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quarta-feira, 17 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19687: (De)Caras (128): Capitão de Infantaria Francisco Meireles, cmdt da CCAÇ 508, morto em Ponta Varela, Xime, em 3/6/1965 - V ( e última) Parte (Jorge Araújo)


Foto 1 – Bissorã (1964) - Grupo de militares da CCAÇ 508. [Foto do álbum de Cândido Paredes, com a devida vénia] in: http://lugardoreal.com/imaxe/candido-paredes-e-camaradas-6


Foto 2 – Bissorã (1964) - Grupo de militares da CCAÇ 508. [Foto do álbum de Cândido Paredes, com a devida vénia] in: http://lugardoreal.com/imaxe/candido-paredes-e-camaradas-5




 Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue desde março de 2018


A COMPANHIA DE CAÇADORES 508 [CCAÇ 508] - (1963-1965) E A MORTE DO SEU CMDT CAP INF FRANCISCO MEIRELLES EM 03JUN1965 NA PONTA VARELA: A ÚNICA BAIXA EM COMBATE DE UM CAPITÃO NO XIME -  V (e última) Parte


1.  INTRODUÇÃO

Depois das narrativas dos P19597, P19613, P19640 e P19656, eis a última na qual se respeitam as mesmas questões de partida. Na primeira daremos a conhecer o que foi possível recuperar da história da CCAÇ 508, identificando factos, feitos e consequências da sua vasta e importante missão operacional desenvolvida ao longo dos dois anos da sua presença no CTIG (1963-1965), entre 20Jul63 e 07Ago65, e dos dez locais diferentes onde a mesma teve lugar.

Para além dos documentos consultados e das informações orais transmitidas, via telefone, por alguns
dos elementos desta Unidade, contámos com o precioso recurso ao álbum do condutor auto rodas da "508", Cândido Paredes, actualmente a residir em Ponte de Lima, do qual apresentaremos abaixo mais algumas imagens, e a quem nos cumpre agradecer.

Na segunda, por uma feliz coincidência, ter encontrado, num alfarrabista de São João da Madeira, um livro sobre a vida e a morte do Capitão Francisco Xavier Pinheiro Torres de Meirelles (1938-1965), esta ocorrida no Xime, em 3 de Junho de 1965, 5.ª feira, local mítico e muito familiar durante a minha presença na Guiné e do contingente da minha CART 3494 (1972-1974), elaborado em sua memória pela sua família e que, segundo creio, foi editado no âmbito do primeiro aniversário da sua morte.
Daí que, nesta última narrativa, recuperaremos algumas das diferentes missões do Capitão FranciscoMeirelles, e da sua CCAÇ 508, durante os seus últimos três meses, desde a chegada a Bambadinca, em Março de 1965, até ao fatídico dia da sua morte. Seguir-se-ão as descrições de alguns factos e dos ambientes que os envolveram, que tiveram como corolário a atribuição do seu nome à toponímia da Cidade do Porto. 

A origem dessa decisão teve por contexto a reunião ordinária da Câmara Municipal do Porto, realizada em 20 de Julho de 1965, onde foi aprovada por unanimidade, em cerimónia pública, a proposta dirigida à Comissão de Toponímia de dar o nome do Capitão Meirelles a uma das ruas ou praças da Foz do Douro. 


2. SUBSÍDIOS HISTÓRICOS DA COMPANHIA DE CAÇADORES 508 (BISSORÃ, BARRO, BIGENE, OLOSSATO, BISSAU, QUINHAMEL, BAMBADINCA, GALOMARO, PONTA DO INGLÊS E XIME, 1963-1965)


Quadro cronológico da presença da CCAÇ 508 por localidades


2.1. SÍNTESE DOS PRIMEIROS DEZOITO MESES

A CCAÇ 508 chega a Bissau a 20Jul1963, sábado, a bordo do cargueiro "Sofala", sob o comando, interino, do Alferes Augusto Teixeira Cardoso, onde se juntou o Cap Mil Inf João Henriques de Almeida, o seu 1.º Cmdt. Cinco meses após o início do conflito armado na região de Tite, a CCAÇ 508 assumiu a responsabilidade do subsector de Bissorã, então criado, com GrComb destacados em Barro, até 23Dez63, e Bigene, até 26Dez63, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 507 e, após remodelação daqueles sectores, no BCAÇ 512. Em 26Dez63, passou a ter um GrComb destacado em Olossato.

Em meados de Julho de 1964, chega a esta Companhia Independente o Capitão Francisco Xavier Pinheiro Torres de Meirelles [1938-02-21/1965-06-03], em rendição do anterior Cmdt, Capitão João Almeida. Em 04Set64, 6.ª feira, já então na dependência do BART 645, e depois da chegada da CART 566, a CCAÇ 508 foi substituída no subsector de Bissorã pela CART 643, do antecedente ali colocada em reforço, tendo seguido para o sector de Bissau, a fim de se integrar no dispositivo de segurança e protecção das instalações e das populações da área, com um GrComb destacado em Quinhamel, ficando na dependência do BCAÇ 600.

No início de Março de 1965, com dezoito meses já contabilizados no tempo da sua comissão ultramarina, a Companhia do Capitão Francisco Meirelles foi de novo transferida para uma zona operacional.


2.2. SÍNTESE OPERACIONAL DO CAPITÃO MEIRELES DURANTE OS SEUS ÚLTIMOS TRÊS MESES

Recebida a ordem para uma nova actividade operacional, agora no Leste, a CCAÇ 508 deslocou-se em 07 e 23Mar65, por grupos, para Bambadinca, por troca com a CCAÇ 526, onde aí ficou instalado o Comando da Companhia, assumindo este a responsabilidade do respectivo subsector, com grupos de combate destacados em Xime e Galomaro e ficando integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 697, sediado em Fá Mandinga, sob o comando do TCor Mário Serra Dias da Costa Campos.

Porém, antes da sua chegada a Bambadinca, cujo sector passou a designar-se por «Sector L1» a partir de 11Jan65, o BCAÇ 697, para desenvolver a intensa actividade operacional, recorria às subunidades do sector e a outras que lhe eram atribuídas como reforço, pois era constituída somente por Comando e CCS.

Uma das primeiras acções planeadas pelo BCAÇ 697, do início de 1965, tinha por objectivo a ocupação seguida da instalação de um aquartelamento na Ponta do Inglês. Essa missão, baptizada de «Operação Farol», foi agendada para os dias 19 e 20Jan65, envolvendo forças da CCAÇ 526, CCAV 678 e Pel AMetr "Daimler" 809, onde, depois, ficou instalada a Companhia de Cavalaria para, a partir de 16Abr65, data em que foi criado o subsector do Xime, ficar reduzida a nível de grupo de combate.

Durante o decorrer desta operação, as NT foram emboscadas, no primeiro dia, pelos guerrilheiros do PAIGC, tendo este sofrido algumas baixas não estimadas e onde foi capturado algum material de guerra, nomeadamente granadas de mão e de RPG. No dia seguinte, forças da CCAÇ 526 e CCAV 678, durante a sua actividade de segurança à distância e por efeito de um reconhecimento na área da Ponta do Inglês-Buruntoni, destruíram um acampamento IN com 15 casas a cerca de 600 mts a sul da antiga tabanca da Ponta do Inglês, tendo capturado mais munições diversas, onde foram encontrados alguns abrigos no lado sul da Ponta do Inglês-Xime, no local da emboscada do dia anterior, onde foram destruídas mais duas casas, a leste da Ponta do Inglês.

Em 16Abr65, com a criação do novo subsector do Xime, a CCAÇ 508 seria substituída em Bambadinca pela CCAV 678 (que se encontrava na Ponta do Inglês), deslocando-se, então, para o Xime, onde assumiu a responsabilidade deste subsector, com GrComb destacados em Ponta do Inglês e Galomaro.

Em 20Abr65, quatro dias após a instalação do GrComb da CCAÇ 508 na Ponta do Inglês, um GrComb de Paraquedistas (CCP 121), durante a «Operação Coelho» na zona de Galo Corubal, destruiu 12 casas, abateu um guerrilheiro e fez dois prisioneiros. Forças da CCAÇ 510, vindas do Xitole, destruíram várias casas na região de Silibalde e apreenderam granadas de mão ofensivas e defensivas.

Uma semana depois, em 03Jun65, na estrada Xime-Ponta do Inglês, na região de Ponta Varela, a CCAÇ 508 tem mais quatro baixas em combate, sendo uma a do seu Cmdt, o Capitão Francisco Meirelles, por efeito do rebentamento de uma mina "bailarina".


Foto 3 – (Xime; 03JUN65). Estrada Xime-Ponta do Inglês. Início da operação onde se encontrava o Cap Meirelles [foto gentilmente cedida pelo Cor Morais da Silva].


Foto 4 – (Xime; 03JUN65). Forças da CCaç 508 na zona de Ponta Varela, onde se encontrava o Cap Meirelles [foto gentilmente cedida pelo Cor Morais da Silva].

Recordam-se alguns antecedentes que marcaram este fatídico dia 03Jun65, 5.ª feira.

O Capitão Francisco Meirelles fora incumbido de mostrar a uma equipa de enviados especiais da RTP à Guiné – Afonso Silva (operador) e Luís Miranda (realizador) – como se fazia a detecção de minas, muito frequentes naquela zona [Xime-Ponta Varela], pois em menos de três meses tinham sido levantadas mais de 40. Perto do meio-dia, a umas centenas de metros da tabanca de Ponta Varela, rebentou repentinamente uma mina ("bailarina") dando origem à morte do capitão Francisco Meirelles e de mais três militares da CCAÇ 508. Os operadores da RTP, que ficaram ilesos, começaram a filmar a cena poucos momentos após a explosão, havendo um documentário fotográfico da operação e das consequências do rebentamento. Parte dessa reportagem filmada foi transmitida pela RTP em 16 de Setembro desse ano, como, aliás, já foi referido em narrativas anteriores.

Na madrugada de 04Jun65, os corpos foram levados para Bafatá, onde ficaram sepultados o 1.º cabo [José Maria dos Santos Corbacho] e os soldados [Domingos João de Oliveira Cardoso e Braima Turé], e onde um avião foi buscar o corpo do Capitão Meirelles.

Trazido para Bissau, ficou depositado na capela militar de Santa Luzia. No dia seguinte, pelas 10 horas, houve missa de corpo presente, celebrada pelo Tenente-Capelão Padre Nazário, finda a qual o cortejo fúnebre dirigiu-se para a capelinha do cemitério onde o caixão permaneceu até ser removido para a Metrópole. Aqui chegou no vapor «Manuel Alfredo» na madrugada de 18Jul65, precisamente quando se perfazia um ano depois da partida para a Guiné (Op. Cit. pp10-11).


3.  O CAPITÃO FRANCISCO MEIRELLES TEM O SEU NOME NA TOPONÍMIA DA CIDADE DO PORTO, NA ZONA DA FOZ DO DOURO

Após a chegada do seu corpo a Lisboa, o Governador Militar de Lisboa, General Amadeu Buceta Martins quis tributar uma derradeira homenagem a quem foi seu dedicadíssimo ajudante e ordenou que lhe fossem prestadas honras fúnebres, nas quais se dignou tomar parte, assim como o Brigadeiro Couceiro Neto, 2.º Comandante do Governo Militar de Lisboa. Até à 1 hora da madrugada do dia 19, hora em que partiu para o Porto, houve turnos compostos por um oficial, um sargento e quatro praças. Antes, havia sido celebrada missa, às 14 horas, pelo capelão Padre José Maria Braula Reis (1922-), mandada dizer pela Direcção da Arma de Infantaria, e às 19 horas missa celebrada pelo Ver. Padre Júlio Marinho S. J., a pedido da família.

À uma da manhã seguiu, então, o corpo do Capitão Meirelles num armão do Exército, cedido pelo Quartel-General de Lisboa, em direcção ao Porto, onde na Igreja paroquial da Foz do Douro houve missa de corpo presente celebrada pelo Padre Fernando Leite S. J. que já presidira ao seu casamento. Lançou a absolvição final o pároco da Freguesia, Padre Manuel Dias da Costa, que também presidira à sua Profissão de Fé e que pronunciou algumas comovidas palavras ao ver na sua Igreja Paroquial, antes de baixar à sepultura, quem, tantas vezes e tão devotamente, a frequentava.

Tanto na Igreja, como no cemitério, estavam alguns milhares de pessoas, algumas em representação oficial de entidades públicas e privadas, e, entre elas, muitas das mais destacadas figuras da vida intelectual, social, militar e política da cidade.

À porta do cemitério do Prado do Repouso,
Foto 5 > Porto, cemitério do Prado Repouso
situado na zona oriental da cidade do Porto (foto 5; ao lado), uma companhia de atiradores deu as salvas do estilo e outra companhia prestou a guarda de honra. E juntos ao jazigo de seus Bisavós, ficou finalmente sepultado. […]

No dia 20 de Julho de 1965, a Câmara Municipal do Porto, na sua reunião ordinária, aprovou por unanimidade as intervenções que, a propósito do falecimento do Capitão Francisco Meirelles, foram proferidas respectivamente pela vereadora Senhora Dona Maria José Novais e pelo Senhor Presidente da Câmara.

Nesta sessão pública e no uso da palavra, a vereadora enalteceu a memória do saudoso e heroico Capitão Francisco Meirelles, por motivo da chegada do seu corpo à Cidade do Porto e dos ofícios fúnebres, traduzidos numa grandiosa manifestação de dor a que comovidos todos assistiram na Igreja paroquial de S. João Baptista da Foz do Douro, associando-se a autarquia à dor daquela família. Ao lembrar o Soldado Desconhecido, fez também questão de recordar com viva emoção, todos quantos deram a vida para dignificar a farda, a Pátria e a Família.

Acrescentando: 

"Hoje, pelo contrário, vamos relembrar todos os nossos Heróis, num oficial distinto, que viveu junto de nós [desde 1939, quando veio viver com os seus pais para o Largo de Cadouços, 37], que é portanto muito nosso, e de quem guardamos profunda saudade. O Alferes Francisco Xavier de Meirelles, serviu exemplarmente em Angola, durante dois anos, [com início logo após os acontecimentos de Fevereiro de 1961. Seguiu no primeiro avião com reforços da sua 66.ª Companhia
que, depois, foi a 5.ª de Caçadores Especiais do Regimento de Infantaria de Luanda. Depois de tomar parte na sua missão em Luanda e subúrbios foi enviado para Malanje, onde na zona algodoeira houvera um levantamento e onde a sua Companhia ficou adstrita ao Batalhão comandado pelo então Major Camilo Augusto de Miranda Rebocho Vaz (1920-1998). A 15Mar61 foi a sua Companhia retirada inesperadamente de Malanje e enviada para os Dembos, onde se tinham verificado actos de terrorismo. Durante alguns dias a coluna progrediu por Caxito, Quicabo, Nambuangongo e mais além. Instalado, depois, no Caxito o comando da Companhia, foi o seu pelotão destacado para a defesa de algumas localidades, onde esteve com intermitências, como sejam, Úcua, Mabubas, Tabi e Lifune, e mandado auxiliar a defesa de Ambriz, quando do grande ataque a essa povoação. Finda a comissão, regressou no vapor "UÍGE", tendo chegado a Lisboa em 29 de Março de 1963].

Foi promovido a tenente em 1 de Dezembro de 1962, sendo colocado, após o seu regresso ao Continente, na Região de Tomar. Promovido a capitão em 16 de Junho de 1964 foi novamente mobilizado, desta vez para a Guiné, para onde partiu com outros camaradas a 17 Julho de 1964, no barco de carga «António Carlos».


Continuou a vereadora: 

"Partiu, deixando sua mulher e dois filhinhos de tenra idade [dois rapazes; um nascido em Abril/1963, o outro em Junho/1964]. Foi nessas longínquas paragens, que soube morrer aos vinte e sete anos, depois de ter sido um magnífico exemplo das mais nobres virtudes morais e cristãs, a ponto de generosamente sacrificar o amor da própria família, que sempre subordinou aos altos interesses da Nação. […] Estas palavras são um apelo à Nação; um apelo a todos nós; para que respeitando tanto sacrifício saibamos honrar e merecer os nossos queridos mortos vivendo com dignidade o momento que passa".

Partindo dos considerandos supra, a vereadora apresentou uma proposta/pedido dirigido ao Presidente da Câmara solicitando "que a digna Comissão de Toponímia, promovesse no sentido de dar o nome do heroico Capitão Francisco Xavier Pinheiro Torres de Meirelles a uma das ruas ou praças da Foz do Douro, para que ficasse a perpetuar a lembrança dos seus actos de valentia".

A proposta foi aprovada por unanimidade, passando o «Largo de Cadouços» a chamar-se, a partir de 1966, «Largo do Capitão Pinheiro Torres de Meirelles», conforme se dá conta nas imagens abaixo.


Fotos 5 e 6 (Largo do Capitão Pinheiro Torres de Meirelles, Foz do Douro, em 18Mar2019, antigo

Largo do Cadouços) do camarada Virgílio Teixeira, na sequência do meu apelo formulado no P19597 (parte I, deste tema) a quem agradeço publicamente. 


F I M

Fontes consultadas:

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro I; 1.ª edição, Lisboa (2014); p195.

Capitão Francisco Xavier Pinheiro Torres Meirelles (s/d). Braga, Editora Pax.
 Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

16Abr2019.
_____________


Vd. postes anteriores:

1 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19640: (De)Caras (103): Capitão de Infantaria Francisco Meireles, cmdt da CCAÇ 508, morto em Ponta Varela, Xime, em 3/6/1965 - Parte III (Jorge Araújo)

1 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19640: (De)Caras (103): Capitão de Infantaria Francisco Meireles, cmdt da CCAÇ 508, morto em Ponta Varela, Xime, em 3/6/1965 - Parte III (Jorge Araújo)

18 de maro de 2019 > Guiné 61/74 - P19597: (De)Caras (101): Capitão de Infantaria Francisco Meireles, cmdt da CCAÇ 508, morto em Ponta Varela, Xime, em 3/6/1965 - Parte I (Jorge Araújo)

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19188: A galeria dos meus heróis (14): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – IV (e última) parte (Luís Graça)



Figueira da Foz >  "Placa da Rua Heróis do Ultramar na esquina com a Rua 10 de Agosto, em frente dos Bombeiros Voluntários"...  Foto de Joehawkins, datada de 24 outubro de 2016. Com a devida vénia... Fonte: Wikimedia Commons (2018)

 [Placas como esta abundam pelo país fora, são do início dos anos 60, quando começou a guerra colonial / guerra do ultramar em Angola, e era preciso homenagear os bravos que por lá se batiam, em condições adversas... A guerra depois banalizou-se, estendendo-se à Guiné e a Moçambique.. E os heróis foram ficando para trás... Esquecidos. Como em todas as guerras.. LG]




Luís Graça, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12,
junho de 1969
A Galeria dos Meus Heróis (14): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – IV (e última) Parte  (Luís Graça) (*)



[Continuação...

Sinopse das Partes I, II e III:

Belmiro Mateus, advogado, que não fez o serviço militar obrigatório, e António Mota, ex-seminarista, professor de história, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, numa das companhias da "nova força africana" do Spínola, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures no Ribatejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, numa LFG, entre 1973 e 1974. A conversa prossegue num bar a 500 metros do cemitério, incidindo nomeamente sobre o passado dos três amigos e condiscípulos, a infância, a terra, a tropa, a guerra colonial, o 25 de Abril, mas também o fado, a morte, Deus, a fé...]




O Belmiro deu um abraço emocionado ao Tony depois do seu relato da cena da morte do puto da Simonov.

− Tony, é a primeira vez, nestes anos todos, que ouço alguém contar-me uma cena de guerra na primeira pessoa do singular!... Mas guerra é guerra, como é costume dizer-se. E, numa situação de combate, reage-se por reflexos, por instinto de sobrevivência. Foste também treinado para isso. E eu não faria melhor do que tu, se estivesse no teu lugar. Atirava a matar, sem apelo nem agravo.

− Mas era um puto, Belmiro!


− Afinal, com a idade de alguns dos teus soldados que também foram mortos em combate. E alguns, pelo que me contaste, também foram fuzilados, fria e barbaramente, a seguir à independência.

− É verdade... mas sabes o que ainda hoje, ao fim destes anos todos, me perturba, e às vezes me tira o sono ?

− Sim?!...

− É que
aquele (o golpe de mão sobre a aldeia, ou tabanca em crioulo, ) não era o objetivo da operação... A missão era localizar e destruir uma "barraca" (um acampamento temporário) da guerrilha, a sul de uma base no Morés, Sara Sarauol, no centro do país... Não sei se estás a ver o mapa da Guiné...

− Para mim, é chinês, mas continua...

− A operação foi mal planeada e pior conduzida, pelo major de operações, a partir de uma avioneta (que funcionava como PCV , quer dizer Posto de Comando Volante)... Com a história dos mísseis Strela, de que te já te falei, as aeronaves tinham que passar a voar alto ou, então, caso dos helicópteros, a rasar a copa das árvores… Houve uma falha (e já não era a primeira vez) nas comunicações terra-ar. Ficámos por nossa conta, com um guia que conhecia mal o terreno... Por azar, e já no regresso, deparámos com aquele pequeno núcleo populacional, desarmado ou mal armado...

− Mas houve resistência!?...

− Fraca, a população deu conta da presença tropa e começou logo a debandar ainda antes dos primeiros tiros... 'Tuga, tuga!'... O puto da Simonov deve ter ficado para trás... com mais alguns homens válidos... que deviam ser milícias (eles também tinham milícias). Depois, como deves imaginar, não tive mãos nos meus homens, fizeram o que tinham a fazer... Nós, e mais outro grupo de combate que fizemos o golpe de mão, com o resto da nossa companhia a cercar parte do objetivo, retirámos rapidamente... deixando atrás alguns mortos da população e as palhotas a arder... Apanhámos o que pudemos: algumas mulheres, crianças e velhos, e armas ligeiras que deviam estar entregues ao chefe da tabanca para autodefesa... O regresso foi um sufoco, com apoio de helicanhão... e de uma "formiga" de um  T6 a dez mil pés de altura, três quilómetros ou coisa assim...


Os dois amigos desciam agora, em silêncio, a rua do Colete Encarnado que ia desembocar ao centro da vila. O António tinha o carro no parque de estacionamento fora do centro histórico, no sentido contrário do cemitério (que ficava a norte). Ainda ia jantar com o filho, mais novo, que estudava em Lisboa.

Passaram pela antiga casa, solarenga, da família do Zé Nuno, agora transformada em biblioteca municipal e centro cultural. Mas já tinham passado, na parte alta, pela antiga casa dos avós e dos pais do António, uma casa modesta, de piso térreo, agora restaurada. Tinha sido comprada há uns anos por um casal de emigrantes que vivia no Luxemburgo. 

− Gente da terra, trabalhadora... − esclareceu o Belmiro.

O Tony já não tinha mais raízes, na vila, a não ser memórias, depois da venda, há largos anos,  da casa onde nascera, e que fora erguida pelo avô, campino de uma casa agrícola da região. A avó era avieira, nascida na Praia da Vieira, tendo vindo com os pais para a faina da pesca no Tejo, no tempo da miséria. Por seu turno, o seu irmão mais novo também tinha morrido cedo. Em suma, já não tinha família por aqueles lados, e os seus filhos nunca chegaram a fazer lá amizades, eram os dois nados e criados no Alentejo.

− Belmiro, és aqui o meu último amigo e irmão... Quero ver se,  no Dia de Todos os Santos, daqui a seis meses, volto cá para pôr uma flor na campa dos meus velhotes, os meus pais e os meus avós. Combinamos uma almoçarada no Afonso, se tiveres disponível...


− Ainda é aquele que faz a melhor sopa de bacalhau dos campinos, de todos os restaurantes da vila... Mas também pode ser um peixinho do rio...

A antiga rua do Colete Encarnado tinha sido rebatizada, depois do 25 de Abril... Era agora a rua das Forças Armadas...

− Que raio de nome! É homenagem a quê ou a quem ? Foram as Forças Armadas que fizeram o 25 de Abril ?

− Mas também fizeram o 28 de Maio... e o 10 de Outubro... − ironizou o Belmiro.

O Tony também concordava com a opinião do amigo, que vivia na terra e que conhecia melhor do que ninguém as misérias e grandezas  da vida local. De facto, parecia que, aqui como em todo o lado,  as comissões de toponímica municipais eram uma cambada de burocratas que iam atrás das agendas partidárias, eram ignorantes da história local e nacional e sobretudo revelavam  uma miserável insensibilidade sociocultural…

− Limparam as ruas todos, becos, travessas, praças, pracetas… Ficámos amnésicos, Tony. Perdemos a memória da nossa história local. Até o Beco do Quebra-Costas  tem agora o nome de um professor qualquer de Lisboa que era antifascista, e que nunca cá pôs os pés nesta terra...

− Santa incultura geral, Belmiro… Uma tristeza!...


O antigo Solar do Marquês de Marialva, um belo edifício do início do séc. XX, exemplar interessantíssimo da arquitetura regional, e de que o Zé Nuno tanto gostava, acabaria, há uns dez anos atrás, por ser vítima do impiedoso e cego camartelo camarário.

− Sem dó nem piedade! − lamentou o Belmiro. − Nem sequer classificaram o edifício. Hoje é um complexo de apartamentos de luxo, propriedade de gente que nem sequer é da terra. Estão a gentrificar a nossa terra, Tony!

Ainda pararam para beber uma bica, no café que o Zé Nuno gostava de frequentar, e onde costumava parar a malta do grupo de forcados, agora em decadência. E a conversa voltou de novo à tropa e à guerra:

− Costumo dizer, Belmiro, que a Guiné foi a rifa que me saiu em sorte... Só não ganho o raio do Euromilhões!... Mas, pensando bem, não me posso queixar. Pelo menos estou vivo. Podia ter dito que não... Mas será que tinha condições para decidir em consciência ? Para mais, face a um Estado autoritário e repressivo como o nosso, na altura ?

− Não, não tinhas alternativa. A deserção era, e é, um crime grave. Ponho-me no teu lugar, eras o indivíduo, só, desamparado, contra o Estado, todo poderoso.

− Foi a rifa que me saiu na história. Como sabes, na história não há "ses"!... Ah!, se eu tivesse nascido dez anos antes, ou dez anos depois!... Não me posso queixar, ou não me adianta, não posso alterar agora o curso da história, da minha e a dos outros…

− Tony, há muitas formas de heroísmo, não é só na frente de batalha... Mas os desertores, em geral, nunca são tratados como heróis...

− Temos sempre dificuldade em abordar o problema dos refractários e dos desertores... Sobretudo destes últimos, que afinal foram em número ínfimo, tanto quanto sei. Já os refractários podemos falar em um quinto dos homens em idade militar. Quer dizer, da malta da nossa escola, um em cada cinco cavou para o estrangeiro antes da sua convocação entre os 18 e os 20 anos.

− Refratários... ou faltosos ? Tenho ideia, como jurista, que há uma diferença semântica e concetual... Mas não tinha  ideia desses números... 

− Não faço distinção: foram todos os que faltaram à tropa...

− Sim, Tony, a guerra era impopular... Apercebi-me disso quando entrei na universidade...

− Olha, eu acho que foi o salve-se quem puder − concluiu o Tony. − À boa maneira portuguesa. Somos uns safados... O Salazar deixou-nos uma batata quente que rebentou na boca do delfim mal amado, o Marcelo Caetano. Para lá do impasse militar e do desastre político, tínhamos um problema demográfico bicudo. Já não tens braços para segurar a G3 e ir fazer a guerra. Daí o crescente recurso à tropa de 2ª linha, se quiseres, os guineenses do recrutamento local (e nos outros territórios,os angolanos, os moçambicanos...).  Eram bons combatentes, e sobretudo mais baratos, mas não falavam português, pelo menos os guineenses… Como se poderiam sentir portugueses ? Nem sabiam onde ficava Portugal no mapa!...

− Sim, muito me contas, nunca tinha pensado nisso.

− O PAIGC tinha o mesmo problema… Estava exangue, conheci guerrilheiros em 1974 que só falavam francês... A guerra foi um modo de vida, para alguns, de um lado e do outro... Foi um modo de vida para alguns milicianos que se tornaram capitães... De aviário, como a gente dizia...

− Confesso, Tony, que na altura, a seguir ao 25 de Abril, queríamos era apressar o fim da guerra. A todo o custo, doesse a quem doesse, incluindo a tropa e os civis espalhados por Angola, Guiné e Moçambique. Era militar, política, diplomática e economicamente impossível prosseguir a guerra a partir de 1974. Ninguém estava mais disposto a perder três anos da sua vida, e muito menos a vida, por uma causa historicamente perdida… Há limites para o patriotismo...

− Sim, tu foste dos que gritaste "Nem mais um soldado para as colónias"... Estavas a ser coerente, embora eu não pudesse de maneira nenhum estar de acordo contigo nessa altura. Em agosto de 1974 eu passei momentos terríveis a tentar tranquilizar os meus soldados, antes de dissolver a companhia. Vi-me embora em setembro e eles, coitados, lá ficaram entregues à sua sorte... Com os ordenados pagos até ao fim do ano...


− Se calhar eu estava a ser também inconscientemente egoísta. Eu não queria apanhar com as sobras do Império, com os estilhaços do desmoronamento do Império... A conhecê-lo, a ir para a guerra, gostava de ter sido no seu apogeu, mas aí eu ainda não tinha nascido. Nem sei se o império chegou a ter algum momento de apogeu... Em boa verdade estava-me nas tintas para a sorte de quem ainda lá estava, como tu e o Zé Nuno, e mais milhares e milhares de soldados, metropolitanos e do recrutamento local, a par de centenas e centenas de milhares de civis, brancos, mestiços e negros, que temiam pelo seu futuro quando fosse arreada a bandeira portuguesa.

- Acredita, Belmiro, nem nós nem o PAIGC estávamos dispostos a voltar a combater... Ouvi eu da boca de alguns comissários políticos... Seria uma tragédia se as negociações entre os políticos tivessem falhado, em Londres e depois em Argel... Agora, não me perguntes se não teria havido outras soluções... Hoje é fácil brincarmos aos jogos de guerra... E não falta aí gente, nas redes sociais,  veteranos de guerra e outros, a destilar veneno contra o 25 de Abril e a descolonização. 

− Eu não teria moral nem muito menos imaginação para impor um outro fim ao nosso fim da história colonial... Mesmo que esse fim não me agradasse, como não me agradou... vistas hoje as coisas a esta distância.

− Todos ou quase todos concordam que, idealmente, as coisas poderiam ter tomado outro rumo. Sabemos como começa uma guerra, nunca saberemos como ela acaba... No caso de Angola, por exemplo, ela só acabou 40 anos depois e o balanço é aterrador, quase apocalíptico. Na Guiné, tirando os meus soldados fulas, toda a gente festejou o fim da guerra... 

- Tony, fomos todos joguetes nas mãos dos russos e americanos, da Nato e do Pacto de Varsóvia. Estávamos no auge da guerra fria e, cá dentro, à beira de uma guerra civil, no verão quente de 75.

− Eu não tenho a mesma perceção… Seria impossível ter uma Cuba às portas da Europa, ou melhor, em plena Europa. Para mais, num país da NATO… O Salazar tinha isto bem armadilhado. E a Espanha do Franco ainda ponderou intervir, ao que parece, para evitar o risco de contágio.  Os nossos revolucionários eram de opereta. As nossas revoluções foram sempre de opereta, desde a restauração, em 1640.

− "Revolução dos cravos"?!... − exclamou, em tom de ironia, o Belmiro.− Mas, olha, também eu, maoista,  fui na onda do papão do social-fascismo... Como eu gostava então do palavrão!... Mas no 25 de Novembro eu estava ao lado do Eanes e do grande  educador da classe operária, o Arnaldo de Matos...

− Fomos todos ingénuos, mas bem ou mal escrevemos o nosso capítulo da história. Eu, por mim, procuro tranquilizar a minha consciência do seguinte modo: fui para a guerra, não desertei, queria continuar ter o direito de viver no meu país, fiz a guerra, na esperança de que os políticos do meu país encontrassem, a tempo,  uma solução (política) para ela...

− Daqui a 10 anos estamos a debater o 1º centenário do Estado Novo. E, se calhar, os portugueses vão confirmar o Salazar como o estadista português mais importante do séc. XX.

− Espero bem que não... Mas a verdade é que ainda hoje o seu fantasma paira pelas nossas cabeças, tal como o do Marquês de Pombal, mesmo quando os mais novos já não sabem sequer quem foram esses homens... O Salazar esteve em cena quase 50 anos, atravessando terríveis períodos do nosso tempo, da crise de 1929 à Guerra Civil de Espanha, da II Guerra Mundial à guerra colonial…

− Foi o pai da Pátria, o que nos livrou da II Guerra Mundial, como dizia o meu pai lá em casa. E, na verdade, foi, quer gostes ou não.

−... Eu, acho, Belmiro, que ainda não o matámos nem o enterrámos de vez.

E foi com esta conversa melancólica que os dois amigos se despediram. Pela última vez… Passados uns meses, o Tony morreria num brutal acidente de automóvel na A2, quando regressava de Lisboa, a caminho do seu monte no Baixo Alentejo. Nunca se soube a causa de morte, por vontade da viúva e dos dois filhos... 


Ao Belmiro, que ainda tentou, em vão, obter uma cópia do relatório da autópsia, chegaram versões contraditórias: sono, AVC, morte súbita, suicídio ?!... Parece que o veículo, que circulava na faixa direita, foi bater de lado nos rails de proteção, e andou dezenas e dezenas de metros descontrolado, a varrer as faixas de um lado ao outro... Felizmente não havia mais carros a essa hora, da noite... O Tony terá tido morte imediata.

O Belmiro inclina-se mais para a hipótese de acidente por despiste, devido a cansaço e  a sono... O Tony amava demais a vida e a família e o Alentejo, nunca lhe falara em suicídio...

O corpo, depois de libertado, foi cremado. As cinzas repousam agora junto à "oliveira da paz", que o Tony replantara no seu monte, vinda do Alqueva... Era centenária. Os filhos e a viúva cumpriram assim a sua última vontade, mas só em parte: ele deixara escrito que as suas cinzas deveriam ser espalhadas por três sítios que ele amou: a sua terra natal, o monte no Alentejo e "o rio Geba, cuja água ele bebera"... Em alternativa, lançaram parte das cinzas no Cais da Rocha Conde Óbidos numa cerimónia restrita, apenas com a família mais próxima e alguns amigos íntimos. Dali tinham partido, de barco, centenas e centenas de milhares de soldados para as guerras coloniais (Índia, Angola, Guiné, Moçambique)...O gesto era simbólico: o Tony já foi e veio nos TAM - Transportes Aéreos Militares.

O Belmiro ainda chegou a abordar o presidente da Comissão de Toponímia Municipal, um jovem arquiteto, vereador da câmara municipal, membro influente de um dos partidos do arco do poder quanto à hipótese de ser dado o nome do dr. António Mota a um novo arruamento a abrir em breve (ou equipamento escolar a inaugurar no futuro), nos arredores da vila, já na zona extra-muros. A resposta não podia ser mais desencorajante:

− Caro doutor, como sabe tão bem como eu, a comissão é meramente consultiva, dá pareceres, quem atribui os nomes é a Assembleia Municipal... Faça-me uma proposta, fundamentada, por escrito, mas vai ser difícil...

− Difícil ?...− interrompeu o dr. Belmiro Mateus.

− O dr. António Mota era nosso conterrâneo, e depois ?... Fez a guerra do ultramar, mas não foi reconhecido como herói. Tem uma cruz de guerra, a Torre e Espada, ou coisa parecida ? Não tem. Tem alguma comenda ? Não tem... Como sabe, temos muitos candidatos e poucos novos arruamentos ou equipamentos para homenagear os nossos conterrâneos ilustres... E depois a guerra do ultramar, felizmente,  já está esquecida, é uma coisa do século passado... Já temos, por outro lado, uma rua dos Heróis do Ultramar, construímos há dois ou três anos um monumento aos combatentes do ultramar, e no nosso cemitério há um talhão da Liga dos Combatentes... Acho que a nossa terra já fez o que tinha a fazer pelos nossos bravos antepassados que andaram, e alguns morreram, na I Grande Guerra e na Guerra do Ultramar...

O dr. Belmiro Mateus estava quase a explodir de raiva, mas conteve-se... Percebeu onde é que o jotinha queria chegar: o António Mota era um "outsider", um desalinhado, não fazia parte do sistema, "não comia na mesma gamela", nunca tinha sido autarca, presidente de junta de freguesia, presidente da câmara, presidente da Assembleia Municipal, vereador, dirigente partidário, deputado, não chegara sequer a general, nem muito menos era um herói... Por que raio é que deveria ter um nome de rua na sua terra ?! Ele, o Zé Nuno e tantos outros conterrâneos, centenas, anónimos, que afinal foram os coveiros do Império ?!...


Luís Graça
Lourinhã, 11/11/2018, 5h00

[Costuma-se prevenir o leitor de textos 'literários´como este, de que qualquer semelhança destas histórias com a realidade é pura coincidência. Por razões éticas e legais de proteção de dados, os nomes aqui referidos são fictícios, exceto os dos países, os dos lugares públicos e os das figuras públicas. Todos os factos aqui narrados  inspiram-se em factos que aconteceram ou podiam ter acontecido. Uns vividos pelo autor, outros partilhados por camaradas e amigos da Guiné... Se no final tu, leitor,  te sentires desconfortável, peço-te que voltes para a cama e continues a dormir, descansado, como eu faço: afinal a guerra colonial nunca existiu, foi apenas um pesadelo, para alguns, como nós, ex-combatentes. Boa dia, boa tarde ou boa noite, conforme a hora e o lugar em que me estiveres a ler.]

____________

Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

6 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19171. A galeria dos meus heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)

(...) − Meu caro Belmiro, dá-me cá um valente quebra-costelas, como se diz lá em baixo no meu Além... Tejo!

− E tu, como vais, meu velho ? – respondeu efusivamente o Belmiro, ao abraço apertado e prolongado do António, Tony para os amigos.

− Cá vamos andando, menos mal!...Velhos, carecas e gordos! – replicou o Tony.

− Cá vamos andando, como dizem os mouros cá de cima, de Riba... Tejo. (...)


7 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19174. A galeria dos meus heróis (12): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte II Luís Graça)

(...) − O Zé!... Éramos vizinhos da Rua do Colete Encarnado, na encosta do castelo, eu na parte de cima, a dos pobres, e ele, na parte de baixo, a dos ricos… As nossas famílias não eram chegadas, naturalmente, não conviviam. Os teres e os haveres aproximam as pessoas, a pobreza, mesmo honrada, afasta-as. O pai dele era um senhor lavrador, um agrário, o meu, um serralheiro, pequeno patrão, que mal ganhava para ele e o seu moço ajudante. Enfim, encontravam-se na missa, ao domingo. (...)

8 de novembro de  2018 > Guiné 61/74 - P19175: A galeria dos meus heróis (13): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte III Luís Graça)

(...) E, prosseguindo a sua linha de pensamento sobre o seu passado, quando estudante, justificou-se o Belmiro:

− Aos vinte anos, somos todos revolucionários quando há que fazer revoluções… No passado,à direita e à esquerda, os revolucionários chamavam-se fascistas, comunistas, anarquistas, porque era preciso destruir a burguesia e o Estado capitalista, na Europa nos anos 20 e 30 do séc. XX. Hoje não temos a mesma urgência em mudar as coisas, tal como acontecia em Portugal em 1973, o ano em que nada podia continuar como dantes: tínhamos a escalada da guerra colonial, a ditadura em banho maria, a crise petrolífera, o esgotamento do nosso modelo de desenvolvimento, a emigração em massa, a democratização do ensino… Andávamos em agitação permanente, pelo menos na universidade, em Lisboa, Porto e Coimbra, achávamos que tínhamos que começar a mudar as coisas pela veemência e a urgência da palavra… (...)

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18930: Toponímia de Lisboa: em dez nomes de "heróis do ultramar", consagrados nas ruas da capital no tempo do Estado Novo, em Olivais Velho, Benfica e Alcântara, 7 são de militares falecidos na Guiné e os restantes em Angola


Ilustração: Toponímia de Lisboa (2017) (com a devida vénia)

1. Toponímia de Lisboa é um blogue do Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa – Núcleo de Toponímia, que se publica desde novembro de 2012. Nele fomos encontrar um artigo interessante sobre ruas, em Lisboa, com os nomes de "dez heróis do Ultramar", 3 falecidos em Angola e 7 na Guiné. [Contacto: toponimia@cm-lisboa.pt].

Com a devida vénia reproduzimos um extenso excerto desse poste:

Toponímia de Lisboa > 23 de Fevereiro de 2017 > Dez Heróis do Ultramar em Olivais Velho, Benfica e Alcântara

 Dez anos após o início da Guerra Colonial, a edilidade lisboeta colocou através de um único Edital (22 de junho de 1971), de acordo com a legenda, dez «Heróis do Ultramar» em Olivais Velho, Benfica e Alcântara, «falecidos no Ultramar, em combate ao terrorismo», conforme se lê no despacho do Presidente da Câmara de então, Engº Santos e Castro.

Este procedimento está justificado na Ata da reunião da Comissão Consultiva Municipal de Toponímia de 16 de junho de 1971 da seguinte forma:

 «Despacho de Sua Excelência o Presidente, solicitando parecer sobre a consagração na toponímia de Lisboa, dos nomes dos seguintes militares falecidos no Ultramar, em combate ao terrorismo : major aviador Figueiredo Rodrigues, alferes Mota da Costa, Carvalho Pereira e Santos Sasso, furriel Galrão Nogueira, soldados Rosa Guimarães, Santos Pereira e Purificação Chaves e marinheiros Correia Gomes e Manuel Viana. Considerando justificar-se plenamente uma homenagem à memória de tão heróicos militares e, tendo em vista a circunstância de os soldados e marinheiros não terem patente, a Comissão emite parecer favorável à consagração dos seus nomes».

[Olivais Velho:]

Os seis topónimos fixados em Olivais Velho foram:
  •  a Rua Alferes Mota da Costa/Herói de Ultramar/1937 – 1961,
  •  o Largo Américo Rosa Guimarães/Herói de Ultramar/1945 – 1967, 
  •  a Rua Furriel Galrão Nogueira/Herói de Ultramar/ 1941 – 1965, 
  • a Rua Alferes Carvalho Pereira/Herói de Ultramar/1941 – 1966, 
  • a Rua Alferes Santos Sasso/Herói do Ultramar/1941 – 1965 
  • e a Rua Major Figueiredo Rodrigues/Herói de Ultramar/ 1939 – 1969.

Manuel Jorge Mota da Costa (Porto – freg. Cedofeita/14.05.1937 – 14.05.1961/Angola), alferes paraquedista da 1.ª Companhia de Caçadores Paraquedistas do Batalhão de Caçadores 21 em Angola onde chegou a 17 de abril de 1961 e onde faleceu menos de um mês depois no Bungo, aos 24 anos, condecorado a título póstumo com a Medalha de Prata de Valor Militar com palma, ficou no Impasse 1 do Plano de Urbanização de Olivais Velho. 

O soldado Américo Rosa Guimarães (Oeiras/21.09.1945 -05.10.1967/Angola), condecorado postumamente com a Medalha de Cobre de Valor Militar com palma, também faleceu em Angola, aos 22 anos, e foi fixado no Impasse 2 do Plano de Urbanização de Olivais Velho.

Os outros quatro militares fixados em Olivais Velho faleceram na Guiné. 

O Furriel [Silvério] Galrão Nogueira (1941 – 1965/Guiné), falecido aos 24 anos, foi perpetuado no Impasse B do Plano de Urbanização de Olivais Velho. 

Ao alferes miliciano de Infantaria José Alberto de Carvalho Pereira (Lisboa/13.02.1941 – 12.03.1966/Guiné), falecido aos 25 anos e condecorado a título póstumo com a Medalha de Cruz de Guerra de 3ª classe, coube-lhe o Impasse 3 do Plano de Urbanização de Olivais Velho. 

 O também alferes miliciano de Infantaria Mário Henrique dos Santos Sasso (Lisboa – freg. de Stª Engrácia/14.12.1941 – 05.12.1965/Guiné), da Companhia de Caçadores n.º 728, condecorado com a medalha de Cruz de Guerra de 3ª classe a 2 de julho de 1965 e falecido aos 23 anos, ficou no Impasse 3′ do Plano de Urbanização de Olivais Velho. 

E por último, o major piloto aviador António de Figueiredo Rodrigues (Penalva do Castelo/01.01.1939 – 12.07.1969/Guiné) , falecido aos 30 anos, foi colocado na Rua A do Plano de Urbanização de Olivais Velho.

[Benfica:]

Em Benfica, homenagearam-se 3 militares falecidos na Guiné nos anos de 1964 e 1965, com a Rua José dos Santos Pereira/Herói do Ultramar/ 1943 – 1964, a Rua José da Purificação Chaves/Herói do Ultramar/1942 – 1964 e a Rua Manuel Correia Gomes/ Herói do Ultramar/1936 – 1965.

O soldado José dos Santos Pereira (Torres Vedras – A-dos-Cunhados/19.09.1943 – 15.12.1964/Guiné) faleceu aos 21 anos e foi condecorado, a título póstumo, com a Medalha da Cruz de Guerra de 2ª classe, tendo sido perpetuado na Rua C, à Estrada do Calhariz de Benfica (Quinta de Santa Teresinha). 

O soldado condutor Francisco José da Purificação Chaves (Loures/08.08.1942 – 24.01.1964/Guiné), falecido aos 21 anos na Ilha do Como e condecorado a título póstumo com a Medalha de Cruz de Guerra de 1ª Classe, ficou no Impasse I à Estrada do Calhariz de Benfica. 

O marinheiro fuzileiro especial Manuel Correia Gomes (Vila Verde-Turiz/15.02.1936 – 14.03.1965/Guiné), falecido aos 29 anos e condecorado a título póstumo com a Medalha de Cruz de Guerra de 2ª classe, foi fixado no arruamento de acesso entre a Estrada do Calhariz de Benfica e o arruamento paralelo ao caminho de ferro (Quinta de Santa Teresinha).

Também encontramos a Rua José dos Santos Pereira, em Maceira, no Concelho de Torres Vedras, de onde este soldado era natural, bem como a Rua Francisco José Purificação Chaves em Loures, concelho de nascimento do soldado.

[Alcântara:]

Finalmente, em Alcântara ficou a Rua Manuel Maria Viana/Herói de Ultramar/1944 – 1968, na Rua A à Travessa da Galé, também conhecida por Rua A à Avenida da Índia. 

O marinheiro fuzileiro especial Manuel Maria Viana (Odemira – S. Teotónio/07.08.1944 – 16.08.1968/Angola), integrado no Destacamento n.º 2 de Fuzileiros Especiais faleceu aos 24 anos e foi condecorado a título póstumo com a Medalha de Cobre de Valor Militar, com palma. Em 1971 a Escola de Fuzileiros criou também o Prémio Manuel Viana, em sua honra, a ser atribuído anualmente ao aluno com melhor classificação nos cursos de aplicação do 1.º grau.

A maioria destes topónimos – oito – são exclusivos de Lisboa e não se encontram na toponímia de mais nenhum local do país, excepto nos 2 casos mencionados de homenagem prestada na terra natal. 

Ver também outros artigos relacionados:

1 de Fevereiro de 2017 > A Guerra Colonial nascida há 56 anos, também no tabuleiro da Toponímia de Lisboa

14 de Fevereiro de 2017 > Quinze cidades e vilas de Moçambique na toponímia de Olivais Sul desde 4 de julho de 1967

16 de Fevereiro de 2017 > Doze cidades de Angola na toponímia de Olivais Sul desde 1969

[Revisão e fixação de texto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de agosto de  2018 > Guiné 61/74 - P18917: Blogues da nossa blogosfera (99): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (18): Palavras e poesia

Vd. também poste de  16 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18927: Furriéis que tombaram no CTIG (1963-1974), por acidente, combate e doença - Parte II: Em combate (n=139) (Jorge Araújo)

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18927: Furriéis que tombaram no CTIG (1963-1974), por acidente, combate e doença - Parte II: Em combate (n=139) (Jorge Araújo)


Lisboa > Olivais Norte > A Rua Furriel João Nunes Redondo / Morto na Guiné ao Serviço da Pátria / 1963 ficou na Rua F da Zona dos Olivais Norte.

"João Nunes Redondo (Ílhavo /? – 22.03.1963/Guiné), era um Furriel Miliciano que quando estava no sul da Guiné, na Tabanca do Cubaque, a proceder ao levantamento de minas, verificou que o dispositivo de disparo de um dos engenhos fora inadvertidamente acionado por um dos sapadores que o auxiliavam na tarefa e, deliberadamente, lançou-se sobre a mina prestes a explodir, que o vitimou de imediato evitando a morte dos camaradas próximos. A título póstumo, foi agraciado com o grau de Cavaleiro com Palma da Ordem Militar da Torre de Espada e foi promovido a Sargento Ajudante, a 12 de março de 1964. O seu nome consta também na toponímia da sua terra natal como Rua Sargento Nunes Redondo." (Fonte: Toponímia de Lisboa > 13 de fevereiro de 2017 > Mortos na Guiné e Angola, em 1963, na toponímia de Olivais Norte) (Foto: Sérgio Dias, com a devida vénia... Reeditada pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).




Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do nosso blogue


OS 221 FURRIÉIS QUE TOMBARAM NO CTIG [1963-1974] (POR ACIDENTE, COMBATE E DOENÇA) - Parte II: Em combate  (n=139)

Sinopse:

Na sequência da actualização da lista dos camaradas «Alferes» que tombaram no CTIG (1963-1974), publicada no P18860, anexo agora a referente aos camaradas «Furriéis», apresentando-a ao Fórum organizada segundo a mesma metodologia anterior, ou seja, por quadros de categorias (acidente, combate e doença) e por ordem cronológica.

Para que não fiquem na "vala comum do esquecimento", como é timbre do nosso blogue, eis os quadros estatísticos dos 221 (duzentos e vinte e um) furriéis, nossos camaradas, que tombaram durante as suas Comissões de Serviço na Guerra no CTIG, por diferentes causas: combate (n=139), acidente (n=68)  (*) ou doença (n=14).


2- QUADROS POR CATEGORIAS E ORDEM CRONOLÓGICA (Continuação)




















Jorge Araújo

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18924: Furriéis que tombaram no CTIG (1963-1974), por acidente, combate e doença - Parte I: Por acidente (n=68) (Jorge Araújo)

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18172: Memória dos lugares (369): Fajonquito (1961) ou... Gam Sancó (1940, 1914, 1906, 1889)? (Armando Tavares da Silva)


Capa do Atlas Colonial Português, 1914


Capa do Atlas Colonial Português, 1914  > Mapa da Guiné > Posição relativa de Gam Sancó, entre Cambaju e Bafatá.



Guiné > Atlas de João Soares (c. 1940) > Posição relativa de Gam Sancó (a azul)... Escala: 1/2 milhões


Guiné > Mapa geral da províncía (1961) > Escala 1 / 500 mil > Posição relativa de Fajonquito, a noroeste de Contuboel.

Infogravuras: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)


1. Mensagem do nosso amigo e grã-tabanqueiro Armando Tavares da Silva, com data de hoje:

Caro Luís Graça,

O Post P18170,  do Grã-Tabanqueiro Cherno Baldé (*), fiz-me apressar o envio da carta da “Província da Guiné” inserta no Atlas Colonial Português da Comissão de Cartografia do Ministério das Colónias, de 1914. Esta carta, que tem 100 anos, ajuda a conhecer as mudanças que sofreu a toponímica da Guiné.(**)

Para além da imagem de toda a carta (ocupa 2 páginas e tem a dimensão de 43 x 32 cm), envio ainda a mesma carta mas dividida em quatro partes para melhor identificação das povoações.

Uma das povoações que nela figura é Gam Sancó, povoação que não figura nas cartas mais recentes. Esta povoação figurava também nas cartas da Comissão de Cartografia de 1889 e 1906, e ainda no atlas de João Soares, que teve várias edições nos anos 1940, e era utilizado no ensino liceal. Para melhor identificação da povoação segue ainda uma parte ampliada daquela mesma carta, com a região a norte de Bafatá.

Eu penso que esta povoação [, Gam Sancó,], que era a terra de origem do ex-soldado comando Cissé Candé (**), se por acaso não desapareceu, pela sua localização, é a actual Fajonquito, e gostava que me confirmassem, ou não, esta hipótese.

O Cherno Baldé, natural de Fajonquito,  talvez possa dar alguma informação relevante.

Abraço do
Armando Tavares da Silva

PS: As imagens seguem por WeTransfer


2. Mensagem do nosso editor acabada de enviar ao Cherno Baldé:

Amigo e mano Cherno:

Além dos votos de bom ano (, a nível pessoal, familiar e profissional), mando-te aqui uma pequena prenda (coletiva)... do nosso grã-tabanqueiro Armando Tavares da Silva: o atlas da Guiné de 1914... Segue um outro mail com o link para poderes transferir as imagens até ao dia 11 deste mês... São pesadas: mais de 24 MB... Vou também publicar no blogue [neste e noutros postes]... Mas gostaríamos de ter o teu douto comentário sobre a toponímia dessa época, em especial a da tua região natalícia: será que Fajonquito poderá ter-se chamado no passado "Gam Sancó" ou "Gã Sancó"?  [Gã Sancó  não consta da Portaria nº 71, de 7 de julho de 1948, do Governo da Colónia da Guiné: Primeira relação de nomes geográficos da Guiné Portuguesa, escritos segundo a ortografia oficial]

Já em 7/10/2017. tu perguntavas o seguinte (**):

"Caro Luís,

A tal aldeia de "Pejungunto" na região de Farim, bem poderia ser uma grafia alternativa a de 'Fajonquito',  isto antes da normalização com o Governador  Sarmento Rodrigues."


E o prof Armando Tavares da Silva comentava:

" E a aldeia de "Gam Sancó" que aparece no Atlas de João Soares (Sá da Costa, 1949) e que desapareceu na relação de nomes geográficos de 1948, e ausente nas cartas de 1/50 000, o que será? Poderá ser a actual 'Fajonquito'? E 'Gam Sancó',  o que foi/é?"

Mantenhas!...
Luís (***)
__________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de  3 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18170: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (53): três balas de kalash para uma missão suicida: o trágico fim do ex-soldado 'comando', Cissé Candé, em abril de 1978

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17825: Historiografia da presença portuguesa em África (96): primeira relação de nomes geográficos da Guiné Portuguesa, em 1948, ao tempo do governador Sarmento Rodrigues (Parte II)


Freixo de Espada à Cinta > Lápide evocativa do nascimento de Sarmento Rodrigues (Freixo de Espada à Cinta, 15 de Junho de 1899 / Lisboa, 1 de Agosto de 1979), prestigiado oficial da Marinha de Guerra Portuguesa, político, africanista, homem de cultura, escritor... Homenagem do povo do Freixo, em 20 de junho de 1999.

Transmontano de Freixo Espada à Cinta, era considerado: (i) um "conservador liberal", com "ligações à Maçonaria" e que apoiava o Estado Novo; (ii)  um homem "à esquerda" do regime, com afinidades político-ideológicas com Marcelo Caetano, o então ministro das Colónias; (ii) governador geral da Guiné entre 1945 e 1949, terá sido talvez o melhor dirigente da administração colonial que passou por aquele território, tendo-se encetado com ele um processo, tardio mas irreversível, de modernização da economia e da sociedade guineenses; e (iv)  o eleito por  Salazar para o lugar de Ministro das Colónias, em 1950, e depois do Ultramar, em 1951.

Nessas funções governativas levou a cabo uma vasta reforma da administração colonial portuguesa, tendo visitado o Extremo Oriente, o Sueste Asiático e a África. Entre 1961 e 1964 foi governador-geral de Moçambique. onde terá deixado saudades.

Tem uma extensa obra publicada sobre assuntos navais, de defesa e de administração colonial. Cite-se apenas algumas das suas publicações, relacionadas com a Guiné: Os maometanos no futuro da Guiné Portuguesa (1948), No governo da Guiné: discursos e afirmações (1949), Horizontes para um médico em África: conferência pronunciada no Instituto de Medicina Tropical (em 30/3/1950), A nossa Guiné (1972)...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






















Anexo à Portaria nº 71, de 7 de julho de 1948, do Governo da Colónia da Guiné: alguns anexos (pp. 7, 23, 37, 52, 57, 68, 67, 69, 72)


1. São apenas algumas páginas da extensa  "Primeira Relação de Nomes Geográficos da Guiné Portuguesa" elaborada em 1948 nos tempos do Governador Sarmento Rodrigues, e que nos chegou por mão do historiador Armando Tavares da Silva, membro da nossa Tabanca Grande..

Por ela se pode ver que havia 2 povoações Canchungo, uma na área de S. Domingos e outra na área de Cacheu (p.  23).  O Canchungo, nome gentílico, coexistia com a nova vila, Teixeira Pinto (p. 72).

Quanto à tabanca Portugal, havia dois lugares com este nome: (i) povoação na área de Bolama; e e uma outra na região de Fulacunda, sendo nesta que morava, em 1947, o régulo Bacar Dikel (p. 57).

Gabú era uma circunscrição, Gabú-Sara era uma povoação (p. 37)  e Nova Lamego uma vila tal como Nova Sintra (p. 52). Também existia uma Nova Cuba (p. 52).

Quanto a Aldeia Formosa  (p. 7) esta aparece como uma povoação de Fulacunda, a par de Quebo (p. 57).

Releia-se  o preâmbulo da Portaria de Sarmento Rodrigues e a expressa vontade de normalização da escrita dos nomes geográficos da Guiné (*). Alguns nomes são novos, ou aparecem pela primeira vez: Teixeira Pinto, Nova Lamego, Aldeia Formosa...

Lembre-se, por fim, que Sinchã foi introduzida para designar uma nova povoação fula, acompanhando a "expansão" do chão fula... . Entre elas (e são mais de centena e meia) notámos a a existência de uma Sinchã Comandante (p. 67) e outra Sinchâ Sarmento  (p. 68)... Também, para além de Aldeia Formosa, há mais 3 Aldeias (p. 7). Há ainda, topónimos pouco vulgares ou pitorescos como Algodão, Acampamento ou Achada do Burro (p. 7) ou ainda Quartel (p. 52), Porcoa, Preço Leve (p. 57)...

Desafia-se o nosso leitora a verificar se algumas destes topónimos, aportuguesados, sobreviveram à guerra e à independência...

No nosso blogue há, por exemplo, há várias referências a lugares começados por Sinchã... Destaque para Sinchã Jobel que foi uma base do PAIGC ou "barraca" no regulado de Mansomine (carta de 1/50 mil. Bambadinca).

Sinchã Abdulai (1)
Sinchã Bambe (1)
Sinchã Dumane (1)
Sinchã Jobel (16)
Sinchã Madiu (1)
Sinchã Molele (1)
Sinchã Queuto (2)
Sinchã Sambel (1)

2. Tirando um ou outro nome português, do nosso roteiro poético-sentimental (Nova Sintra, Nova Lamego...), o essencial dos nomes geográficos da Guiné não nos diziam nada, nem tinham que dizer, eram exóticos, pitorescos... mas não suscitavam curiosidade por aí além...  Eu, que não sabia mandinga, só muito mais tarde é que vim a saber que Bambadinca, por exemplo, queria dizer "a cova do lagarto"...

De facto, quem é que se lembraria de ir fazer umas "férias", em 1948,  a Gadamael ou a Pejungunto, ou a Bajocunda ou a Buruntuma... ? Eram nomes completamente estranhos aos militares portugueses que foram aportando a Bissau, a partir de 1961...

Mais pica tinham, na nossa santa terrinha, algumas povoações com  conotações... erótico-satíricas, se não mesmo anatómico-sexuais (ou que se prestam  a trocadilhos, mal entendidos, piadas de mau gosto, brejeirices, etc.).

A própria terra em que nasceu o grande "africanista"  Sarmento Rodrigues... Quem é o "tuga" que já alguma vez foi a Freixo de Espada á Cinta, que ficava lá no  "Cu de Judas" ?...

Aqui vai, a título exemplificativo uma lista de topónimos portugueses que se prestam, muitos deles,  à risota ou à mais série meditação e contemplação... (indica-se o respetivo concelho)... Imaginem agora os nossos futuros conquistadores ou colonizadores de amanhã, em papos de aranha a tentar descodificar o raio desta porno-corografia deste "famoso reino de Portugal", e encontrar um equivalente semântico para as suas línguas (alemão, chinês, árabe...) 

Aldeia da Cuada - Lajes das Flores, Açores

Alçaperna - Lousã

Amor - Leiria

Bexiga - Tomar

Bicha - Gondomar

Buraca - Amadora

Cabeça Perdida - Portimão

Cabrão - Ponte de Lima

Cabrões - Santo Tirso

Cama Porca - Alhandra

Casal do Corta-Rabos - Alcobaça

Casal da Gaita - Lourinhã


Casais Pia do Mestre - Lourinhã

Catraia do Buraco - Belmonte

Cemitério - Paços de Ferreira


Chiqueiro - Lousã

Coina – Barreiro

Coito - (Vários concelhos)

Colo do Pito - Castro Daire


Coxo - Oliveira de Azeméis

Cu de Judas – Ilha de São Miguel, Açores

Cu Marinho - Évora (distrito)


Curral das Freiras - Câmara de Lobos, Madeira

Endiabrada - Aljezur e Odemira

Fandinhães - Marco de Canaveses

Farta-Vacas - Lagos

Filha Boa - Torres Vedras


Focinho de Cão - Aljustrel

Fonte da Rata - Espinho

Margalha - Gavião


Mata Pequena - Mafra

Moita Longa - Lourinhã

Monte do Pau - Évora (distrito)

Monte do Trambolho - Évora (distrito)

Monte dos Tesos - Avis

Montedeiras - Marco de Canaveses

Montoito - Lourinhã

Namorados - Castro Verde

Paimogo -  Lourinhã

Paitorto - Mirandela

Paixão - Celorico de Basto

Papagovas - Lourinhã

Pedaço Mau - Vila Nova de Famalicão

Pena Seca - Lourinhã

Pernancha de Cima - Portalegre (distrito)

Pernancha de Baixo - Portalegre (distrito)

Pernancha do Meio - Portalegre (distrito)

Picha - Pedrógão Grande

Pirescoxe - Santa Iria da Azóia, Loures (a terra em que viu nascer gente operária e militantes comunistas como o nosso camarada Jerónimo de Sousa)

Pitões das Júnias - Montalegre

Porcalhota (apelido de um proprietário de terras que esteve na origem da Amadora)

Pousaflores - Ansião

Punhete - Valongo

Rabo de Peixe - Ilha de São Miguel, Açores

Rabo de Porco - Penela

Rata - (11 concelhos, pelo menos: Arruda dos Vinhos, Beja, Castelo de Paiva, Espinho, Maia, Melgaço, Montemor-o-Novo, Murça, Santarém, Santiago do Cacém e Tondela)

Rego do Azar - Ponte de Lima


Rio Cabrão - Arco de Valdevez

Rio Seco dos Marmelos - Ferreira do Alentejo

Sempre Noiva - Évora (distrito)

Sítio das Solteiras - Tavira

Terra da Gaja – Lousã

Tomates - Albufeira

Traseiros - Oliveira de Azeméis

Triste Feia - Torres Vedras

Vaginha - Vagos

Vale da Rata – Almodôvar

Vale das Pegas - Albufeira


Vale de Viga - Lourinhã

Venda da Gaita - Tomar

Venda da Luísa - Condeixa a Nova

Venda da Porca - Estremoz

Venda das Pulgas - Mafra

Venda das Raparigas - Alcobaça

Vergas - Vagos

Vila Nova do Coito - Santarém

PS - Espero que nenhum leitor leve a mal esta lista corográfica do "Portugal, país porreiro", que nos coube em sorte. A gente tem que nascer em qualquer sítio... E, como diz o nosso povo, "a vida tem uma porta só, a morte tem cem"... 

Muitos destes lugares do Portugal Profundo já deram, por certo, filhos e filhas, ilustres,  bravos e honrados, à Nação... Em todo o caso, não deixa de ser engraçado alguém, escritor com numerosos livros publicados, nascer numa terra como... "Pena Seca"... E eu,  confesso, também teria dificuldades em escolher um sítio para nascer como "Pernancha" (de cima ou de baixo, tanto faz)... 

A língua portuguesa é traiçoeira, é preciso um falante ser especialista na arte de codificar / descodificar... Dito à mesa, "Ó Maria, dá-me o pito", no norte do país, não quer dizer exatamente o mesmo que a expressão,  em crioulo da Bafatá colonial, "parte catota comigo"... (LG)
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