Mostrar mensagens com a etiqueta CART 1661. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta CART 1661. Mostrar todas as mensagens

domingo, 30 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4882: Notas de leitura (18): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte IV e última) (Luís Graça)


Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CART 1661 (1967/68) > Monumento ("Para ti, soldado, o testemunho do teu esforço")


Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados



Infogravura: © Luís Grça (2009). Direitos reservados


Notas de leitura > IV (e última Parte (*) > O fim de um pesadelo

Um amanhecer em Porto Gole...

Vemos de novo o Abel Rei a ocupar o cargo de cabo vagomeste, em substituição do responsável pelo depósito de géneros da companhia que está de férias na metrópole. Um pouco mais descontraído, o Abel dá azo à sua veia literária descrevendo um amanhecer na Guiné, num dos dias em que esteve de sentinela ao quartel… (25/4/1968, Porto Gole, pp. 143-143).

Nessa altura já havia gerador em Porto Gole, o qual era desligado ao amanhecer.

“Com sons de todas as distâncias, ouvem-se os mais variados cantares das aves. São cinco horas e vinte da madrugada (…). Há dez minutos que o dia começou a nascer: primeiro lento, sem pressa, como se preferisse não sair da escuridão, depois como a volúpia dum prazer, rápida, com a aclamação de toda a natureza à sua volta”.

O tão característico cacimbo das madrugadas da Guiné cobre, com o seu manto branco, o rio e a mata: “Avista-se entre as árvores espesso nevoeiro, o mesmo que torna húmidas e frias estas manhãs tropicais – confundindo a mata com o rio, que neste momento apresenta uma crista de areia no meio, a quatro ou cinco quilómetros de mim” (p. 143).

Os primeiros sinais de vida, em Porto Gole, em pleno ‘chão balanta’, são já perceptíveis pelo nosso cabo Abel Rei, no seu posto de sentinela:

“Poucos minutos mais volvidos, e já está o dia nascido. O homem encarregado do motor-gerador já o fez parar. Os abutres vieram até aos limites do rancho ‘fazer limpeza’, enquanto os porcos lá continuam a sua tarefa de demolir tudo com o focinho. Os galináceos limparam do chão os grãos de ‘bianda’ mais próximos; e os cães correm de um lado para outro” (…).

Na tabanca, são as mulheres, sempre as mulheres, quem se levanta primeiro:

“Primeiro poucas, e agora em mais quantidade, as mulheres nativas correm para a ‘fonte’ – um poço que se encontra rodeado duma pequena horta, tendo algumas árvores em volta; mangueiros, laranjeiras e cajueiros – donde levam água clara, com que se saciarão durante o dia (..). Com as bilhas cheias, elas já regressam. Na tabanca já se ouve, em ritmo cadenciado, o pilão a martelar na ‘bianda’. Começa a soprar uma ligeira aragem” (pp. 143/144).

A Abel ainda usa o termo ‘indígena’, quando se refere à população local, vocábulo com conotações colonialistas que deixa de se ouvir no tempo da Guiné Melhor, com Spínola:

“Os indígenas não utilizam filtros como nós para limpar a água; metem-na em bilhas de barro e ela depois assenta” (p. 144).

Pareceria um quadro quase idilíco e perfeito de harmonia com o homem com a natureza, se não fora a presença da guerra e da morte… No quartel, já se ouve remexer nos tachos e panelas. O padeiro e o cozinheiro já se levantaram e estão em funções… 

“E eu termino… Arma às costas, e deixo o meu posto de sentinela!... Pelas duas horas da tarde, seguiram finalmente as duas urnas para Bissau numa lancha de fuzileiros” (p. 144).


Bissá ‘embrulha’ mas resiste…

Por essa altura prossegue o reordenamento das populações da região, a par da construção de um fortim (um posto avançado nos limites do aquartelamento de Porto Gole). No final do mês de Maio de 1968, o Abel volta a “alinhar” como operacional, com o regresso, de férias, do cabo vagomestre.

Em Bissá, durante o mês de Maio, o PAIGC continua a fazer “a vida negra” às NT… De acordo com a história da unidade:

(i) a 3 há um morto confirmado no ataque a Bissá; 

(ii) a 8, um grupo estimado em 100 elementos volta a atacar o destacamento, durante 1 hora, com armas ligeiras e pesadas, embora sem consequências para as NT, enquanto que o IN retira com “bastantes baixas” (inclusive teria sido ferido o comandante da base de Changalene);

(iii) a 14, novo ataque, sem consequências;

 (iv) a 29, um pequeno grupo de 12 elementos faz uma flagelação de 5 minutos a Bissá… (p. 146).

É uma das poucas vezes em que o Abel Rei se permite fazer um juízo sobre o curso da “guerra que se vai arrastando, sem soluções à vista – ora atacando, ora defendendo” (p. 146).

A 2 de Junho de 1968, a CART 1661 recebe a visita do novo Com-Chefe e Governador-Geral, Brigadeiro António Spínola, que tinha acabado de chegar ao CTIG (p.151). Nas vésperas, as NT tinha sofrido um desaparecido e 7 feridos. O PAIGC, por sua vez, teve uma baixa mortal importante, a do chefe de bigrupo (?) António Cambará (ou Camará ?), na sequência da Op Gato Pimpão (p. 150).

Na Op Gato Pimpão, a CART 1661 actou conjuntamente com forças da CCAÇ 2315 (Mansoa, 17/1/68 – 4/12/69) e do Pel Caç Nat 54 (Porto Gole). Essa operação constou de batidas às matas a norte de Seé e Bissá. As NT foram divididas em dois agrupamentos. Um deles esteve debaixo de fogo durante 3h30 (!), quase ininterruptamente.


Um homem apanhado à mão

O Abel Rei faz uma dramática descrição desta situação que ele viveu intensamente. Vale a pena citar alguns excertos, para termos uma ideia mais precisa do pesadelo em que se podia transformar um simples patrulhamento ofensivo, às portas de casa, bem como da ferocidade em que por vezes se transformavam os combates (Porto Gole, 1/6/1968, pp. 148-150):

(i) acordado à uma da madrugada, o Abel partiu às 3…“O nosso destino era uma ligeira patrulha nas matas de Seé, a pouco mais de 10 km de percurso” (p. 148);

(ii) tudo parece correr, dentro da ‘normalidade’, até às 6 da manhã, quando as NT são avistadas por uma sentinela avançada do PAIGC que dá o alarme;

(iii) à entrada de uma bolanha “rodeada de uma mata espessa”, são emboscados pelos guerrilheiros (leia-se: “inimigos”); após tiroteio intenso, as NT são obrigadas a retroceder; há cinco feridos, entre eles o capitão da CCAÇ 2315;

(iv) depois avançaremao longo da mata, "com as forças inimigas bem instaladas e a fazer fogo constante sobre nós",  aontece que "num momento de maior aflição era deixado o capitão e alguns homens nessa dita zona de morte” (p. 149);

(v) nesse momento, o Abel estava “no meio da bolanha”, oferecendo um alvo fácil ao IN, ouvindo passar por cima de si “rajadas e roquetadas” e vendo os seus camaradas a ‘fugirem’ em direcção de Bissá…

E é nessa altura que o Abel se apercebe da gravidade da situação;

“Gritei!... Pedi que recuassem!... E vi os turras correrem para os que estavam em perigo. Depois – disse um soldado de nome Pombinho, de quem eu trazia a arma – ‘os turras avançaram, mandando-lhe levantar as mãos e ordenando que se rendesse’. A resposta dele foi uma rajada com uma arma de um ferido, obrigando-os a fugir para o mato” (p. 149)…

 (Esta descrição é interessante, por duas razões: é reveladora da intenção dos guerrilheiros do PAIGC em fazer prisioneiros: interessava-lhes muito mais um tuga vivo na mão do que tugas dois mortos; e, por outro, o comportamento do Pombinho tanto pode tipificar uma situação de heroísmo em combate, como pode ser sido ditado pelo desespero de um animal acossado pelo medo).

Há dois grupos de combate que recuperam e reagrupam os que ainda estavam na zona de fogo:~

“À frente, tudo corria para Bissá. Atrás ficavam duas armas: uma pesada MG e uma ligeira G3; e o pior de tudo, um homem da outra companhia, [a CCAÇ 2315, de Mansoa, ] era apanhado à mão pelo inimigo! (Mais tarde falou-nos de Conacri, via rádio, a informar-nos que se encontrava bem)” (p. 149).

No regresso a Bissá chegam dois bombardeiros e um helicóptero que faz a evacuação do capitão e de mais dois feridos graves…

Com apoio aéreo, partem de Bissá às duas da tarde do dia 1 de Junho de 1968, para enfrentar mais três horas, penosas, de caminhada a pé até Porto Gole…

 E o relato, dramático, deste dia termina assim: 

“Apesar de ter poucas esperanças em aguentar essas três horas de andamento, abalei disposto a cobri-las, pois trazia unicamente no pensamento o nome de Porto Gole! (…). Cansado e sem forças, fui o primeiro a chegar a Porto Gole” (p. 150)

Entre os feridos graves (e evacuados) da secção do Abel está o outro cabo, o 1º Cabo Arnaldo Victória Lopes… 

“Três dias passados após a fatídica ‘patrulha’, o meu corpo anda todo partido, e dificilmente me sai da cabeça o espectáculo daquele infernal tiroteio” (Porto Gole, 3/6/1968, p. 151).

A 4 de Junho o Abel jura ter avistado um “helicóptero dos turras” (sic), a cerca de 3 km de Porto Gole, em pleno Rio Geba, por volta das onze e meia da noite, quando ele estava em serviço de reforço… (pp. 151/152). Miragem, ilusão de óptica, pesadelo ?... Não seria o primeiro militar português a alegar ter visto aeronaves do PAIGC… À distância de 3 km, e à noite, é difícil reconhecer uma aeronave a não ser eventualmente pelo barulho dos motores…

Enquanto Bissá continua a ser flagelada pelo IN, obrigando a um tremendo esforço de reabastecimento do destacamento por parte de Porto Gole, a escrita do diário do Abel vai rareando, devido à “preguiça da caneta” (p. 155).

Numa coluna até Bissá, a 15 de Junho de 1968, Abel dá-se conta, novamente, da dramática situação em que se encontram as tropas locais: 

“Pude averiguar que as tropas em Bissá estão sem comida e sem bebida. O seu alimento é à base de arroz miúdo comprado na tabanca, a água é escassa e salobra… Na breve conversa que pude ter com os mais responsáveis, foi-me pedido, a título de desespero (sic), o envio de cerveja assim que me fosse possível” (p. 53). A 12 e a 17 de Junho, Bissá é de novo flagelada…

A 20 o destacamento começa a ser reabastecido, com recurso a pessoal balanta, requisitado pela tropa (?), para transporte, a pé, à cabeça, dos géneros alimentícios e outros… O Grupo de Combate do Abel faz a segurança à coluna… 

“A bolanha está seca e, com o forte calor que faz, tanto nós como os nativos, quase rebentamos com a caminhada. A nós (…) coube-nos fazer o segundo dia de patrulha: ainda faltam mais dois para lá colocar tudo (?)… O júbilo em Bissá é enorme”, como é fácil de compreender (Porto Gole, 21/6/1968, p. 154). 

Não houve contacto com o IN, que se limitou a observar e vigiar as NT…


Quando a velhice é um posto

O Abel perfaz 18 meses em 4 de Agosto de 1968. A efeméride foi condignamente celebrada: nesse dia, “o álcool fez sentir os seus efeitos, para celebrar a passagem à ‘velhice’ – num novo posto avançado, denominado Fortim, onde me encontro desde o dia trinta de Julho” (pp. 155/156). Recorde-se que a “velhice” na Guiné era um posto e os 18 meses era uma espécie de barreira temporal, a partir da qual se esperava a desaceleração da vivência da guerra e começava a contagem decrescente para a ‘peluda’… A vontade de combater, que já era pouca, reduzia-se a níveis próximos de zero… Aumentavam os casos de indisciplina e até de insubordinação.

O paludismo e a “bicharada” continuam a causar “dores de cabeça” ao Abel.. Como se isto não bastasse, é vítima de um roubo (documentos e algum dinheiro), “desviada da minha mala, no último abrigo onde estive em Porto Gole”, onde estava com mais 12 militares (“entre brancos e negros”)… Um dos suspeitos terá sido “um soldado nativo, que dormia numa cama ao lado da minha, dentro do abrigo” (p. 157). Nada se conseguiu apurar… Entretanto o Abel é destacado para o Enxalé.

Também o Enxalé, onde ele agora se encontra, “cá tá sabi” (22/8/1968, p. 157)… Mas três semanas depois o estado de espírito do Abel parece ter mudado. Eis aqui uma inesperada mas genuína confidência: “O meu estado moral e físico está melhor. Desde a minha chegada à Guiné, foi esta a ocasião em que tomei melhores conhecimentos com a população nativa, com os quais conquistei algumas amizades… E, em suma, maiores efusões de desejos!” (p. 158). Talvez por pudor ou autocensura, o Abel não acrescenta mais pormenores sobre as ‘amizades’ (femininas, obviamente) que fez no Enxalé…

Está aqui um português, de corpo inteiro, que parece ter-se rendido aos encantos das ariscas bajudas balantas (?) do Enxalé… Mas não há bela sem senão… No espaço de um mês, o Abel volta a ser roubado… A 13 de Setembro de 1969 dá conta do desaparecimento da caixa com o dinheiro da venda diária de géneros à população local… Os interrogatórios não deram em nada (p. 159).

A 1 de Outubro de 1968 o Abel celebra 20 meses de velhice… Entretanto “correm boatos de que os turras estão reforçados com elemento cabo-verdianos e cubanos (?)”…Nesta altura também já estava a ser electrificado o destacamento do Enxalé…


O fim (?) de um pesadelo

Mais de um mês depois, a CART 1611 “está finalmente fora do mato”, aboletada no Depósito Geral de Adidos, em Bissau, aguardando ordem de embarque (Bissau, 10/11/1968). Em três linhas o Abel diz-nos tudo sobre o DGA: “A anarquia é total. E extensiva aos nossos superiores. Impossível confusão tão completa. Sobretudo à noite, quando os nosso corpos necessitam de descanso” (…) (p. 162).

Por fim vem a viagem de regresso no Uíge, que parte a 19/11/1968… Na véspera, às 16h, o Abel é metido num batelão que depois o levou ao Uíge… Desta vez, ele tem (tal como o resto da companhia) o privilégio de vir em camarotes (p. 163).

É altura de se fazer um balanço destes 22 meses de vida de um militar:

(i) “No sentido da camaradagem, o meu ponto de visto é excelente” (p. 164);

(ii) “A nível de chefias, nem tudo foi cor-de-rosa (…). Testemunhei algumas injustiças” (...) (p. 165);

(iii) “Agora que o pior passou, a alegria não tem limites, e o meu maior prazer foi finalmente poder dar com os dois pés (sic) nesta vida, a que estive obrigatoriamente submetido” (p. 165);

(iv) “(…) tudo o que ficou escrito [, no meu livrinho, que trazia sempre comigo no dolmã,] não se tratou senão de simples partes vividas” (p. 165);

(v) O autor confessa que acabou por se impor a si próprio a chamada memória selectiva, isto é, “omitir factos tão ruins, que eu nem os conseguia descrever, e com a sua omissão convencer-me de que nunca aconteceram” (p. 166). Podemos tentar adivinhar quais, mas é sempre especulativo... O silêncio do autor é de ouro, mas é uma pena, se ele, passados 40 anos, não satisfaz a curiosidade dos seus leitores e dos seus camaradas do blogue...

(vi) Modestamente reconhece que a sua missão não foi das mais árduas: “outros houve que sofreram muito mais” (p. 166), daí talvez a razão do título do livro, Entre o inferno e o paraíso (eu diria que o Abel conheceu algumas estações do inferno, como todos nós; e que também conheceu um pedacinho do paraíso; em todo o caso, é preciso entender o uso, que se fazia na época, destas duas metáforas, que hoje não podem ter a mesma leitura).

(vii) A última palavra do autor é, com toda a justiça, para os “heróis desconhecidos desta guerra”, todos aqueles “que mais ninguém recordará, a não ser os pais, irmãos, esposas e filhos” (p. 166).

Em anexo ao livro, é publicada a lista das baixas (mais de 70, entre mortos e feridos graves) da CART 1661, da Polícia Administrativa de Porto Cole, e do Pel Caç Nat 54. Num total de 43 baixas, só a CART 1661 teve mais do que 58% motivadas por accionamento de minas (vd. gráfico acima).

Como nota final, é de destacar a honestidade intelectual do autor que recusou a tentação de, décadas depois, “retocar”, “embelezar” ou “rever” o seu diário, escrito entre 1 de Fevereiro de 1967 e 19 de Novembro de 1968. A única coisa que ele terá acrescentado, posteriormente, foram as notas de rodapé, com apontamentos (factuais) retirados da história da CART 1661… Não tenho dúvidas de que o nosso cabo Abel Rei deu um contributo importante, ao escrever e publicar o seu diário, para a compreensão sócio-antropológica do quotidiano dos militares portugueses durante a guerra colonial na Guiné (1963/74)…

É um documento singelo, escrito por um homem bom, recto e simples, dotado de talento literário mas com pouca literacia como a maior parte dos homens da sua/nossa geração (tinha, na época, apenas a 4ª classe), um homem nascido em 1945, de família operária, e que viveu num meio social, como a Marinha Grande, onde havia uma forte tradição de cultura operária, de autodidactismo, e de resistência ao poder político, típicos da aristocracia operária do Séc. XIX e princípios do Séc. XX.

Deliberadamente ou não, o Abel nunca assume a condição de soldado que está ali, no “Ultramar”, como então se dizia, para defender a Pátria. Veja-se a imensa alegria com que ele, tal como todos nós, saúda a ‘peluda’… Percebe-se, ao longo da leitura do diário, que o moral das NT, nomeadamente no subsector de Porto Gole, já era mau, que o PAIGC exercia um forte pressão a sul do Oio, que a situação militar parecia estar a degradadar-se no final do consulado do Schultz, sem que contudo se pudesse dizer que a guerra estava ganha para o PAIGC… Usando as próprias palavras do autor, “era uma guerra que se ia arrastando sem soluções à vista”, de um e do outro lado…

Verifica-se que na época da CART 1661 o destacamento de Bissá é um osso duro de roer para as NT, que é alvo de frequentes ataques e flagelações, mas a verdade é que o PAIGC nunca conseguiu desalojar as tropas da CART 1661 que o defenderam, reforçadas com um pelotão da polícia administrativa de Porto Gole. E não foi, no tempo do Spínola, abandonado, contrariamente ao que aconteceu a outros destacamentos e aquartelamentos, de que já aqui temos falado sobejamente: por exemplo, a Ponta do Inglês (no subsector do Xime), Beli (na região de Madina do Boé), a própria Madina do Boé, etc., etc. (para não falar já no sul, na região de Tombali, sendo o caso mais flagrante o de Gandembel)… Pelo menos em 1973 Bissá ainda existia e continuava a ser atacada pelo PAIGC (segundo testemunho do António Graça de Abreu, quando esteve no CAOP1, em Mansoa).

O Abel teve o mérito de pôr no mapa da guerra da Guiné o nome de Bissá, sobre o qual poucos de nós sabiam alguma coisa. Um camarada nosso que conheceu bem a região de Porto Gole, Bissá e Enxalé, o Henrique Matos, 1º comandante do Pel Caç Nat 52 (1966/68) já aqui veio reconhecer que a manutenção de Bissá foi um erro, possivelmente pelo elevado custo, em vidas humanas, que terá acarretado.

Luís Graça
__________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)

24 de Agosto de 2009 > Guiné 1963/74 - P4858: Notas de leitura (16): Memórias do inferno de Abel Rei (Parte III) (Luís Graça)

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4867: Memória dos lugares (35): Porto Gole, Março/Abril de 1968, CART 1661 (José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447, Brá, 1968/70)



Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Março / Abril de 1968 > CART 1661 >
Trabalhos de electrificação do aquartelamento a cargo de uma equipa do BENG 447, onde se integra o José Nunes, autor destas imagens...

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Vista geral da povoação e aquartelamento

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > O Sesimbra, o Biaia e o José Nunes, posando junto ao temível Morteiro 81

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Junto a um dos abrigos do aquartelamento

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 >O Biaia, que presumimos ser um 'protegido' da tropa, quiçá a mascote da companhia (CART 1661), que - como muitos outros miúdos guineenses - cresceram dentro do arame farpado, ao longo da guerra colonial...


Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > O José Nunes posando para a posteridade com a inofensiva (para os humanos) mas sempre mítica jibóia...

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Todos à v0lta da jibóia - I


Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 >Todos à volta da jiboia - II

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > 1968 > Todos à volta da jibóia - III

Fotos: José Nunes (2009). Direitos reservados



1. O José Nunes (, de seu nome completo, José Silvério Correia Nunes), ex-1º Cabo, BENG 447 (Brá, 1968/70) esteve na Guiné de 15 de Janeiro de 1968 a 15 Janeiro de 1970.


Fez assistências e electrificações em aquartelamentos como Porto Gole, Enxalé, Ponta do Inglês, Bolama e Bissum-Naga.

Esteve em Porto Gole em Março/Abril de 1968, altura em que se procedeu à electrificação do aquartelamento (foto à esquerda). Não tínhamos até agora fotos dele. Finalmente, e a nosso pedido, ele procedeu à digitalização de uma série de fotos, que iremos publicar. Hoje começamos com as suas memórias de Porto Gole.

"Nesse tempo o Comando ficava na Habitação existente, e servia de alojamento aos Oficiais e Sargentos. O restante pessoal ficava no celeiro e nos abrigos, construídos, e nos abarracamentos construídos junto da casa maior" (*).

A tabanca "estava alinhada, formando uma rua até ao cruzamento da estrada que ía pra Mansoa e para Enxalé. De frente para o Geba, junto ao monumento, a pista ficava do lado direito; no esquerdo, no pequeno vale com laranjeiras e uma horta, ficava o poço onde nos abasteciamos de água".

Na altura a CART 1661, a que pertencia o nosso camarada Abel Rei (**), "tinha pessoal em Bissá e em Enxalé"... Acrescenta o José Nunes:

"Sei que tinha um número considerável de baixas. Foi quando apareceram as primeiras minas incendiárias que fustigavam as colunas de reabastecimento a Bissá. Tenho algumas fotos lá tiradas com a malta, impecável. Em Porto Gole foi onde vi a maior jibóia na Guiné, morta quando se ía buscar lenha para fazer a comida.

"Foi aqui que tentaram envenenar toda a Companhia, deitando no poço toda o tipo de restos de vacas mortas, tripas, peles... O poço era tapado com tampo de madeira e na base do gargalo havia um buraco para enfiar a mangueira da bomba, foi por aí que introduziram tudo, nas barbas de um posto de sentinela, mas pela horta era fácil. As flagelações eram feitas do cruzamento, na altura foi construido aí um posto avançado [, um fortim], para evitar as flagelações. Durante a minha estada nunca fomos atacados". (***)

__________

Notas de L.G.

(*) Vd. postes de:

10 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4492: Memória dos lugares (30): Porto Gole, CART 1661 (1967/68) (José Nunes / Abel Rei)

22 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2470: Diorama de Guileje (5): Geradores na Guiné (José Nunes)

22 de Janeiro de 2008> Guiné 63/74 - P2469: Tabanca Grande (55): José Nunes, ex-1.º Cabo Mec Electricista de Centrais (BENG 447, 1968/70)


(**) Vd. postes de:

12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)

24 de Agosto de 2009 > Guiné 1963/74 - P4858: Notas de leitura (16): Memórias do inferno de Abel Rei (Parte III) (Luís Graça)

(***) Último poste da série Memória dos lugares:

14 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4682: Memória dos lugares (34): Guiné, Sol e Sangue, de Armor Pires Mota, CCAV 488, 1963/65 (José Marques Ferreira)

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4858: Notas de leitura (16): Memórias do inferno de Abel Rei (Parte III) (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Enxalé > O famoso granadeiro, uma GMC transformada, que pertencia à CCAÇ 1439 (1965/67).

Foto: © Henrique Matos (2007). Direitos reservados


Guiné > Bissau > Fevereiro de 1968 o 1º Cabo Abel Rei, da CART 1661 (Fá, Enxalé, Porto Gole, 1967/68), de férias, na capital da província.


Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados



Abel de Jesus Carreira Rei – Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 1967/1968. Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira.

Edição de autor. 2002. 171 pp. (Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002)

Notas de leitura > III Parte (*) > Uma dramática operação a Madina/Belel e... férias em Bissau

por Luís Graça


Uma dramática operação a Madina

Depois de 73 dias em Bissá, o nosso 1º Cabo Abel Rei regressa a Porto Gole, exausto e adoentado. Visto pelo médico, que lhe receitou “três injecções e comprimidos” (sic), voltou a estar apto, ele e os demais “companheiros de Bissá”, ao fim de três dias.

A 27 e 28 vemo-lo a participar na Op Foguetão, para um golpe de mão uma acampamento da guerrilha na região de Madina. Tratou-se da repetição da Op Frango, envolvendo forças da CCAÇ 1646 (Fá Mandinga) e da CCAÇ 1749 (Mansoa), além da CCART 1661 (Porto Gole).

A CCAÇ 1646 (que passou por Bissau, Fá Mandinga, Xitole, Fá Mandinga e Bissau, entre Janeiro de 1967 e Outubro de 1968) pertencia ao BART 1904 (Bambadinca), tendo por comandante o Cap MiL Art Manuel José Meirinhos.

A CCAÇ 1749, por sua vez, passou por Mansoa, Mansabá e Quinhamel, entre Julho de 1967 e Junho de 1969. Era comandada pelo Cap Mil Art Germano da Silva Domingos.

Na Op Frango, que se realizara a 16 de Novembro de 1967, as NT não atingiram o objectivo, por se terem perdido e por haver falha nas ligações com o PCV. Diz a história da CCAÇ 1661, citada pelo Abel Rei (p. 120), que “o único guia que nos foi possível arranjar, informou não saber atingir o objectivo pelo itinerário determinado superiormente”.

Eis, em resumo, o filme dos acontecimentos da Op Foguetão, de acordo com o diário do Abel Rei (29/11/1967, Enxalé, pp. 120-122), e que me faz trazer à memória peripécias e trapalhadas semelhantes, ocorridas numa outra operação, ao mesmo objectivo, dois anos e meio depois, em Março de 1970 (Op Tigre Vadio) (**): erros de planeamento, guias que se perdem, itinerários mal escolhidos, PCV que denunciam a presença das NT, falhas no abastecimento de água, progressão para o objectivo a horas proibidas, casos de exaustão e desidratação, indisciplina de fogo, relatórios fantasiosos, debandada geral, regresso dramático ao Enxalé…

(i) “Partimos à meia noite do dia 27, com um ração de combate para cada dois homens, e a caminho dum acampamento dos ‘turras’, situado em Madina, onde eles tinham bastante armas pesadas, entre elas um ou dois morteiros 82 e canhão sem recuo (?)" (…).

(ii) As NT chegam ao objectivo “volta das dez e meia da manhã”, altura em que começam a ser sobrevoadas uma avioneta com um ‘major de operações’ (sic), leia-se, PCV…

(iii) Sob um “sol escandante”, depois de mais de uma hora parados e, obviamente, já localizados pelo IN, “fomos obrigados a avançar para o objectivo. Nessa ocasião fazia-se a entrada numa bolanha cheia de água” … (Recorde-se que estamos no fim da época das chuvas)…

(iv) Há quatro baixas por exaustão e desidratação. Esses são helievacuados. Ficam 20 homens a fazer segurança ao helicóptero. Os restantes continuam a avançar para o objectivo.

(v) A progressão faz-se no meio do capim alto (com “mais de três metros de altura”). A zona em que o helicóptero, começa a ser batida por tiro de morteiro. Avança-se para o objectivo…

(vi) “O tiroteio sucedia-se cobrindo aqueles matos! (…) Os homens que ficaram atrás comigo, contaram que foram obrigados a retirar para fugir ao fogo dos ‘turras’ que batiam a zona. Perderam-se…”

(vii) Os “outros, são obrigados pelo capitão (de nome Figueiredo) [referência que me parece explícita, ao Cap Dias Sousa Figueiredo, da CART 1661], “a irmos contra as trincheiras do inimigo – apontando-lhes a sua arma, com ameaça de disparos, se não avançassem” (p. 122)…

(viii) As NT sofrem “dois mortos e três feridos”, não lhes sendo possível “trazer os mortos: um soldado nativo das milícias, e o próprio guia, pois o fogo era intenso”.

(ix) Concluindo, “chegaram já de noite, divididos em dois grupos, aqui ao quartel [do Enxalé], tendo andado perdidos uns dos outros. Vinham estafados”…

(x) A história da unidade diz, seca, cínica e sucintamente, que “o objectivo de Madina foi atingido e destruído, tendo sido mortos 9 elementos IN; as NT tiveram um milícia morto e três feridos” (p. 122)… Não há qualquer referência ao pobre diabo do guia cujo cadáver lá ficou, também, para os jagudis…

Só quinze dias depois é que o Abel volta escrever, para nos dar conta da existência da ‘arma secreta’ da CART 1661, o famoso ‘granadeiro’, uma “viatura pesada blindada com chapas metálicas e areia”, que é utilizada numa coluna auto, de reabastecimento a Bissá… “Pela estrada, em que fomos sempre pé, picando a área em todo o percurso, ao longo da nossa deslocação foram encontrados jornais de propaganda subversiva terrorista” (14/12/1967, Enxalé) (***)…


As festas de Natal e Ano Novo

No final do ano de 1967, o comando da CART 1661 muda-se para Porto Gole, passando o Enxalé a ser apenas um simples destacamento, depois na primeira daquelas localidades se terem construído as necessárias instalações para o pessoal, bem como o depósito de material. Foi também construído uma pista de aterragem para aeronaves tipo D0 27…

Aproximam-se as festas do Natal e o Ano Novo, e o Abel é encarregue de ir a Bafatá fazer as compras (“bebidas, doces e frutas”). Sobre esta localidade (a segunda maior da Guiné, a seguir a capital, mas que ainda não é cidade, nesta época), diz o Abel:

“(…) Foi a primeira vez que visitei uma cidade da Guiné ! (…) Não vou deixar aqui as minhas impressões sobre aquela cidade, pois que lá não achei nada de especial, somente pequenina! Uma cidade, onde a sua base é o comércio, desfrutando o progresso da guerra, e onde a mesma não faz sentir os seus efeitos destruidores”… (30/12/1967, Enxalé, pp. 14-125).

No Natal “houve uma ligeira ceia” e “até umas filhoses feitas por mim” (p. 125).

Três dias depois, a 28, houve visita dos ‘turras’ (sic), uma pequena flagelação, sem consequências… Mais grave seria o ataque de 4/1/1968, levado a cabo por um “Gr IN estimado em 150 elementos” (!)… Diz o autor que “os turras utilizaram o dobro das armas que nós temos”, mas mesmo assim retiraram com pesadas baixas (um morto confirmado e numerosos rastos de sangue) (p. 127)

O ano de 1968 é saudado como da “peluda” (p. 126). A partir de 11 de Janeiro, o Abel tem um novo comandante de pelotão. Antes tinha sido o capitão que tinha dado o “gosse”, bem como outro alferes (17/1/1968, Enxalé, p. 128).


Férias em Bissau, hospedado na Pensão Chantre

A partir de 2 de Fevereiro de 1968, o 1º Cabo Abel Rei está de férias em Bissau… “Vim juntamente com o ‘Conjunto João Paulo’, que fez nesse mesmo dia em actuação musical em Porto Gole, partindo de seguida numa lancha, pelo Rio Geba, para cá”… Ficou hospedado na Pensão Chantre (14/2/1968, Bissau, p. 130).

A cidade é descrita nestes termos: “É grande, não muito, já conta com algumas moradias modernas, e enormes bairros, embora para isso tivesse influência a visita do Presidente da República Portuguesa, feita no princípio deste mês (…) A minha opinião sobre Bissau é bastante boa, em que sobressai o comércio (…) ” (18/2/1968, Bissau, p. 132).

O Abel aproveita o tempo para passear e descansar. “Tenho percorrido praticamente toda a cidade incluindo o Pilão - onde abundam festas nocturnas com bailes, sobretudo nesta altura do Carnaval”… O Pilão é “a parte mais pobre da capital, composta por bairros de população nativa” (sic).

A Bissau chegam rapidamente as notícias da guerra: o ataque a Porto Gole (a 9), ao Enxalé (a 13), prenunciando um recrudescimento da pressão do PAIGC sobre o “chão balanta”… O Abel dá conta também de um ataque em Tite…

A própria cidade de Bissau sofre uma flagelação no mês de Fevereiro na sequência do ataque à BA 12, em Bissalanca: “parece ter havido três mortos e quinze feridos, todos nativos (?)” (3/3/1968, Bissau)… Foram dias “turbulentos” (sic), esses das férias do Abel, em Fevereiro.


Pressão sobre o chão balanta

A 9 de Março, está de regresso a Porto Gole, em LDM (Lancha de Desembarque Média), numa viagem de quatro horas. Três dias depois ainda permanece em Porto Gole, aguardando transporte para o Enxalé… (12/3/1968, Porto Gole, p. 135). Isto quer dizer também que a estrada de Bissau-Bafatá deixa de ser seguro, sobretudo no sector de Mansoa… (O Batalhão de Mansoa “não nos autoriza que façamos colunas em viaturas auto, devido ao número de mortos que temos nos percursos por estrada”… Para se ir do Enxalé para Bissau, vai-se por Bambadinca, via Xime, apanha-se a LDM e vai-se até Porto Gole e daí para Bissau…

“De Bambadinca até cá vim numa lancha de patrulhamento da nossa Marinha de Guerra. Com eles comi e dormi duas noites (e trabalhei, claro!) enquanto esperavam a saíde de um barco civil, com carregamento de produto produzidos no interior, para Bissau, e ao qual, duas vezes por semana, têm de manter segurança, via rio Geba” (27/1/1968, Porto Gole).

Na mesma lancha, veio uma companhia operacional “que tem andado a recolher todos os habitantes das tabancas existentes para além de Porto Gle, assim como todos os seus haveres, sendo depois deitadas abaixo todas as suas habitações” (p. 135). Essa LDM, ao regressar, de Enxalé, na madrugada de 12/3/1968, “sofreu um ataque em pleno Rio Geba”, tendo sido atingida por rockets (p. 135).

A 20 de Março, prosseguem as operações de evacuação e reagrupamento de populações até então sob duplo controlo, e destruídas as suas aldeias. “Foram queimadas e destruídas perto de uma dúzia de moranças. Entretanto trouxemos tudo aquilo que foi possível agarrar: porcos, galinhas e cabritos . (Eu trouxe três galináceos). Voltámos era quase meio-dia” (20/3/1968, Porto Gole, po. 137-138). Uma parte dessa população (balanta) é redistribuída por Enxalé, Porto Gole e Bissá (p. 139).

Entra-se no mês de Abril de 1968, “sem comida nem bebida”… Vinho, café, batatas e bacalhau são quatro dos itens referidos pel Abel, como faltando já há vários dias no aquartelamento de Porto Gole (3/4/1968, p. 140)…

As colunas de e para Bissá continuam a fazer baixas… Logo no dia 2 de Abril, mais dois mortos, da CART 1661… O ambiente é de consternação e apreensão, a escassos seis ou meses do fim da comissão. “Hoje ainda se encontram cá as duas urnas chumbadas com os meus colegas, e ontem foi a enterrar o Soldado ‘Samba’ do Pel Caç Nat 54. Os feridos mais graves foram evacuados para Bissau” (12/4/1968, Enxalé / Porto Gole, pp. 140-142).

(Continua)
___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)

(**) Vd. postes de:

10 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2831: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (31): Tigre Vadio: Um banho de sangue no corredor do Oio

27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças) (Luís Graça)

(***) Vd. poste de 2 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2148: Recordações do 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (3): O famigerado granadero do Enxalé, da CCAÇ 1439 (1965/67)

(...) Para a história do famigerado granadero que se vê no Post 2001. Aqui vão duas fotografias do mesmo que tirei no Enxalé. É uma GMC que foi transformada por pessoal da CCAÇ 1439, uma unidade de Madeirenses, que ali esteve até Abril de 1967 e foi substituida pela CART 1661 que passou a sede para Porto Gole em Dezembro de 1967, ficando o Enxalé apenas como destacamento.

A transformação constou do reforço dos taipais com chapas de bidon, separadas de ± 20 cm com areia no meio. Ficou à prova de bala de Mauser. Tinha também uma camada de areia no fundo da caixa e na frente também vários sacos de areia. Tinha instalada como se pode ver uma Breda. Não sei porque é que lhe chamavam granadero.Com ela fiz vários reabastecimentos a Missirá e Porto Gole .

Segundo a descrição do Abel Rei no seu depoimento Entre o Paraíso e o Inferno: de Fá a Bissá-Memórias da Guiné e que na altura estava em Bissá, no dia 5 de Outubro de 1967 esta viatura quando regressava a Porto Gole accionou uma mina incendiária a que se seguiu uma emboscada de que só se safaram com apoio aéreo. Fazia parte duma coluna que saiu de Porto Gole ao encontro doutra coluna saída de Bissá a pé para entregar uns militares destinados àquele destacamento.Desde a abertura de Bissá (que eu conheci bem e considero um erro catastrófico) em Abril de 1967 e até esta última data tiveram três viaturas inutilizadas, mais de vinte mortos e uns cinquenta feridos evacuados. Penso por isso que não andariam propriamente a jogar uns com os outros. (....)

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)



Guiné > Região do Oio > Bissá e Porto Gole > CART 1661 1967/68) > Imagens do destacamento de Bissá, no tempo em que lá esteve o Abel Rei, com o o 3º Gr Comb... Na foto de baixoi, tirada em Porto Gole, o Abel Rei está escrever algumas linhas do seu diário, mais transformado em livro.

Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados


Abel de Jesus Carreira Rei – Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 1967/1968. Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira. Edição de autor. 2002. 171 pp. (Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002).

Notas de leitura > II Parte (*)

por Luís Graça

A morte do Capitão de 2.ª Linha, o balanta Abna Na Onça, em Bissá

Entretanto, alguns dias depois da ocupação de Bissá, em 7/4/67, que passou a ser um destacamento, guarnecido por um pelotão (-) da CART 1661 e uma companhia (-) da Polícia Administrativa de Porto Gole, o dia 15 de Abril de 1967 seria um “dia trágico”: um ataque do PAIGC a Bissá, de duas horas, na noite de 14 para 15 de Abril de 1967, fizera sete mortos e cinco feridos . Na sequência deste desastre, o destacamento foi abandonado…

Pela primeira vez o autor não esconde que lhe vieram “as lágrimas aos olhos” (p. 69). A tragédia abatera-se sobre Bissá e Porto Gole:

“Houve choro de todos, com gritos e desmaios das mulheres, como que adivinhando o que aconteceu, entraram de rompante, dentro do destacamento, numa altura em que procedíamos à pesagem de peixe frecso, chegado do rio… Tinha morrido um capitão de 2ª linha, mais seis nativos, todos da Polícia Administrativa, e todos eles com as famílias cá na Tabanca de Porto Gole. Morria o homem em quem se tinham fortes esperanças para acabar com a guerrilha inimiga na zona – o capitão Abna Na Onça por ser corajoso e respeitado por negros e brancos”.

E sobre a importância deste aliado, balanta, das autoridades portuguesas, acrescenta o Abel Rei: “Um homem que, desde o início da guerra, vinha enfrentando, com máxima inteligência, aqueles que o fizeram sofrer, matando-lhe toda a família; perseguindo [o Inimigo], matando, capturando armas. Este foi o seu fim, só porque estava do nosso lado". (15/4/67, Porto Gole, pp. 69/70).

Em 20 de Abril de 1967, uma força, comandada pelo próprio Cap da CART 1661, e composta pelo 1º Gr Comb e pelo Pel Caç Nat 53, partiram para Bissá, com a intenção de reocupar o destacamento, que na altura pertencia ao sector do BCAÇ 1888 (Bambadinca).


No Inferno de Bissá

Em 13 de Maio de 1967, o Abel (integrado no seu Gr Comb, o 3º) é destacado para Bissá (onde permanece 15 dias).

É “um destacamento composto por oito casernas-abrigos, vedado com arame farpado e iluminado com (…) petromaxes” (14/5/67, Bissá, p. 84)…

E acrescenta o autor:

“Está cercado por tabancas cujos habitantes são de raça balanta, das quais foram queimadas as mais próxmas para melhor defesa do mesmo. Fica rodeado de bolanhas (terrenos planos cobertos de capim) a nascente, sul e poente, e matas pelo norte – o ponto mais perigoso, e pelo qual os turras têm possibilidades de nos atacar. Há imensas árvores, e de grande porte, que foram deixadas mesmo dentro do aquartelamento”…

A força ali destacada era composta por um grupo de combate da CART 1661 e duas secções de polícia administrativa. 

“Está cá uma secção de sapadores que, além de vedarem o destacamento e armadilharem o s pontos mais estratégicos, fizeram um forno para cozer o pão, e estão a fazer um refeitório e cozinha” (pp. 84/85).

A fonte de abastecimento de água é um charco: 

“Pelas cinco horas, vou habitualmente tomar banho, a uma poça com água da cor de barro, acinzentada, mas que constitui a nossa única base para limpeza, e também onde vamos buscar água para beber” (17/5/67, Bissá, p. 87).

Há uma hostilidade passiva por parte da população local, agravada pela atitude de suspeição dos militares portugueses em relação aos balantas: 

(…) “Fui apanhar alguns mangos, e dar os bons dias a quatro bajudas (…) que andavam a carregar com feixes de palha à cabeça, mas que se limitaram a olhar-me com curiosidade, não respondendo nada!”… 

Comentário (ingénuo) do autor: 

“Não entendo como é que a nossa cultura, que há meio milhar de anos se espalhou por estas terras, nunca os ensinou a falar a nossa língua?!” (18/5/67, Bissá, p. 88).

No dia seguinte, numa coluna de duas viaturas a Porto Gole, para ir buscar o correio e levar um “soldado castigado” para a sede do comando da companhia, o Abel e os seus camaradas encontram treze bajudas e dois homens: 

“Estavam munidos de catanas e machados” (…) e “quando nos viram, largaram logo a fugir (sendo o mais natural que tivessem ido fazer algum ‘serviço’ aos turras). Fizemos um cerco, e apanhámos o ‘bom pessoal’ (termo usado em relação aos civis nativos, que jogam com os dois lados) – que disse andar à lenha! (…).

Em Setembro de 1967, o Abel voltou para Bissá com o seu Gr Comb. No dia 3 há um primeiro contacto com o IN que faz uma flagelação a um tabanca das proximidades, Funcor, em pleno dia, às 14h… Os de Bissá respondem com morteiro 81/ mm; o PAIGC riposta com morteiro 60/mm (p. 105). A 6 de Setembro, uma força da guerrilha (estimada, com evidente exagero, em 180 elementos, segundo a história da unidade, citada pelo Abel), entra na tabanca de Bissá e flagela o destacamento. Há uma baixa mortal, confirmada, entre os atacantes, sendo enterrado dentro do arame farpado:

“Foi a primeira vez que vi de perto, um turra fardado (embora morto!). Tratava-se de um homem forte e tipo da raça balanta” (6/9/67, Bissá, pp. 105/106). Estava equipado com uma espingarda semi-automática Simonov M21, devendo por isso ser um milícia popular do PAIGC e não propriamente um guerrilheiro das FARP (reorganizadas no final de 1967)… A 8 de Setembro há uma nova flagelação a Bissá, com morteiro 82 e armas automáticas… Aumentam as dificuldades de abastecimento do destacamento, devido à chuva, às minas e às emboscadas…

Setembro e Outubro de 1967 vão ser dois meses negros para a CART 1661. O primeiros morto da companhia devido a explosão de anti-carro, ocorre a 16 de Setembro de 1967, com oito meses de comissão, quando uma coluna auto seguia de Porto Gole para o cruzamento da estrada para Mansoa onde se iria encontrar com forças de Bissá, para entrega de géneros alimentícios.

“Balanço: quatro mortos, sendo dois brancos e dois pretos, e mais treze feridos graves; uma viatura em pedaços; e diversos materiais estragados!” (…) (16/5/67, Bissá, p. 110).

Os mortos, todos do Pel Caç Nat 54 (com excepção do condutor), foram o Fur Mil Álvaro Maria Valentim Antunes, casado, natural de Portalegre, comandante da coluna, e os soldados guineenses Mamadu Jamnca e Adulai Sissé. O condutor era o Sold da CART 1661, Manuel Pinto de Castro.

Esta ocorrência é referida pelo José Brandão, no seu livro Cronolohia da Guerra Colonial: Angola, Guiné, Miçambique, 1961-1974 (Lisboa: Prefácio, 2008, p. 165): 16/9/1967: “Morrem em combate na Guiné 4 militares do Pelotão de Caçadores 54”.

No dia seguinte ao tentar recuperar a viatura sinistrada, as forças de Porto Gole sofrem um emboscada…

A 2 de Outubro Bissá volta a ser atacada, durante três horas… Eram 9h3o quando rebentou a primeira roquetada… O Abel escrevia dentro da enfermaria, “onde durmo, e estava a ouvir rádio”…A história da unidade fala em 150 elementos IN, os quais raptaram seis elementos da população e destruíram várias moranças…

A 5 de Outubro, uma viatura saída de Porto Gole em direcção a Bissá faz accionar outra mina A/C. Balanço: 1 morto e 26 feridos. A 6, uma nova mina (desta vez incendiária!) com emboscada (por um grupo calculado em 80 elementos), junto ao local do rebentamento da mina anterior, faz 10 mortos e mais de duas dezenas de feridos, “com queimaduras, todos evacuados para a Metrópole”…

Diz-nos o Abel, em nota de rodapé, que “para estas evacuações, foi preciso um avião especial de emergência que, ao chegar a Lisboa, fez correr a notícia de que Bissau tinha sido bombardeada, simultaneamente ‘boatado’ pelo inimigo)” (p. 114).

Nesse dia, Abel estava em Bissá, fazendo contas à vida de ‘cabo vagomestre’, sem comer para dar ao pessoal… mas no dia 8/10/67 fez o balanço desta “série negra” que fez de Bissá “o pior aquartelamento” (p. 166) da Guiné, nessa época.

“Tanto na mina como na emboscada, foi precisa imediata colaboração da aviação, que desta vez chegou de pronto, vindo dois bombardeiros que ajudaram os helicópteros a localizar o acidente” (8/10/67, Bissá, p. 115).

O José Brandão, na sua Cronologia da Guerra Colonial, limita-se a referir que no dia 5/10/1967 “morrem em combate na Guiné 2 militares da CART 1661”, o 1 Cabo José Andrade Couto Pinto, natural de Santo André, Bustelo, e o Sold Manuel, natural de Lixa, Fornos. E que no dia seguinte morrem mais cinco: 1º Cabo Abel Carvalho Martins (Montalegre), 1º Cabo Antónoo Ribeiro Machado Sousa (Mato, Ataíde), Sold Artur Rodrigues Alves (Sabuzedo, Mourilhe), Sold João Pimentel Fernandes (Boi Morto, Oriz, São Miguel), Sold José Coelho do Nascimento (Cepelos)…

O Abel Rei fala em 7 mortos. A história da unidade fala em 10 mortos, algumas das mortes tendo provavelmente ocorrido já no hospital… Até na contabilidade das nossas baixas mortais na guerra colonail, há critérios divergentes…

O rol de desgraças não se fica por aqui: 

“(…) em Bissá, se não temos mortos, os vivos não têm que comer. Há mais de oito dias que não temos vinho, cerveja ou outros líquidos que se bebam”… Por seu turno, “o comer acabou: estando-se a comer, ora carne de vaca, ora bacalhau com pão e… água!” (p. 115/116). A 1 de Novembro de 1967, come-se peixe miúdo, “pescado nas poças da bolanha” (p. 117).

Em conlusão, Bissá “cá sabi”… A 11 de Novembro, o Abel regressa a Porto Gole, sendo rendido o seu Gr Comb. “Lá ficaram as piores recordaçõs e… um pedaço de cada um” (p. 118).


‘Apanhado pelo clima’

Com menos de 3 meses de Guiné, o autor interroga-se se não estará já “apanhado pelo clima” (25/4/67, p. 75). Os fantasmas do álcool voltam a aparecer no seu diário: “ de há uns dias para cá, tem sido bebedeira certa; não sendo ninguém prejudicado com isso, talvez só eu!”…

A 30 de Março de 1967, o Abel comemorado, como devia ser, o seu 22º aniversário de nascimento: “À noite, e depois de várias misturas, emborrachei-me” (…) (p. 59).

Porto Gole não tem ainda electricidade: em 4/4/67, o Abel passa a ficar encarregue da manutenção e reparação dos ‘petromaxes’ em serviço na tabanca. Como se não bastasse já a ‘chatice’ de ser cabo, passa também a desempenhar as funções de ‘vagomestre’ (competindo-lhe adquirir e distribuir os géneros no rancho) (12/4/67).

Não esconde a conflitualidade entre camaradas, em especial dentro da sua secção, com destaque para o relacionamento com o seu furriel: 

“Quem nos obriga a andar cá, não olha às ‘qualidades’ dos que comandam, e somos nós os que sofremos consequências. Esse meu registo, gostaria um dia passar uma ‘esponja’ sobre tudo isto!” (9/4/67, p. 65).

Em Bissá, as relações com o seu alferes, um antigo seminarista, também foram tensas: é obrigado a trabalhar de pá e pica, sob um sol escaldante (15/5/1967, Bissá, pp. 85/86).

(Continua)
____________

Nota de L.G.:

(*) 12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

Capa do livro de Abel Rei, ex-1º Cabo da CART 1661 (Fá, Enxalé, Porto Gole, 1967/68).

Contra capa do livro, com selos da Guiné da época colonial...

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CART 1661 1967/68) > Desembarque de tropas, na praia de Porto Gole.

Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados


Abel de Jesus Carreira Rei – Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 196/1968. Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira. Edição de autor. 2002. 171 pp. (Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002).

Notas de leitura > I Parte (*)
por Luís Graça

“Esta é a história verdadeira que eu escrevi; não a história que eu gostaria de escrever”, alerta-nos o autor à guisa de preâmbulo. 

Pessoalmente, confidenciou-me que foi também a história possível. Conheci o autor por ocasião do nosso IV Encontro Nacional, na Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, no passado dia 20 de Junho.

O livro é a transposição do seu diário, ou das notas que diariamente ia passando para o papel, durante a sua comissão de serviço na Guiné. Diz-me que é o livro possível porque, pelo meio, havia a figura da PIDE, que ele nunca cita, e de cuja existência nem sequer se suspeita, mas que se sabia ser poderosa e omnipresente, levando à autocensura (tanto dos aerogramas como dos próprios diários que alguns de nós, secretamente, iam escrevinhando)…

Por outro lado, há notas de rodapé, retiradas da História da Unidade, a CART 1661, a que o autor só teve acesso em 1995, através de um exemplar que lhe foi facultado por um camarada açoriano.

E quem é o autor ?

Abel Rei nasceu ainda durante a II Guerra Mundial, em 30 de Março de 1945, na freguesia de Maceira, concelho de Leiria. O pai era operário vidreiro. A família mudou-se para o concelho da Marinha Grande, O Abel começou a trabalhar bem cedo numa mercearia local, mal acabada a escola primária, aos dez anos. Aos quinze era serralheiro civil.

É bem possível que, ainda antes da tropa, o Abel Rei, nascido e criado em meio operário e, em princípio, politizado como o da Marinha Grande, tivesse já as suas dúvidas sobre a legitimidade e a viabilidade da guerra do ultramar/guerra colonial. No seu diário, porém, em nenhuma ocasião o dá a entender, a não ser quando confessa que não se despediu de ninguém, da família e dos amigos, tendo querido “sofrer sozinho: por não saber explicar o que vinha fazer, para onde, e porquê” (p. 22).

Mobilizado para a Guiné, serviu na CART 1661, que passou por Fá Mandinga, Enxalé, Bissá e Porto Gole. Partiu em 1 de Fevereiro de 1967 e regressou em 19 de Novembro de 1968. A companhia teve três comandantes: Cap Mil Art Luís Vassalo Namorado Rosa, Alf Mil Art Fernando António de Sá e Cap Art Manuel Jorge Dias de Sousa Figueiredo.

Depois da tropa, o Abel voltou a estudar, tendo completado o Curso Geral de Mecânica da Escola Industrial.

Citando o prefácio do Ten Gen Ref Júlio Faria de Oliveira, presidente da Direcção Central da Liga dos Combatentes, “ainda bem que o antigo combatente Abel Rei escreveu esta história verdadeira, a qual, em minha opinião, é extremamente interessante e duvido que aquela, que ele gostaria de ter escrito, fosse ainda melhor” (p. 17).

Em geral, são notas diárias, de um, dois ou três parágrafos, que o Abel Rei foi redigindo num caderninho que sempre o acompanhava. A primeira tem a data de 1/2/67 (partida do T/T Uíge, do cais da Rocha Conde de Óbidos) e a última data de 19/11/68 (regresso à Metrópole, também no mesmo navio).

Ao todo, são 178 registos diários, em pouco mais de 21 meses de comissão, mais de metade das quais (53,4%) correspondem aos quatro primeiros meses (de Fevereiro a Maio de 1967). De Junho até ao final do ano, escreveu apenas, em média, 4 vezes por mês… No segundo ano (Jan-Nov 1968), o ritmo da escrita, certamente por cansaço, saturação ou quebra de disciplina, baixou ainda mais: um pouco mais de 3 registos por mês, embora mais extensos, ocupando 4 dezenas de páginas (de 126 a 166) (Vd. Gráfico a seguir).






A escrita é simples, chã, cingida aos factos do quotidiano ao autor, Abel Rei, 1º Cabo da CART 1661, 3º Grupo de Combate. O autor procura ser objectivo e assertivo. As notas de rodopé confirmam, a posteriori, a veracidade e a precisão dos seus apontamentos. Em geral, procura não emitir opiniões ou falar dos seus sentimentos. Há algumas excepções quando, por exemplo, explica a razão por que decidiu escrever um diário secreto:

(…) “Quando parti de casa, com a mochila às costas e uma mala vermelha com as minhas coisas, deslocando-me a pé para o comboio que me levaria a Lisboa, e ao passar o pinhal, donde ainda avistava o meu lugar onde cresci, olhei para trás e despedi-me do meu povoado, dizendo para comigo: até breve!

“Estas foram as despedidas possíveis, pois não tive coragem de dizer absolutamente nada a ninguém antes de partir. Quis sofrer sozinho: por não saber explicar o que vinha fazer, para onde, e porquê ?

“ Espero apagar a minha solidão, escrevendo o meu dia a dia enquanto Deus me der forças e saúde para tal”
(4/5/1967 – Navio Uíge, pp. 21/22).

É pena a edição do livro não ter tido revisão de texto. Para além de alguns erros de ortografia e gramática, a pontuação poderia e deveria ser corrigida e melhorada.


Um título enganador

O inferno? Seguramente, para o Abel e os seus camaradas, o inferno foi Porto Gole, Bissá, Enxalé, pela dureza das condições de vida, nos dias de paz e nos dias de guerra… Paraíso ? Não sei se o autor se refere à breve estadia, no início da comissão, em Fá Mandinga, onde a guerra só se antevia ou pressentia, ao longe… Há também momentos, de alguma felicidade, passados em Porto Gole, à beira rio, ajudando a esquecer as praias atlânticas da infância e da adolescência do autor (Praia da Vieira, São Pedro de Moel…).

A 7 de Fevereiro de 1967 o autor segue com os seus camaradas da CART 1661, a caminho de Fá (Mandinga), em LDG, rio Geba acima… até Bambadinca. Chegados na véspera a Bissau, os militares foram directamente transbordados para a LDG, sem terem posto um pé em terra firme.

O autor escreve que se levantaram às 3 da manhã. Chegaram a Bambadinca às 13h. Dali seguiram em coluna auto para Fá (Mandinga). Comeram a primeira refeição quente às 10h das noite. Parece, pois, poder concluir-se que a viagem da LGD, até Bambadinca, terá levado no mínimo 6 a 7 horas. No meu tempo (1969/71), já não tenho ideia das LDG subirem o Geba Estreito até Bambadinca. Em geral, ficavam no Xime, donde se seguia em coluna auto para as todas as principais localidades da zona leste (Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego, Piche, Contuboel, Galomaro, etc.).

Em (que tem "a melhor água da província") não se vê a guerra (de perto), mas “sonha-se com ela” (12/2/67).

Chega, entretanto, o primeiro correio da família e os primeiros jornais da terra (16/2/67). A 18, começa o treino operacional da CART 1661 cujos grupos de combate seguem para o Xime, onde está sediada a CCAÇ 1550 (subunidade que esteve em Farim e Xime, de 20/4/66 a 17/1/68).

Sobre a estrada Xime-Bambadinca, escreve o autor:

“O percurso é péssimo e perigoso. Costuma ser muitas vezes armadilhado com minas pelo inimigo, mesmo perto do quartel, contando-se já vários mortos e viaturas destruídas. O chão é picado cuidadosamente em todo o percurso e todos os dias” (20/2/67, p. 30). Aqui, no hall de entrada da Zona Leste, eis a guerra que já se sente ou pressente…

A 23/2/67, o Abel Rei tem o seu primeiro contacto com a guerra. A tabanca fula, em autodefesa, de Dembataco (minha velha conhecida…) tinha sido atacada e incendiadas algumas moranças. Há dois mortos entre a população: uma mulher e uma bajuda. O ataque foi repelido, apenas com mausers, que estavam distribuídas à população civil e às milícias (23/2/67).

A 24/2/67, o 3º Gr Comb, do Abel Rei, segue para a Enxalé, de LDM (Lancha de Desembarque Média). Está aqui aquartelada a CCAÇ 1439, madeirense (que passará por Xime, Bambadinca, Enxalé e Fá, durante a sua comissão, de 2/8/65 a 18/4/67). No dia seguinte, vai até Porto Gole, buscar “homens vindos de uma operação, que tinha começado oito dias antes, nas matas do Sará, e onde estiveram com mais companhias, batendo a zona, que é povoada de forte terrorismo” (sic)…

(É curioso, o autor nunca se refere explicitamente ao PAIGC, não usa sequer termos como guerrilha ou guerrilheiros, fala explicitamente em inimigo, elementos inimigos, turras, terroristas, de acordo com a designação da época, em que era comandante-chefe e governador geral da Guiné o Gen Arnaldo Schulz, um militar que não estava preparado para a guerra de guerrilha, dando primazia à reconquista e controlo do território em vez da luta político-militar e a acção psicossocial junto das populações, sob duplo controlo ou vivendo em áreas que o PAIGC considerava como “libertadas”).

Ficamos a saber que nesta mata [de Sará] foi capturado “um importante hospital militar” (…), “composto do mais moderno equipamemnto, e duma variedade extraordinária de medicamentos” (25/2/67, p. 34).


O baptismo de fogo

Um mês depois, temos as primeiras referências à comida que se come na guerra: ”Comemos uma mal confeccionada refeição, de arroz com ervilhas e sardinhas de conversa, regada com o já célebre vinho baptizado” (Enxalé, 4/3/67)… Mas também à água, o precioso líquido que costuma ser bebido “com comprimidos e filtrado”… Desta vez, depois de uma duríssima operação de Porto Gole (partida às 3h da madrugada) a Bissá (chegada às 7h30) com a missão de comprar gado aos nativos, com regresso a Enxalé, às 16h:
“A água (…) bebeu-se por todos, sofregamente, sem olhar a limpeza e origem. Bebia-se todo o líquido que nos aparecia, quer nas poças do terreno, ou nos poucos cursos de água, fosse ele da cor que fosse!” (5/3/67, pp. 39/40).

De regresso a Fá (“a capital do sossego”), o 1º Cabo Abel Rei recebe o primeiro patacão, 613 pesos da Guiné, “menos cento e tal que o vencimento normal” (8/3/67, p. 42).

O dia 12 de Março de 1967 foi “histórico” para o Abel, dia “em que as ouvi cantar por cima da minha cabeça”… (‘As’ são as balas do inimigo)… Foi o seu baptismo de fogo, na região do Poindon, no âmbito da Op Granada, operação conjunta com a CART 1550… “As NT foram emboscadas duas vezes pelo IN, sem consequências” (p. 46).

Poindon (ou Poidon) tornou-se, no Sector L1 (Bambadinca), um nome mítico, para as tropas portugueses: era inevitável haver contacto com o IN sempre que se lá ia… Na época, ainda havia o destacamento de Ponta do Inglês, na Foz do Corubal, posteriormente abandonado (creio que em Novembro de 1968, já sob o consulado de Spínola, que tomaria posse, em 2 de Maio desse ano, do cargo de Com-Chefe e Governador-Geral).

Ao fim de mês e meio de Guiné, o Abel começa a queixar-se dos primeiros problemas de saúde: é-lhe extraída uma matacanha da sola do pé, “tendo sofrido intensas dores, ao ponto de trincar a boina” (14/3/67, p. 47). Três dias depois queixava-se dos intestinos e dos dentes. Fica a aguardar vez para uma consulta externa no Hospital Militar de Bissau… “Assim éramos enganados e mantidos como operacionais (…). Estas consultas não chegaram jamais a ser efectivadas” (…) (17/3/67, pp. 48/49). O Abel já ter que aprender a viver com as mazelas do corpo e da alma…


Op Guindaste, uma atribulada ida ao Buruntoni (Xime)

De 19 a 21 de Março de 1967, há uma detalhada referência a uma operação ao Buruntoni (e não Burontoni), a sul do Xime (pp. 49-53).

Eis o que diz, em resumo, a história da unidade: A 19, a companhia realiza, em conjunto com a CCAÇ 1550, a Op Guindaste na zona do Buruntoni. “Destruída uma casa de mato, feitos 8 mortos confirmados e capturado o seguinte armamento: 1 pistola-metralhadora PPHS, 1 pistola COSKA, 3 carregores vários, centenas de munições e outros materiais”… Regresso a Fá em 21…

Vejamos o que escreveu o 1º Cabo Abel Rei, no seu diário:

Era domingo de Ramos, o 19 de Março de 1967. O pessoal levantou-se cedo, tomou um “ligeiro pequeno almoço”, seguindo depois em viatura auto para Bambadinca e estrada do Xitole. Alguns quilómetros depois, seguiram a pé, “durante mais de duas horas”, até Dembataco, a aldeia atacada em 23/2/67. “Lá almoçámos ração de combate (…). O apetite era pouco, começando desde esse momento a ser alimentado a água” (p. 50).

À uma da tarde, as NT partem para o objectivo, “por intermináveis picadas da mata, sob um calor escaldante, com a sede e o cansaço a apertar” (….). Fazem uma paragem às 6h30, já noite. Pernoitam no local. Retomam, ao nascer do dia, a marcha para o Buruntoni, aonde chegam por volta das 11h. A água já se tinha acabado no dia anterior…

Às 11 e picos, há um contacto com “elementos inimigos, numa casa de mato” (…), “causando-lhes mortos (oito confirmados), e fugindo os restantes apavorados pela nossa chegada inesperada”... Foi capturado diverso material (incluindo “uma pistola metralhadora pesada e uma ligeira”).
Segue-se a descrição da retirada, a 20 de Março de 1967:

“Retirámos, deixando tudo em chamas, em passo acelerado, tendo alguns desmaiado, em parte devido ao calor, mas também por falta de água, contando-se entre eles o nosso capitão e um sargento.

“Quando tornámos a passar pelo riacho, que sabíamos existir, parecíamos que estávamos loucos, procurando a água com ânsia, mesmo com ela quase preta, do calcar dos pés. Lá estivemos mais de uma hora, para abalarmos depois, bastante mais frescos, a caminho de Dembataco, aonde chegámos às sete da noite”
(p. 51).

Nova corrida (“louca”) para o abastecimento de água e uma clara prova de solidariedade entre camaradas, para mais oriundos da mesma terra: “(…) eram sempre duas rações que tinha de arranjar, a minha e a do meu colega Saraiva, dos Moínhos de Carvide [, freguesia de Monte Redondo, concelho de Leiria], que vinha completamente abatido, e o qual ajudei nas últimas horas de marcha, amparando-o e trazendo o seu equipamento” (p. 51).

Na estrada Xitole-Bambadinca (provavelmente próximo do sítio onde mais tarde, em Maio de 1968, a CART 2339 do Torcato Mendonça e do Carlos Marques dos Santos irá erguer o campo fortificado de Mansambo, segundo a designaçºão do PAIGC), era esperado haver viaturas para levar o pessoal no regresso aos aquartelamentos, o que não aconteceu:

“Partimos aos tombos até Bambadinca, onde chegámos à meia-noite, e foram só os teimosos do meu grupo de combate, os outros lá ficaram a aguardar as viaturas”… Lá chegados, voltaram atrás, “a fazer segurança às viaturas, que iam buscar os nossos colegas, que entretanto se tinham posto a caminho por ser perigosa a sua permanência no local onde ficaram” (p. 52). Chegaram por fim a Bambadinca, já no dia seguinte, 22, à 1 da manhã…


Comentário do autor:

“Esta foi sem dúvida uma prova de resistência, superior às minhas capacidades, de que aguentei bem, muito embora na parte final tivesse que acabar estourado fisicamente, pois foram mais de dezassete horas consecutivas, em andamento sob um escaldante clima tropical, no qual vi cair homens mais fortes do que eu” (p. 52)…

Segundo o Abel Rei, não houve apoio aéreo, devido a problemas de transmissões, tornando por isso a Op Guindaste ainda mais penosa para as NT.


Fá, o repouso do guerreiro

De novo em , o autor saboreia o descanso do guerreiro:

“ (…) A ventoínha, mesmo por cima da minha cabeça, gira, dando voltas sem fim, refrescando o ambiente e alimentando-o de mosquitos. O tempo está fresco, lá fora o luar lembra, juntamente com o firmamento celeste, o nosso luar de Agosto: ah!, como saberia bem recordar uma chegada familiar, com as alfaias às costas, duma fresca e saudável campina” (23/3/67, p. 54).

Ficamos a saber que em Fá Mandinga há uma pequena biblioteca, e que o autor tem bons hábitos de leitura:

“Para melhor passar o tempo, levantei alguns livros da nossa pequena biblioteca – eu, além dum dicionário e um prontuário de Português, trouxe mais de uma dúzia de livros, os quais já devorei” (p. 54).

Durante a guerra, Fá Mandinga funcionou como uma espécie de Centro de Instrução Militar (foilá que se formou a 1ª Companhia de Comandos Africana, no meu tempo), a par de Contuboel e de Bolama, três localidades durante muito tempo poupadas pela guerra. Em Fá havia, antes do início guerra, uma estação de desenvolvimento agrário onde se dizia (ao que parece, erradamente) ter trabalhado o Eng. Agrónomo Amílcar Cabral.


Em Porto Gole, com saudades do mar

Dia 26 de Março de 1967, “domingo e Páscoa”, a CART 1661 parte para o Enxalé onde vai render a CCAÇ 1439 que terminava a sua comissão (2/8/65 – 18/4/67). Uma secção do 2º Gr Comb, a que pertence o Abel segue, por seu turno, para Porto Gole. Da guarnição faz parte também o Pel Caç Nat 54. O 3º Gr Comb ocupa, por sua vez, o destacamento de Missirá.

Em Porto Gole, o Abel tem a ilusão de reviver o mar da sua terra: “Pela noite, antes de me ir deitar, fui dar uma vista de olhos pela margem do Rio Geba, revivendo ilusoriamente o nosso já saudoso mar” (27/3/67, Porto Gole, p. 56). Um mês depois arranja coragem para tomar o seu primeiro banho no Rio Geba, matando “saudades do mar” (sic) (1/5/67, p. 78).

Há também pequenos apontamentos sobre o quotidiano da população local, balanta, que se dedica, com muita destreza, à recolha de crustáceos na margem do rio:

“As mulheres nativas, a poucos metros, apanham os chamados ‘cacres’ (espécie de caranguejos) (…), existentes nas margens lodosas. São aos milhares, e ao sentirem aproximar-se alguém, correm a refugiar-se , em buracos feitos por eles, e onde se abrigam das marés. As mulheres, de tanga, andam de um lado para o outro, enterradas em lama, quase até ao ventre, e enfiando as mãos no lodo até chegarem ao fundo dos buracos, agarrando-os, aos quais partem um membro e vão pondo em tigelas” (5/5/67, Porto Gole, pp. 80/81)…

Em Porto Gole, onde há alguma abundância de peixe, o autor terá ainda oportunidade de conhecer o fenómeno do macaréu no Rio Gebal, o qual “chega a virar pequenas embarcações de mercadorias, que os nativos movimentam ao longo do seu curso, e que, ao deslocar-se para a nascente, arrasta um enorme ruído das águas revoltas” (20/4/67, p. 75).

A 31 de Março, a CART 1661 actuou conjuntamente com a CCAÇ 1589, na Op Rorodes, na zona de Mantém. Houve contacto com o IN, mas não se registaram baixas. Regresso a 2 de Abril, também dramático, com homens esgotados e desidratados, transportados em maca…

“Desde que vou a operações, foi a primeira vez que eu fiquei exausto, sem forças nas pernas, e com a garganta seca! Como não podíamos mais, só nos restou esperar e aguardar, até que finalmente lá chegou uma viatura com água, que nos levou até Porto Gole, onde chegámos às duas da tarde” (p. 61)….

A CCAÇ 1589 pertencia ao BCAÇ 1894 (tendo passado, de 30/7/66 a 9/5/68, por Bissau, Fá, Nova Lamego, Fá, Madina do Boé, Bissau).

(Continua)
____________

Nota de L.G.:

(*) V d. último poste desta série > 2 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4766: Notas de leitura (13): "Os Anos da Guerra Colonial" e as suas incorrecções (António Dâmaso)

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4492: Memória dos lugares (30): Porto Gole, CART 1661 (1967/68) (José Nunes / Abel Rei)







Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Aqui, no estuário do Rio Geba, em 1456, chegou o primeiro português (e europeu), , o navegador Diogo Gomes

(i) Monumento construído pela CART 1661, c. 1968 > Na altura ficava em plena parada (vd. p. 170 do livro do Abel Rei, Entre o Paraíso e o Inferno; de Fá a Bissá...). Inscrição na base: "Para ti, soldado, o testemunho do teu esforço"... O secular hábito dos portugueses de deixar, pelo mundo, um 'marco' da sua presença ou passagem...

Foto: © Abel Rei (2009). Direitos reservados

(ii) Guiné-Bissau > Região do Oio > Porto Gole > Em 2005, quando por lá passou o Jorge Rosmaninho, o mesmo monumento estava todo coberto de capim; são visíveis, na parte de cima do monumento, os efeitos da erosão do tempo (ou da acção depredatória dos homens ?...), vendo-se já os ferros, descarnados, da estrutura que era (é) em cimento...

De qualquer modo, há um certo entendimento, hoje, na Guiné-Bissau, de que estes vestígios da presença portuguesa devem ser conservados, tendo algum interesse historiográfico, cultural, socioantropológico e até turístico, num país onde o património edificado pelos portugueses (tirando algumas praças históricas como Cacheu e Bolama) é muito pobre...

(iii) Guiné-Bissau > Região do Oio > Porto Gole > 2005 > Placa em bronze com o brazão da CART 1661 (Porto Gole, Enxalé, Bissá, 1967/68). Dizeres, inscritos na chapa: Coragem, Esperança.

Fotos (ii e iii) : © Jorge Rosmaninho, autor do blogue Africanidades (2009). Direitos reservados


1. Comentário de José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447, Brá, 1968/70:


Camarada, eu estive em Porto Gole em Março/Abril de 1968, nesse tempo o Comando ficava na Habitação existente, e servia de alojamento aos Oficiais e Sargentos. O restante pessoal ficava no celeiro e nos abrigos, construídos, e nos abarracamentos construídos junto da casa maior.

O monumento existente, evocativo da chegada dos Portugueses ao local , estava capinado e servia de referência a quem subia o Geba. Apopulação estava alinhada, formando uma rua até ao cruzamento da estrada que ía pra Mansoa e para Enxalé.

De frente para o Geba junto ao monumento, a pista ficava do lado direito; no esquerdo, no pequeno vale com laranjeiras e uma horta, ficava o poço onde nos abasteciamos de água.

Na altura a Companhia que lá estava tinha pessoal em Bissá e em Enxalé, salvo erro era uma Companhia de Artilharia. Já não recordo o seu número, mas sei que tinha um número considerável de baixas. Foi quando apareceram as primeiras minas incendiárias que fustigavam as colunas de reabastecimento a Bissá. Tnho algumas fotos lá tiradas com a malta, impecável.

Em Porto Gole foi onde vi a maior jibóia na Guiné, morta quando se ía buscar lenha pra fazer a comida. Foi aqui que tentaram envenenar toda a Companhia, deitando no poço toda o tipo de restos de vacas mortas, tripas, peles... O poço era tapado com tampo de madeira e na base do gargalo havia um buraco pra enfiar a mangueira da bomba, foi por aí que introduziram tudo, nas barbas de um posto de sentinela, mas pela horta era fácil.

As flagelações eram feitas do cruzamento, na altura foi construido aí um posto avançado,pra evitar as flagelações. Durante a minha estada nunca fomos atacados.

José Nunes
Beng 447
Brá, 68/70

2. Comentário de L.G.:

Zé Nunes, essa companhia era a CART 1661 (Fev 1967 / Nov 1968) que esteve em Fá Mandinga, Enxalé e Porto Gole... Segundo o diário do Abel Rei (que eu vou ter o prazer de conhecer pessoalmente no nosso próximo encontro, em 20 de Junho, na Ortigosa, Monte Real), em Março/Abril de 1968 ele estava em Porto Gole, embora parte do seu Grupo de Combate estivesse no Enxalé.

Em 8 de Abril de 1968, há o registo de um ataque a Porto Gole, durante 45 minutos, com armas ligeiras e pesadas, mas sem consequências, por um grupo IN estimado em 50 elementos (1 bigrupo). Já n~´ao devias estar lá, se não lembravas-te, de certeza... Nessa altura já havia gerador eléctrico e estava-se a construir um fortim, certamente a cargo do BENG 447... Também já havia pista de aviação... O destacamento de Bissá era frequentemente atacado. Zé: Não queres partilhar connosco essas fotos que tens de Porto Gole, um sítio mítico para todos nós, tugas ?

Tens razão, a CART 1661 teve manga de baixas: 17 mortos (12 por accionamento de minas) e 25 feridos, não se incluindo nestas nestas baixas as da Polícia Administrativa (6 mortos e 7 feridos) nem as do Pel Caç Nat 54 (5 mortos e feridos). (Fonte: Abel Rei, 2002).

________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 9 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4488: Tabanca Grande (151): Jorge Rosales, ex-Alf Mil, Porto Gole, 1964/66, grande amigo do Cap 2ª linha Abna Na Onça


Vd. também 13 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4023: Memória dos lugares (19): Porto Gole, 1966, muito antes das tristes valas comuns... (Henrique Matos)