Evocação da minha guerra no Leste da Guiné, para uso da jovem luso-francesa Adelise Azevedo, pela sua dedicação à memória da saga de combatente do seu avô, José Alves Pereira, da CCaç 727
A guerra independentista transformara a atractiva, acolhedora e então Guiné Portuguesa numa filial do inferno, Salazar e Amílcar Cabral os seus diabos…
Fui (e continuo a ser) camarada militar do teu avô: partilhámos das mesmas atribulações da guerra, no leste dessa ex-colónia do Império Português.
A Companhia de Caçadores 727 a que pertenceu o teu avô foi para o sector de Nova Lamego (actual Gabú) em princípios de 1964 e o meu batalhão (Batalhão de Cavalaria 705) foi em Maio do mesmo 1964. Amílcar tinha desencadeado a luta na Frente Leste, uma região de savana, e o PAIGC, reforçado com pára-quedistas da base de Kandica, do exército regular da Guiné-Conacri, a 1,5 km da fronteira de Buruntuma, manobrava à maneira de exército e com muito à-vontade, praticamente só importunados pela Força Aérea.
A minha Companhia de Cavalaria 703 foi largada em Nova Lamego, numa ponte aérea de 2 aviões Dakota, em missão de “intervenção às ordens do Comando-Chefe”, já a CCaç 727 e o teu avô penavam, em quase isolamento, por Canquelifá, Piche e Camajabá; depois de termos cumprido conjuntamente a missão de conter e refrear o ímpeto do PAIGC, a minha CCav 703 e eu fomos penar para Camajabá e Buruntuma.
A nossa primeira operação conjunta foi assim: a CCaç 727 mandou um pelotão (cerca de 30 elementos) em 2 Unimogs a Nova Lamego; fizera constar uma missão de reabastecimento, mas era um ardil, o PAIGC caiu nele e investiu toda essa força numa grande emboscada no itinerário Piche-Canquelifá, convencido que o aniquilaria, no seu regresso.
Itinerário Piche-Canquelifá - © Infogravura Luís Graça & Camaradas da Guiné
Naquela noite reuniu-se-nos em Nova Lamego um grupo de combate do Batalhão de Cavalaria de Bafatá, creio que era o “Sete de Espadas”, dotado de uma autometralhadora Fox e um granadeiro White, formou-se uma força de combate de cerca de 150 amadurecidos operacionais e um comboio de viaturas, que foi escoltar o regresso dessa malta a Canquelifá, com a autometralhadora a encabeçar a coluna e o granadeiro a fechar-lhe a retaguarda.
Um bazuqueiro do PAIGC surgiu no eixo da via, disparou frontal à Fox, matou o seu condutor, quase lhe invertendo o sentido da marcha, foi logo cortado a meio pelo apontador da sua metralhadora 12.7, que continuou a varrer a zona, seguiu-se meia-hora de inferno de rajadas, explosões de granadas de mão e de RPG, visando o blindado e o camião que se seguia; mas o comandante da emboscada não se havia apercebido da dimensão da coluna (creio que seria o nosso ex-camarada Domingos Ramos, herói nacional da Guiné-Bissau) e a tropa infligiu-lhe uma implacável derrota, por uma rápida manobra de contra-emboscada.
O rebentamento das granadas dos bazuqueiros da tropa fazia saltar boinas vermelhas acima do capim, que pertenceriam aos pára-quedistas da Guiné-Conacri; a gritaria dos dois lados foi medonha; a manobra da exploração do sucesso foi diferida; e a Força Aérea encarregou-se de “acompanhar” a sua retirada de vivos, mortos e feridos, até além fronteira. Dizia-se que, a partir desse confronto, o presidente da Guiné-Conacri proibiu os seus militares de voltar a pisar a linha de fronteira.
A ressaca estava terminada e na valeta encontrou-se um atónito guerrilheiro, a tentar desencravar a sua Kalash, que se identificou como ex-soldado e filho de um régulo de Farim e como guerrilheiro por coerção; deu um bom faxina da messe dos Oficiais e a tropa promoveu-o a primeiro-cabo.
O pelotão e os 2 Unimogs regressaram a Canquelifá e a tropa da escolta regressou a Nova Lamego, com um morto e alguns feridos.
Esta narrativa é uma síntese do contado pelos camaradas intervenientes, porque não participei nessa operação: eu e a minha secção fomos destacados a fazer segurança à famigerada jangada do Ché-Ché.
Guiné > Região do Boé > Rio Corubal > Cheche > 6 de fevereiro de 1969 > A famigerada jangada que servia para transporte de tropas e material, numa das últimas travessias, aquando da retirada de Madina do Boé.
A foto, histórica, é do comandante da Op Mabecos Bravios, o então cor inf Hélio [Augusto Esteves ] Felgas (1920-2008). Reproduzida com a devida vénia de Camões - Revista de Letras e Culturas Lusófonas, n.º 5, abril-junho 1969, pág. 15 (publicação editada pelo Instituto Camões; o n.º 5, temático, foi dedicado ao "25 de Abril, revolução dos cravos).
Entre Maio de 1965 e Maio de 1966, desenvolvemos grande actividade operacional em conjunto, pela região de Canquelifá, Madina do Boé, Buruntuma e ao longo do rio Piai, na fronteira Senegal/Guiné-Conacri, o corredor por onde o PAIGC infiltrava guerreiros e os reabastecimentos para as frentes leste e norte; numa delas, que não nos correu muito bem, tivemos o reforço do Grupo de Comandos “Os Diabólicos”, comandados pelo camarada Virgínio Briote, co-editor do nosso blogue.
Guiné > Brá > Setembro de 1965 > Grupo Comandos Diabólicos, completo, em frente à camarata do Grupo. Ao centro, na 1.ª fila, o 6.º a contar da esquerda, o comandante do grupo, alf mil Virgínio Briote. Na ponta direita, de pé, o srgt mil Mário Valente. Na 2.ª fila, de fé, na extrema direita, o 1.º cabo Marcelino da Mata.
Na altura, nos nossos meios constava as quadrículas de Canquelifá e de Buruntuma, na área de comando de Domingos Ramos, como as mais violentadas e desassossegadas do dispositivo militar da Guiné, em paralelo com as de Guileje e Bedanda, na área de comando de Nino Vieira.
Rendo homenagem à malta da CCaç 727: mocidade fixe, hospitaleira, generosa e soldados de comprovada valentia; em dever, recordo que as nossas escoltas, no regresso de reabastecimentos a Nova Lamego, Bafatá ou Bambadinca faziam sempre alto em Piche: esperavam-nos uma cerveja fresca, um pão quente de excelente qualidade e palavras de incentivo, antes de nos fazermos, com o coração em altas palpitações, ao troço dessa “estrada do Vietname”, até Buruntuma, que era uma sementeira de minas anticarro e antipessoal.
Mas a CCaç 727 era também desafortunada, comparativamente à CCav 703; dizia-se que “por cada tiro cada morto ou ferido”. Nos dois anos que levamos de permanente actividade operacional, teve 18 mortos enquanto a nossa apenas 1 – e estava adido (em Cufar). Influência dos seus comandantes e das suas idiossincrasias?
Na altura conheci o comandante da CCaç 727, então capitão de Infantaria Evónio de Vasconcelos, alma de poeta e oficial de tratamento lhano, já falecido, que virá a ser um influente “capitão”, nos sucessos do 25 de Abril e de 25 de Novembro.
O Comandante da CCav 703 era o então Capitão de Cavalaria Fernando Lacerda, oficial de vocação, personalidade sólida, tinha feito uma comissão na Índia, fez essa e outra na Guiné, foi Comandante da PSP de Moçambique e comandou a segurança à construção da barragem de Cabora-Bassa, despediu-se cedo do activo, mas não se despojou do espírito da Cavalaria; está vivo e recomenda-se.
Quando comandei o destacamento de Camajabá, em Abril/Maio de 1966, interagi com o alferes que comandava o destacamento da CCaç 727, na Ponte Caium, um lisboeta muito prestável, cujo nome não me recordo.
Talvez tenha sido monitor do malogrado alferes da 727, António Angelino Teixeira Xavier, na 1.ª recruta de 1964, em Janeiro e Fevereiro, no RI 13, Vila Real.
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PS - Se a Adelize (ou a mãe, Isabel Pereirea) me comunicar o endereço postal, terei o gosto de lhe enviar, pelo correio, o livro sobre a guerra da Guiné, da minha autoria, como oferta. [Imagem da capa, à direita]
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Nota do editor
Último poste da série de 16 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18422: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (51): O nosso camarada Virgílio Teixeira (ex-alf mil, SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) propõe-se ajudar a jovem luso-francesa Adelise Azevedo, de 14 anos, com materiais para o seu trabalho de EPI sobre "La guerilla en Guinée (1963/74)"... E quem mais pode dar uma mãozinha?