segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3762: Fauna & flora (14): O que nós comíamos sem saber (Manuel Rodrigues, ex-Fur Mec, CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro, 1971/74)

Guiné > Região leste > Bambadinca > O Alf Mil Dias (CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro, 1971/74) em cima de uma Daimler do Pel Rec Daimler

Guiné > Região leste > Bafatá > Passeio de jipe por Bafatá, em 1973. O Alf Mil Luís Dias (CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro, 1971/1973) em frente à Fonte Pública local, de 1918.

Fotos: Blogue de Luís Dias > Histórias da Guiné >CCAÇ 3491 (Dulombi e Galomaro, 1971/74) (com a devida vénia...)


1. Mensagem de Manuel António Lobo Rodrigues, ex-Fur Mec da CCAÇ 3491 (Dulombi e Galomaro, 1971/4)


Assunto - O que nós comíamos sem saber! (*)

Em Galomaro, havia um único restaurante, que ficava à esquerda, um pouco antes do quartel, na estrada Bambadinca-Dulombi, parte de terra batida.

A CCAÇ 3491 fazia o seu normal reabastecimento em Bambadinca e Bafatá. Como fazíamos a picada à saída e por vezes à entrada, tínhamos, pelo menos alguns, no mesmo dia de ir a Bambadinca e Bafatá, e nem sempre havia tempo de comer em Bafatá.

No regresso ao quartel, alguns paravam no dito restaurante de Galomaro, que servia bifanas, acompanhadas de umas bejecas, claro.

Já tinha ouvido falar pelos condutores, geralmente bem informados, que não era carne de vaca nem de porco, como dizia o dono do restaurante, mas sim de macaco cão.

Um dia à noite, quando bebia vinho de palma, e assistia, impressionado, a ver um nativa já de idade avançada a comer piripiri, como nós comemos tremoços, fui surpreendido, por nativos que mostraram diferentes caveiras.

Segundo os nativos, as caveiras mais parecidas com o ser humano na região de Galomaro eram as do macaco cão.

As bifanas que o dono do restaurante fazia passar por carne de porco ou vaca, também eram de macaco cão. Segundo os nativos, as dos outros macacos era intragável, e porcos, poucos havia, já que a influência Balanta na região era reduzida.

A etnia Balanta criava porcos, a etnia Fula, predominante na região, provavelmente por influência Árabe não criava porcos, cuja carne é proibida pelo Corão.

Passei a parar lá só para beber cerveja, já que fora do quartel não havia mais nada onde beber, o calor e por vezes a fome, apertavam sempre muito.

Anel, Ex-furriel mecânico da CCAÇ 3491, BCAÇ 3872 (**)

Portugal, dezoito de Janeiro de 2009

____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 19 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3758: Fauna & flora (13): Macaco cão a ladrar, gente do PAIGC a chegar (Joaquim Mexia Alves)

(**) Luís Dias, membro da nossa Tabanca Grande, também pertenceu à CCAÇ 3491. Vd. postes de:

5 de Julho de 2008> Guiné 63/74 - P3022: Tabanca Grande (78): Luís Dias, ex-All Mil da CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro (1971/74)

Vd. também o poste de 22 de Abril de 2007 >Guiné 63/74 - P1686: Fichas de unidades (1): BCAÇ 3872, CCAÇ 3489, 3490 e 3491 (Sector L5, Galomaro, 1972/74) (José Martins)

Guiné 63/74 - P3761: Efemérides (14): 19 de Janeiro de 1971, estrada Bula-S. Vicente...(António Matos)

38 Anos de saudade, meus caros!

Mensagem de António Matos
, de 19 de Janeiro de 2009

Há precisamente 38 anos (19/01/1971), o dia começava como muitos outros, soalheiro, bonito demais para ser carrasco dum grupo de jovens que se viram envolvidos numa guerra que não compreendiam, que não alimentaram, e na qual se envolveram por determinação nacional.
Não se lhes perguntou se queriam defender algo que não conheciam e nem sequer sabiam os fundamentos que justificavam aquela guerra.
Eram jovens meninos, "teenagers" numa grande maioria, com sonhos de quem tem uma vida pela frente de projectos concebidos a solo ou a dois ou a muitos...

Fazem hoje 38 anos que os nossos camaradas José Maria Cabral Tavares (furriel), Diniz Pimentel Carvalho e César Vieira Andrade (soldados) viram as suas vidas ceifadas numa brutal emboscada na estrada Bula – S. Vicente.

Eu era o alferes daquele pelotão e quis o destino que nesse dia estivesse hospitalizado em Bissau por via duma duodenite que ameaçava degenerar em úlcera e passei incólume àquele tiroteio.
Já o mencionei neste blogue e volto a fazê-lo ser minha convicção que tal acidente teve a dimensão que teve porque, desgraçadamente, eu não estava presente.
Sinto que as mais elementares regras de segurança que eram apanágio daquele grupo de combate não foram seguidas por vicissitudes várias, o que deu de mão beijada aos emboscados as condições ideais de flagelarem e massacrarem aqueles homens.
Não me sinto possuído pelo síndroma pós-traumático da guerra mas convivo mal com o acaso daquele dia.

Passa hoje mais um aniversário de saudade daqueles que partilharam connosco uma agradável companhia desde os Açores até à Guiné e que tiveram na CCaç 2790 a sua casa, o seu ombro amigo, o conforto ou a advertência que o dia-a-dia ditava.
Estejam onde estiverem, estejam bem! Sereis sempre uma referência e uma bandeira que não nos deixará esquecer aqueles tempos!

Nem só de Guileje viveu a guerra da Guiné! E heróis houve-os nas mais insignificantes situações!
Nos mais miseráveis e recônditos buracos desabrocham estórias dum dramatismo incomensurável que a morte, só por si, deveria fazer erguer monumentos individualizados a cada uma das vítimas! Mesmo que nesses sítios não tivessem emergido escritores que transpusessem para livro tais epopeias!

Camaradas ex combatentes da Guiné,
Camaradas da CCaç. 2790,

Um grande abraço e votos de bom 2009 a todos!

António Matos
__________

Notas de vb:

1. António Matos, ex-Alf Mil da CCaç 2790/BCaç 2928

2. Último artigo da série em

Guiné 63/74 - P3760: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (15): A minha homenagem aos que viveram a Guerra da Guiné. (J. Mexia Alves)

A "Retirada de Guileje"


Mensagem do J. Mexia Alves




Caros camarigos


Tenho lido com atenção todos os textos sobre a “Retirada do Guilege” e sobretudo este último do José Dinis, levou-me a pensar na dificuldade de analisarmos “friamente” o facto em discussão.
Com efeito a “Retirada do Guilege” tem um rosto, e esse rosto tem um nome que é o Coutinho e Lima.
Mas esse rosto é de todos nós conhecido, e está presente na nossa mente, nas nossas vidas quando pensamos no assunto.
Almoçámos com ele, falámos com ele, confraternizámos com ele, e sendo uma pessoa sem dúvida simpática e afável, sabendo nós que tem a sua família que preza como nós a nossa, é-nos muito difícil analisar uma decisão que tomou sem pesarmos nas nossas consciências o mal ou o bem que podemos fazer a essa pessoa que conhecemos.
Por isso mesmo, embora reconheça como muito difícil a tarefa, para analisarmos verdadeiramente a “Retirada do Guilege”, segundo a minha perspectiva, temos de nos “afastar” desse “rosto” e analisarmos os factos, as suas consequências e a decisão tomada.

O exercício que vou tentar fazer é com certeza, muito incompleto, provavelmente errado, talvez não totalmente isento (mas quem o é verdadeiramente), mas decidi fazê-lo, mais como pensamento para mim, mas que coloco à disposição de todos.
Em primeiro lugar parece-me que não podemos analisar uma situação destas de guerra, com o pensamento nas vidas humanas que se poupam ou se perdem.
Quer queiramos quer não, na guerra perdem-se vidas humanas e por isso mesmo a guerra deveria ser inadmissível entre seres que se dizem inteligentes, e aquela que travámos toda a gente o sabe, foi em certa medida uma guerra inútil e em muitas facetas injusta.
Porque se nos servimos das vidas humanas poupadas, temos desde logo que pôr em causa tantas decisões tomadas ao longo da guerra, mormente a resistência em Guidaje ou Gadamael.
Mas aí está, tendo como finalidade da guerra a vitória sobre o “inimigo”, a verdade é que em Guidage e Gadamael ganhámos e em Guilege perdemos, mesmo tendo em conta a hipótese avançada pelo Mário Fitas da retirada estratégica, porque pelo que percebemos ela nunca esteve no horizonte da decisão tomada.

Ao falarmos em Guidaje e Gadamael, temos de nos perguntar quais eram as suas guarnições em termos de unidades militares quando começaram essas duas batalhas específicas e quanto tempo demoraram a chegar os reforços, ou seja, quanto tempo se aguentaram com a “prata da casa”.
É que ao lermos o desenrolar dos acontecimentos em Guilege tudo se resolve muito depressa com a decisão da retirada.

Mas vamos a outros factores, que vou enunciar, tentando não fazer julgamento dos mesmos.
Logicamente não serão os únicos, mas são os que me ocorrem.
Por aquilo que nos é dado a conhecer, cito o post 3737:

“Desde 6 de Maio que os GC do Guileje não efectuavam qualquer saída do quartel (excepção à tentativa de coluna a 18Maio), o que os deixou sem uma segurança avançada e sem saber o que se passava para além do arame farpado”, não mais a tropa voltou a sair para a mata, nem para reconhecimentos rápidos da envolvente do quartel.
Ora uma das primeiras coisas que é ensinada aos comandantes das unidades em quadricula, é a importância de manter patrulhamentos constantes à volta dos quartéis, não só para controlar o inimigo, mas para defender exteriormente a unidade afastando o s possíveis ataques ou “golpes de mão”.
Quando não procedemos como nos é ensinado, acabamos por dar ao inimigo a liberdade territorial que lhe permite aproximar-se do quartel, flagelá-lo e até tentar um possível “golpe de mão”.
Há exemplos na Guiné como sabemos.
Pequenas unidades, como Pel Caç Nat, estacionados em destacamentos, por vezes extremamente isolados, e em zonas de guerra, não deixavam de sair duas a três vezes por semana para garantirem essa segurança, apesar de tudo efémera.
Estas saídas não dependem da vontade dos subordinados, logicamente, mas dos comandantes respectivos, em último lugar do primeiro comandante do aquartelamento.

Outro facto, tal como é relatado:

"Guilege (sic) pretendia que se bombardeasse todas as matas em redor do aquartelamento. Ao ser-lhe perguntado por que razão não utilizava a artilharia, reportou que procedia desse modo a fim de não referenciar a posição do quartel!” Post 3752
Para que serve a artilharia se não é utilizada?
Se o quartel está cercado, então a sua posição é perfeitamente conhecida, portanto não tem razão de ser este argumento.
Outra razão haveria, com certeza, mas que não conhecemos.
Sabemos bem como muitos comandantes se “batiam” para terem às vezes apenas e tão só uns morteiros 81 nos seus aquartelamentos, quanto mais obuses 14.
No Xime, cito porque conheço, os ataques eram sempre respondidos com a artilharia e não foi por causa disso que o quartel estava mais ou menos referenciado.
Julgo que a utilização dos obuses 14 poderiam ter sido um forte efeito dissuasor.

Outro ainda:

«A meu ver por falha do QG Bissau que até essa data, e ao contrário do que se passava em Guidaje, não autorizava a FAP a ir ao estrangeiro, e igualmente por falha do Guileje, que já não era capaz de indicar de onde tinham partido os ataques, limitando-se a afirmar “bombardeiem todas as matas à volta do quartel”. Post 3737
Não há dúvidas que existe uma falha do QG em Bissau, porque com certeza um bombardeamento da artilharia do PAIGC estacionada além fronteira aliviaria em muito a situação do Guilege.
No entanto e também a resposta dada (que não pode ser assacada a quem a transmitiu, mas a quem a ordenou), aos pilotos dos aviões por parte do Guilege revela um desconhecimento da situação e uma certa desorientação.
Sem referências específicas, os pilotos limitaram-se a largar bombas na mata.
De qualquer modo e como nos refere o piloto: "Tendo sido lançadas 16 bombas deste tipo nas matas entre o Guileje e a fronteira, a haver tropa do PAIGC nessa área, os efeitos teriam sido devastadores", (Post 3752), os homens do PAIGC teriam de ter sofrido fortes baixas e portanto saído das imediações do quartel.

Isto leva-nos a tentar perceber como é possível com um quartel cercado, pronto a ser invadido, executar uma retirada de cerca de 600 pessoas sem haver sequer um tiro ou qualquer outro problema, até com fotografias tiradas durante a retirada.

E aqui podemos pensar que o PAIGC não o quis fazer para não provocar um “banho de sangue”.
Mas então não tem sentido não terem entrado de imediato no quartel que já sabiam vazio!
O subterfúgio do gerador ligado, só tem sentido se o inimigo estivesse longe e então não estaria a cercar o quartel.
Mas também não se percebe como é que o PAIGC iria perder a oportunidade de desbaratar uma unidade inteira que retirava com população, pelo que a sua resposta a uma emboscada seria sempre muito discutível e algo desorganizada.

Ao PAIGC, envolvido numa frente de propaganda estrangeira da qual retirava grossos dividendos políticos, seria “ouro sobre azul” mostrar uma unidade ocupada e a maior parte dos seus ocupantes, Forças Armadas Portuguesas, presos ou abatidos.
Como se compreende que, segundo relatam, o PAIGC, que cercava o quartel e portanto teria de ter conhecimento do que se passava, continuar a bombardear o quartel e só o ocupar passados três dias?
Eu pessoalmente não vejo em nenhuma das descrições feitas algo que sustente que o quartel estava irremediavelmente perdido e que portanto devia ser abandonado, mas posso estar redondamente enganado.

Repito o que disse ao princípio, ou seja, que se analisarmos a “Retirada do Guilege” pelas vidas poupadas, temos de chegar à conclusão que a maior parte das decisões tomadas durante a guerra estavam erradas.
A verdade é que a guerra, esta como qualquer outra, estava errada e por isso mesmo se perdiam e perdem vidas humanas, o que nada justifica.
Se para além disso pensarmos nas vidas que estavam no Guilege e nós conhecemos, mais difícil se torna a analisar a questão do ponto de vista militar.
As decisões são tomadas face a muitos outros factores, e para esta concorreram forçosamente outras decisões de outros centros de comando.
Tenho a minha opinião, mas não a expresso agora.

De qualquer modo, repito o que disse no inicio, este exercício que fiz, muito incompleto, provavelmente errado, talvez não totalmente isento (mas quem o é verdadeiramente), não pretende julgar ninguém (quem sou eu para o fazer), mas ajudar a pensarmos juntos numa história o mais correcta possível do que se passou no Guilege.
Porque camarigos, mesmo que se chegue à conclusão que em termos militares a retirada foi um erro, há sempre um factor de peso para a considerar uma coisa boa, que são, agora sim, as vidas poupadas.

Ao Coutinho Lima e aos homens que com ele viveram este drama da guerra da Guiné, a minha homenagem e a minha camaradagem.

E a todos o meu forte e sempre abraço camarigo.

Joaquim Mexia Alves
__________


Notas de vb:

Últimos
artigos da série em

Guiné 63/74 - P3759: O Nosso Livro de Visitas (53): Em busca da história dos nossos Pais (B. Baldé, BIDMC/Harvard, EUA)

Guiné > Zona Leste > Contuboel > Tabanca dos arredores > CCAÇ 2479 (1968/69) > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece... A placa rodoviária assinala alguns das povoações, mais importantes, mais próximas: Ginani (17 km), Talicó (22 km), Canhamina (27 km), Fajonquito (30 km), Saré Bacar (39 km), Farim (96 km)...

Contuboel chegou a funcionar como importante centro de instrução militar, no início da política da africanização do Exército Português, no 1º semestre de 1969. Em data que não posso precisar, esse centro acabou por ser transferido para a ilha de Bolama, aparentemente mais segura. Em Junho de 1969, Contuboel era descrita como um "oásis de paz" (*) e nela dava-se formação às futuras CCAÇ 11 e 12 e a um grupo de combate da futura CCAÇ 14.

Foto: ©
Renato Monteiro (2007). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector de Farim > Cuntima > Destacamento de Cuntima > CCAÇ 14 > 1970 > 4º pelotão. O Fur Mil At Inf Bartolomeu é 1º da direita. Esteve em Maio/Junho de 1969 comigo, em Contuboel.

Esta companhia independente, a CCAÇ 2592 , veio, no Niassa, com a CCAÇ 2590/CCAÇ 12, foi para Bolama para formar a CCAÇ 14. O pelotão do Bartolomeu (o 4º) foi para Contuboel. Aí deu a instrução de especialidade a um pelotão de Mandingas, oriundos da zona de Nova Lamego (Junho/Julho de 1969). O 4º Gr Comb da CCAÇ 2592/CCAÇ 14 foi depois para a Aldeia Formosa onde esteve 4 meses. A seguir, juntou-se ao grosso da companhia, aquartelada em Bolama. De Bolama, a CCAÇ 2592 CCAÇ 14 seguiu para o sector de Farim, destacamento de Cuntima, onde ficou como unidade de quadrícula até ao fim da comissão. Esta povoação ficava (e fica) a 1 Km da fronteira com o Senegal (**).

Foto: ©
António Bartolomeu (2007). Direitos reservados.


1. Recebi, no meu mail pessoal, a seguinte mensagem, com data de 17 do corrente, enviada por B. Baldé, e que estuda ou trabalha no Beth Israel Deaconess Medical Center, um hospital escolar da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard, nos EUA [deduzo pelo endereço de e-mail, bbalde@bidmc.harvard.edu]:

Assunto - Sinceramente obrigado

Dear [Caro] Sr. Luis,

Tenho vindo a este blog procurar informações e que também são histórias dos nossos Pais, que serviram do lado do Exército Português. Apesar de escassas, já é alguma coisa.

Tem muita informação da zona de Xime e Bambadinca e quase nada do interior de Contuboel, como por exemplo Fajonquito, Cambadju, Sare Wale, Suna e outros pontos quentes da guerra colonial. Histórias chocantes como a de Almeida (ex-comando Português que se matou em Fajonquito, após matar o capitão, o Alferes e mais outros oficiais, todos Portugueses), histórias de Capitão Carvalho, etc.

Para além destes, seria encorajador para nós, filhos dos Baldés, Djalós, Jaus, Camarás, etc., vermos, se existirem, as fotografias dos nossos Pais, Tios, vizinhos que pereceram na guerra ou foram assasinados após a guerra pela máquina de vingança do PAIGC.

Este blog é muito importante para a história verdadeira da guerra colonial, não importa em que parte estava um soldado, o que importa é a história ser contada com factos reais e acima de tudo com honestidade.

Sinceramente

Obrigado

[Mensagem sem nome do remetente]


2. Comentário de L.G.:

Fico muito sensibilizado pela sua mensagem, e pelo apreço com que fala do nosso blogue. Desde Abril de 2005, vamos tentando, todos os dias, construir e manter pontes de memória e de diálogo entre nós, antigos combatentes portugueses que estiveram na guerra colonial na Guiné, e entre nós, tugas, e os nossos amigos e camaradas da Guiné-Bissau, independentemente de terem feito a guerra connosco, ao nosso lado, ou contra nós (do lado do PAIGC).

Eu próprio dei instrução, em Contuboel, a futuros soldados (na sua grande maioria, de etnia fula) , da minha Companhia de Caçadores, a CCAÇ 2590, mais tarde designada por CCAÇ 12 (***). Estive em Contuboel (Maio/JUnho de 1969) e depois em Bambadinca (Junho de 1969/Março de 1971).

Outra subunidade, composta por oficiais, sargentos e especialistas metropolitanos, e praças do recrutamento local, que se formou em Contuboel, na mesma altura, foi a CCAÇ 11, a que pertenceu o meu querido amigo Renato Monteiro, hoje um grande fotógrafo (****).

De acordo com a sua observação sobre o nosso blogue, não temos de facto tanta informação sobre Contuboel e outros sectores, a norte e a nordeste de Contuboel, na Região de Bafatá. Temos poucas referências a Cambaju, por exemplo. Mas fica, desde já convidado, a escrever no nosso blogue, de modo a colmatar as deficiências de informação apontadas. Como sabe, estamos sempre dependentes dos antigos amigos e camaradas, muito mais portugueses do que guineenses, que aparecem por aqui, com as suas memórias escritas e as suas fotos. Há seguramente ainda muitas histórias por contar e muitos factos por narrar, encadear e interpretar.

Deduzo que esteja a estudar (medicina) ou a trabalhar (como médico) nos Estados Unidados da América, no BIDMC, e que o seu pai tenha feito a guerra colonial do lado dos portugueses. Estamos muito interessados em saber a sua história pessoal e familiar. Temos incluisve um série a que chamámos O s Nossos Camaradas Guineenses, da qual só se publicaram ainda dois postes (*****).

Convido-o a integrar a nossa tertúlia (ou Tabanca Grande). Por razões de reserva de imagem ou até de segurança, podemos a título excepcional publicar os seus textos sob pseudónimo, se achar conveniente. Agora é importante é que sejam os próprios guineenses a contar a sua própria história e a história dos seus pais... Infelizmente não temos meios, financeiros, técnicos e humanos, (nem é a nossa vocação e missão) para fazer investigação de arquivo ou no terreno, sobre este período da história comumo dos nossos dois países. É importante que tenha consciência das nossas próprias limitações.-..

Estes tugas, que fazem todos os dias o blogue, podem dar uma ajuda mas não se podem substituir aos seus amigos e camaradas guineenses.

Mantenhas.

Luís Graça

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Notas de L.G.:

(*) Vd. poset de 28 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXXVI: No 'oásis de paz' de Contuboel (Junho de 1969) (Luís Graça)

(**) Vd. postes de

4 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1815: Álbum das Glórias (14): o 4º Pelotão da CCAÇ 14 em Aldeia Formosa e em Cuntima (António Bartolomeu)

31 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1803: Tabanca Grande (7): Saudades de Contuboel (António Bartolomeu, CCAÇ 2592 / CCAÇ 14)

(***) Vd. poste de 21 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia) (Luís Graça)

Na I Série do nosso blogue (de Abril de 2005 a Maio de 2006), foram publicados diversos postes sobre a CCAÇ 12, inckluindo a história da unidade (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969 / Março de 1971).

Vd. também poste de 2 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1640: A africanização da guerra (A. Marques Lopes)

(****) A CCAÇ 11 (recruta, instrução de especialidade e IAO) foi formada em Contuboel.

Sobre esta unidade formada a partir da CART 11/CART 2479, há já também diversos posts (uma parte dos quais da autoria do meu amigo Renato Monteiro):

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1001: Estórias de Contuboel (i): recepção dos instruendos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

30 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1015: CART 2479, CART 11 e CCAÇ 11 (Zona Leste, Gabu, subsector de Paunca)

2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1017: Estórias de Contuboel (iii): Paraíso, roncos e anjinhos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1026: Estórias de Contuboel (iv): Idades sem lembrança (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1027: Estórias de Contuboel (v): Bajudas ou a imitação do paraíso celestial (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1612: Relembrando, com saudade, os nossos soldados fulas da CART 11 (Renato Monteiro / João Moleiro)

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

6 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2412: História de vida (8): Renato Monteiro, um homem de múltiplos... fotografares (Luís Graça)

13 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3199: Álbum fotográfico de Renato Monteiro (1): Contuboel (1968/69)

(*****) Vd. postes de:

21 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3340: Os nossos camaradas guineenses (1): O meu tributo (José Martins, ex-Fur Trms, Nova Lamego e Canjadude, CCAÇ 5, 1968/70)

26 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3357: Os nossos camaradas guineenses (2): Foram votados ao esquecimento e abandono (Jorge Picado, ex-Cap Mil, CCAÇ 2589, 1970/72)

Guiné 63/74 - P3758: Fauna & flora (13): Macaco cão a ladrar, gente do PAIGC a chegar (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves, com data de 13 do corrente:

Assunto - Macaco-cão

Caro Luís: Respondo-te só hoje, desculpa, à tua "provocação" sobre o macaco-cão (*).

Em primeiro lugar iria jurar que as duas fotografias foram tiradas na mesma altura e com o mesmo macaco, mas talvez não.

Uma coisa é certa, são as duas tiradas no Mato Cão, disso não tenho dúvidas.

Na segunda fotografia quem está comigo é o Tomango Baldé, que era um "tipo" um bocado arrevezado, mas bom combatente e muito valoroso.

A expressão "cabrito pé de rocha" nunca a tinha ouvido, portanto não era utilizada por aquelas paragens.

A "minha" gente deve ter comido aquele macaco, mas ao que me lembro era coisa muito esporádica.

Agora ratos, como conta o Jorge Cabral, isso sim! E era bem bom, pois tinha uns bocados que pareciam coxas de perdiz ou coisa parecida.

Comi uma ou duas vezes. Era, (pelo menos ali), cozinhado por alguns em óleo de palma/óleo de dendem, como o saborosíssimo chabéu, de que tenho grandes saudades de comer na varanda do Jamil Nasser, no Xitole.

Lembro-me também de ter morto um Facochero, e de me terem preparado um bife frito com banha da cobra, propriamente dita.

Quanto ao macaco cão, da zona do Mato Cão [, a noroeste de Bambadinca, na margem direita do Geba Estreito, frente a Nhabijões,] já andava um pouco arredado, daquilo que me lembro.

Mas tal como te contei, junto da Ponte dos Fulas [, destacamento no Rio Pulom, a norte do Xitole], e para a direita, para quem está voltado para Bambadinca, havia, depois de andar um pouco na mata, uma mata de cajueiros onde o macaco cão fazia poiso.

Lembro-me que era um grupo relativamente grande, mas quantos machos, fêmeas e crias, ó Luis, tem paciência mas não estava para aí voltado!!!

Recordo, sim, que os guias diziam que, se o macaco cão fazia muito barulho, era porque andavam perto o pessoal do PAIGC, e a explicação era que eles os comiam e era uma forma do grupo de macacos cães se avisarem uns aos outros.

Experimentei uma vez a carne, que ao que me lembro era adocicada, mas um dia vi numa tabanca, (da qual não me lembro o nome), a caminho do Saltinho, um macaco cão esfolado e pareceu-me um bébé recém nascido, pelo que pararam por aí as minhas degustações gastronómicas do referido animal.

Espero não chocar ninguém que leia os escritos da nossa Tabanca e não esteja habituado a estas coisas.

Se me lembrar de mais alguma coisa, logo te informarei.

Penso que o que aqui escrevo não serve para estudo nenhum, mas são sempre recordações.

Abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves
Ex-Alf Mil Pel Caç Nat 52
Mato Cão, 1973
joquim.alves@gmail.com

___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 11 de Janeiro de 2009 > Guiné 63774 - P3720: Fauna & flora (2): Os macacos-cães do nosso tempo (Luís Graça / J. Mexia Alves)

domingo, 18 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3757: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Férias em Janeiro de 1969...

Mensagem do Torcato Mendonça: Queridos Camaradas e Amigos Cheguei a casa, desvio aqui e acolá, uma ou outra arrumação e o Blogue pronto a ser lido. Fui lendo. Guileje...e Guerra e Guerra e Guileje e as "nossas mulheres" e um texto ou outro giro. Todos giros de umbigos a macacos, de guerras a vidas tramadas...e de repente lembrei-me: - Eu disse ao Virgínio Briote que em Janeiro lhe mandava um texto. Porquê? Não me recordo... É preocupante... a senilidade começa pelo esquecimento do facto próximo ou até o simples esquecimento de fechar a braguilha e...aí está...instala-se mansamente a velhice...mas, como vos dizia aí vai um escrito. Bem é um escrito pronto há muito e não revisto. Um escrito demasiado pessoal, intimista, "volteado" e, a merecer cuidado...é de paz...mas a guerra e a morte, se bem me lembro, estão bem presentes. São daqueles escritos que escrevemos em recordação de desabafo ou em loucura num intervalo de algo que nos aconteceu....Se tiverem paciência, é difícil..., leiam...depois...bem depois saiu-me das mãos e ofereço a três amigos...por vezes as recordações doem e aquela estúpida guerra volteou-nos a vida. Não leio o que acabei de escrever e, menos ainda, os escritos...vidas...tantas vidas. FÉRIAS por Torcato Mendonça ex-Alf Mil CART 2339 (Mansambo, 1968/69) 1 - Chegada Acidentadas as férias nesse Janeiro. Férias de Inverno. Ainda na Guiné tivemos, no 2º Grupo, o primeiro morto em combate. Vim para Bissau, esperei uns dias e embarquei rumo a Lisboa. Na véspera cortei as barbas com imensa pena minha. Não queria problemas no aeroporto. Havia um pequeno papel branco a preencher e a entregar a um "fiscal de vidas e afins". Melhor dizendo, à PIDE/DGS, controladores de “tudo”, para quase todos. Levantou-se a hipótese de haver uma certa diferença, com aquela organização, lá e cá. Haveria? Claro que não. Fica em suspenso… À chegada a Lisboa, com catorze graus, mais grau menos grau, de temperatura, tive a sorte de ter à espera meus pais com uma camisola de lã grossa e um casacão. Passámos pelos Adidos e jantámos não muito longe. Tive um pequeno problema no restaurante. Nada de importância. A minha mãe lançou-me um olhar de reprovação. O meu pai sorriu e deu-me um toque no braço. Era o “clima” a mostrar os efeitos. O empregado, mostrou a tatuagem, sorriu também e, disfarçadamente, perguntou: - Onde? - Guiné - foi a resposta. Satisfeito, teve o cuidado de dizer algo aos visados. Olharam-me como se olha uma personagem perigosa. Terminada a refeição, saímos pois tinha pressa em chegar a casa. Entrei no carro, para o lado do condutor, como pendura. Sentia-me incomodado. As luzes dos carros, vindos em sentido contrário, o ruído do rolar pela ponte, então Salazar, deixavam-me confuso. Pouco depois pedi: quando puderes pára que eu prefiro ir lá atrás, as luzes, das viaturas vindas em sentido contrário confundem-me. Em Setúbal voltámos a parar numa festa ou feira, não sei ao certo. Pior porque o barulho perturbava-me. Pouca a demora, talvez só para entrega de uma encomenda ou algo parecido. A viagem decorreu sem problemas e, algumas horas depois, já em casa, rapidamente procurei um copo e bebi água. Tinha saudades de beber água tirada de uma torneira. Francamente. Hoje ao recordar parece ridículo. Mas passei demasiado tempo no mato, em Mansambo e nas Tabancas. A água boa era um bem raro. Bem, a boa só engarrafada ("Vichy" ou "Perrier"), a normal…enfim… O pouco conforto ou, simplesmente puder beber água, era nas passagens, curtas, por Bambadinca ou, mais raramente, por Bafatá. Os dois ou três dias de passagem por Bissau de pouco serviram. Recordo que, possivelmente nessa curta estadia, a raiva contida por ver tanto militar gozando o conforto de Santa Luzia me desagradou. Aquele mundo, pouco ou nada tinha a ver com o que eu vivia, lá para o leste. E se tivesse no lugar deles ou não fosse operacional?! Malhas do Império! 2 – Do café à PJ No dia seguinte, depois da chegada, juntei-me com dois amigos após o jantar. Um tinha estado no início da guerra na Guiné, integrado numa Companhia de Caçadores Especiais. O outro tinha vindo, pouco tempo antes de Cabinda. Conversámos e combinámos dar um pequeno passeio. As distâncias no Alentejo são logo ali, por isso uma voltinha de quase duzentos quilómetros era logo ali. Ficámos pelos cento e cinquenta…logo ali o Algarve. Partimos, o Zeca ao volante, a conversa a fluir e a viagem a ficar curta. Demos a volta, não a combinada, da cervejaria ao hotel – dancing do dito…ficámos só pela cervejaria e rumámos de novo ao local da partida, em regresso de acelera. Por isso, pelo azar ou porque até dava mais gozo, o cabo do acelerador partiu-se. - E agora? - Acende o isqueiro e dá à luz – disse o Zeca. Habituado à mecânica, aos carros, aos peões e eteceteras, lá atou um cabo e ficou com a aceleração, não de pé mas de fio de aço. - Aguentem que quando o puser a trabalhar até salta. Vai parecer um potro a escoicear. Não saltou. Escoiceou um pouco e veio rápido. Parámos uma ou duas vezes pois o quatro rodas aquecia. Finalmente chegámos. Parámos, à esquina de uma das cinco ruas que saíam de uma Praça, bem no centro da vila. Arrefecia assim o motor do automóvel e nós continuamos a conversar. Madrugada já entrada, resolvemos regressar aos lares. Um morava perto, eu e o Zeca morávamos na mesma rua mas, para o carro não parar, preferi ir a pé. Emprestaram-me um boné, cabelo curto e frio de Janeiro não era agradável à cuca e até amanhã companheiros. Logicamente no dia seguinte levantei-me tarde. Depois do almoço, falei um pouco com meu pai e viemos até ao café. Ele, devido ao adiantado da hora, nem entrou. Comprei [o jornal] O Século, juntei-o a um livro e ao boné e entrei no Derby. Saltei para um banco do balcão e pedi um café duplo. Estava a acabar a bebida, quando aparece o Zeca e diz: - Anda comigo ali ao Tribunal. - Falava baixo por hábito, e, por vezes, pouco abria a boca. Ou nervos ou feitio “prendiam-lhe” os dentes… Percebi mal e pensei que íamos ver um amigo que lá trabalhava. Saí calmamente. Depressa: dizia ele e acelerava o passo. Calma, dizia eu. Era perto o nosso destino, nem cem metros. Entrou ele e, pouco depois entrei eu. Escadas subidas, vejo-o entrar numa sala. Fui atrás dele. Numa secretária estava um sujeito de fato escuro, cara magra e macilenta ou úlcera no estômago, a olhar-me. De pé um outro, alto e forte. Fiquei a olhar e, antes de perguntar algo, ouvi o mais magro olhar-me e dizer: - Descoberto! - Só isso percebi. Tirei o boné, pu-lo junto ao jornal e ao livro e perguntei: - Descobriu o quê? - O sujeito disparou: - O boné, o boné, quando se entra numa sala destas é falta de respeito manter o boné. Nem o deixei continuar. Voltei-me para o Zeca e disse: - O que é isto? - Ele tentou responder mas gaguejou. O sujeito alto respondeu por ele: - Policia Judiciária e o Senhor Inspector (qualquer coisa) quer fazer-lhe umas perguntas. Retorqui de pronto, tirando o Cartão Militar do bolso. - Vim, há dois ou três dias de férias, da Guiné. Está aqui a minha identificação e ouvem-me por deprecada. Olharam-se e olharam-me. Falou o tal inspector, em tom mais comedido. - Já conversámos com o seu amigo, ainda falta um outro e o senhor. Sabemos que, na madrugada de ontem estavam estacionados a uma das esquinas desta Praça. Houve um problema no banco situado mais abaixo; só lhe queremos perguntar se viu ou ouviu algo. Se não se importa pode responder? Pensei um pouco e disse: - Não ouvi ou vi nada, falávamos e o que se passava fora do carro não me interessava. Ainda perguntei: - Roubaram muito? - Senti o sorriso em ambos e a resposta: - Não se tratou de dinheiro, foi nos arquivos. - Ficaram com o meu nome e saí dali com o Zeca. Ria dele e da figura que tinha feito. Quando entrei, à noite, no café voltei a ver de relance os homens da Judiciária. As férias continuaram e além de curtas, ainda tiveram pequenos incidentes. Um ano depois, talvez um pouco mais, já regressado da Guiné, cruzei-me na rua com um sujeito. Parou. Olhou para mim e tratando-me pelo antigo posto militar e pelo nome disse: - Já acabou a sua comissão ou volta a estar de férias? Olhei-o e disse: - Não estou a ver quem é. Judiciária – foi a resposta. - Lembra-se do meu nome? – perguntei-lhe. - Completo - respondeu. Falámos breves minutos. Se tinha boa impressão daquela polícia, a partir daí fiquei a respeitá-la mais. 3 - Viagem com Amores, Desamores ou Sonhos? (Já não na primeira pessoa. Porquê? Nem sei. É preferível: - Quem será o viajante ou o personagem desta estória? Um fulano qualquer; um fulano que passou pelo hotel e pelo bordel; um fulano que teve a donzela e a meretriz; um fulano que… ah…e… um dia, ou, em quantos dias se sentiu vazio, perdido, por vezes cambaleante, em balanço provocado por uísque, “1920”, “Carvalho Ribeiro & Ferreira” ou, simplesmente medronho. Só queria encontrar a “picada da vida”…mas esta tardava, tardava…um dia pensou tê-la encontrado…correu mundo, assentou…mas nunca se aquietou, no entanto, em eterno desassossego… qualquer dia… ou num dia qualquer, sorrirá, como outrora…se a encontrar, dir-lhe-á: olá; Tu outra vez? Vamos ou não…báh, ah, ah… tem cuidado estás em frente de um imortal….báh… mas é encontro certo… o mais certo…penso tê-la visto, vocês certamente também…se dela não gostamos, porque dela nos recordamos?...talvez porque este sitio fala demasiado disso… ou dela…certamente quanto menos se conhece mais se fala…. Vamos à estória: Desceu do comboio. Atravessou em passadas largas a velha estação. Caminhou, já cá fora, em direcção a um táxi. O motorista, certamente por o ver com um saco numa mão e um pequeno embrulho na outra, lesto, abriu-lhe a porta da bagageira. Entrou no táxi e, só então, desabotoou os botões do casacão. Adaptava-se lentamente ao frio, quase primaveril para muitos, mas, frio de Inverno para ele. Disse ao taxista: - Costumo ficar no Hotel XX. Desta vez preferia ficar num local mais central, calmo e discreto. Como resposta, além do olhar avaliador pelo retrovisor, recebeu um lacónico: - Devo ter o que precisa. Atravessaram parte da cidade. O pensamento dele voou até à fonte de Mansambo, à estúpida emboscada onde um antigo taxista, seu amigo, tinha falecido. Sentia o tormento a instalar-se. Felizmente, pouco depois, o táxi parou numa pequena praceta sua conhecida. O motorista saiu e não tardou muito a regressar. - Deve gostar – disse. Pagou. Esqueceu a nota pequena. Em troca, recebeu um sorriso cúmplice e um cartão: - Se precisar e estiver livre… Atravessou a rua e entrou na residencial. As formalidades habituais na recepção, deixou os documentos e, acompanhado por um empregado, subiu ao quarto. Pequeno hall, saleta e quarto. Gostou da boa recuperação do edifício, quer no exterior, quer no interior. Deixou o saco, o pequeno embrulho e desceu. Ao passar pela recepção devolveram os documentos, confirmaram os dias previsíveis da estadia e indicaram-lhe o bar. Pediu um café duplo, água e uísque simples. Bebeu lentamente e foi tirando notas para um pequeno bloco e uma agenda. Nem meia hora demorou em regressar ao quarto. Olhou o relógio, tirou o casacão, pequena arrumadela na roupa, abriu o rádio e recostou-se no sofá. Faltava mais de uma hora para o encontro combinado. Relaxava sentindo o calor suave a vir do aquecimento central. Tentava desviar, o mais possível, o pensamento no regresso à Guiné, mas era inevitável. Estava de férias e queria deixá-las decorrer sem o espectro da guerra, mas voltava sempre lá. Há pouco pensava no que iria fazer após o regresso daquela guerra. Saberia adaptar-se? Iria fazer outra e outra? Tinha tempo, muito tempo ainda para gastar desta comissão. Teria que voltar e viver…ou tentar voltar, o mais possível, ao seu passado. Sentia estar diferente! Passou rápido o tempo. Levantou-se e vestiu o casacão. Agarrou no embrulho e saiu para a rua. A noite de Inverno já descia, naquela luz suave da partida de mais um dia e os candeeiros, a custo, acendiam as suas luzes. Como conhecia bem as ruas, rápido as atravessou. De longe viu a pastelaria onde a namorada o esperava. Efectivamente lá estava ela, cabelo louro, caído pelo ombro, olhos verde-mar e um sorriso aberto. Abraçaram-se, beijo leve – à anos sessenta – sentaram-se mãos a apertarem mãos. Sentia a emoção no rosto dela e, apesar disso, tentava sorrir voltando a um passado, não tão longínquo assim. Talvez três ou quatro anos, nem tanto, quando começaram a andar juntos. Jovens, livres e alegres até à separação imposta. Mantiveram a relação, meio oficial, meio platónica, meio tudo e nada mas, sempre, isso sim, sempre sujeita à vida militar dele. Até nisso os militares, o serviço por eles imposto se intrometera e, o homem ora em frente daquela mulher, era significativamente diferente desse jovem de outrora. Ela sentia-o mudado, o olhar endurecido e inquieto. Disse-lho. Questionou-o porque não lhe contava o que por lá passava. Ele sorriu, ainda sabia – ao menos isso – sorrir. Bateu, no seu habitual gesto “maquinal”, com os dedos na mesa e olhou-a para, logo, baixar o olhar. - Estás nervoso? Tu? Vou sabendo o que por lá se passa, por amigas, mulheres de militares e o até madrinhas de guerra. Ele franziu a cara, respirou fundo e, olhando-a bem, disse: - Falemos de nós, deste momento, pois, de certeza que “daquilo” não falo. Permaneceram a conversar, longa e alegremente de outros assuntos. Saíram para jantarem juntos e prolongaram deliciosamente o momento. Deram um pequeno passeio e ele acompanhou-a a casa. Entrou, cumprimentou a família e demorou-se pouco. Regressou rápido á residencial. Sentia, ao atravessar aquelas ruas suas conhecidas, a insegurança das sombras. Que diabo de vida. Porquê? Entrou, dirigiu-se ao bar e pediu um uísque. Bebeu rápido e pediu um segundo. Agora, mais calmo, rodando o copo entre os dedos, bebia lentamente. Sentiu alguém a aproximar-se dele. Já o tinha visto anteriormente. Talvez sentado a um canto do bar aquando da sua primeira chegada. Possivelmente. O sujeito dirigiu-se a ele sorrindo e cumprimentou-o num fraquíssimo português. - Sou o dono da residencial e falo muito mal a vossa língua. Riram-se e tentaram falar bilingue. Numa algaraviada que, pouco depois sem disso se aperceberem, estava a ser escutada pela esposa do proprietário. O marido apresentou-a. Alta, elegante, olhar azul penetrante e bonita, muito bonita. Falava pausadamente, ligeiro sotaque, sorriso franco. Gostou. Talvez por isso, ou por necessitar estar só, retirou-se para o quarto. Deitou-se devagar e calmamente adormeceu, embalado pelo ligeiro calor do aquecimento e por algum pensamento. Acordou tarde e, sem pressas, foi-se preparando para a saída. Já na rua sentiu uma ligeira brisa, vinda do lado do mar, a tocar-lhe agradavelmente a cara. Dirigiu-se na direcção da brisa, sentou-se numa esplanada, abriu o jornal, antes comprado e beberricou um café, enquanto dava pequenas dentadas num bolo de amêndoa. Fazia horas para o almoço com a namorada e gozava a paz dos deuses. De quando em vez parava, vagueava o pensamento para junto dos camaradas em país longínquo, acendia mais um cigarro e voltava, por vezes com dificuldade à leitura do jornal. Noticias de gente feliz…com ou sem lágrimas…felizes… Almoçou com a namorada. Passou talvez mais dois dias sempre iguais. Mas começou a sentir a diferença, a adaptação, por vezes havia um misto de acomodação e inquietação. Não recorda já. Possivelmente ao terceiro ou quarto dia, de tarde, teve que regressar á residencial. Junto á recepção estava o proprietário em conversa com uma mulher. Cumprimentaram-se e simpaticamente a mulher foi-lhe apresentada. Falou em inglês e recebeu a resposta em português. Riram-se. Acabou por se sentar só para beber um café. A jovem, mais de trinta e menos de quarenta, irradiava simpatia. Olharam-se, fundindo um olhar a não esconder a empatia mútua. Demorou-se pouco. Subiu ao quarto e telefonou tratando de vários assuntos. Á noite, depois do jantar e do habitual, no regresso à residencial manteve também a rotina: entrou no bar. Sentou-se e viu-a sozinha. Cumprimentou-a com uma vénia e disfarçou o sobressalto. Ela, pouco depois aproximou-se e sorrindo começaram a conversar. O dono e a esposa juntaram-se na conversa. Jogou um pouco á defesa e não tardou a despedir-se. Na tarde do dia seguinte vagueando pela marginal, viu-a. Sentiu aquele click de ter sido seguido. Desconfiança ou coincidência? Esperou-a e cumprimentaram-se. Depois falaram de banalidades durante algum tempo. Pouco. De repente ela disse: - Tenho que sair, antes do jantar, em trabalho. Quer vir comigo? Olhou-a, sorriu e, antes de responder ela voltou a falar; - Por acaso vi-o esta tarde a despedir-se de uma jovem, não quero que tenha qualquer problema. Estou habituada a andar só. Além disso é perto daqui. Olá…temos gente que sabe puxar o anzol…esperou e sorrindo respondeu: - Aceito. Antes tenho que voltar á residencial. Necessita de um bodyguard… - Nada disso. Sei que é militar. Queria somente companhia. Penso que conhece o Algarve e lembrei-me de o convidar pois penso estar em férias. Nada respondeu e regressaram á residencial. Ele telefonou em desculpa de súbita indisposição e não tardou a descer. Estranhou a demora mas, quando ela apareceu não deu o tempo por perdido. Vinha vestida em tom cinza, camisa branca, lenço de cor mais alegre, casaco comprido num braço, mala e pasta no outro e cabelo solto. Linda mulher! Saíram. O carro dela estava perto. Entraram, o rádio debitava música suave a condizer com o tipo de condução dela. Olhava-a pelo canto do olho, a camisa não tão solta que não deixasse imaginar um peito firme, a saia a subir um pouco. Conversaram de futilidades na curta viagem. Quando chegaram, depois dela arrumar o carro, ainda deram um curto passeio olhando o mar a entrar na noite e regressaram devagar. Deixou-se guiar. Sentiu o braço dela a entrar no seu. Talvez tenha estremecido. Olhou-a e sorrindo apertou um pouco, sentia-a mais próximo e o perfume suave a provocar-lhe um desejo difícil de conter. Entraram no restaurante. O gerente esperava-a. Ele foi até ao bar tomar um aperitivo. Pouco depois, já acompanhado por ela esperaram a chamada para o jantar. Finalmente vieram chamá-los. Comeu pouco e menos bebeu. Conversaram mais. Ela, com um entusiasmo contagiante, falava de turismo e das fortes possibilidades do Algarve. Ele ouvia, contradizia aqui ou acolá ou concordava. Quase a terminarem o café com o sempre apetecível, adorado por ele, bolo de amêndoa, o gerente veio entregar um pequeno dossier. Trocou breves palavras com ela e afastou-se. Saíram e ela pediu: - Guie-me você agora. Onde me quer levar? - Onde você quiser. Terá que conduzir porque não tenho carta de condução. Caminhavam afastando-se do carro e a brisa fresca levou-os a regressarem. Voltaram em curta corrida e ela, encostada ao carro, esperou-o abrindo os braços. Entrou neles, beijou-a levemente na testa e ouviu a pergunta: - Diz-me quem és. É melhor o tratamento por tu. Eu sou a Beatriz…e… Olhou-a e foi demasiado brusco na resposta. Sentiu isso no olhar dela. - Sou um homem em férias. Chamo-me José. Só isso e é muito. Entraram no carro e ele pediu para ela ir a uma cidade próximo dali. Viagem breve e conversa quase sem sentido. A desculpa foi a música. Chegaram, saíram mas sentiram demasiado frio. Férias de Janeiro… - Regressamos? - disse ela. - Tudo bem. O regresso foi lento e a conversa calma, mais intimista ou mais sentida. Pareciam dois velhos conhecidos. Chegaram e ele tocou-lhe no braço. - Já vou, não tenho cigarros. - Há no bar - disse ela. - Espera então um pouco por mim. Ela compreendeu. Demorou pouco. Ao entrar no bar viu-a com o casal habitual e para lá se dirigiu. Falaram, em boa disposição, durante algum tempo. Alegando necessidade de dormir retirou-se. Deixou a porta encostada, a luz mais fraca acesa e esperou. Virá? Calmamente fumava e, de quando em vez “voava” até Mansambo. Era a sua eterna viagem, o seu eterno sentimento de culpa de algo que não sabendo exprimir, o deixava triste, o levava a pensar nos camaradas…a porta de entrada não se mexia e pensou que ela não vinha. Mas veio. Entrou como um visão etérea, roupão claro, cabelos soltos e riso aberto. Olhava-a sorrindo e sem nada dizer. Afastou-se um pouco no sofá e ela sentou-se. Conversaram então, quase em sussurro, em aumento de desejo e continuaram, adultos que eram, a fundirem-se num só…com o sol de Inverno a chegar sentiu um beijo e observou-a, novamente envolta no roupão, a sair. Levantou-se, bebeu um pouco de água e acendeu um cigarro para, logo de seguida o apagar e voltar á cama. O dia seguinte foi igual aos outros. Não estava de bem com ele. Partira-se algo. Á noite, quando regressava à residencial, encontrou uns amigos e beberam bastante. Quando entrou, o bar ainda estava aberto. Bebeu um uísque. Pediu segundo e sentiu a mão do dono no braço: - Why? Regressou ao quarto. Sentada no sofá, ela ainda o esperava. Olhou-o, abanou a cabeça, levantou-se e saiu. Esteve, não se lembra quanto tempo ali. No dia seguinte telefonou para um amigo e disse-lhe: - Vais buscar-me ao final da tarde ao comboio do Algarve? - Porrada, não? Safa-te ou fala com quem sabes, aí. - Nada disso. Antes de entrar no comboio, despediu-se da namorada em promessa de regresso rápido. Viu-a acidentalmente anos depois. Quase dois desconhecidos. Da Beatriz nunca mais soube nada. Ainda regressou, talvez três anos depois á residencial…outras vidas… Quando desceu do comboio, contou ao amigo uma versão muito aligeirada de um arrufo de namorados. - Sabes como curas isso? A Francine perguntou por ti... Vamos… - Não! Conduz esta droga e vamos beber um copo... Mulheres…. (Qualquer relação com a realidade é pura coincidência… mas se e alterarem os nomes…isso é a vida) ___________
Notas de vb:
Último artigo da série em 15 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3741: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (3): Porra, meu alferes, sou cabrão, eu mato-a...

Guiné 63/74 - P3756: RTP1, As Duas Faces da Guerra (2): A Guiné sempre e a Diana Andringa às vezes... (Rui A. Ferreira)


Cartaz do filme

1. Mensagem do Rui Alexandrino Ferreira:


Assunto - A Guiné sempre e Diana Andringa às vezes


Meu caro Luís:

Tal como me recomendaste, ouvi com atenção a mensagem que a jornalista nos quis transmitir no programa televisivo que a nossa TV pública passou em hora nobre (*). O PAIGC é que eram os bons e nós tropas Portuguesas os maus.

É uma opinião a que logicamente tem todo o direito. Não será muito abonatória para o soldado português, englobando nessa designação todos quanto no cumprimento do Serviço Militar Obrigatório passaram pelas fileiras do Exército na Guiné e não só.

Gerações que durante treze arrastados e sofridos anos de guerra que extenuou, sacrificou, estropiou, mutilou a juventude de Portugal. Tudo aguentaram para dar ao poder político tempo mais que suficiente para lhe arranjar uma solução e que acabou por nunca acontecer.

Que tendo suportado contrariedades sem conta desde o desprestígio acelarado que as Forças Armadas vinham sofrendo, o descrédito em que foram caindo os mais altos escalões da hierarquia, a erosão a que a rotina da guerra conduziu, a desmotivação do Quadro Permanente, a mobilização praticamente total do contingente anual possível com a evidente perca da qualidade humna, a queda acentuada dos níveis de instrução, a justiça e falta de ideal da própria guerra acabaram por erigir mais uma epopeia de Portugal em África.

Numa África inóspita e desconhecida para a maioria, traiçoeira e perigosa onde se multiplicavam adversidades que iam da falta de água potável à má alimentação, das doenças tropicais endémicas às sexualmente transmissíveis, dos excessos do clima à precaridade ou inexistência de instalações, da ausência de material de guerra e logístico moderno, aligeirado ou de fácil manuseamento, o que contrastava com a rápida evolução e modernização do material usado pela guerrilha e que se acabou por chegar a uma situação que reporto única nos tempos e no mundo de um Exeréito Regular se encontrar em inferioridade técnica de meios.

Quer se viram confrontados com uma guerra onde o antagonista moralisado, matreiro, adaptado ao terreno, valorisado por anos sucessivos de luta, explorando as nossas fraquezas e melhorando os procedimentos a que pramaticamente só tinham para opor a abnegação, a capacidade de sofimento, a camaradagem, o espírito de sacrifício, um inacreditável poder de adaptação, um providencial sentido de desenrascanso, um extremo desembaraço, demonstraram uma imensa grandesa de alma.

Que se viram defraudadas nos seus sacrificios, vãos os seus esforços, inúteis as suas canseiras e inglórias tantas mortes.

Que se vejam esquecidos pelos seus próprios, muito mais preocupados em bajular o inimigo de então do que a reconhecer as dificuldades da sua acção. Que ve tentar amenizar, fazer esquecer ou nem disso falar do genocídio das tropas africanas que conosco e por nós combateram, que comprometemos com o slogan dum Porftugal do Minho a Timor e que desarmámos com promessas de integração num futuro Exército da Guiné com acordos com o PAIGC que sabíamos muito bem que não iam cumprir.

Genocidio que se pretende justificar com a pretensa violência com que essas tropas africanas actuavam. Que sorrateira e deliberadamente se esquece que se durante a guerra ambos estavam armados depois disso só uns tinham as armas. E como é diferente a situação. Ambos armados: matar ou morrer ou simplesmente morrer para os desarmados.

Não me parece, pois, que tenha sido uma justa abordagem do que sa passou, não me parece isenta, nem a homenagem que mereciam os soldados de Portugal que na Guiné deram tudo até a própria vida por aquilo que então se acreditava ser a defesa da Pátria.

A minha sincera homenagem ao meu herói - o soldado de Portugal. Que ninguém tenha vergonha nem de o ter sido nem do muito que fizemos pelo povo da Guiné.

Um grande abraço do
Rui Alexandrino Ferreira



__________________

Notas de L.G.:

(*) As Duas Faces da Guerra, filme-documentário, transmitido na RTP1, em duas partes, nos dias 14 e 15 de Janeiro de 2009, às 21.30h.

Ficha técnica:

Argumento e Realização: Diana Andringa e Flora Gomes; Imagem: João Ribeiro: Som Armanda Carvalho Montagem Bruno Cabral Produtor Luís Correia Produção Lx Filmes

Portugal, 2007, 105’, P/B e Cor, Betacam Digital, som 2.0, formato 4:3, Português e Crioulo

© Lx Filmes 2007
(P) Midas Filmes 2007

Filme estreado no DocLisboa2007, Lisboa, Culturgest, 19 de Outubro de 2007

Sinopse:

"Luta de libertação para uns, guerra de África para outros: o conflito que, entre 1963 e 1974, opôs o PAIGC às tropas portuguesas é visto, desde logo, de perspectivas diferentes por guineenses e portugueses. Mas não são essas as únicas “duas faces” desta guerra: mais curioso é que, para lá do conflito, houve sempre cumplicidade: 'Não fazemos a guerra contra o povo português, mas contra o colonialismo', disse Amílcar Cabral, e a verdade é que muitos portugueses estavam do lado do PAIGC.

"Não por acaso, foi na Guiné que cresceu o Movimento dos Capitães que levaria ao 25 de Abril. De novo duas faces: a guerra termina com uma dupla vitória, a independência da Guiné, a democracia para Portugal. É esta 'aventura a dois' que é contada pelas vozes dos que a viveram".


Participantes:

Chico Bá, Paulo de Jesus, Filinto de Barros, Agnelo Lourenço Fernandes, Sulei Baldé, Carlos Sambú, Amílcar Domingues , António Iria Revez, Teresa Barbosa , António Lobato, Manecas Santos, Osvaldo Lopes da Silva, João Marques Dinis, Vasco Lourenço, Pedro Pires, Ansumane Sambú, António Marques Lopes, Lassana Njai, Alfredo Santi, Mário Pádua, Manuel Boal , Maria da Luz (Lilica) Boal, Fernando Baginha, Amélia Araújo, Leonel Martins, Pedro Gomes, José Mendes Sentieiro, Mbana Cabra, Manuel Monge, Agnelo Dantas, Dalme Embundé, Féfé Gomes Cofre, Assana Silá, Alexandre Coutinho e Lima, Mamadi Danso, Assana Silá, Dauda Cassamá, Aladje Salifo Camará, Isabel Coutinho e Lima Manuel Batoréo.

Guiné 63/74 - P3755: Fauna & flora (12): Respondendo às perguntas sobre o macaco-cão (Pedro Neves / Alberto Branquinho)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3477 (1971/77) > Oráculo, com a imagem de Nossa Senhora de Fátima e do Santo Cristo dos Milagres... Na imagem, o Amaro Munhoz Samúdio, ex-1º cabo enfermeiro, está a pegar ao colo um bébé, não de macaco-cão, mas de chimpazé que ele comprou a um caçador local por 500 pesos... Foi um gesto bonito por parte dele, salvando de morte certa um animal que pertence à Ordem dos Primatas, como nós, e que é dos grandes símios o que partilha mais genes connosco (ou seja, o chimpanzé é nosso primo, o nosso primo mais próximo de acordo com a zoologia, a genética e a biologia evolutiva)...


Foto: © Amaro Samúdio (2006). Direitos reservados.


1. Mensagem do Pedro Neves, com data de 11 de Janeiro:

Caro Luis Graça:

Em resposta ao pedido da Drª Maria Joana Silva (*),vou relatar alguns factos, que se passaram comigo, durante o tempo de comissão na Guiné e mais recentemente há cerca de 8 (oito) anos.

Quando cheguei à Guiné, no ano de 1973, integrado na CCaç 4745/73, formada nos Açores, fomos tirar o IAO (Instrução de Adaptação Operacional) no Cumuré e, em frente à porta de armas, havia um conjunto de casas e numa delas um restaurante, cujo prato típico e principal era o de carne de Macaco-Cão e que, se bem me lembro, era vendido meio à sucapa e por encomenda. Nunca comi,talvez por pensar que estaria a praticar um acto de canibalismo!!!

Quando estive em Polibaque,a fazer a protecção aos trabalhos da abertura da estrada entre Jugudul e Babadinca (mata do Changalana), havia um Macaco-Cão no nosso destacamento, preso junto à porta de armas, e que pertencia ao 1º pelotão. Quando algum guineense passava por perto, ele ficava furioso.Penso que a reação do macaco se devia ao facto de ter sido capturado por um natural e a côr da pele marcava o seu comportamento. Mais tarde foi libertado.

Assisti à captura, na mesma zona, de um Macaco-Cão, ainda juvenil, por naturais, que consistia no seguinte método:

Dentro de uma garrafa presa ao chão, colocavam uma banana e o juvenil, quando metia a mão, dentro da garrafa e agarrava a banana, nunca mais a largava, mesmo quando era capturado, porque a mão ficava mais larga que o bocal e ficava assim preso, mas não largou a banana. Bastava largá-la, tirar a mão e fugir, mas preferiu ser apanhado a largar a comida, apesar de estar a gritar e apavorado.

Depois de partida a garrafa, sem magoar o macaco, não largou a banana. Dei alguns pesos(moedas) ao caçador e ele libertou o juvenil. Deve ter pensado, que o tuga era doido!

Durante a protecção aos trabalhos, um Cão pertencente à nossa CCaç (não me lembro a que pelotão) foi atropelado por uma viatura pesada, da empresa civil, que estava a construir a estrada e morreu. Logo apareceu um capinador (eram às dezenas), apanhou o cão e, quando lhe perguntei se o ia enterrar, ele e os outros, que entretanto se juntaram, disseram que era para comer. Se comiam carne de cão, tambem comeriam carne de Macaco-Cão, pelo menos algumas etnias.

Numa das minhas idas à Guiné-Bissau, fui visitar um acampamento de caça perto de Bafatá,de seu nome Capé e, entre outros animais, tinham um Macaco-Cão, do sexo feminino, que penso se chamava Mizé e que adorava catar os pelos dos nossos braços e vêr-se ao espelho em tudo o que reflectisse a sua imagem. Vaidosa e era um encanto!

Com este modesto contributo, penso têr ajudado um pouco,na pesquisa da Drª Maria Joana Silva, sobre os locais e como era respeitado pelo Exército Português o Macaco-Cão.

Aproveito para desejar, uma vêz mais a todos os camaradas e amigos, um BOM ANO de 2009!

Pedro Neves
ex-Furriel Mil Op Esp
CCaç 4745

Águias de Binta
inverterac@gmail.com


2. Mensagem do Alberto Branquinho, com a mesma data:

Respondendo, alínea por alínea, às questões colocadas pela doutoranda Maria Joana Silva (*):


(i) Onde foram avistados os grupos de babuínos ?


Onde vegetação fosse mais ou menos densa, com árvores de médio e grande porte. Posso referir, como exemplo, no sul (Catió, Cufar, Bedanda...), no centro/norte (Banjara, Canjambari...).


(ii) Quantos animais existiriam num grupo social e quantos machos adultos ?

10/15/20. Machos adultos-3 a 5. Havia sempre um mais idoso que assumia a liderança do grupo, caminhando à frente; era mais corpulento e tinha o peito coberto de cabelos brancos. Para além de seguirem as colunas militares apeadas, saltando de árvore em árvore, por vezes imitando a coluna militar em fila (se fosse em picada ou estrada), seguindo-a também em fila, estando à frente o macho corpulento e com cabelos brancos no peito.

Este e os outros machos adultos, quando provocados com gestos, "ladravam" e arreganhavam os dentes em atitude ameaçadora, chegando a dar cambalhotas como atitude agressiva ou dissuassora. As crias seguiam agarradas ao ventre (mais ao ventre que às costas) das fêmeas.


(iii) Se os babuínos eram caçados pelos caçadores das tropas para os portugueses ...

Não, nunca vi.

(iv) Se as crias de babuínos eram levadas para os quartéis...


Havia alguns quartéis que tinham um babuíno/macaco-cão que era uma espécie de mascote da unidade militar (por vezes "herdado" da unidade que os antecedera) ou era "companhia" particular de um soldado, que o cosiderava como seu. Houve casos em que tentaram embarcar com eles no regresso a Lisboa. O mesmo acontecia com os periquitos e conheci o caso de um veado. Os babuínos, por vezes, não estavam acorrentados e pouco se afastavam da zona onde eram alimentados e estavam alojados.

Se eram apanhados enquanto crias, é possível e verosimil. Os que conheci eram já adultos ou jovens adultos.

(v) Se os bloguistas ouviram falar de medicinas tradicionais que usassem peles de mamíferos (nomeadamente babuínos)...

Não.



(vi) Onde se comeria "cabrito pé de rocha" na Guiné ?


Não sei o que é ou que tenha sido. (**)

(vii) Outras informações deste teor que considerem relavantes.

a) Tendo andado por várias zonas da Guiné, desde o Nordeste (Canquelifá, Piche...) onde não me lembro de ver babuínos, Centro/Norte (Canjambari, Sambaculo, Banjara ...), Centro (Bambadinca,Xime, Xitole, Enxalé...), Sul( peninsula de Empada,Catió, Cufar, Bedanda, Cabedu...), Sudeste (Buba, Aldeia Formosa, Gandembel...), o território onde vi maior quantidade de babuínos e famílias mais numerosas foi no Sul - Catió, Cufar, Bedanda.

b) Em accões (que na gíria militar eram chamadas de psico-social para contacto com as aldeias próximas dos quartéis (quando as havia), por vezes elementos a população pediam para matar um babuíno que estivesse próximo e que, com a sua curiosidade natural, observava o ajuntamento de pesoas. Diziam que era para comer.

c) Creio que saberá que a designação de "macaco-cão" se deve ao facto de, quando em atitude defensiva e desafiante, ladrava "quase-quase" como um cão. Assim, também, os soldados chamavam ao sagui "macaco-gato", porque emite um som semelhante ao miar de um gato jovem. Alías, o sagui era preferido ao "macaco-cão" para "mascote", talvez por ser de pequeno porte mesmo quando adulto.

Desejando-lhe um óptimo trabalho e esperando ter-lhe sido útil, sou

Alberto Branquinho

______________

Notas de L.G. :

(*) Vd. último poste da série Fauna & flora > 17 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3751: Fauna & flora (11): O babuíno da Guiné ou... cabrito pé de rocha (Vitor Junqueira)


sábado, 17 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3754: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (14): Pode não ser-se herói e dar provas de coragem (José Manuel Dinis)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 22 de Maio de 1973 > A população e os militares abandonaram Guileje, às 5.30h, a caminho de Gadamael. Esta foto, dramática, é da presumível autoria do Fur Mil Carlos Santos, da CCAV 8350 (1972/74), segundo informação do seu e nosso camarada e amigo José Casimiro Carvalho, também ele da mesma unidade (Os Piaratas de Guileje) mas que nesse dia estava em Cacine. Faz parte do parte do acervo fotográfico do Projecto Guiledje.

Foto:
AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados. [ Editada por L.G.]


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 2410 (Junho de 1969/Março de 1970) > Abastecimento de água. Foto de
Armindo Batata, ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70). Outras :

Lista das
companhias que passaram por Guileje (1964/1973):


CCAÇ 495 (Fev 1964/Jan 1965); CCAÇ 726 (Out 1964/Jul 1966); CCAÇ 1424 (Jan 1966/Dez 1966); CCAÇ 1477 (Dez 1966/Jul 1967); CART 1613 (Jun 1967/Mai 1968); CCAÇ 2316 (Mai 1968/Jun 1969); CART 2410 (Jun 1969/Mar 1970); CCAÇ 2617 ( Mar 1970/Fev 1971); CCAÇ 3325 (Jan 1971/Dez 1971); CCAÇ 3477 (Nov 1971 / Dez 1972); CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 1973).

Foto: ©
Armindo Batata (2006) / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006) (com a devida vénia...).


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > A fonte que abastecia o aquartelamento e a tabanca de Guileje, a cerca de 4 km. Em primeiro plano, junto à bomba de água, o Fur Mil Op Esp J. Casimiro Carvalho. A aparente descontracção dos militares, em tronco nu, sem armas, a avaliar pela foto, sugere que alguma ligeireza no que diz respeito aos procedimentos de segurança. Presume-se que a foto seja ainda do início da instalação da CCAV 8350, em Guileje talvez finais de 1972 ou princípios de 1973... Como é sabído, antes da retirada de Guileje, em 22 de Maio de 1973, o último abastecimento de água ao aquartelamento e tabanca tinha sido feito em 19 de Maio de 1973. Os guerrilheiros do PAIGC, a avaliar pelas declarações de alguns dos protaganonistas dos acontecimentos, prestados no filme-documentário As Duas Faces da Guerra (Diana Andringa e Flora Gomes, 2007), tinham o controlo da fonte a partir dessa data (ou até mesmo antes)... É estranho que desde 1964, altura em que se instalou a primeira subunidade em Guileje, nunca se tenha equacionado e sobretudo tentado resolver o problema do abastecimento da água... Coutinho e Lima, nas onze razões que evoca para decidir retirar Guileje, apresenta em 5º lugar "a falta de água no aquartelamento" (Alexandre Coutinho e Lima, Cor Art Ref - A retirada de Guileje: a verdade dos factos. Linda-A-Velha: DG Edições. 2008. p. 78).(LG).

Fotos: ©
José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem de José Manuel Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71 (*)


Assunto - Comentário à apreciação de de António Martins de Matos (**)

[Subtítulos e negritos, da responsabilidade do editor L.G.]



Caros editores,

A retirada de Guileje tornou-se um assunto de eminente interesse para os tertulianos. E compreende-se, na medida em que foi aparentado a um sinal de derrota por parte das NT, coisa custosa de admitir por quem deu todo o esforço na defesa do território da Guiné, a grande maioria dos que por lá passaram.

Da apreciação feita pelo tertuliano António Martins de Matos, com base na sua experiência pessoal, e dos seus próprios conceitos, respigo algumas das ideias formuladas, confrontando-as com os meus pontos de vista, estribado nos conhecimentos a que tenho tido acesso.

(i) Comando do COP 5: Uma simples questão de perfil ?


Daquele texto, a ideia que mais me impressionou, foi a de que o Major não teria perfil para o cargo de comandante do COP-5.

De facto, como todos muito bem saberão, a avaliação de um perfil profissional resulta da análise de vários parâmetros, de que destaco os seguintes: a personalidade; o carácter; a inteligência; a competência; o relacionamento pessoal; o relacionamento institucional; a interpretação de normas; a recepção, interpretação e transmissão de ordens; capacidade física, etc. que, relacionadas entre si, proporcionam elementos fundamentais à avaliação do perfil. E, no que às organizações respeita, é da conjugação dos perfis dos seus responsáveis, que resulta o bom ou mau caminho, o sucesso ou insucesso.

No caso vertente, da retirada de Guilege, temos uma informação praticamente limitada à publicação, e a algum testemunho de personagens sem acesso a informação reservada, à voz do povo. E desse conhecimento, não me parece podermos inferir, que o Major não tinha o perfil adequado à função. Aliás, como muito bem refere o A.M.M., toda a cadeia de comando relacionada com o COP-5 terá falhado. Ora, estando o Major ao nível mais baixo dessa cadeia, por extensão daquele raciocínio, ninguem teria perfil para as funções que desempenhava, incluindo o General Com-Chefe, evidenciando a incompatibilidade.

(ii) A falta de segurança avançada e a sede do COP 5

Concordo com a referência à não efectivação de saídas do aquartelamento, naturalmente limitadoras da segurança avançada, bem como da informação sobre a real capacidade do IN, sem saber o que se passava para além do arame, declinando manter o IN em respeito. Mas, limitado ao pessoal da quadrícula, que parecia insuficiente, desgastado, e com falta de confiança, mais dois pelotões de milícia bastante exauridos após a emboscada, o Major pediu um reforço de pessoal para aquelas tarefas, mas, literalmente, levou com os pés.

Sobre o estabelecimento da sede do COP 5 em Guileje, ao contrério, eu penso que foi uma medida acertada, com vista ao estímulo do pessoal, à melhor identificação das dificuldades, e à autoridade que lhe advinha dessa prática, quer em relação aos subordinados, quer relativamente aos superiores. Não foi compreendido, pelo menos, pelos senhores da guerra, que iriam responsabilizá-lo, desresponsabilizando-se.

(iii) A falsa questão da culpa que morre sempre solteira

Refere, também, que houve outros militares que contribuiram para a queda de Guileje, dispensando-se, e bem, de os nomear, mas sem referir as causas dessa conclusão, apesar de algumas alusões à proibição de certos voos, ao critério de colocações em Guileje, e a algumas negligências por parte de algumas entidades.

(iv) Herói ou anti-herói ?

Refere, por último, "as várias tentativas que vêm sendo feitas de o apresentar como um herói, que não foi". Concordo, e passo a explicar.

A retirada de Guileje resultou de várias decisões erradas, ao longo do tempo, que vão desde a escolha do local para instalação da unidade, sem autonomia de água (como em vários outros), e sem acessibilidade periódica, contrariando ensinamentos medievos, sem equipamentos alternativos, de que as comunicações rádio se ressentiram, sem a solidariedade e falta de imaginação do comando, de que se destaca a dificuldade no processamento de evacuações, a recusa no envio de tropa, que garantisse o domínio (pelo menos o controle) da região e elevasse o moral dos residentes, a falta de municiamento suficiente e confiante, revelando não estar à altura da situação.

Em Guileje vivia-se à beira de um ataque de nervos, e ninguém os tranquilizou, bem pelo contrário. O Major revelou coragem, quando, para motivar o pessoal, incorporou a coluna de evacuação, ou quando foi à água. Também, quando regressado de Bissau, decidiu partir a pé, desde Gadamael, apesar da escolta de dois grupos de combate.

O Major não foi herói, mas incorporou o anti-herói, sem veleidades sebastianistas, sem sacrifícios descabidos, sem subserviência espúria, racionalizando os problemas latentes, partilhando com os seus subordinados, pessoas com capacidade de amar, de sofrer, de desejar, e, máximo dos máximos, comprometendo a sua carreira e vida familiar, pela salvação da tropa e dos que lhe estavam confiados. Também por isso foi corajoso, ousando bater com a porta ao controverso General.

Como diria o Meirim, sem ovos não se fazem omoletas.

Um abraço fraterno.

José Dinis

_____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 24 de Agosto de 2008 >
Guiné 63/74 - P3147: Tabanca Grande (83): José Manuel Dinis, Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda (1970/71)

(...) Chamo-me José Dinis, integrei a CCAÇ 2679 no CTIG, durante os anos de 1970/71, como Fur Mil, Companhia que, inicialmente, desempenhou funções de intervenção no Sector Leste, baseada em Piche, onde estava o BART 2857, tendo passado ao regime de quadricula em Bajocunda, em Agosto de 1970, substituindo a CART 2438, sendo dependente do COT1. Integrei o 2.º Pelotão, que comandei durante cerca de 18 meses, após a transferência compulsiva do meu grande amigo, o Alf Mil Eduardo Guerra.

O Grupo ficou conhecido por Foxtrot, e ganhou nomeada pela sua grande disponibilidade, entrega e arrojo. Ao nível da Companhia, regista o maior número de louvores e o menor número de porradas.

Em Piche fui dinamizador da estação de rádio ali criada, embora com a antena horizontal próxima do telhado de zinco para abafar as emissões. em virtude da falta de autorização para o efeito.

Em Bajocunda criei a jornal Jagudi, que expandia textos de diversos camaradas, bem como, por vezes, transcrevia artigos de orgãos da comunicação social. O Jagudi ganhou alguma notoriedade porque era lido pelo João Paulo Dinis no Pifas. (...)


(**) Vd. poste de 14 de Janeiro de 2009 >
Guiné 63/74 - P3737: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (11): Um erro de 'casting', o comandante do COP 5 (António Martins de Matos)


Vd. último poste desta série > 17 de Janeiro de 2009 >
Guiné 63/74 - P3752: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (13): A missão de apoio aéreo de 21 de Maio de 1973 (António Martins Matos)

Guiné 63/74 - P3753: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (17): com a arma na mão e o credo na boca. (Alberto Branquinho)

NÃO VENHO FALAR DE MIM… NEM DO MEU UMBIGO (17)

CAMBANÇA – II

Sempre que havia uma operação para norte do aquartelamento era necessário atravessar o rio, que distava, em linha recta, uns três ou quatro quilómetros.
A companhia saía, de noite, para sul, virava a leste ou oeste (como manobra de diversão), serpenteava pelo terreno uns quilómetros, até que invertia para norte, a caminho do rio.

No local da travessia o rio tinha cerca de duzentos metros de largo. Tudo era planeado de modo a que chegássemos junto ao rio quando a maré estava no seu pleno para evitar chafurdar (e perder tempo) nos dez ou quinze metros do lodo da maré baixa.

Com o rio iluminado pelas estrelas, os homens, em grupos de dez, carregados de G-3, cartucheiras, cantil, bazuca, granadas, metralhadora, embarcavam na canoa, que teria dez a doze metros de comprimento e um metro de largura.

A canoa aguardava encostada à margem, agarrada pelo remador. Baloiçava com a entrada de cada um dos passageiros e respectiva carga e metia uns goles de água. Completado o embarque, o remador, homem idoso e experimentado, empurrava a canoa para dentro do rio, entrava e, com um único remo, fixado à ré, fazia-a seguir silenciosamente.

A meio do rio e no meio da noite só se viam as estrelas no céu ou reflectidas na água, bamboleantes, devido ao leve chapinhar do remo e da proa a rasgar a água.
Alguns iriam rezando, encomendando a alma a Deus, mas todos iam tensos e silenciosos, tentando, talvez, localizar na água algum crocodilo noctívago.
Qualquer pequeno baloiçar ou movimento (sempre seguido da tentativa de o compensar para o lado contrário), fazia a água quase galgar as bordas da canoa. O risco de baldear a carga estava sempre presente e maior era quanto mais bruscos fossem os movimentos.

Chegados à outra margem, o remador saia e puxava a canoa para uma posição paralela à margem, para o pessoal sair.
A canoa regressava vazia à margem de onde partira e as viagens sucediam-se até passarem os últimos homens.

No fim de cada travessia o remador retirava do fundo da canoa a maior quantidade possível de água, com a ajuda de uma lata velha que transportava pendurada no apoio do remo. Ficava sempre alguma água, que aumentava com as oscilações do embarque.

No regresso da operação, dois ou três dias depois, o pessoal, cansado, voltava a fazer a travessia do rio do mesmo modo, mas, agora, em pleno dia.

Foi no início de umas dessas travessias nocturnas que um furriel, porque os soldados não acatavam a ordem para se sentarem no fundo da canoa, teimando em seguir de cócoras e com as mãos agarradas de cada lado para não molharem os fundilhos, que, sentado em último lugar, puxou a culatra atrás e berrou:

- Eu não sei nadar. Quero toda a gente com o cu sentado no fundo. Se esta merda vira, varo-vos a todos.
__________

Notas de vb:

1. Alberto Branquinho foi alf mil da CArt 1689, 1967/69. Andou por Gandembel, Empada, Bambadinca, Buba, Bedanda, Bafatá, Banjara...

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