1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 16 de Abril de 2014, com mais uma memória de Buba:
Memórias da CCAÇ 2616
5 - Pequenas estórias de medo, pesadelo e apanhados do clima
O malogrado alferes Queiroz que eu fui substituir na CCaç 2616, em
Buba, morreu ao pisar uma mina anti-pessoal, num campo minado nosso
que penso terá já sido deixado pela Companhia anterior.
Uma das primeiras saídas que tive para o mato foi em direcção a esse
campo minado que distaria 5 ou 6 quilómetros do quartel. Foi toda a Companhia
e o objectivo já não sei se seria localizá-lo melhor ou fazer a sua
desminagem. Ao chegar lá, à beira do carreiro, não muito longe de mim, rebentou uma mina, olhei e vi um soldado milícia com o pé desfeito e a
sangrar abundantemente da perna. Comecei a sentir-me agoniado e
mal-disposto, devo ter ficado branco como cal. Tentei controlar-me de
forma a não denunciar a minha susceptibilidade. Consegui esse controlo
com alguma dificuldade talvez também porque as atenções estavam
concentradas no ferido. Teria sido um desastre em frente ao pelotão
que ainda mal me conhecia e com toda a Companhia presente se o
periquito desmaiasse. Não desmaiei mas apanhei um susto enorme. Os
meus amigos já imaginaram se eu desmaiava, enfim seria o fim duma
brilhante carreira militar!
Infelizmente houve outras situações em que houve derramamento de
sangue mas passei a reagir com a naturalidade própria de quem se
encontra numa situação de guerra.
Meses passados, só o pelotão perto da Bolanha dos Passarinhos a
tentar tapar um corredor da guerrilha, com origem na Guiné-Conacry,
por sinal desativado havia muitos meses na área de Buba, instalados
debaixo de muitas árvores que nos resguardavam do sol e do calor, caiu-nos uma trovoada terrível em cima.
Não sei se era uma ou se seriam
três ou quatro simultâneas, mais parecia um ataque aéreo com aviões a
jato e bombardeiros a despejar água a jorros e bombas em cima de nós.
A minha experiência de guardador de vacas ainda com terra idade na
aldeia, muitas vezes só, por lameiros no planalto ou regadas nos
vales, foi-me aconselhando a não ter medos inúteis das trovoadas
fortes da primavera apesar do muito barulho dos trovões e da
violência dos raios e coriscos, pois não havia conhecimento na terra, e
nas próximas, de ter havido mortos ou feridos graves por causa desses
fenómenos atmosféricos.
O meu optimismo tanto por cá como em terras da Guiné apoiei-o sempre
na lei das probabilidades. Segundo esse calculo era muito mais
provável regressar vivo da Guiné do que o contrário. Hipótese, diga-se
de passagem, bastante egoísta, talvez ditada pelo instinto de
sobrevivência.
Os outros camaradas do pelotão, pelo que recordo, seriam mais de áreas
urbanas portanto com menos experiência de trovoadas em campo aberto
que não oferecia proteção. Para todos era a pior situação dum
combatente, porque face ao perigo imaginado ou real, não podíamos ter
qualquer reação de defesa.
Confesso que nunca vi tanto medo no pelotão, vi alguns homens a rezar,
coisa rara entre jovens da nossa idade.No terramoto de Janeiro de 69,
estava em Mafra na recruta e também vi muitos camaradas a rezar.
Passado um bom bocado a trovoada passou e respirámos fundo.
O alferes Meireles veio de Nhala com o pelotão reforçar a Companhia de
Buba durante algum tempo e ficou alojado no meu quarto. Por
temperamento era um camarada bastante discreto, pouco falador, por
vezes até com o semblante carregado como quem pede que não o
incomodem. Apesar disso não deixava de ser bom camarada e simpático à maneira dele.
As nossas camas que colocadas em paralelo, distariam 1 metro ou 1,5.
Certa noite acordo com o Meireles aos gritos aflitivos de "cobra, cobra!" e sem ter tempo de o acalmar sinto-o voar da cama dele e cair
na minha como se o seu corpo tivesse molas.
Depois acabou por acordar e acalmar do pesadelo e voltou para a cama
dele e pouco depois retomamos o sono interrompido.
Passado algum tempo, em dia de coluna, na época das chuvas, com muitos
camaradas a precisar de alojamento, deitaram-se 3 ou 4 no chão do
nosso quarto. Deitamo-nos um pouco mais tarde como era normal quando
havia camaradas doutros quartéis pois ficávamos sempre algum tempo a
confraternizar e a beber umas cervejas no bar.
Quando já estávamos ferrados no sono começa o Meireles a gritar e eu
todo ensonado e aborrecido por me ter acordado virei-me para ele e
disse:
- Oh Meireles lá vens tu outra vez com as cobras!
Bem os outros camaradas que já tinham acordado também com os seus
gritos aflitivos reagiram com gargalhadas ao meu comentário. Pesadelo
chato para o Meireles, acordar rabugento para mim, mas gravei também
para sempre essas gargalhadas de boa disposição.
Buba, Maio de 1969 - Entrada principal da povoação e do aquartelamento
Foto: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados
Depois do Meireles veio de Aldeia Formosa o Rocha com o pelotão
reforçar a Companhia. Ficou igualmente alojado no meu quarto, já não
sei se era eu que me dava bem com todo o pessoal do Batalhão ou se o
meu quarto era a modos que um albergue espanhol.
Diferente do Meireles, era mais sociável, tal como eu transmontano,
eu do meio rural ele do meio urbano da cidade de Vila Real. Tal como
com o Meireles já tínhamos uma boa relação de amizade das suas idas
frequentes a Buba nas colunas de reabastecimento.
Ele sendo do tempo do Batalhão, tinha mais sete meses do que eu de
Guiné e talvez por isso mostrava estar um pouco afectado
psicologicamente. Dizia que estava apanhado pelo clima.
Tirem-me daqui! - gritava ele
muitas vezes. Havia outros gritos, alguns apenas sons tipo bramidos de
feras.
Noites havia que ficava bastante nervoso e como os nervos
dele mexiam com os meus, por vezes tínhamos discussões chatas que
provinham de tudo ou de nada. Essas discussões e zangas durariam cerca
de meia hora, pois ao passar esse prazo resolvíamos ir os dois ao bar
beber uma cerveja e brindar à amizade. Este ritual repetia-se sempre e
nós nunca tivemos uma zanga mais prolongada do que essa meia hora de
nervos e terapia.
Depois da Guiné não voltei mais a ver o Rocha. Gostaria de voltar a
beber uma cerveja com ele, bem como com o Meireles que também perdi de
vista.
Pensando bem acho que o Meireles agora será abstémio .
Um grande abraço a todos os camaradas.
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 21 DE MARÇO DE 2014 >
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