Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 24 de junho de 2005
Guiné 63/74 - 80: A cerimónia de despedida no Campo Militar de Santa Margarida (Luís Graça)
Excertos do Diário de um Tuga. L.G.
Campo Militar de Santa Margarida. 24 de Maio de 1969.
Soldado contra a minha própria guerra, parafraseando o Manuel Alegre, a escassos horas de embarcar no Niassa, revejo-me mal no filme de despedida da nossa companhia (menos de meia-companhia, aliás), enquadrada nas restantes forças expedicionárias destinadas ao CTI da Guiné, perfiladas no átrio da capela – ah!, sempre juntos,Deus e a Pátria, a cruz e a espada, ! – do Campo Militar de Santa Margarida.
Cerimónia de opereta que meteu missa campal, benção e entrega de guiões e a que não faltou a fanfarra do Regimento de Abrantes e o discurso de despedida do comandante, que a pompa e as circunstâncias exigiam.
De dentes cerrados e a morte na alma, escutei a lenga-lenga patrioteira do coronel, comandante do CMSM:
“Oficiais, sargentos e praças! Ides em breve partir para a nossa querida província ultramarina da Guiné aonde vos chama o sagrado dever de todo o soldado português – a defesa da Pátria!
“Das dificuldades da vossa missão ninguém tem dúvidas, mas a Nação tem boas razões para confiar em vós. Para além da instrução, intensa e prolongada, a que vós, militares, fostes submetidos desde o primeiro dia nas fileiras do Exército, existem no vosso sangue jovem todas aquelas virtudes ancestrais, recebidas dos vossos pais e avós, que tornaram grandes e inolvidáveis os momentos mais dolorosos e difíceis por que a Pátria passou nos oito séculos da sua existência!...
“A vossa geração, bravos soldados de Portugal, escreve hoje em terras de África páginas das mais gloriosas da nossa gloriosa História! (…)
“O voto que vos deixo, a todos vós, oficiais, sargentos e praças, é que em terras da portuguesíssima Guiné, saibais continuar a gesta lusíada e merecer a confiança que a Nação em vós deposita. E que na alegria do regresso possais gritar bem alto àqueles que no cais vos aguardam: Missão cumprida!”
- Simplesmente pornográfico! Os cabrões podiam mandar-nos para o matadouro e poupar-nos, ao menos, a esta diarreia mental! – comentei eu, entre dentes, recusando, enojado, mas com alguma elegância, o aperto de mão da seráfica e assexuada representante do Movimento Nacional Feminino que, no final, distribuía medalhas de Fátima, tabaco, aerogramas e sorrisos de vaca leiteira.
Esta música eu já a sabia de cor e salteado das Caldas e de Tavira. Recordo-me de um dos meus comandantes de companhia que também tinha muito blá-blá:
- Rapazes, vocês são a fina flor da Nação, o espelho da Pátria! – dizia-nos ele muitas vezes na formatura. E depois tratava-nos abaixo de cão ou autorizava o cão de fila do seu alferes a humilhar-nos e a pôr-nos a rebolar na merda, no campo da feira de Tavira, debaixo da janela da sua amada...
Gabava-se de ser um dos heróis de Nambuangongo e de ter tantos louvores como porradas, razão por que ainda não tinha passado de tenente. Para alguns de nós, e a crer no jornal da caserna, ele não passava de um reles e triste assassino que no Norte de Angola, em 1961/62, andava sempre com cabeças frescas de preto espetadas no capô do jipe.
Post-scriptum -
1. À distância de 36 anos, não quero ferir susceptibilidades nem muitos menos menosprezar os sentimentos patrióticos, actuais ou passados, dos meus ex-camaradas de Guiné, de todos, em geral, e de cada um, em particular. Também não confundo o Exército do Portugal democrático de hoje com o Exército do Portugal colonial-fascista de 1969 (não gosto da adjectivação, mas era assim que os gajos do MRPP e outros comunas nos tratavam: afinal, o Exército Portugês eramos nós...).
Se fui (re)buscar os meus papéis dessa época, foi sobretudo para documentar ou ilustrar o estado de espírito de alguns de nós, que estavam longe de serem representativos dos jovens da sua geração. Mal ou bem, eu considerava-me, na época, um soldado contra a minha guerra... Todavia, não fui refractário nem desertor...
Por outro lado, todos sabemos como os filhos da elite político-militar da época arranjavam maneira de não ir parar a Geba, ao Xime, ao Xitole, a Barro ou a Guileje... Em muitos casos até da tropa se livraram. Na pior das hipóteses fizeram a guerra do ar condicionado (em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques)...
2. Foi no Campo Militar de Santa Margarida (CMSM) que conheci os meus futuros camaradas e amigos da CCAÇ 12 (caso do Humberto Reis e do António Levezinho, que fazem parte da nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné; já agora o boneco da capa da História da CCAÇ 12, que publico em cima, é da autoria do Tony Levezinho; é uma pequena homenagem que lhe faço, esperando poder abraçá-lo em breve, lá para os lados da ponta de Sagres onde ele agora vive).
O CMSM, situado no concelho de Constança, era já, nessa época, uma verdadeira cidade, com milhares de hectares, e centenas de infra-estruturas... Nunca mais lá voltei.
Hoje ao visitar o seu sítio na Internet, vejo com agrado que o CMSM tem preocupações ambientais e tem inclusive uma certificação ambiental. Os meus parabéns ao Exército Português. Aqui fica um destaque sobre este assunto:
"O Sistema de Gestão Ambiental do Campo Militar de Santa Margarida é a partir de agora, Certificado pela Associação Portuguesa de Certificação (APCER), como instituição Certificada segundo as Normas NP EN ISO 14001:1999.
"Esta certificação é sinónimo de uma preocupação louvável no sentido da preservação dos 6.400 hectares do CMSM, onde se inclui uma magnífica mancha florestal e onde se abrigam importantes espécies da fauna cinegética que têm convivido pacificamente com as actividades inerentes ao campo, desde a sua fundação, há precisamente 52 anos.
"O sistema de gestão do ambiente que o CMSM publicamente assume, permite-lhe estabelecer uma política adequada à sua própria realidade, adoptando soluções que visam a redução de custos e de riscos inerentes ao seu funcionamento, evidenciando à sociedade uma melhor imagem da instituição militar, bem como constituindo uma referência de exemplo e incentivo para as restantes unidades do Exército.
6/23/2004".
Fonte: Portal do Exército Português > Campo Militar de Santa Margarida (CMSM)
Guiné 63/74 - P79: Nome di bó? Terça, simplesmente, Terça! (Em Sano, no Senegal) (Marques Lopes)
Os Jagudis, grupo de combate da CCAÇ 3 (Barro, 1968), comandado pelo Alferes Miliciano Lopes. Uma pausa no mato.
© A. Marques Lopes
Texto do Marques Lopes (ex-alferes miliciano da CCAÇ 3, Barro, 1968):
Esta menina estava às costas da mãe quando, em 20 de Agosto de 1968, eu e o meu grupo de combate [os jagudis] investimos contra a tabanca de Sano, já no Senegal.
No meio do tiroteio, provocado pela resistência de alguns elementos do PAIGC que lá se encontravam, a mãe dela abriu o pano com que segurava a filha para melhor poder fugir. E conseguiu fugir... mas deixou a filha a chorar no chão.
Trouxemos a criança para Barro. Tinha um ano e meio, talvez dois anos, não sei. Foi bem tratada, vestida e calçada.
- Nome di bó? - Muita insistência e dificuldade em conseguir-lhe uma palavra.
- Que nome dar-lhe, então?
- Hoje é terça-feira, disse alguém, pode chamar-se Terça-feira - E ficou Terça, para facilitar.
Pois a miúda Terça ficou alguns dias em Barro mas foi na primeira Dornier para Bissau para ser entregue a uma qualquer instituição religiosa.
O Cacuto [Seidi, chefe da tabanca de Barro, e suspeito de ter ligações ao PAIGC] não gostou da ideia, pois era uma bajuda que lhe iria dar proventos quando a casasse...
Lá andará hoje, por Bissau, uma já mulher feita, mãe de filhos, certamente, de nome Terça. O nome não foi totalmente descabido. De facto, em 1998, quando estive na Guiné, o jovem guia que me acompanhava chamava-se Cinq. Só falava francês e crioulo.
- Porquê Cinq? - perguntei-lhe eu.
Estudara no Senegal, daí falar francês, nascera no dia 5 de Maio (5) e os pais deram-lhe o nome de Cinq.
© A. Marques Lopes
Texto do Marques Lopes (ex-alferes miliciano da CCAÇ 3, Barro, 1968):
Esta menina estava às costas da mãe quando, em 20 de Agosto de 1968, eu e o meu grupo de combate [os jagudis] investimos contra a tabanca de Sano, já no Senegal.
No meio do tiroteio, provocado pela resistência de alguns elementos do PAIGC que lá se encontravam, a mãe dela abriu o pano com que segurava a filha para melhor poder fugir. E conseguiu fugir... mas deixou a filha a chorar no chão.
Trouxemos a criança para Barro. Tinha um ano e meio, talvez dois anos, não sei. Foi bem tratada, vestida e calçada.
- Nome di bó? - Muita insistência e dificuldade em conseguir-lhe uma palavra.
- Que nome dar-lhe, então?
- Hoje é terça-feira, disse alguém, pode chamar-se Terça-feira - E ficou Terça, para facilitar.
Pois a miúda Terça ficou alguns dias em Barro mas foi na primeira Dornier para Bissau para ser entregue a uma qualquer instituição religiosa.
O Cacuto [Seidi, chefe da tabanca de Barro, e suspeito de ter ligações ao PAIGC] não gostou da ideia, pois era uma bajuda que lhe iria dar proventos quando a casasse...
Lá andará hoje, por Bissau, uma já mulher feita, mãe de filhos, certamente, de nome Terça. O nome não foi totalmente descabido. De facto, em 1998, quando estive na Guiné, o jovem guia que me acompanhava chamava-se Cinq. Só falava francês e crioulo.
- Porquê Cinq? - perguntei-lhe eu.
Estudara no Senegal, daí falar francês, nascera no dia 5 de Maio (5) e os pais deram-lhe o nome de Cinq.
Guiné 63/74 - P78: Ex-guerrilheiros do PAIGC, procuram-se (Luís Graça)
Mandei para o Portal Guine-Bissau.com, para o respectivo livro de visitas, a seguinte mensagem:
________________
Luís Graça, Lisboa, Portugal
18/06/2005
"Represento um grupo de ex-combatentes portugueses que fizeram a guerra colonial na Guiné, entre 1967 e 1974, que são amigos do povo da Guiné, e que estiveram nos mais diversos sítios: Bambadinca, Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho, Enxalé, Missirá, Geba, Cantacunda, Banjara, Bafatá, Contuboel, Barro, Bigene, Guidage, etc.
"Gostaríamos de poder encontrar ex-combatentes do PAIGC que tenham estado nessas zonas e nessa época. Temos publicado depoimentos, estórias, documentos, fotos, etc., em:
Luís Graça > Blogue-fora-nada
Luís Graça & Camaradas > Subsídios para história da guerra colonial > Guiné (1963/74)
Amigos e camaradas, contactem connosco!
Luís Graça (ex-furriel miliciano Henriques da CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)
Marques Lopes (ex-alferes miliciano Lopes, da CART 1690, Geba, 1967; e da CCAÇ 3, Barro, 1968; hoje, coronel, DFA, na situação de reforma)
________________
Luís Graça, Lisboa, Portugal
18/06/2005
"Represento um grupo de ex-combatentes portugueses que fizeram a guerra colonial na Guiné, entre 1967 e 1974, que são amigos do povo da Guiné, e que estiveram nos mais diversos sítios: Bambadinca, Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho, Enxalé, Missirá, Geba, Cantacunda, Banjara, Bafatá, Contuboel, Barro, Bigene, Guidage, etc.
"Gostaríamos de poder encontrar ex-combatentes do PAIGC que tenham estado nessas zonas e nessa época. Temos publicado depoimentos, estórias, documentos, fotos, etc., em:
Luís Graça > Blogue-fora-nada
Luís Graça & Camaradas > Subsídios para história da guerra colonial > Guiné (1963/74)
Amigos e camaradas, contactem connosco!
Luís Graça (ex-furriel miliciano Henriques da CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)
Marques Lopes (ex-alferes miliciano Lopes, da CART 1690, Geba, 1967; e da CCAÇ 3, Barro, 1968; hoje, coronel, DFA, na situação de reforma)
Guiné 63/74 - P77: O que (não) diziam os nossos aerogramas (1) (Marques Lopes)
1. Extractos do que se dizia nos aerogramas. Só algumas coisas, claro, de alguns que consegui recuperar.
Abraço.
Marques Lopes
Geba. 3.5.67
" (...) Por cá tenho andado. Tenho andado muito pelo mato. Tem de ser assim, já estive quase um dia inteiro emboscado no mato. A vida aqui é muito dura, pior que tudo é que um indivíduo pode dar em chalado. Agora é que eu vejo como é fácil dar em maluco. Por um lado, o clima já não ajuda muito, por outro há muitos problemas e muitas situações difíceis que nos fazem perder a cabeça. Há dais emq ue quase se anda à porrada (...)".
2. Resposta ao Marques Lopes:
Ora aí está um material que tem sido pouco ou nada explorado… Eu não tenho nem um dos meus… Escrevia pouco, não tinha madrinhas de guerra… E receava estar a ser vigiado pela PIDE/DGS… Escrevi cartas só para o meu diário… Cartas a amigos que nunca cheguei a pôr no correio… Patético!
Em contrapartida tinha acesso, mais tarde, uma colecção de cartas e aerogramas, recebidos pela minha mulher, como madrinha de guerra; e outra, dos recebidos e enviados por um cunhado meu... Há alguns documentos interessantes.
Talvez valesse a pena pedirmos à nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné para recuperar e divulgar alguns dos aerogramas, recebidos ou enviados, com notícias, apontamentos, estados de alma, etc., que traduzissem de certo modo a época, as alegrias e as tristezas dos combatentes, as preocupações da população na rectaguarda, a milhares de quilómetros de distância...
Já escrevi sobre este assunto, em post de 23 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra.
A maioria dos soldados correspondia-se, em média, com uma meia dúzia de madrinhas de guerra, para além dos seus familiares e amigos. Em treze anos de guerra, cerca de um milhão soldados terá escrito perto mais de 500 milhões de cartas e aerogramas erecebido outro tanto.
Lemrbo que, no nosso tempo, o aerograma também era conhecido por corta-capim, já que o correio era, muitas vezes distribuído em cima de uma viatura, e o aerograma lançado por cima das cabeças dos soldados, à maneira de um boomerang. Os aerogramas foram uma criação do Movimento Nacional Feminino, dirigida pela célebre Cecília Supico Pinto desde 1961, e o seu transporte era assegurado pela TAP ("uma oferta da TAP aos soldados de Portugal").
Os aerogramas também foram usados na guerra da propaganda do regime, ostentando carimbos de correio com dizeres como "Povo unido, paz e progresso", "Povo português, povo africano", "Os inimigos da Pátria renunciarão" ou "Muitas raças, uma Nação, Portugal" (vd. Graça, L. - Memória da guerra colonial: querida madrinha. O Jornal. 15 de Maio de 1981).
Luís Graça.
3. Resposta do Marques Lopes:
Esses que vos enviei são alguns que consegui recuperar, tinha-os enviado à minha irmã.
Também não enviei muitos, porque não tinha nada mais que contar a não ser aquela desgraçada vida do nosso dia-a-dia de guerreiros. Enviei mais a uma madrinha de guerra, que acabou por ser minha mulher, mais tarde. Só que, quando nos divorciámos há vinta anos, ela deitou tudo ao lixo. Com muita pena minha, porque é verdade que muita da minha vivência na guerra foi expressa nesses aerogramas, muitos dos meus sentimentos e medos foram neles retratados, muitos desejos de fim para aquilo tudo eu pus naqueles papéis.
De acordo que os nossos tertuliantes vasculhem esse material, documentos importantes para o retrato da nossa vida naquele período.
A Diana Andringa mostrou-se interessada em conhecer o blogue. Já lhe dei as indicações para o fazer.
4. Comentário de L.G.:
Meu caro António: A vida não foi fácil para nós, que fomos apanhados na rede… como um cão (é uma imagem, obsessiva, do meu diário). É uma geração, a nossa, marcada a ferro e fogo, na carne e na alma. Por isso é bom podermos escrever e falar… em voz alta. Já ninguém nos entende, a não ser nós próprios…
Nos aerogramas não dizíamos nada, ou quase nada. Ficava muita coisa por dizer... Ou então escrevíamaos nas entrelinhas... Quando eu escrevia (basicamente è família, aos meus pais, às minhas irmãs…), fazia-o com irregularidade. Nunca lhes transmiti sentimentos negativos. Nunca lhes disse a verdade. E as fotos, que seguiam em anexo, procuravam sobretudo ser tranquilizantes: Estou vivo, estou bem, graças a Deus... Não se preocupem comigo!
Mas, tirando as nossas famílias, quem mais se preocupava connosco ? A guerra era bem lá longe, mesmo para os filhos da puta dos tugas (grndes colonos, grandes comerciantes, administradores, políticos, generais…) que gozavam as delícias do sistema em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques… Um dia destes temos que revisitar (e reler) esses aerogramas. A minha colecção (umas centenas) está no sótão (...).
PS – A Dina será bem vinda à nossa tertúlia…
5. Ao convite e o desafio para recuperar os nossos velhos aerogramas aqui ficam, endereçados a todo o pessoal da tertúlia de ex-combatentes da Guiné.
Abraço.
Marques Lopes
Geba. 3.5.67
" (...) Por cá tenho andado. Tenho andado muito pelo mato. Tem de ser assim, já estive quase um dia inteiro emboscado no mato. A vida aqui é muito dura, pior que tudo é que um indivíduo pode dar em chalado. Agora é que eu vejo como é fácil dar em maluco. Por um lado, o clima já não ajuda muito, por outro há muitos problemas e muitas situações difíceis que nos fazem perder a cabeça. Há dais emq ue quase se anda à porrada (...)".
2. Resposta ao Marques Lopes:
Ora aí está um material que tem sido pouco ou nada explorado… Eu não tenho nem um dos meus… Escrevia pouco, não tinha madrinhas de guerra… E receava estar a ser vigiado pela PIDE/DGS… Escrevi cartas só para o meu diário… Cartas a amigos que nunca cheguei a pôr no correio… Patético!
Em contrapartida tinha acesso, mais tarde, uma colecção de cartas e aerogramas, recebidos pela minha mulher, como madrinha de guerra; e outra, dos recebidos e enviados por um cunhado meu... Há alguns documentos interessantes.
Talvez valesse a pena pedirmos à nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné para recuperar e divulgar alguns dos aerogramas, recebidos ou enviados, com notícias, apontamentos, estados de alma, etc., que traduzissem de certo modo a época, as alegrias e as tristezas dos combatentes, as preocupações da população na rectaguarda, a milhares de quilómetros de distância...
Já escrevi sobre este assunto, em post de 23 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra.
A maioria dos soldados correspondia-se, em média, com uma meia dúzia de madrinhas de guerra, para além dos seus familiares e amigos. Em treze anos de guerra, cerca de um milhão soldados terá escrito perto mais de 500 milhões de cartas e aerogramas erecebido outro tanto.
Lemrbo que, no nosso tempo, o aerograma também era conhecido por corta-capim, já que o correio era, muitas vezes distribuído em cima de uma viatura, e o aerograma lançado por cima das cabeças dos soldados, à maneira de um boomerang. Os aerogramas foram uma criação do Movimento Nacional Feminino, dirigida pela célebre Cecília Supico Pinto desde 1961, e o seu transporte era assegurado pela TAP ("uma oferta da TAP aos soldados de Portugal").
Os aerogramas também foram usados na guerra da propaganda do regime, ostentando carimbos de correio com dizeres como "Povo unido, paz e progresso", "Povo português, povo africano", "Os inimigos da Pátria renunciarão" ou "Muitas raças, uma Nação, Portugal" (vd. Graça, L. - Memória da guerra colonial: querida madrinha. O Jornal. 15 de Maio de 1981).
Luís Graça.
3. Resposta do Marques Lopes:
Esses que vos enviei são alguns que consegui recuperar, tinha-os enviado à minha irmã.
Também não enviei muitos, porque não tinha nada mais que contar a não ser aquela desgraçada vida do nosso dia-a-dia de guerreiros. Enviei mais a uma madrinha de guerra, que acabou por ser minha mulher, mais tarde. Só que, quando nos divorciámos há vinta anos, ela deitou tudo ao lixo. Com muita pena minha, porque é verdade que muita da minha vivência na guerra foi expressa nesses aerogramas, muitos dos meus sentimentos e medos foram neles retratados, muitos desejos de fim para aquilo tudo eu pus naqueles papéis.
De acordo que os nossos tertuliantes vasculhem esse material, documentos importantes para o retrato da nossa vida naquele período.
A Diana Andringa mostrou-se interessada em conhecer o blogue. Já lhe dei as indicações para o fazer.
4. Comentário de L.G.:
Meu caro António: A vida não foi fácil para nós, que fomos apanhados na rede… como um cão (é uma imagem, obsessiva, do meu diário). É uma geração, a nossa, marcada a ferro e fogo, na carne e na alma. Por isso é bom podermos escrever e falar… em voz alta. Já ninguém nos entende, a não ser nós próprios…
Nos aerogramas não dizíamos nada, ou quase nada. Ficava muita coisa por dizer... Ou então escrevíamaos nas entrelinhas... Quando eu escrevia (basicamente è família, aos meus pais, às minhas irmãs…), fazia-o com irregularidade. Nunca lhes transmiti sentimentos negativos. Nunca lhes disse a verdade. E as fotos, que seguiam em anexo, procuravam sobretudo ser tranquilizantes: Estou vivo, estou bem, graças a Deus... Não se preocupem comigo!
Mas, tirando as nossas famílias, quem mais se preocupava connosco ? A guerra era bem lá longe, mesmo para os filhos da puta dos tugas (grndes colonos, grandes comerciantes, administradores, políticos, generais…) que gozavam as delícias do sistema em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques… Um dia destes temos que revisitar (e reler) esses aerogramas. A minha colecção (umas centenas) está no sótão (...).
PS – A Dina será bem vinda à nossa tertúlia…
5. Ao convite e o desafio para recuperar os nossos velhos aerogramas aqui ficam, endereçados a todo o pessoal da tertúlia de ex-combatentes da Guiné.
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