1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2012:
Queridos amigos,
Trata-se de uma recolha de depoimentos de militares condecorados por bravura. Um bom número deles passou pela Guiné. Há recordações tocantes e fica-se com a prova provada que os mais bravos guerreiros não esquecem os outros combatentes, a quem por vezes devem a vida. O tenente-coronel Nogueira Ribeiro não esquece o soldado 38, um felupe de quase 2 metros, que lhe disse algo que registou para toda a vida: Nosso Alfere não pode morrer, senão nosso ficar órfão. Ontem, no hospital dos Capuchos, nos cuidados intensivos, a olhar para o meu guarda-costas, Cherno Suane, em coma, esta frase cirandava-me entre a memória e um ponto obscuro do coração. Aquela comissão fazia-se de missões e algumas delas prosseguem toda a vida.
Um abraço do
Mário
Os últimos guerreiros do Império (1)
Beja Santos
“Os últimos guerreiros do império”, coordenação de Rui Rodrigues, Editora Erasmos, 1995, é uma coletânea de depoimentos de oficiais e sargentos ex-combatentes, de um modo geral possuidores das mais altas condecorações militares. São 18 depoimentos, 11 dos quais de combatentes que possuem (ou possuíam, alguns já faleceram) a “Torre e Espada”, militares de carreira e milicianos. Obviamente que nos vamos circunscrever à Guiné.
Damos a palavra em primeiro lugar a Hélio Felgas, ao tempo Brigadeiro. Este oficial- general destacou-se como escritor, foi professor catedrático da Academia Militar e fez duas comissões na Guiné, entre outras. No princípio de 1963 foi comandar um batalhão aquartelado em Bula e na segunda comissão, entre 1968 e 1969, chefiou o Estado-Maior do setor de Mansoa, comandou o batalhão de artilharia de Tite e depois o setor Leste,em Bafatá. Diz ter conhecido a Guiné a pé e de jipe, comandou 84 operações, sofreu 26 emboscadas e meia dúzia de flagelações nos aquartelamentos por onde pernoitava. No final de 1968 enviou um relatório a Spínola onde defendia a concessão da independência à Guiné-Bissau e transcreve uma passagem desse relatório:
“Neste final de 1968 a situação militar na Guiné chegou a um ponto tal que só muito dificilmente, e com muito otimismo, se poderá antever uma melhoria significativa.
Nos gabinetes em frente da carta talvez não seja difícil encontrar uma solução vitoriosa. No mato, porém, é muito difícil, e quem escreve isto tem três anos de mato.
Mesmo que venham mais helicópteros, mais páras, mais artilharia e mais aviação e ainda que os efetivos das forças terrestres sejam aumentados e estas sejam adequadamente dotadas com as granadas, munições e armas coletivas que ora lhes faltam, mesmo que isso suceda em breve prazo, nem assim o nosso êxito militar será garantido. O inimigo está demasiado bem armado, bem apoiado pela população, bem organizado e bem enraizado num terreno que lhe é favorável, para poder ser batido e expulso.
Realize-se uma operação em larga escala e veja-se o resultado: uns mortos e uns feridos, umas armas apreendidas, uns acampamentos destruídos e que mais? Mais nada. Se ao inimigo não convier o contato, basta esconder-se no mato e esperar que as nossas tropas se retirem. Ele lá ficará e reaparecerá quando quiser.
Aliás, o que se entende por uma operação em larga escala? Talvez 4 ou 5 Companhias de forças terrestres, 1 ou 2 de Páras e Comandos e a aviação. Que faremos com estes efetivos? Uma operação, mais nada. Alguns dias depois tudo estará na mesma”.
Hélio Felgas sugere mudanças drásticas na atividade militar, abandono de território e concentração de meios. Seria preciso definir bem o problema da população civil. E questiona:
“Dezenas de milhares de nativos vivem nas regiões sob domínio do IN, em tabancas perfeitamente visíveis do ar. Deve ou não deve a aviação atacar e destruir estas tabancas e a sua população? Valerá a pena um tal massacre ou não valerá? Isto é que é preciso saber”. Acrescenta, categórico:
“Eu bem sei que quem não conhece o mato da Guiné, nem as dificuldades deste tipo de guerra, sente-se inclinado a considerar exageradas as minhas palavras. Infelizmente, tenho a certeza do que afirmo. Deixou-se o IN inchar demais para se poder, agora, desalojá-lo com os meios que temos”. O brigadeiro Felgas considerava que se devia dizer verdade, na Guiné estava-se apenas a aguentar a situação:
“Estamos à espera que o IN adquira suficiente estrutura e capacidade militar para correr connosco. Mostramo-nos incapazes de o desalojar definitivamente seja de que área for”.-
Temos agora o Fuzileiro Comando João Seco Mamadu Mané, foi Segundo Comandante de um grupo de 25 homens na 3.ª Companhia de Comandos. Refere operações, ferimentos, lutas duríssimas, estará presente na operação a Kumbamory, em maio de 1973 a “Ametista Real”. Logo no primeiro dia perderam dois alferes, mortos a tiro, no meio das dificuldades, apareceu Marcelino da Mata que terá provocado grandes destruições. Em 1974 entrou em Canquelifá, um quartel quase destruído, há um mês que não se tomava banho, não se podia cozinhar, vivia-se de enlatados. Depõe o seguinte:
”Canquelifá fica no Nordeste, perto da fronteira com a Guiné-Conacri. Piche fica 30 quilómetros para o interior, e para fazer esta distância, em coluna, eram precisos 2 dias. Estava tudo minado. Às vezes com umas minas muito perigosas, que rebentavam se alguém se aproximava com qualquer coisa de metal. Para lá chegarmos não fomos por essa estrada, abrimos nós uma estrada com as viaturas, com o Batalhão dividido em pequenos grupos… Quando lá chegou a 2.ª Companhia, comandada pelo Alferes Bari (que depois mataram em 1977), capturou 3 morteiros pesados de 120mm. Nunca, durante toda a guerra da Guiné, tinham sido capturadas armas dessas. Estavam lá dois cubanos para regular o tiro. E foi preciso um dia para apanhar os morteiros. Avançava-se, recuava-se”.
Queixa-se das barbaridades dos fuzilamentos dos Comandos:
“No mês de março de 1975 começaram as prisões. Foi um mês negro para os Comandos. Eu fui preso. E fui torturado. Como muitos outros camaradas. Obrigaram-nos a carregar pneus gigantescos, pneus de Berliet, com jantes e tudo. Era uma das torturas, mas havia outras: como pendurar uma pessoa pelos pés, e dar-lhe chicotadas. Dentro da prisão obrigavam as pessoas a andar despidas, só com as cuecas… Houve camaradas que estiveram presos, 6, 7 e 8 anos. Alguns já tinham sido fuzilados e os familiares continuavam a levar-lhes comida e cigarros. Às vezes, os guardas pediam cigarros, as famílias estranhavam, diziam que eles não fumavam e eles respondiam que tinham passado a fumar, já estavam mortos. Outros ficaram aleijados para sempre, por causa dos maus tratos. Uma vez fui passar férias à Guiné e encontrei um soldado da minha Companhia, que tinha sido muito valente, chamado Mumó Sissé. Quando me viu começou a chorar. Contou-me que passou seis meses numa cela onde não se podia pôr de pé nem estender as pernas. Quando de lá saiu tinha uma perna e uma mão paralíticas. De vez em quando compro aqui uma camisa e uns calções e mando-lhe… Houve camaradas que foram presos no Senegal, na Gâmbia e na Guiné-Conacri. Foram mandados para a Guiné como se fossem peixe, para serem fuzilados… Eu tenho a minha vida mais ou menos resolvida. Mas muitos deles estão muito pobres. Não há mês nenhum que eu não passe duas ou três declarações a pessoas, para pedirem autorizações de residência. Muitos desses camaradas têm as suas condecorações e os seus louvores e às vezes nem autorização de residência têm… Se alguma organização fez alguma coisa por nós foi a Associação de Comandos, tem ajudado muitos camaradas a conseguir emprego, e eu sou um deles. Mas muitos, muitos dos que passaram connosco maus tempos, dormem por aí, na rua”.
Temos ainda os depoimentos de Marcelino da Mata, Nogueira Ribeiro, Maurício Saraiva e Almeida Bruno.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 17 de Fevereiro de 2012 >
Guiné 63/74 - P9498: Notas de leitura (334): O Ultramar Português, o que se dizia sobre a Guiné e se oferecia na Feira Popular em 1945 (Mário Beja Santos)