis-nos nos tristes trópicos (1). Atravessámos hoje o Trópico de Câncer, com peixes voadores e alguns tubarões a acompanhar-nos. Lembrei-me do meu pai, que esteve em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente (2), como 1º cabo, em plena II Guerra Mundial. E das histórias de tubarões que me contava. Das suas fotos amareladas de barcos e de tubarões.

Alguém se lembrou de abrir uma garrafa de champagne como se tivéssemos atravessado o Equador em alegre cruzeiro pelo Atlântico Sul. Com um sorriso amarelo, também participei neste ritual de iniciação e ergui a minha taça:
- Afinal, estamos todos no mesmo barco!, - pensei.

De resto, come-se e bebe-se o dia todo para matar o tédio da vida a bordo. Há os viciados da lerpa. Os oficiais superiores, esses, divertem-se com o tiro ao alvo na popa do navio, enquanto a malta da turística (3) escreve cartas, aos pais, namoradas, noivas e mulheres, cartas que eu imagino já molhadas de lágrimas salgadas e de saudades. As praças, essas, vomitam nos porões. Todo o navio fede e no meio do cheiro nauseabundo há um desgraçado de um desertor que vai a ferros.

Dentro de um dia desembarcamos nesse Continente que antevejo verde como a esperança e que reinicia agora o seu movimento de translação na História…

Dentro de um dia desembarcaremos na Guiné da qual espantosamente não sei nada a não ser aquilo que me impingiram nos bancos da escola:

“Descoberta pelo navegador português Nuno Tristão, que viria a ser morto pelos indígenas ao tentar desembarcar numa das ilhas do arquipélago dos Bijagós, a Guiné tem cerca de 2/5 da superfície de Portugal Continental.

“O clima é tropical húmido, e o território muito plano e baixo, com vastas regiões alagadiças e pantanosas, o que torna difícil a adaptação do europeu. Quanto à vegetação, predomina a floresta tropical e a savana arbustiva. A população – um pouco mais de meio milhão de almas – divide-se por uma grande variedade de grupos da raça negra, sendo os mais importantes os balantas, animistas, e os fulas, islamizados.

“As principais exportações são o amendoim, o coconote, as madeiras exóticas e o óleo de palma. A capital e a residência do Governador é Bisssau”.

Desde que deixámos as Canárias, não suporto este calor pegajoso, esta angústia difusa que destilo através dos poros da pele. Tenho sintomas de febre e já não sei onde acaba a realidade e começa o delírio. Ontem à noite, dei comigo, sozinho, face ás estrelas e à imensidão da noite confundida com o mar, vomitando no convés e perguntando-me quem eu era, onde estava, para onde me levavam…

De facto tudo tinha sido tão brutal: (i) a ordem de mobilização recebida em Castelo Branco; (ii) a ressaca dos primeiros copos na noite do tremor de terra; (iii) a apresentação em Santa Margarida, a Escola Preparatória de Quadros e a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional com os rocambolescos assaltos nocturnos aos bivaques do inimigo para sacar tudo o que fosse bebível e comestível; (iv) os breves dias, tristes, de licença antes do embarque; (v) a viagem directa, nocturna, quase clandestina, em comboio especial até ao cais de embarque, no porto de Lisboa; (vi) os capacetes brancos dos polícias militares, os nossos familiares e amigos de rosto tenso, alguns de gravata preta; (vii) as gaivotas estranhamente pousadas nos mastros; (viii) os guindastes, o Tejo, a ponte que eu vi elevar-se das águas nos primeiros anos de 60; (ix) o Cristo-Rei, de braços abertos como um espanta-pardais numa tela de Dali; (x) o apito breve mas pungente do navio, breve como um tiro, pungente como o sentimento indefinível de quem em Lisboa parte e de quem em Lisboa fica; (xi) o marinheiro que solta as amarras, um vulto, uma mão, um lenço…

E, já no mar alto, ao largo dos Açores, eu próprio tive a sensação de ter atravessado o pórtico do tempo e entrado num barco-fantasma, sobrevivente da odisseia dos antigos nautas, à deriva nos medonhos mares de que nos falavam as velhas histórias trágico-marítimas…

Que fazia eu, que fazíamos nós, centenas e centenas de homens acondicionados como gado em porões nauseabundos, ali naquele barco da carreira colonial, vogando fora do tempo e do espaço, como se Gil Eanes nunca tivesse dobrado o temido Cabo Bojador, desfeito as lendas do Mar Tenebroso e assim aberto o caminho marítimo para o longínquo sul, para o fim do mundo e para os eldorados que havia por achar?!...

- Duplamente embarcado, meu velho. É isso! – disse para mim próprio, ao avistar-se ao longe a luz trémula do farol da Ilha dos Pássaros, à entrada do Porto de Bissau, e ao ouvir-se pela primeira vez uma tempestade tropical que, no meio do alvoroço provocado pelo grito Terra à Vista!, alguém confundira com o tão temido ribombar dos canhões.

- Embarcados na grande aventura colonial, para representarmos o terceiro (e último) acto dum grande tragicomédia, com um falso passaporte que não tem o visto da História! Mas um dia teremos vergonha das mentiras que ouvimos (e deixámos) dizer em nosso nome!...

[ Em homenagem ao meu velhote que aqui vemos, expedicionário, em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente, em Julho de 1942, com 21 anos... É o primeiro do lado direito, e pousa para a foto com um tubaraão que acabara de ser apanhado: "Rra novo mas já era bastante grande", escreveu ele nas costas da foto. © Luís Graça ]
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(1) Título de um livro, do antropólogo francês Lévi-Strauss, que fazia parte da pequena biblioteca que levei comigo para a Guiné, convencido que iria ter algum tempo para ler.

(2) Vd. post de 26 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXVI: Antologia (11): Cabo Verde (1941/1943)

(3) Reservada aos sargentos. Na 1ª classe iam os oficiais. O resto era mercadoria, gado humano…

Bissau. 29 de Maio de 1969
Desembarcamos numa cidadezinha térrea, de casas de adobe, rachas de cibe e chapas de zinco, com quintais cheios de mangueiras, e onde em dois ou três quarteirões, feitos a régua e esquadro, se concentram a administração e o comércio.

Nas ruas, sujas das primeiras enxurradas de Maio, djubis vendem mancarra (começo a aprender as minhas primeiras palavras de creoulo). Gilas, de balandrau branco, óculos de sol e transistor a tiracolo, mercadejam bugigangas de contrabando (1). Os sons, os sabores e as cores de África baralham-me os sentidos e as emoções.

A esta hora da manhã, já as esplanadas estão cheias de tropa à civil, beberricando cerveja, enquanto no mastro da fortaleza oitocentista da Amura flutua uma descolorida bandeira verde-rubra. Indiferente aos velhos canhões de bronze, uma mulher passa com o filho às costas e um balaio à cabeça.

Canoas talhadas em grossos troncos de poilão partem do mítico cais do Pijiguiti (2), sulcando as águas lamacentas da Ria, em busca de mafé. Ronceiros aviões levantam voo de Bissalanca e, no meio da praça do Império, em cima de um Unimog, de pé e de braços abertos, alguém de nós, exclama:
- Camaradas, cinco séculos de história vos contemplam!

Post- scriptum - Três dias depois iriam dar-nos uma G-3, novinha em folha, e uma ração de combate, para de seguida nos porem no fundo duma LDG, a caminho do Leste, Rio Geba acima, escoltados por uma secção de fuzileiros navais que, à medida que o rio estreitava, batiam com fogo de morteirete a cerrada vegetação das margens (o tarrafe) até às proximidades do Xime… “Como um cão apanhado na rede”, resmungava eu sentado na capota de uma Berliet, no fundo da LDG Bombarda…
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(1) Balaio=cesto grande; cibe=palmeira; djubis= miúdos; gilas= vendedores ambulantes; mafé= peixe; mancarra=amendoim.

(2) Para o PAIGC, o massacre dos marinheiros e trabalhadores portuários do Cais do Pijiguiti, a 3 de Agosto de 1959, é uma data histórica.

Cronologia do 1º semestre de 1969 (Janeiro-Junho):

(i) Recorde-se que, em 2 de Maio de 1968, é nomeado António de Spínola para os cargos de governador-geral e comandante-chefe da Guiné. Tomada de posse a 20 de Maio desse ano.

(ii) Recorde-se ainda que em 23 de Setembro desse mesmo ano, Marcelo Caetano toma posse como Presidente do Conselho de Ministros: o seu governo inicía funções em 17 de Novembro.

(iii) E , por fim, cite-se a conclusão de Spínola, em documento oficial, sobre a situação da Guiné, segundo a qual se vivia uma "triste realidade", na Guiné, tanto sob o ponto de vista militar como sócio-económico (Outubro de 1968).

Janeiro

1 - (i) Marcelo Caetano dá início às "Conversas em família", na RTP. (ii) Um grupo de católicos, em vigília na igreja de S. Domingos, condena a política africana do governo, e divulga um documento manifestando o seu empenho na obtenção de uma solução pacifica para a questão colonial.

18. Início da Conferência de Cartum. Constituição do Comité de Mobilziação e Apoio aos Povos das Colónias Portuguesas.

Fevereiro

(i) Durante Fevereiro e Março realizam-se grandes operações na Guiné, procuranbdo o IN nos seus próprios santuários (por ex., Op Lança Fiada, na Zona leste; Op Vulcano, na região de Quitafine/Cassebache).

(ii) Em Bigene,a s NT fazem grandes apreensões de armamento.

(iii) Em contrapartida, Guilege sofre, em Fevereiro, um grande ataque, com grande precisão, por parte do PAIGC.

(iv) Ainda em Fevereiro, Leopold Senghor, o presidente do Senegal, apresenta um plano para a independência da Guiné no quadro de uma comunidade luso-africana.

3 - Eduardo Mondlane, fundador da FRELIMO, é assassinado, em Dar-es-Salam, Tanzânia, através de uma carta armadilhada. Samaora Machel será depois eleito como um dos três elementos da equipa (triunvirato) que passa a dirigir a FRELIMO.

8 - AS NT evacuam Madina do Boé, no sector sul, junto aor Rio Corubal e à fronteira com a Guiné-Conacri. Na travessia do Rio Corubal, há um grave incidente com a jangada que fazia o transporte de homens e equipamentos, provocando a morte de 47 militares. O aquartelamento é ocupado no dia seguinte pelo PAIGC.

9 - Forte ataque do PAIGC ao quartel de Cambaju, durante cerca de duas horas, com entrada no perímetro defensivo e várias mortes e feridos do lado das NT.

26 - O IN, sob o comando de Mário de Sousa Delgado e Mamadu Indjai, ataca duas lanchas no rio Buba.

Março

(i) Reactivação da guerrilha no chão fula (Mansoa, Bula)

6 - Início da Op Vulcano, no Sul da Guiné, na região de Quitafine/Cassebache. Grande resistência do IN à acção ofensiva dos paraquedistas contra as suas posições de artilharia.

7 - Escalada na guerra: o IN utiliza, no Sector Sul, uma metralhadora pesada antiaérea quádrupla 14.5 e seis simples de 12.7, atingindo dois Fiats G-91 e um DO-27.

8-19 - Op Lança Afiada > 1300 homens "varrem" a região compreendida entre a linha Xime-Xitole e a margem direita do Rio Corubal. Entrada das NT na mítica mata do Fiofioli.

Abril

(i) Operações da NT na região de Bula, com vários contactos com o IN.

8- Marcelo Caetano, o novo primero-ministro dá início inicia a sua visita à Guiné.

17 - O presidente da Associação Académica de Coimbra é impedido de falar, em cerimónia de inauguração de um novo edifício, com a presença do Chefe do Estado. Ocorrem então graves incidentes entre os estudantes e as autoridades. Início da grave crise académica de 1969.

21 - Marcelo Caetano regressa da sua visita oficial à Guiné, Angola e Moçambique. Em Lourenço Marques deixa a porta aberta à ideia de uma progressiva autonomia dos territórios ultramarinos.

Maio

(i) Utilização de mina aquática, por parte do PAIGC, no Rio Cobade, no sector sul.

14 - Reúne-se em Aveiro, até dia 16, o II Congresso Republicano, organizado pela oposição democrática.
31 - Ataque em força ao aquartelamento de Bambadinca. Pânico entre as nossas tropas. O comando do Batalhão, ali sedeado, é destituído por Spínola.

Junho

(i) Intensificação da guerrilha na região do Gabu (Piche / Zona de fronteira com o Senegal), obrigando a deslocações da população.

(ii) Resolução da Comissão de Descolonização da ONU, condenando a guerra colonial, levada a cabo poir Portugal, como crime contra a humaniddae e ameaça à paz e segurança.

21 - Kaúlza de Arriaga nomeado o comandante do Exército em Moçambique, na sequência da ocorrência do maior acidente da guerra colonial em África: 101 militares perdem a vida devido ao afundamento de uma batelão na travessia do Zambeze.

Guiné 63/74 - P75: Minas e armadilhas (David Guimarães)

Texto de David J. Guimarães, ex- furriel miliciano, de minas e armadilhas, da CART 2716, (Xitole, 1970/72):

Quando ocupámos o Xitole, em substituição da CART [2413 ] que lá se encontrava [1968/70], procedemos de imediato ao armadilhamento da zona limítrofe do quartel. Foram colocadas muitas minas anti-pessoais, de fabrico português, com espoletas de pressão, reforçadas com mais cargas explosivas ou não, conforme a maior ou menor importância do local. O objectivo era impedir a aproximação e a infiltração do IN, criando um zona de segurança à volta do quartel...

Também era frequente serem pendurados, no arame farpado, objectos diversos desde latas de coca-cola até garrafas de cerveja, que ao menor movimento tocariam umas nas outras, dando sinal pelo som de que o arame estava a ser mexido... Isto era importante especialmente de noite...

Este processo de alarme e prevenção efectivamente só ajudou a, de início, apanhar-se alguns sustos, pois que não funcionava na prática, como devia de ser. Enfim era a fé de cada um… Um sistema de segurança altamente falível, pois que todos os dias tínhamos barulhinhos esquisitos, o que era natural....

Quanto às minas e armadilhas, essas, sabíamos que estavam muito bem colocadas e, essas sim, davam uma certa segurança... Apesar de tudo eventualmente fazíamos armadilhamentos temporários, a mais longa distância, usando para isso a granada armadilha instantânea que qualquer combatente da Guiné conhecia.

Todas as granadas eram formadas por cápsula fulminante, 3 cm de cordão lento e um detonador que fazia explodir a carga base... Todos nós nos lembramos da mina defensiva, de composição B, e do seu uso, bem como das ofensivas, cilíndricas, de carga de trotil (TNT).

A que estou a referir era exactamente cilíndrica, como a ofensiva, só que enquanto as outras tinham a cor verde azeitona, esta era vermelha e mais de metade era envolta com espiral de metal. A maior diferença, e por isso se chamava instantânea, era não ter os três cm de cordão lento. O percutor, accionado, logo fazia explodir o detonador e a carga base. Esta mina era altamente mortífera devido ao seu poder de fragmentação, provocado pelas espiras em aço.

Bem, mas isto não é uma aula soibre minas e armadilhas. Serve apenas para contar uma estória, do início também da nossa comissão.... Uma estória de guerra ou uma contrariedade.

Um camarada nosso, o Quaresma, lá foi para o mato com um pelotão para colocar uma dessas granadas instantâneas num trilho. Tudo feito como devia ser, a mina colocada estrategicamente na base de uma árvore de copa frondosa e arame de tropeçar a atravessar o trilho. Era a assim que mandavam as regras aprendidas, teoricamente, em Tancos...

Bem, pelas 4 da manhã (e na Guiné, a essa hora, ouvia-se tudo), há um grande rebentamento para aqueles lados da armadilha... Não há dúvida, a guerra fez-nos ser tipo animais:
- Alto, alguém caiu, alto, alto!!!... - Já todos nos mordíamos para ir ver o sucedido.

Pela manhã, bem cedo, aí vai o pelotão de reconhecimento. Aproximação cautelosa ao local, sangue no chão...
- Boa, que isto funcionou! –

Mais sangue ali e acolá e eis que surge a vítima.... Um grande macaco, já morto... E não tinha camuflado!...
-Ora, foda-se!

A guerra tinha disto...

Em tempo: ironia do destino, o nosso camarada Quaresma acabou por morrer pela acção de uma granada dessas, a instantânea.. Explicarei mais tarde como foi.

David J. Guimarães


Notas de L.G.:

Sobre minas (usadas na guerra colonial, por um lado e outro), vd. os seguintes sítios:

Centro de Documentação 25 de Abril > Guerra Colonial > Armamento > Minas

Campanha Internacional para Banimento das Minas Antipessoais

Campanha Internacional para Banimento das Minas Antipessoais > Tipos de minas

Land Mine (LM) Reports > Portugal > 2000 e 2001 (em português).

Guiné 63/74 - P74: A nossa mobilização para o CTI da Guiné: CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71) (Luís Graça)

Extractos de: História da CCAÇ 12 (1969/71). Bambadinca: Companhia de Caçadores nº12. 1971. Capítulo I. 1-2.

Eis como era a máquina burocrática e totalitária que nos arrancou, meninos e moços, das nossas terras e nos levou para as bolanhas e matas da selvagem Guiné... Muitos dos combatentes da "guerra do ultramar" passaram por este percurso, aqui descrito ou advinhado, e nomeadamente os que foram parar ao CTI (Comando Territorial Independente) da Guiné: Campo Militar de Santa Margarida, viagem nocturna, de comboio, pela linha da Beira Baixa até ao Cais da Rocha de Conde de Óbidos, embarque no Niassa, adeus pai, adeus mãe, adeus amigos e companheiros, adeus minha terra que vou para longe, Tejo meu, Madeira, mar encapelado dos Açores e das Canárias, vómitos e saudades, África, Guiné, o insuportável calor de Bissau, LDG Rio Geba acima, Xime, Bambadinca, Bafatá, Contuboel...

Vale a pena conservar os tiques da linguagem castrense da época... Algumas siglas já não as sei descodificar... Era ainda o país de Suas Excelências. E do respeitinho. O país do Deus, Pátria e Família. Das missas campais e das paradas militares. Do patriotismo serôdio e decadente... Por muito estranho que pareça, era o nosso país, a nossa pátria, de há trinta e tal anos atrás...

Em 3 de Agosto de 1968, o velho abutre tinha caído da sua cadeira. Em 27 de Setembro o seu antigo delfim vem substituí-lo na Presidência do Conselho de Ministros. Em 1969 há ainda quem acredite, ao ler-se o Expresso, na "primavera marcelista"... Em Bambadinca, eu recebia o Comércio do Funchal... e creio que era o único da minha companhia, a par do capitão, que estava inscrito no recenseamento eleitoral, tendo votado nas fraudulentas eleições para a Assembleia Nacional em 26 de Outubro de 1969... Ou melhor: não sei se votei, se votei em branco ou se rasguei o boletim de voto... Creio que o candidato pelo círculo da Guiné era o Pinto Bull, acusado na época de ser um colaboraccionista... Morreu já em 2005, de certo modo injustiçado. Na época, acusei-o, apressadamente, de ser um Tchombé. L.G.


Mobilização para o CTI da Guiné

Pela nota-circular nº 00864/PM-Pº 18/2590 da Secção de Administração e Mobilização de Pessoal da 1ª Repartição do Estado-Maior do Exército, de 14 de Fevereiro de 1969, era dada ordem para se proceder a mobilização da Companhia de Caçadores 2590, destinada a reforço do Comando Territorial Independente (CTI) da Guiné, e tendo como Unidade Mobilizadora o RI [Regimento de Infantaria] 15.

A mesma nota determinava que os quadros da CCAÇ 2590 seriam do origem metropolitana, sendo o restante pessoal fornecido pelo recrutamento da PU [Província Ultramarina](89 praças, das quais 11 cabos).

A apresentação do pessoal mobilizado pela Metrópole fez-se no Campo Militar de Santa Margarida, de 3 a 8 de Março de 1969. Tirada a Escola Preparatória de Quadros e a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, os quadros da Companhia entravam de licença da NNAPU, de 31 de Março a 9 de Abril, ficando prontas para embarque a partir de 11.

A cerimónia de despedida realizou-se no átrio da Capela do CIM, com missa campal, bênção o e entrega dos guiões. 0 Exmº Comandante do RI 15 proferiu a alocução de despedida às tropas expedicionárias.

Tendo embarcado no Niassa a 24 de Maio, juntamente com outras Companhias independentes como a 2591 e 2592 (futuras CCAÇ 13 e 14), chegamos ao CTI da Guiné em 29, pelas 21 h, tendo desembarcado no dia seguinte de manhã.

A 31, no Depósito de Adidos, Sua Excia. o Comandante-Chefe das Forças Armadas, Brigadeiro Antonio de Spínola, passa revista às tropas em parada e dirige-lhes palavras de boas-vindas.

Colocados em Contuboel (Sector L2, Zona Leste) a fim de darmos a segunda fase de instrução ao nosso pessoal africano, embarcamos em LDG [Lancha de Desembarque Grande] para o Xime, a 2 de Junho, tendo seguido depois em coluna auto até ao local destinado.

Os quadros da CART 2479 (CART 11) já tinham dado, entretanto, a instrução básica àsas nossas pracas africanas, de 12 de Março a 24 de Maio, em Contuboel. A cerimónia do Juramento de Bandeira realizou-se em Bissau, a 26 de Abril, na presença de Sua Excia. o Comandante-Chefe.

A instrução da especialidade teve início imediatamente a seguir à nossa chegada a Contuboel. Ao longo de um mês e meio, em plena época das chuvas, os nossos graduados aprenderam a conhecer os elementos dos seus futuros grupos de combate.

Integrada na "nova força africana", a CCAÇ 12 receberia a visita, durante a semana de tiro, de Sua Excia. o Brigadeiro António de Spínola que se inteirou pessoalmente do nível de instrução ministrada as nos­sas praças africanas.

Os exercícios finais da especialidade efectuaram-se de 6 a 12 de Julho, a 10 km ao norte de Contuboel.

A 18 de Julho, finda a instrução, a CCAÇ 12 é dada como operacional, sendo colocada em Bambadinca (Sector L1, Zona Leste).



N/M Niassa

Niassa > Navio misto (carga e passageiros), de 1 hélice, construído em 1955, na Bélgica, rgistado no Porto de Lisboa, e abatido em 1979; comprimento: mais de 151 metros; arqueação bruta: c. 10.742 toneladas; potência: 6.800 cavalos ; velocidade normal: 16,2 nós; alojamentos para 22 em primeira classe, 300 em classe turistica, no total de 322 passageiros; nº de tripulantes: 132; armador; Companhia Nacional de Navegação - Lisboa.

Fonte: Navios Mercantes Portugueses (2004) (Com a devida vénia...)


Notas do autor (L.G.) desta história (não autorizada...) da CCAÇ 12:

1. Transporte marítimo de tropas para o Ultrmar:

"Em finais dos anos 50, depois de investimentos públicos de grande envergadura, a marinha mercante portuguesa teve o seu desenvolvimento máximo. Contava, nomeadamente, com 22 paquetes, no total de 167 000 toneladas. Entre eles estavam os quatro gigantes: Santa Maria, Vera Cruz, Príncipe Perfeito e Infante D. Henrique, com cerca de 30 000 toneladas cada, capazes de transportar mias de 1000 passageiros ou mais de 2000 soldados.

"Muitos destes paquetes foram requisitados em diversas ocasiões para transporte de tropas, muito especialmente na fase inicial da guerra, e as restantes unidades da marinha mercante seriam essenciais para manter o esforço em África. Os paquetes mais requisitados na ligação a África foram o Vera Cruz, o Niassa, o Lima, o Império e o Uíje.

"O Niassa foi o primeiro paquete afretado como transporte de tropas e de material de guerra, por portaria de 4 de Março de 1961, mas seria o Vera Cruz a fazer mais viagens, chegando a realizar 13 num ano. Em 1961, efectuaram-se 19 travessias por nove paquetes em missão militar e o ritmo aumentou à medida que a força expedicionária em África crescia: em 1963, tinham-se efectuado 27 viagens por oito paquetes e, em 1967, 33 por nove. Até 1974, o mar era a grande via de ligação ao império, tendo mais de 90 por cento da carga e de 80 por cento do pessoal metropolitano empenhado na guerra sido transportado em navios" (Fonte: Centro de Documentação 25 de Abril).


2. A presença de Spínola, ainda periquito e brigadeiro, na cerimónia de juramento da bandeira dos soldados da PU (província ultramarina) da Guiné não deixa de ser significativa do seu empenho pessoal no projecto de africanização ou, melhor, guineização da guerra. A CAÇ 12 é uma das primeiras unidades da "nova força africana". Spínola visitar-nos-ia várias vezes, incluindo na nossa semana de campo, em Contuboel. Tal gesto tinha um especial significado para as nossas praças africanas e para alguns de nós, quadros metropolitanos.

Confesso que nunca simpatizei com a personagem. Digo-o, sem com isso querer escamotear ou ignorar o seu papel nas mudanças operadas em Portugal com o 25 de Abril de 1974, nem muito menos ofender os seus admiradores. Para todos os efeitos, é uma figura de referência nacional, e como tal a sua memória deve ser respeitada. Competirá aos historiadores definir o seu papel da nossa história.

3. Na época em que demos a instrução de especialidade às nossas tropas africanas (de Junho a meados de Julho de 1969), Contuboel era, ainda era, um oásis de paz. Lá ainda se podia brincar às guerras num raio de alguns quilómetros, no meio de uma vegatação luxuriante. Lembro-me de haver lá uma serração de um tuga, o que indiciava abundância de madeiras exóticas.

Ao longo dessas curtas e rápidas semanas aprendemos a conviver com os nossos soldados fulas (e alguns futa-fulas, dois mandingas e um mancanhe, num total de cerca de 100 homens). A maior parte não falava o português, o que dá uma ideia do grau ou do esforço penetração da nossa cultura, no leste da Guiné, depois de "cinco séculos de missão civilizadora"...).

4. Nestas condições, a instrução de especialidade, como se deve imaginar, não foi nada famosa. Estávamos a milhares de quilómetros do nosso ponto de partida, o Campo Militar de Santa Margarida, onde, ainda me recordo, também brincámos às guerras, e fizemos os nosso roncos (no essencial, assalto aos acampamentos do IN a fingir, e pilhagem de tudo o que era bebível e comestível).

5. Em plena época das chuvas, ainda em fase de adaptação ao terrível clima da Guiné, hostil a qualquer tuga, em farda nº 3 , espingarda automática G3 ao ombro e cartuchos de salva nos bolsos (à cautela, não fosse o diabo tecê-las, os graduados, tugas, levavam alguns carregadores com bala real...)... Estão a imginar esta guerra-de-faz-se-conta ?

Era ainda a dolce vita da Guiné (como o autor escrevia no seu diário de um tuga), aqui e ali perturbada peals estórias que a velhice nos contava, a nós periquitos, de Madina do Boé e de Guilege, "lá longe no sul"...

A companhia de tugas aquartelada em Contuboel havia participado na dramática operação de retirada do campo fortificado de Madina do Boé, que custara a vida a mais de meia centenas de militares portugueses, em finais de 1968; e também na grande Op Lança Afiada, que durante uma semana, em março de 1969, varrera todo o triângulo Bambadinca-Xime-Xitole até ao Rio Corubal (efectivos das NT: 1300 homens...). Outra estória para contar...

6. A 18 de Julho de 1969 , a futura CCAÇ 12 (que, por enquanto, ainda era a CCAÇ 2590) é dada como operacional. Atendendo à origem étnico-geográfica dos seus nharros, por sugestão do Com-Chefe, ficamos radicados em chão fula, às ordens do Batalhão de Caçadores 2852 (1968/70), com sede em Bambadinca, esse mesmo, o batalhão do valoroso Ó-Pipas-Não-Tenhas-Medo! ... Outra estória para contar, com tempo e vagar.

7. A 21 de Julho, menos de dois meses depois da nossa chegada à Guiné, quando ainda nem sequer tinham sido distribuídos os camuflados à nossa tropa africana, temos a nossa primeira "saída para o mato" (sic) , seguida do nosso "baptismo de fogo"...

De facto, em Madina Xaquili, temos o nosso primeiro ferido grave, evaiuado para Bissau; e a 28, mais dois feridos graves, numa ataque nocturno àquela aldeia fula que será definitivamente abandonada pela sua popolução e, mais tarde (em Outubro), pelas NT.

Para três dos nossos soldados africanos, a guerra havia acabado, mal começara: ficarão definitivamente inoperacionais e/ou incapacitados, não sem que um deles tenha de passar, primeiro, por outro inferno, o do Hospital Militar da Estrela, em Lisboa...

Pergunto-me, com amargura, o que será feito de vocês, valemets soldados ? Tu, Sori Jau (3º Gr Combate, evacuado para o HM 241); tu, Braima Bá (inoperacional) e tu, Udi Baldé (evacuado para Lisboa e retornado a casa com 35% de incapacidade física), ambos do 2º Gr Comb ?

Madina Xaquili é uma estória para contar noutro dia. Mas já agora saibam onde fica(va): perto de Dulombi, no sub-sector de Galomaro que, se não me engano, foi depois transformado em Sector L5 da Zona Leste. Contuboel fazia parte do sector L2.

Guiné 63/74 - P73: Antologia (4): 'Homenagem aos mortos que tombaram pela pátria': Geba, 1995 (Marques Lopes)

Texto seleccionado e enviado por A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967):

A jornalista Diana Andringa esteve na Guiné em 1995, em trabalho profissional, e passou por Geba. Sobre essa passagem escreveu no jornal Público, de 10 de Junho de 1995, o texto que vos vou mostrar, com a sua autorização (até me pediu que lhe enviasse o cópia, que já não possui o original). Vai também um croqui do monumento a que ela se refere. Em 1998, quando lá estive também verifiquei que o monoumento estava destruído, com muita pena minha.


Geba, 1995, por Diana Adringa

Mortos. Estes nomes não podem ser senão de mortos. Guimarães, ...ndo Fernandes. Carlos A. Peixoto. ...ul C. Ferreira, ...ostinho Câmara, ...o Alves Aguiar, ...ime M.N. Estevão, ...sé A. V. Sousa, ...tónio D. Gomes.

Tudo em redor, aliás, fala de morte. As paredes em derrocada do que terá sido um quartel português. As viaturas a apodrecer sob o intenso sol africano. Os cacos de garrafas de cerveja. (Bebidas para enganar o medo? Suspensas por arame para, tinindo umas contra as outra, despertar os que dormissem ainda?).

E esta pedra caída, tumular.

Vivos, apenas os meninos que se cutucam, sorrindo, a olhar para nós, estranhos fotógrafos deste cemitério de metal e pedra.

A outra pedra, de pé, tem nomes de cidades, vilas, aldeias: Lisboa. S. Tirso. Moçâmedes. Alcobaça. Madeira. (Nas ilhas não haverá também povoações?) Ponte de Lima. Vila Nova de Ourem. Vila Pouca de Aguiar. Bissau. O tempo, ou a guerra, quebrou-lhe a parte de cima, e agora é uma pirâmide truncada, rasgada do lado direito, onde se inscrevem as primeiras letras dos postos, ou dos nomes, dos naturais dessas terras, que presumimos mortos.

De novo a primeira pedra, a que jaz por terra. A frente dos nomes dos que se presumem ter morrido, inscrevem-se o que supomos serem as datas dessas mortes: 1967, 1968. A última, na pedra, não em tempo, sobressalta-me: 21 de Agosto de 1967. Fiz vinte anos nesse dia. Nesse mesmo dia morreu António D. Gomes. Teria feito, sequer, os vinte anos?

Lembro-me de ter feito vinte anos. Das prendas dos meus pais. E pergunto-me como terão os pais do soldado António D. Gomes suportado a morte do seu filho. Se terão chegado um dia a conhecer este local onde uma pedra caída por terra assinala a data em que o perderam.

"Nós enterramos os nossos mortos nas nossas aldeias, ao lado das nossas casas... Os portugueses deveriam ter, também, um lugar para honrar os seus mortos, os que morreram aqui, durante a guerra", dissera-me, algumas horas antes, um antigo adversário. Aqui. Tão longe de casa, tão longe dos seus. Longe de mais para que possam trazer-lhes flores, arranjar-lhes as campas, preservar-lhes a memória.

Olho de novo as pedras, tentando compreender como se juntavam. Será a que jaz por terra a continuação da outra? Releio as terras e os nomes. Câmara pode ser da Madeira... Será mesmo? Sim. Lá estão em frente de Madeira o posto, sold., e as primeiras letras do seu nome: Ag...-

Agora cada morto tem o posto e a terra onde nasceu, excepto o primeiro, que parece ser de Lisboa, mas cujo posto e nome próprio se perderam, e João Alves Aguiar, de Ponte de Lima, a que o tempo corroeu o posto. Dois alferes, um furriel, sete soldados. Em cima, fragmentado, aquilo que parece a indicação do regimento a que pertenciam: ...RAL-1. ...Combate.

Postas assim as duas pedras em conjunto, apercebo-me de que o soldado que morreu no dia dos meus vinte anos era de Bissau, e de certa forma isso tranquiliza-me, porque não está, afinal, tão longe de casa- como se isso tivesse alguma importância depois de se estar morto, como se me tivesse contagiado essa lista de terras inscrita sobre a pedra, ou outras, sobre outras pedras encontradas ao longo da viagem, onde outros soldados, cabos, furriéis, escreveram como se a naturalidade fosse a sua primeira identificação e a mais forte, o nome da terra natal, primeiro, e só depois o posto, o nome, a data em que escreviam, por vezes uma frase de desesperança, algo como "até quando Deus quiser" — como que temendo que esse "até" fosse curtíssimo, coisa de poucas horas, minutos, talvez, e houvesse que inscrever urgentemente, sobre esses caminhos, placas, pontes, esse sinal de vida e de memória.

Parece estranho que alguém possa ter tido medo aqui, neste local tão calmo, com o tempo suspenso e o silêncio apenas cortado pelo ruído persistente das cigarras. É difícil imaginar, enquanto os meninos se agrupam à nossa volta, curiosos do que fazemos e olhamos, que em tempos houve aqui tiros e gemidos — e homens cumprindo a triste tarefa de escrever sobre estas pedras os nomes dos companheiros mortos.

Um pouco mais adiante, numa das paredes que ainda se mantêm de pé, alguém desenhou um rinoceronte e um leão. Tê-los-á visto realmente? Tê-los-á imaginado? Em frente, sobre uma paisagem aparentemente urbana de prédios e chaminés, voa uma ave. Uma gaivota? Uma pomba? Um símbolo de paz? Um piscar de olho a esse adversário que, a todo o momento, lembrava que a sua luta era "contra o colonialismo português e não contra o povo de Portugal"? E que, muito antes de disparar o primeiro tiro, advertira: "A via pela qual vai ser feita a liquidação total do colonialismo português na Guiné-Bissau e em Cabo Verde depende exclusivamente do colonialismo português. (...) Ainda não é tarde para proceder à liquidação pacífica da dominação colonial portuguesa nas nossas terras. A menos que o Governo português queira arrastar o povo de Portugal para o desastre de uma guerra colonial."

"O desastre de uma guerra colonial". Legenda para fotografia de pedras com listas de mortos, veículos destruídos, quartéis em derrocada — e, contrastando, os sorrisos dos meninos a dar-nos as boas-vindas.

Todos os anos, pelo 10 de Junho — esse dia que o regime colonial-fascista celebrava como Dia da Raça, e em que condecorava, no Terreiro do Paço, os pais, as viúvas e os órfãos dos militares caídos em combate —, ressuscitam algumas vozes saudosas do Império, a criticar a descolonizaçáo e a independência das ex-colónias portuguesas. Fazem-no, muitas vezes, usando a memória dos soldados mortos na guerra colonial. Escamoteando sempre que essas mortes se deveram, exclusivamente, à intransigência de um regime incapaz de compreender a inevitabilidade das independências, e à teimosia de um homem que, nunca tendo posto um pé em África, cuidava saber, bem melhor do que eles, o que melhor convinha aos africanos.

Releio a lista de mortos sobre a pedra e pergunto-me se, vinte anos depois, não será tempo de aceitar, claramente, que foram esses os únicos responsáveis dessas mortes... ».

Diana Andringa. Público. 10 e Junho de 1995.