O filho mais velho do Cherno Baldé, de seu nome Abduramane Santos Baldé, "junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito, em Setembro de 2000. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964"
Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2010). Todos os os direitos reservados.
1. Texto, que vamos dividir em duas partes, da autoria do nosso querido amigo Cherno Baldé (*), e que veio acompanhado da seguinte mensagem, com data de ontem:
Estimado amigo e irmão Luis Graça,
Juntamente envio mais um texto fazendo parte das minhas habituais crónicas ou memórias do passado. Mudando um pouco de cenário, desta vez, os acontecimentos retratados são mais recentes e centrados sobre as tribulações de uma pequena familia, melhor, do seu desajeitadio chefe, no inicio da guerra de Bissau em 1998. Propositadamente, passei por cima do periodo que vai dos tempos de estudante em Bafatá, depois Bissau e da passagem pela antiga URSS. Voltarei, mais tarde, a este periodo se houver interesse.
O presente texto foi por mim escrito em 2000, alguns meses antes de emigrar para Portugal onde participei na construção do novo Estádio de Alvalade Sec. XXI (2001/02), como servente de qualquer coisa, na verdade não tinha as qualidades requeridas mas contava com a (cunha) ajuda de uma familia Portuguesa com a qual mantiamos excelentes relações de amizade e estima. Os encarregados topavam logo com o meu ar intelectual e a falta de jeito. Mandaram-me embora por duas vezes e reentrei outras tantas. Ai reencontrei os meus primos Ucranianos, enfim, foi muito interessante e enriquecedor.
Apreciem o texto e vejam se tem interesse para divulgação.
Peço desculpa se alguma vez disse o que não devia nos meus comentários e diga ao meu amigo Torcato para guardar a sua G3 porque eu sou, simplesmente, um pequeno rafeiro amigo da malta do quartel.
Com os melhores cumprimentos,
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)
PS: A foto [, acima,] mostra o meu filho junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964.
- É um golpe de estado, de certeza! - disse para a minha mulher, quase com satisfação.
Entretanto, pediam calma a população enquanto nos quartéis havia uma grande agitação. Todas as estradas de acesso ao centro da cidade estavam bloqueadas, havia confrontos em S. Luzia (QG), muita agitação nos aquartelamentos de Brá e na Base Aérea, onde tropas do governo tentavam desalojar os revoltosos ou vice-versa.
Seguiu-se uma acalmia de algumas horas e no início da tarde houve um ataque ao quartel de Brá com armas ligeiras, sem qualquer efeito especial, pois a situação mantinha-se na mesma, ou seja, de vez em quando ouviam-se tiros de armamento pesado seguido de um compasso de espera. As horas que se seguiram foram de uma grande curiosidade, toda a gente sabia tratar-se de um levantamento militar mas ninguém sabia nada sobre os cabecilhas da revolta.
2º dia > Segunda feira, dia 8 de Junho
Esta forma simplista e confiante de pensar que tudo se resolveria rapidamente revelou-se depois muito prejudicial, pois, o que se previa ser para algumas horas viria a durar mais de um ano, e passo a passo seriamos obrigados a seguir para mais longe, longe e longe, e finalmente seria o refúgio.
3º dia > Terça-feira, 9 de Junho
Na manhã do quarto dia de conflito (10 de Junho), sai de casa, atravessei a estrada principal do Bairro militar, tendo reparado que a estrada estava bloqueada e vigiada por tropas governamentais e que não havia circulação de viaturas. Para chegar ao Bairro de Ajuda, onde se encontravam minha esposa e filho, a única maneira era atravessar a bolanha a pé, lá para os lados de “manel iagu”. Foi para onde segui. Estava absorto nos pensamentos que se afluíam a minha mente de forma desordenada.
De repente senti que alguém me segurava por trás, impedindo-me de avançar. Estava com medo, mas nem por isso vacilei, virei-me para enfrentar quem quer que fosse. Os homens presentes diziam: Matem o macaco preto!. As mulheres, sempre mais humanas, gritaram-me para que fugisse. Eram muitos, aguentei por algum tempo mas depois tive mesmo que fugir debaixo das pedradas e insultos daqueles jovens ainda na idade da inocência, desprovidos de sentimentos de piedade e de amor ao próximo. Na briga, tinha perdido os óculos, as compras e parte das minhas vestes. As costelas, doridas, deixavam entrar o frio por todos os lados em pleno inverno russo. Consegui arrastar-me andrajoso, sob o olhar curioso dos transeuntes, até a residência dos estudantes. Não queria que os colegas soubessem, mas os sinais no corpo eram por demais evidentes, tinha levado uma sova a valer. Estávamos em 1990 e a União Soviética tinha entrado na sua fase irreversível de perestroika e nunca voltaria a ser a mesma dantes. O perigo espreitava de todos os cantos.
Impávido e feliz por aquele momento divino de contemplação, já não andava, corria, corria atrás daquela figura que parecia uma luz brilhante no horizonte inacessível da minha vida povoada de cenários de guerras. Sim, uma luz como a lua cheia numa noite escura que brilha mas não ofusca a vista, visão celestial. Corria como um sonâmbulo com as mãos em concha estendidas para a frente, num gesto ridículo e egoísta de não deixar cair nenhuma gota daquele mel doce da minha alucinação.
A velha, sorrindo insiste:
–N´hundê ku-na bai ?
– N´na bai djubi nh´ome k´stá na frénti – responde esta.
Não compreendo. Como pode ela chegar se eu ainda nem comecei a andar embalado no seu peito macio - pensei comigo.
- Não! - disse-me prontamente . Vamos esperar até amanhã.
Mais tarde soube que afinal ela não se tinha decidido a sair porque os seus vizinhos ainda não o tinham feito. Voltei para casa. Os tiros tinham cessado. Àquela hora da noite, já não havia nenhum movimento nas ruas do Bairro militar e certamente as casas também encontravam-se vazias. A noite foi silenciosa, longa e tensa. Eu, a tentar dormir, os ratos a explorar regiões antes proibidas na casa deserta, lá fora as BM (“baevie machine” - que literalmente significa máquinas de guerra em russo) a cuspir fogo de Estaline.
5º dia > Quinta-feira, 11 de Junho
(1) “Não pila, não cozinha mas come do melhor “– Uma elegia masculina dedicada ao balanco ondulatório das nádegas da mulher africana, na lingua Fula.
(2) Amilcar Cabral (1924-1973), antologia poética.
Este conflito provocar centenas de mortos e milhares de refugiados guineenses, não só em Bissau como noutras localidades, que se espalharam pelo interior e por diversos países (incluindo Portugal).
Haverá uma primeira tentativa de acordo nos dias 25 e 26 de Julho, altura em foi celebrado o "Memorando de Entendimento", um documento que, em 25 de Agosto, viria a dar lugar ao cessar-fogo. As delegações do Governo da Guiné-Bissau e a Junta Militar, de Ansumane Mané, concordam em fazer um trégua. No entanto, as coisas iriam complicar-se... A guerra civil prolongar-se-ia por mais quase um ano, com lutas pela conquista do território e expulsão das tropas estrangeiras, aliadas de 'Nino' Vieira. A maior parte da Guiné-Bissau acaba por ficar sob o domínio das forças revoltosas. 'Nino' Vieira acaba por aceitar um cessar-fogo em 7 de Maio de 1999. um novo cessar-fogo em 7 de maio de 1999, Refugia.se na embaixada portuguesa durante um mês, seguindo depois para um exílio de seis anos de exílio em Portugal (na sua residência em Gaia, arredores do Porto).