segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9006: Notas de leitura (300): Amílcar Cabral, por Oleg Ignátiev (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Outubro de 2011:

Queridos amigos,
Esta biografia romanceada, com episódios dignos da mitologia e da saga patriótica, vale pelo que vale. Foi a primeira biografia, o que se estranha é que o jornalista não tenha medido as consequências de que o panegírico tinha buracos e remendos, que tudo (ou quase tudo) se iria desvendar mais tarde.
Agora mudo de agulha.
Tenho outros panegíricos para ler, os de Horácio Caio e José Manuel Pintasilgo, ao serviço da propaganda de Marcelo Caetano. Ando a folhear o livro histórico, a grande preciosidade de JERO que o nosso confrade Belmiro Tavares depositou nas minhas mãos, o seu diário referente ao primeiro ano de comissão da CCAÇ 675 que saiu de uma tipografia, em 1965.
Afinal, não foi só o Armor Pires Mota quem escreveu diários em 1965. E o nosso confrade António Marques Lopes enviou-me as conversas com o comandante Bobo Keita que trazem algumas revelações surpreendentes.
Enfim, trabalho não me falta, como nos contos das 1001 noites.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral, a biografia romanceada de Oleg Ignátiev (2)

Beja Santos

O principal mérito desta obra reside na cimentação cronológica, o jornalista soviético conhecia com alguma profundidade a formação de Amílcar Cabral e o percurso da sua formação. Daí que, nos traços essenciais, o itinerário do líder do PAIGC em Cabo Verde, Lisboa, Guiné, Lisboa, Angola, um saltitar entre a Europa e norte de África, a fixação em Conacri, etc., apareça correcto. Pode até entender-se que tenha procurado escrever, por imperativo ideológico, um retrato biográfico de hagiografia, um mártir de causas, um visionário impoluto, um marxista visionário mas agradecido às múltiplas ajudas de Moscovo. O que se torna completamente incompreensível é confundir a propaganda do PAIGC com a visão que ele próprio devia ter dos acontecimentos e da realidade da luta política e militar que se travava na Guiné.

Ele fala do congresso de Cassacá como se este tivesse sido um evento pré-programado. Luís Cabral e Aristides Pereira deixaram bem claro que Cassacá foi uma reunião que se transformou imprevistamente num congresso, durante 30 horas sem pausa Amílcar Cabral fez análise da situação política, fez aprovar o programa do PAIGC, estabeleceu uma orgânica para as forças militares, deliberou sobre infra-estruturas e subitamente encetou-se um ajuste de contas com elementos torcionários que amedrontavam a população, especialmente na região Sul.

O programa do partido era inconfundivelmente baseado no socialismo autoritário: um partido vanguarda, uma economia controlada pelo Estado, propondo uma política externa formalmente de não alinhamento em blocos militares. A descrição de Ignátiev quanto à prisão dos dirigentes com comportamento repreensível é de uma candidez espantosa. Foram presos e não se fala mais no assunto.

Por conveniência de serviço, o autor maquilha a análise marxista heterodoxa de Cabral quanto ao proletariado com um partido-guia fundamentado na pequena burguesia. Mais tarde, em Havana, em 1965, Cabral expendeu doutrina que inquietou o leninismo convencional. Pela primeira vez e abertamente, um dirigente revolucionário defendia e justificava uma pequena burguesia nacionalista a liderar um proletariado rural. Na sua utopia (que Ignátiev justificadamente ignora) Cabral confiava que a classe dirigente iria por osmose adquirir uma concepção da classe operária.

Na continuação dos dislates já anteriormente escritos, Ignátiev continua descarado na menção de mentiras descomunais:

 “Nos territórios libertados o partido criou dezenas de escolas. É de destacar que até ao fim de 1966 os patriotas tinham libertado 60 % do território da Guiné portuguesa com quase 50 % da população”.

Um jornalista experimentado na luta de guerrilhas descreve a acção dos portugueses como uma invasão dos hunos, atacando aldeias pacíficas nas regiões libertadas. Aparece uma primeira referência a Inocêncio Cani, compreensivelmente desprimorosa:

“Recordo como Amílcar visitou uma base perto de Mansabá que era comandada por Inocêncio Cani. Os habitantes da região queixavam-se de que ele os tratava mal. Amílcar, depois de regressar da viajam, deu ordem para demitir Cani do posto de comandante da base”.

Depois embarca em mentiras revoltantes como o massacre de Jolmete, de 20 de Abril de 1970, isto depois de já ter dito que o PAIGC conquistara Madina de Boé, de que Spínola tinha atraído um tipógrafo coxo, Rafael Barbosa, para a sua causa e que os antigos prisioneiros libertos foram postos ao serviço da PIDE. Afinal não houve massacre nenhum, diz Ignátiev, o que se passava no chão Manjaco é que três majores que trabalhavam para a PIDE saíram de um carro durante uma operação em que se ia encontrar com um renegado do PAIGC, a coluna foi atacada com rajadas de espingardas-metralhadoras, e os oficiais ao serviço da PIDE foram capturados. E escreve sem nenhum tremor da consciência:

“No mesmo dia, o tribunal militar do PAIGC condenou os 4 ao fuzilamento, executando-os imediatamente. Foi este o desfecho de uma operação que na história do PAIGC figura como operação dos três majores. A pena de morte em relação aos dirigentes da acção psicológica devia mostrar ao general Spínola que os combatentes e os comandantes do PAIGC nem se compravam nem se vendiam e estavam determinados a lutar até expulsão do último soldado colonialista”.

Fica-se igualmente com a ideia, quando está a descrever os acontecimentos relativos a 1970, que Ignátiev está mortinho por acabar o livro, entra num rimo frenético e aborda superficialmente os eventos em catadupa: participação nas solenidades por motivo do centenário do nascimento de Lenine, a polémica audiência de Paulo VI aos representantes dos movimentos de libertação nacional. A invasão de Conacri, os périplos de relações internacionais em que Cabral andou numa roda-viva em 1971 e 1972, acrescentando o facto de ter havido uma missão especial da ONU em 1972 que aumentou a credibilidade internacional do PAIGC.

Chegamos depois à reunião em que Cabral mostrou a informação 42/71/DGS durante uma reunião partidária, versando o seu conteúdo a um plano para acirrar descontentamentos internos e levar ao derrube da actual Direcção com a promessa de Spínola assegurar postos elevados na vida política do futuro Estado guineense, donde estariam liminarmente arredados os cabo-verdianos.

A verdade é que este documento existe o que não existem são as provas de qualquer tipo do envolvimento da DGS no plano de assassínio de Amílcar Cabral ao contrário do que diz categoricamente Ignátiev. Pela primeira vez é escrito o nome, de acordo com depoimento de Ana Maria Cabral, de quem deu o tiro de misericórdia no líder do PAIGC. Terá sido Inocêncio Cani quem deu um tiro de revólver que o feriu, seguiu-se uma grande discussão e então Inocêncio Cani ordenou a Bacar que ultimamente era soldado na garagem para acabar com ele:

“Amílcar estava sentado no chão, de costas viradas para Bacar, que baixou o cano da metralhadora e disparou. Disseram-me depois que uma das balas o atingira na face e a outra na cabeça. Foi assim que eles mataram o meu marido”, remata Ana Maria Cabral que viveu todos estes acontecimentos ao lado do marido.

O jornalista não esconde o seu fraco para caracterizar Cabral como o mártir de uma causa justíssima. E volta à carga passando descaradamente dos dados biográficos para o panfleto:

“As forças armadas do PAIGC intensificaram os ataques ao inimigo, de Março a Setembro de 1973 a defesa antiaérea do PAIGC abateu mais de 40 aviões inimigos. As guarnições portuguesas eram destruídas uma após outra, libertavam-se novas áreas”.

É isto o essencial o miolo da biografia romanceada de um jornalista que visitou repetidamente a Guiné-Bissau, escrevendo sobre ela dezenas de artigos e notícias, seis livros e dois filmes documentários.

Voltaremos em breve a falar de Ignátiev e do seu livro com a versão oficial do assassinato de Cabral a soldo da PIDE.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8995: Notas de leitura (299): Amílcar Cabral, por Oleg Ignátiev (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9005: In Memoriam (95): Recordando os camaradas mortos da 38.ª CComandos (Amílcar Mendes / Carlos Vinhal)





1. Aproveitando um trabalho efectuado a pedido do nosso camarada Amílcar Mendes (ex-1.º Cabo Comando da 38.ª Companhia de Comandos, Brá, 1972/74), publica-se a listagem dos mortos da sua Unidade.






- Soldado Comando Idílio da Costa Moreira, natural do Bonfim, Porto, faleceu no HM 241 em 15JUL72 por motivo de acidente com arma de fogo

- Soldado Comando Francisco José Matos da Silva, natural de Terena, Alandroal, faleceu no HM 241 em 08AGO72 vítima de ferimentos recebidos em combate (Mansoa)

- Fur Mil Comando Artur Jorge Tavares Pignateli Fabião, natural de Seia, faleceu no HM 241em 21NOV72 vítima de ferimentos recebidos em combate (Caboiana)

- Soldado Comando Mário Branco da Costa Chaves, natural de São Sebastião, Setúbal, faleceu no HM 241 em 21NOV72 vítima de ferimentos recebidos em combate (Caboiana)

- Soldado Comando Cecílio Manuel Ferreira Franco, natural de Milharado, Mafra, faleceu em 01FEV73 vítima de acidente com arma de fogo

- 1.º Cabo Comando José Joaquim Teixeira Simão, natural de Rio Maior, faleceu em 01FEV73 vítima de acidente com arma de fogo

- 1.º Cabo Comando Luís Manuel Oliveira Barreiras, natural de Aldeia Velha Santa Margarida, Avis, faleceu em 01FEV73 vítima de acidente com arma de fogo

- Soldado Comando José Luís Inácio Raimundo*, natural de Vila Nova de São Pedro, Azambuja, faleceu em 12MAI73 vítima de ferimentos recebidos em combate (Guidage)

- 1.º Cabo Comando Amândio da Silva Carvalho, natural de Sarzedo, Arganil, faleceu no HM 241 em 10MAR74 vítima de ferimentos recebidos em combate (Sector de Bissau)

- Soldado Atirador José Alexandre Costa, natural de Soio, Vinhais, faleceu no HM 241 em 27ABR74 vítima de ferimentos recebidos em combate (Cantanhês)
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

30 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1223: Soldado Comando Raimundo, natural da Azambuja, morto em Guidaje: Presente! (A. Mendes, 38ª CCmds)

1 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1232: O soldado comando Raimundo, morto em combate, não foi abandonado em Guidaje (A. Mendes, 38ª CCmds)

13 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2840: Efemérides (7): Morrer em Guidaje...Mama Sumé, camarada Comando José Raimundo (Amílcar Mendes, 38ª CCmds)

9 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5431: O Nosso Livro de Visitas (73): Doce lembrança do meu tio José Raimundo, da 38ª CComandos, Os Leopardos, natural da Azambuja

6 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8232: In Memoriam (76): Isabel Raimundo Conde homenageia seu tio José Luís Inácio Raimundo, Soldado Comando da 38.ª CCOM (morto em combate em Guidaje a 12 de Maio de 1973), no dia do seu 61.º aniversário

Vd. último poste da série de 15 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8910: In Memoriam (94): António Dias das Neves (1947-2001), Sold At Cav, CCAV 2486 (Bula, 1969/70), "o meu herói" (Marisa Neves)

domingo, 6 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9004: Estórias avulsas (58): Posto avançado ou vala comum? (Carlos Filipe)




1. Em mensagem do dia 5 de Novembro de 2011, o nosso camarada Carlos Filipe Coelho (ex-Soldado Radiomontador da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), enviou-nos esta, quase trágica, história passada em terras do Leste da Guiné:






POSTO AVANÇADO OU VALA COMUM ?

Local: Galomaro, Guiné-Bissau 1972

Galomaro > Entrada do Quartel
Foto: © Luís Dias (2011). Todos os direitos reservados.


Fim de tarde, o ritual do jantar quase sempre composto de vianda e estilhaços (arroz e pedaços de carne mais ou menos estufada) tinha terminado.
A maior parte dos meus camaradas dirigiam-se à entrada do destacamento onde já se encontravam as talvez três dezenas de jovens (bajudas) lavadeiras.

Com o corpo algo confortado pela refeição, dava-se inicio a um baile de tentações, libertação de afectos contidos, em que dançam alguns recalcamentos, pintalgando aqui e acolá um ambiente de sonoros risos, gritinhos e curtas corridas de tentação, num desafio quase erótico entre sexos.

Enquanto isto um pequeno grupo de soldados preparam suas armas e restante equipamento, para ocuparem seus lugares nos postos de vigilância e segurança, e partirem para os patrulhamentos até alguns quilómetros de distância durante a noite. A saber, sentinelas no interior e exterior, os chamados postos avançados.

É a partir deste clima que alcanço o meu primeiro susto, passado uma ou duas semanas da minha presença em Galomaro (sector Leste da Guiné-Bissau).

Não estando eu destacado para nenhum serviço (o que muito poucas vezes aconteceu e ainda hoje não compreendo o porquê), resolvi juntar-me a um pequeno grupo de camaradas com destino aos postos avançados. Esta iniciativa não foi por qualquer tipo de valentia, mas sim porque tinha assumido conhecer tudo que possível, conforme os objectivos a que me propus e que me levaram a admitir o meu embarque com destino aquelas paragens numa guerra injusta.

Formamos um grupo de quatro homens. Incluídos um furriel mecânico (da minha Companhia), e um cabo dos ‘velhinhos’ que ainda não se tinham retirado com destino a Portugal.

Com o ritual do fim de tarde a decorrer à porta de armas, talvez mais suavizado, dirigimo-nos ao posto avançado, uma vala no solo, talvez a 400/500 metros de distância na sua direcção.

Íamos todos de G3, sendo que o furriel (o mecânico) tinha a arma municiada com um dilagrama, que é nem mais nem menos que uma granada adaptada à ponta do cano da G3.

Aparentemente tudo dentro da normalidade. Chegados ao destino saltamos para dentro da vala e encetamos uma amena cavaqueira, enquanto por vezes dirigíamos um olhar para o limite da vegetação entrepondo-se uma bolanha (terreno para cultivo de arroz) já com pouca água, pois estávamos na época seca.

Claro que o protagonista num momento, ora autor noutro das histórias, era o ‘velhinho’ que nos deliciava com um imaginário, quando para nós ainda não tinha havido um conhecimento real do cenário de uma guerra, contra um movimento de guerrilha de difícil combate, levando-nos portanto a uma expectante futurologia.
De quando em quando o ‘velhinho’ quase poetizava o seu regresso a Portugal que seria num dos próximos dias, quem sabia se no dia seguinte.

Passado talvez uma hora, temos na escuridão da noite o desenrolar de uma cena muito próxima de um teatro de marionetas.
Na quase absoluta escuridão, um número pequeno de vacas (ou bois?) desfilam em direcção à nossa direita, sem qualquer variação de percurso, nem um pequeno desvio, sempre em fila e sem paragens. Gado “inteligente”, ainda hoje estou convicto disso...

Para o ‘velhinho’ não menos astuto, perante o desenrolar da cena, explica-nos que o comportamento do gado devia-se a que estava a ser conduzido por pessoas escondidas pelo volume do corpo dos animais; colocando-se em dúvida se seria população afecta ou não ao PAIGC, ou até mesmo seus guerrilheiros.
Já quase a saírem do nosso raio de visão, que fazer? Disparar ou não? NÃO.

Reacção talvez instintiva do ‘velhinho’, eram os seus últimos dias de mato e quem sabe o seu último dia em Galomaro. A inicial expectativa (receio?) dos ‘periquitos’ (os recém-chegados ao mato) contribuíram para aquela decisão de não disparar. Além do mais não tínhamos rádio para comunicações.

Passados estes palpitantes minutos de análise e estratégia, voltamos à descompressiva conversa, para passado momentos tornar com motivos de sobra a gelar naquela amena noite tropical.

Agora o assunto era armamento, suas características e um dos tópicos foi o alcance dos dilagramas (a tal granada na ponta da arma), e consequentemente a munição a utilizar para o seu disparo.

Como um certeiro tiro, o ‘velhinho’ pergunta ao furriel (personalidade um pouco apagada naquele convívio dentro da vala) e que transportava o dilagrama na ponta da G3, que munição tinha no carregador da arma para disparar a granada.

O furriel responde, convicto, que tinha munição real. Como disse creio que gelamos sob aquela temperatura africana.

Nosso ‘velhinho’ com uma calma indesmentivel (pelo menos aparentemente) pede a ponta da metralhadora ao furriel e sacou a granada da arma, num silêncio indecifrável.

Retirado o mortífero engenho dá-se inicio a uma rajada de improprérios. “Caralh... queria matar-nos a todos ?... o que veio para aqui fazer ?....” e continuou tá tá trá.

Não vi o estado facial do furriel, porque estávamos ao lado uns dos outros e o espaço não era muito, mas sei que não pronunciou uma palavra.

Entretanto passou o tempo deste turno de vigilância e regressamos ao destacamento. Chegados, cada um foi para seu abrigo, talvez cogitando sobre o sucedido.

Por meu lado pensei: “fod... a primeira situação de perigo que se me depara é com os meus camaradas de tropa e não com o PAIGC merd.. para isto, o que virá a seguir ?”

Sob brasa, gostei de estar na vossa companhia naquela noite, quando ainda não tinha tido alguma experiência do tipo. Embora dentro de um buraco a que chamam vala, que podia ter sido “comum” não deixamos de contar anedotas e contrariar a regra do silêncio que se impunha naquele lugar e serviço.

Obs. - Um dilagrama tem que ser disparado (lançado) a partir de uma arma, com munição de salva. Composta só de pólvora sem projéctil. Se for disparado com munição real a granada rebenta de imediato a curtíssima distância.

Carlos Filipe,
2011-11-03
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 21 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8455: Memória dos lugares (156): Texas, o anexo do Hospital Militar Principal, na Rua da Artilharia Um, em Lisboa (Carlos Rios / Rogério Cardoso / Jorge Picado / António Tavares)

Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8762: Estórias avulsas (116): O 400 da CART 1746 (Manuel Moreira)

Guiné 63/74 - P9003: O nosso blogue em números (10): Atingidos os 9 mil postes, a caminho dos 3 milhões de visitas... Tempo de balanço(s)...


Guiné > Bissau > Foto do ex- Fur Mil Arlindo T.Roda, da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969 / Março de 1971)... Cais do porto de Bissau... 1969 ? 1971 ? Chegada ou partida do navio (Niassa, em 1969; Uíge, em 1971) que transportou os militares, de rendição individual, da CCAÇ 2590/CCAÇ 12

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados

1. Mensagem do fundador e editor do blogue Luís Graça:


Amigos/as e camaradas da Guiné, membros da Tabanca Grande (que já é do tamanho de um batalhão: a última entrada é a nº 525)... Estimados/as leitores/as:

(i) Acabámos de ultrapassar os 9 mil postes e estamos a chegar aos 3 milhões de visitas, dentro de dias... Tal como ultrapassámos os 27 100 comentários, de Maio de 2010 até hoje (*)...


São números simpáticos para um blogue como o nosso, que não aborda a atualidade política nem social... 


Estamos a blogar desde desde 23 de Abril de 2004, quando demos início à I Série...que terminou em 1 de Junho de 2006, com 825 postos (com numeração romana), pouco mais de 1 centena de "tertulianos" e cerca de 68 500 visitas (!)...

(ii) Se há alguma coisa para celebrar é a nossa... sobrevivência, quiçá teimosia, mas seguramente engenho, empenho, motivação, confiança, sentido de missão, identidade... E trabalho, trabalho, trabalho... Com o vosso apoio, com a dedicação e competência dos nossos editores e colaboradores, mais permanentes, menos permanentes... Claro, com os autores que escrevem, com  os leitores que nos visitam e comentam (**)... 


Não quero nem devo destacar, por enquanto, ninguém em particular... Procuramos trabalhar em equipa e o que conta não é o protagonismo de ninguém em particular, é assim este resultado concreto, o blogue que fazemos todos os dias, e que - talvez utopicamente - queremos que seja de todos e para todos..


(iii) Erros, lapsos, dislates, asneiras, burrices, gralhas, tiros no pé, incongruências, incoerências...? Mas com certeza, só quem não vai  à guerra e que não apanha tiros ou estilhaços... 


Por isso, queremos fazer mais e sobretudo melhor, o que nos obriga a inquirir duas coisas junto dos nossos leitores:

(a) O que é que está menos bem, hoje em dia ? O que é que vocês, que estão do outro lado e nos leem (escrevo segundo a nova ortografia...),  pensam do blogue atual, nos seus aspetos negativos ?

(b) O que é que está bem ? Quais os aspetos positivos, que devemos manter e valorizar ? O que é que o blogue representa (ainda...) para cada um de vocês, sobretudo para aqueles que se identificam com a nossa "política editorial", com a ideia de fazer um blogue de partilha de memórias e de afetos à volta da Guiné e da guerra que nos levou lá (grosso modo, de 1961 a 1974) ?

(iv) Aceitam-se  (e publicam-se, desde já)  as vossas opiniões, desde que devidamente assumidas e assinadas, a remeter para o nosso endereço de correio eletrónico: luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com


Queremos conhecer o "coração" e a "razão" da Tabanca Grande. Com a frontalidade e a lealdade  com que nos temos tratado, uns aos outros,  ao longo destes 7 anos e tal, a caminho dos 8, se lá chegarmos (, a 23 de Abril de 2012).

(iv) Não esqueçam por favor duas ou três coisas elementares: 


(a) somos muito poucos para tanto trabalho; 


(b) o Carlos Vinhal assegura mais de 50% dos postes publicados; 


(c) não temos quaisquer apoios financeiros (e o blogue também tem custos...); 


(d) proliferaram nestes últimos anos as tabancas, os blogues, os "sites", as redes sociais sobre a guerra colonial/guerra do ultramar (o que é ótimo, embora dispersando a atenção dos leitores que continuam a ser fiéis ao nosso blogue) ;  


(e) muitos se "inscrevem" (na Tabanca Grande) mas poucos "escrevem" (no blogue), etc. 


E  em todo o caso, gostamos de dizer, comn humor e com ternura, que  o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande

(vi) Dito isto,  amigos e camaradas da Guiné (incluindo os leitores que nos visitam), toca a alinhavar um pequeno comentário (a colocar na caixa de comentários ou a remeter para o nosso email)... Vamos sacudir essa letargia... Positivo ou negativo, é para nós muito importante e motivador o vosso comentário...  Na calha, há já uma meia dúzia de comentários que nos foram enviados internamente, pelo correio da Tabanca Grande... e que serão oportunamente publicados nesta série.


Os tempos que correm não são de euforia(s). Mas os camaradas da Guiné  não são "bipolares", dados a euforias e depressões, são campeões da sobrevivência, da arte de saber lutar e saber viver... 


Saudações bloguísticas para todos/as. Luís Graça.

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Notas do editor:


(*) Último poste da série > 2 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8365: O nosso blogue em números (9): 78.500 visitas mensais desde Julho de 2010; mais de 500 tabanqueiros; 5,5 postes e 45 comentários, em média, por dia; uma em cada quatro visitas vem fora de Portugal...

(**) 13 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8091: 7º aniversário do nosso blogue: 23 de Abril de 2011 (1): Um Oscar Bravo (OBrigado) a quem nos visita, lê, comenta, divulga, alimenta, critica, incentiva, avalia, escrutina, ajuda a crescer e a melhorar... A todos os autores, comentadores, leitores, a todos/as os/as amigos/as, camaradas e camarigos/as da Guiné (A equipa editorial)

Guiné 63/74 - P9002: Parabéns a você (334): Jorge Cabral, ex- Alf Mil Art, CMDT do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8991: Parabéns a você (333): Irene Fleming, mãe da Maria Irene e sogra do Virgínio Briote, e nossa habituée dos encontros anuais da Tabanca Grande faz hoje 100 anos!

sábado, 5 de novembro de 2011

Guiné 63/74 – P9001: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (15): As “Piscinas” dos Furriéis da 816



1. O nosso Camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato e Mansoa - 1965/67), enviou-nos a seguinte mensagem desta sua série.


Camaradas,

Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Dos tais salpicos das minhas memórias “Páginas Negras com salpicos cor-de-rosa”:

As “Piscinas” dos Furriéis da 816 

Pessoalmente só conheci, na Guiné, a piscina de Nhacra, ou antes, um tanque alargado aí com 12-15 metros de comprimento por 8-9 m. de largura, mas não tomei banho nela. Vi-os a tomar, para raiva minha. Que melhor naquela canícula do que ter uma piscina ali perto, mesmo daquela água, que até parecia boa (pelo menos de temperatura).

Estava de passagem. Foi breve ali. Na minha estadia na Guiné o percurso não passava por ali.

Uma vista geral do aquartelamento em Nhacra
 A piscina de Nhacra

(Fotos reproduzidas, com a devida vénia, do site “olossatoguinebissau.blogspot.com”)

No entanto, diga-se de passagem, também passei bons bocados em Bissau, note-se. Mas tinha o trabalho de desenfiar em dois internamentos no HM241. De resto, passagem para tomar lugar no Super-Constellation da TAP rumo à metrópole para férias e, aí, ver no avião bajuda branca.

No aeroporto de Bissalanca parecia que já cheirava a Lisboa.

E por falar em avião da TAP seguem-se, e a propósito, duas fotos reproduzidas, com a devida vénia, de www.enciclopedia.com.pt artigos: TAP Portugal:
                     
Este é o quadrimotor “Super Constellation” da TAP que nos trazia de férias para a metrópole.


A TAP oferecia uma bolsa aos passageiros. Não era propriamente uma Louis Vuitton. Era de plástico, mas, naquele tempo, andar de avião era um luxo, assim, a bolsa era exibida com muito garbo.

Mas as piscinas que quero falar são outras, ora vejamos:

Quer em Bissorã quer no Olossato as horas de tédio eram muitas, pois a operacionalidade era feita praticamente de noite. As saídas para “golpe-de-mão” eram feitas com 2 a 3 dias de intervalo. Havia, por o meio, patrulhas, emboscadas, as “operações-vaca”, recolha de populações (a tal psico) e melhorias do quartel, mas ainda restava muito tempo, as tardes principalmente.

Que fazer?... E o disco do Roberto Carlos “Quero que tudo o mais vá pr’ó inferno” sempre a tocar, até desfazer-se.

Então jogava-se à bola, de preferência se estivesse a chover (no tempo dela, claro). Em Bissorã apanhamos o tempo das chuvas e no campo do clube local, quando chovia, o terreno ficava logo numa lama barrenta e viscosa e então era quem mais deslizava para gáudio da tribo. Quando se escorregava não se sabia aonde se ia “estacionar” depois de percorrer alguns metros em posição pouco ortodoxa.

Ou jogava-se às cartas, com burburinho por o meio, de vez em quando - o que até fazia parte - mas era mais para sacudir o marasmo, ou então dormitava-se nas cadeiras de baloiço à porta da messe. Não, não tínhamos cadeiras de baloiço no sentido esmerado, mas cadeiras feitas com as ripas dos pipos de vinho. Como aquelas eram arqueadas, o habilidoso que as fez pôs dois arcos a servir de base e daí o baloiçar. Boa obra que já fomos encontrá-la no Olossato e que deixamos, este rico espólio, aos camaradas vindouros.


Uma cadeira baloiçante. Como se pode ver 2 ripas arqueadas na base (uma de cada lado) permitiam o baloiço.

Então as vezes, para sacudir aquela seca, alguém se lembrava de dizer: “Vamos fazer uma piscina?” (não me lembro quem foi o batizador de “piscina”).

O da ideia estava nas últimas sílabas e já se via um a correr à cozinha (?), que ficava atrás da messe, buscar o alguidar de inox no qual o Dunga (cozinheiro nativo dos sargentos) se servia para cozinhar o tacho da malta. Ponho um ponto de interrogação em cozinha, pois também era um grande viveiro de baratas. Não se viam, até que alguém se lembrou de mudar uns balcões. Meu Deus, eram… eram… aos milhares, embora fossem baratas.

Uma vez o alguidar aí com 45 cm. de diâmetro sobre uma das mesas da messe, havia um habilidoso a fazer a “piscina”.

Primeiro o excipiente: o vinho tinto da tropa (não sei se canforado ou não. Se sim, não parecia fazer efeito).

Depois toda a espécie de mistura espirituosa. Peppermint, Whiskey, Brandy, Rum, Oporto wine e tudo que andasse por ali. Graças a Deus de bebidas fortes estávamos bem servidos. Tínhamos um bom frigorífico também. Quando algum vinha de férias trazia sempre novidades em líquido espirituoso. Mas em Bissau em bebidas fortes havia do melhor também, a seguir …à cerveja, que com as ostras era a combinação perfeita.

Feita a mistura, com muito gelo por o meio, haja alguém para começar. Uma mão em cada asa e alguma força muscular para os primeiros (alguidar quase cheio) e pronto, dava a roda, uma, duas, três vezes... . Alguns mais demorados do que outros, mas, ninguém reclamava, só perto disso.

Bom até aqui tudo trivial. Beber em conjunto, mesmo de alguidar, ou mais na intimidade o seu copito, melhor ou pior, fazia parte de qualquer militar e de qualquer Companhia e em qualquer lugar da Guiné.

Então para quê vir contar isto para aqui?

Pois, o caricato, ou melhor a razão do conto que saltou para as minhas memórias, é já a seguir:

Quase todos os Furriéis usavam bigode; alguns mais ou menos aparados outros à existencialista, isto é, o bigode crescia crescia…, ali na Guiné tudo crescia depressa!

Quando chegava a um bigodeiro, este, ao beber, mergulhava também o bigode (lembro que um bigode fica logo acima da boca - e em certos casos a tapar esta -) no precioso líquido e até parecia estar a marinar (termo culinário); então quando tocava aos farfalhudos o bigode entrava aí uns bons 2 centímetros no líquido. E ali ficava até passar a outro.

Foi essa dos bigodes (alguns com matizes amareladas, não sei se do tabaco) dentro do cocktail que me ficou na retina e então há que registar.

Alguém morreu?

Alguém apareceu com moléstias?

Não! Afinal só o bigode é que ficava com aquela “água de colónia” por uns tempos para passar a língua mais tarde e de vez em quando.

Acresce dizer que no nosso Convívio de 2010 em Esposende alguém se lembrou de fazer uma “piscina”. Passados quarenta e cinco anos (quase meio século!) a piscina voltou aos Furriéis da 816. Ele há cada coisa! Bom, bigodes daqueles já não havia e porque aos sessenta e muitos tal já não se resiste assim a tudo, como por exemplo o porco (?) do mato em Uaque (“apanhado” - para não dizer roubado - algures no mato) que nem quarenta por cento estava queimado e foi todo (ai os 20 anos!).

Então em Esposende só se molhou o bico. Tudo biqueiro, ou melhor, pouco bebedeiro. Coisas do tempo… que já não volta, embora o António Mourão assim o pedisse, já quando lá andávamos. Lembro-me bem da maquineta de discos na esplanada do Café Portugal em Bissau.

Ah!, e a Ada de Castro com o “Adeus”.


Uma vista parcial da messe dos sargentos no Olossato. Como podem ver, tínhamos já ecoponto e até vasos com plantas exóticas. Também encostada à parede ao fundo vê-se uma cadeira baloiçante. Eu estou a acender um cigarro. Provavelmente um Craven A


O Craven A era um cigarro muito apreciado pela malta. Como Craven “vem” de crava, haviam histórias hilariantes à mistura.

Há mais pr’a ver neste “Memórias…”

Rui Silva
Fur Mil da CCAÇ 816
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Nota de MR:

Vd. último poste desta série em:

19 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8797: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (14): Quando do PCA veio a ordem para atacar a base de Morés...

  

Guiné 63/74 - P9000: Antologia (75): Tarrafo, crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed, 1965 (8): Ilha do Como, 15 de Março de 1964: E Deus desceu à guerra para a paz (Último episódio)...



Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como >  Op Tridente > Jan/Mar 1964 >  Foto publicada na 2ª edição de Tarrafo (Braga, Pax Editora, 1970), em anexo, com a seguinte legenda: "20. Quando o cansaço é demasiado,o corpo sucumbe". [A foto pode não ter sido tirada na Ilha do Como, só o autor poderia esclarecer, mas para o caso não é relevante]



Foto: © Armor Pires Mota (1970-2011) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.












1. Continuação da publicação de Tarrafo:  crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed., ed. de autor, Aveiro, 1965. Parte 2 (Ilha do Como, Jan / Mar 1964), pp. 79-82. (*)... Este é último episódio relativo à Op Tridente, cuja duração de 72 dias (de 15 de janeiro a 24 de março de 1964).  Esta edição foi retirada do mercado, na época, e está esgotada. Na 2ª edição, "autorizada", o autor reformulou este episódio, que aparece sem data, com o título "O tambor de pele de boi" (pp. 135-137).

Com a amável autorização do autor, o nosso camarada  Armor Pires Mota, natural da região da Bairrada (Oliveira do Bairro), ex-Alf Mil, CCAV 489  (1963/65),  começámos, a partir de 14 de Outubro passado, a reproduzir, no nosso blogue, nesta série Antologia, as crónicas do Tarrafo, relativas à Op Tridente,  recorrendo para o efeito a um exemplar, fotocopiado, da primeira edição do livro (pp. 47 a 85), onde ainda eram (e são)  visíveis as marcas do lápis azul da censura.  


2. Paralelamente, e tanto quanto possível cronologicamente,  temos vindo a acompanhar o relato dos acontecimentos, na versão de outro combatente do Como, o nosso amigo e camarada Mário Dias, hoje sargento comando reformado, membro da nossa Tabanca Grande.  Em relação aos restantes dias que se seguiram depois de  1 de Março de 1964 até ao final da operação (que terminou a 24), selecionámos o seguinte excerto (retirado da I Série do nosso blogue):


(…) 9. As vacas e o arroz 

Um agrupamento constituído pelo grupo de comandos, 8º Dest Fuz, e um grupo de combate da CCAV 489, iniciaram, por volta das 8 da manhã de 12 de Março, uma acção sobre Catunco Papel e Catunco Balanta a fim de cercar e bater todas a zona destruindo tudo quanto possa constituir abrigo ou abastecimento para o IN e que não seja possível recuperar pelas NT. 

Cercada a tabanca de Catundo Papel e de seguida Catunco Balanta, foram as casas revistadas e destruídas, tarefa que demorou quase 5 horas. Foram recuperadas 5 toneladas de arroz; capturado um elemento IN e apreendidas 2 granadas de mão, livros escolares em português, cadernos, fotografias, facturas, recibos de imposto indígena, e um envelope endereçado a Biaque Dehethé, sendo remetente Mussa Sambu, de Conakry. 

Terminamos este dia com a acção que mais me custou durante toda a permanência no Como. Têm que ser abatidas cerca de uma centena de vacas que por ali andavam na bolanha bucolicamente pastando. Não havia forma de podermos transportá-las connosco. Começado o tiro ao alvo, iam caindo sem remédio. Pobres bichos. E que desperdício. Enquanto fazia pontaria ia ironicamente pensando naquela carne que por ali ia ficar para os jagudis enquanto nós tínhamos andado 23 dias a ração de combate.
- Que desperdício!... - E pensava:
- Olha aquele lombo como ficava bom num espeto a rodar, bem temperado com sal, limão e malagueta!...(pum) e aquela, que belo fígado deve ter para uma saborosas iscas !...pum… e pum… e mais pum até chorar de raiva.

Coisas da guerra … sempre impiedosa. 

Concluída a mortandade, ainda alguns esquartejaram pernas e extraíram lombos para uma refeição extra. Deve ter sido fruto desta acção, a oferta pelos fuzileiros de carne de vaca à CCAV 489 a que se refere o Joaquim Ganhão na sua ”Cónica do soldado 328”.

10. Últimas operações


Às 03H30 do dia 16 de Março, chegados a Curcô, aguardamos a aurora pondo-nos a caminho com a CCAV 489 (-). A missão era bater a mata até Cassaca e daí virar a Sul até Cauane, eliminando ou aprisionando qualquer elemento IN e detectar e destruir tudo quanto possa oferecer abrigo ou recursos para o IN. Resistência ?...mais uma vez, nada. 

Foi encontrado um acampamento com 15 casas de mato. Uma delas bem grande que nos pareceu ser destinada a reuniões onde estava um molho de panfletos de acção psicológica das NT, recentemente lançados na ilha pelos nossos aviões. Numa outra barraca, um caderno de cópias de Inácio Batalé, datado de 12 de Novembro de 1963. Nas imediações foram descobertos e destruídos 3 depósitos de arroz, estimando-se serem cerca de 15 toneladas. 

Progredindo para Sul, dentro da mata da região de Cauane, e a cerca de 600 metros da tabanca, detectou-se um grupo de 7 elementos armados de espingarda e de pistola-metralhadora. Fogo…pum. Dois tiros chegaram e caiu um. Mais dois tiros e caiu outro armado de PPSH e de farda camuflada. Mais um tiro e outro ferido que fugiu aos gritos.

Os sobrantes puseram-se em fuga. O inimigo não parecia o mesmo das primeiras semanas da batalha do Como. Estava de facto enfraquecido e fugia ao contacto.

Com a operação a chegar ao fim previsto, o Comandante das Forças Terrestres, Ten Cor Cavaleiro, saiu com o grupo de comandos e o pelotão de paraquedistas às 23H30 do dia 20 de Março, atravessando a mata de Cauane, Cassaca e Cachil com a finalidade de verificar pessoalmente a capacidade de combate do IN.

Passagem e pequena paragem na tabanca de Cauane, troca de informações com o comandante da CCAV 488, dono da casa, e iniciámos a penetração na mata à 1 hora do dia 21, partindo da casa Brandão. Reacção do IN?...nenhuma. Progredimos até Cassaca que foi alcançada às 02H30. Feita uma batida cuidadosa à região, encontraram-se a Norte algumas casas de mato quase destruídas e há muito abandonadas.


Siga a tropa. Para a frente é que é o caminho. Já próximo da orla da mata de Cachil, ao “romper da bela aurora”, detectados 3 elementos IN um armado de PPSH e os outros dois de espingarda. Meia dúzia de tiros foram suficientes para fugirem. Um deles, ferido, deixou para trás a espingarda Mauser 7,9 mm e 5 cartuchos da mesma. Tinha sangue na coronha. Mais tarde, outro grupo de 5 elementos, avistados um pouco à distância, foram alvejados e fugiram sem responder ao nosso fogo. Levaram dois feridos. 

Atingimos Cachil, na outra extremidade da ilha, que foi atravessada pacificamente de Sul para Norte sem qualquer beliscadura nem qualquer oposição à nossa presença por parte dos guerrilheiros. 

Embarcados na LDM, lá fomos nós de regresso à praia. Foi a última operação da batalha do Como. Por brincadeira dizíamos que tínhamos ido “fechar as portas da guerra”. Foram também os últimos banhos. 

No dia 22 de Março, o grupo de comandos regressou a Bissau, aproveitando a boleia da Dornier e alguns hélis que em diversas vagas nos transportaram. O Grupo de Comandos não teve baixas, nem feridos, nem nenhum elemento evacuado por doença, fazendo juz ao nosso lema: “Audaces fortuna juvat” [ A sorte protege os audazes]. 

Para as restantes tropas foram mais dois dias de trabalho a “desmontar o arraial.” Creio que foi o que menos lhes custou. 

BAIXAS DE AMBOS OS LADOS 

Das NT: 8 Mortos; 15 Feridos.
Do IN: 76 Mortos (confirmados); 29 Feridos; 9 Prisioneiros 

CONCLUSÕES

De tudo quanto descrevi, e que corresponde à realidade por mim vivida durante a Operação Tridente, podemos verificar que nem sempre, ou quase nunca, a história é escrita com isenção. Na verdade, tem-se especulado muito sobre o que realmente se passou no Como. Derrota para as tropas portuguesas, dizem uns, grande vitória, contrapõem outros.

Para mim, nem uma coisa nem outra, porque na guerra, em qualquer guerra, não há vencedores: todos são vencidos pela existência da própria guerra.  Porém, analisando a Operação Tridente no âmbito estritamente militar, facilmente se chega à conclusão que: 

- O PAIGC dominava a Ilha do Como em 1963; 

- Nas primeiras duas semanas opôs feroz resistência às NT, a quem causou baixas, não permitindo a nossa progressão pela mata onde estava fortemente instalado; 

- Graças à nossa persistência no combate, favorecida pela superioridade de meios que na altura ainda tínhamos, fomos aos poucos dominando a situação; 

- A partir da 3ª semana já conseguíamos entrar e progredir na mata; 

- Sensivelmente na 5ª semana, já nos movimentávamos facilmente por toda a ilha e os guerrilheiros opunham esporádica e fraca resistência; 

- Começou a notar-se, a partir da 7ª semana, uma completa desagregação da capacidade de combate dos guerrilheiros: basta ler a mensagem do Nino dirigida ao seu pessoal e transcrita nesta crónica; 

- No final da operação o PAIGC já não dominava a ilha.

A teoria defendida por alguns, sobretudo pelo PAIGC (mas essa não é de admirar),  que as tropas portuguesas se viram forçadas a abandonar a ilha, não é verdadeira: 

(i) As tropas retiraram por ter terminado a operação e não se justificar a sua continuação uma vez alcançado o objectivo: o domínio da ilha pelas NT; 

(ii)  A ilha não foi abandonada pois ficou instalada em Cachil (na tal “fortaleza” de troncos de palmeira) uma companhia para patrulhar e não deixar que o IN se reorganizasse naquela região; 

(iii) Se mais tarde se veio a verificar o recrudescer da actividade no local, isso deve-se ao facto de a Companhia que lá ficou se ter refugiado na “fortaleza”, nunca de lá saindo a não ser para ir para Catió quando era substituída por outra (Mas isso, é outra história)...

Finalmente, uma palavra de apreço a quantos, de ambos os lados, se esforçaram e sacrificaram superando todas as dificuldades e, 

Sentida homenagem aos que tombaram. A todos. De ambos os lados. (…)

Mário Dias

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 2 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8981: Antologia (74): Tarrafo, crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed, 1965 (7): Ilha do Como, s/d [Março de 1964]

Postes anteriores desta série:

Guiné 63/74 - P8999: Recordações dos tempos de Bissau (Carlos Pinheiro) (5): Efeitos colaterais da crise académica de 1969

1. Mensagem de Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro* (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 2 de Novembro de 2011:

Camarigo Carlos Vinhal
Talvez porque este tempo de Inverno ajude a recordar memórias adormecidas.
Em anexo vai mais um texto, mais um "Estória", real e verdadeira das muitas passadas na Guiné.

Se entenderes por bem publicá-lo, estás sempre à vontade como é hábito.

Um abraço
Carlos Pinheiro


RECORDAÇÕES DOS TEMPOS DE BISSAU (5)

Efeitos colaterais da crise académica de 1969

Estávamos na Primavera de 1969. Era Abril. Já tinha passado 6 meses da Comissão na Guiné que se prolongaria por 25 longos meses.

Recentemente tinha partido o braço esquerdo num acidente sem história. Andava de “baixa” e frequentemente, depois do almoço, durante o chamado período da “sesta” desenfiava-me de Santa Luzia, do Q.G., até à cidade para conviver com a malta que também estava desenfiada em Bissau, à espera de transporte para o mato ou para a Metrópole.

Os sítios onde nos encontrávamos eram os habituais. O Café do Bento a que carinhosamente chamávamos a 5ª Rep., o ponto de encontro por excelência da malta do mato.

E eu tinha amigos no mato em todo o lado. Em Buba, em Tite, em Jabadá, Nova Sintra, em Catió, em Aldeia Formosa, em Bafatá, em Mansoa, em Farim, em Piche, em Bigene, em Bula, em Nova Lamego, no Cacheu, em Susana, em Varela, e depois até vim a fazer amigos quando a CCaç 1790 abandonou Madina do Boé, com a tragédia conhecida, uma vez que foram colocados na “minha guerra” dois dos sobreviventes.

Era rapaziada que tinha andado a estudar comigo na Escola Industrial de Torres Novas, era a malta da minha terra, Alcanena, era pessoal de Pernes e de Mira de Aire que frequentava de vez em quando nos bailaricos da época, eram colegas dos Serviços Médico Sociais para onde eu tinha entrado em 1964, era a rapaziada que tinha estado comigo na Escola Prática de Cavalaria em Santarém e que comigo tinha chumbado no Curso de Sargentos Milicianos e que também tinha sido “recompensada” como um comissão na Guiné, era malta que tinha estado comigo na Especialidade no Regimento de Transmissões no Porto, na Arca d’Agua, era malta que tinha ido comigo no UIGE em rendição individual, enfim era um conjunto alargado de companheiros e amigos embarcados no mesmo barco da Guerra da Guiné.

Mas também nos encontrávamos no Portugal ou no Internacional na Praça Honório Barreto, no Zé da Amura, nas Palmeiras em Brá, no Santos em Santa Luzia, na Solmar lá do sítio, no Café Pastelaria Império na Praça do Império, perto do Palácio do Governador, ou no Solar do Dez. Tudo isto de dia. De noite os encontros eram mais na Meta, no Chez Toi, na UDIB, no Sporting e até no Benfica a caminho da Sacor.

O caso que vou relembrar passou-se no Solar do Dez, talvez o melhor Restaurante de Bissau daquela altura. Mas como já tínhamos almoçado no quartel, porque o pré não dava para luxos, estávamos num mesa grande, a tomar café na esplanada e cada um ia contando as suas histórias, com muitas anedotas pelo meio.

Parece eu que estou a ver o Marques, que também tinha chumbado no CSM em Santarém. Na altura já era Regente Agrícola. Mas tinha chumbado. Era o Delegado em Bissau da sua Companhia. Namorava uma moça que estava em Medicina ou em Direito, já não me lembro bem. Volto a dizer. Parece eu que estou a ver o Marques, a ler em voz alta uma carta da namorada. E ela contava-lhe, e ele partilhava connosco, a invasão da Faculdade pela Policia e pela Pide com muita pancadaria e algumas prisões à mistura. Era a Crise Académica no seu auge, mas nós, que estávamos longe de tudo, desconhecíamos por completo. A Emissora Oficial só dava boas notícias, jornais não havia com regularidade, televisão nem vê-la, telefones nem sonhá-los e telemóveis nunca se tinha ouvido falar. Aquilo desta vez parecia uma sessão solene. O orador lia a carta pausadamente e nós caladinhos para não perdermos nada da noticia.

Ao lado, noutra mesa, estava um Major, o Comandante das Transmissões da Guiné, meu Comandante uma vez que o Destacamento do STM onde estava integrado, em última análise também dependia deste senhor, acompanhado de sua esposa, que apesar da sua posição importante e da nossa pequenês, nunca abriu a boca.

O pior foi à tarde. Eu como estava “de baixa”, passava o resto da tarde, até ao jantar, no meu quarto particular com mais de duzentas camas. Ouvia-se rádio, jogava-se à sueca e alguns descansavam porque iam entrar de turno à noite. Aparece o Sargento Caldas, entretanto infelizmente já libertado da lei da vida, bom homem e bom amigo. Era o meu Chefe directo. Vinha com mau aspecto. E de chofre perguntou-me onde é que eu tinha andado que o Major queria falar comigo e estava muito bravo. Contei-lhe tudo por onde tinha andado mas esqueci-me da leitura da tal carta, coisa que poucos de nós valorizámos, porque desconhecíamos os antecedentes da Universidade de Coimbra e a ebulição estudantil que havia naquela altura.

E lá fui eu, mas o Major já não estava. Ficou para o outro dia. Nessa noite nem dormi. O que é que o Major teria para estar tão bravo como tinha dito o Caldas. De manhã, bem cedinho lá estava eu, com o braço ao peito, mas de resto devidamente uniformizado e até com as botas bem engraxadas. Já eram mais de 10 horas quando ele chegou. Nem se sentou. Logo ali à entrada da porta dispara, perguntando-me o que é que estava ali a fazer ontem naquele “comício”? Fiquei perplexo. O que é que aquilo queria dizer? O que é que eu teria feito de mal? Fiquei sem resposta. Mas lá terei dito alguma coisa, atabalhoadamente, a tentar relatar o acaso do encontro. Levei uma rabecada das antigas. E ameaças quanto ao futuro foram as suficientes. O mato, nas piores condições e nos piores locais, tinha sempre vagas e estava sempre à espera.

Mais tarde, começou a constar, na caserna, que o senhor teria algumas ligações à Policia que tinha aquartelamento no Largo do Colégio Militar, junto à Avenida Arnaldo Shulz, em Bissau, a Policia Internacional e de Defesa do Estado, a tenebrosa Pide de má memória para o Povo Português mas também neste caso para o Povo da Guiné-Bissau. Nunca cheguei a saber se era verdadeira essa dupla função, mas lá que andei atrapalhado isso foi mesmo verdade.

Tudo se passou sem mais agruras. Mas andei mal durante muito tempo e com atenções redobradas. É que eu passava naquela Avenida de vez em quando e, às vezes, os tratamentos ouviam-se cá fora.

A guerra também tinha destas coisas. E é bom recordá-las para que a memória não esqueça.
Carlos Pinheiro
25.10 10
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8748: Recordações dos tempos de Bissau (Carlos Pinheiro) (4): As notícias em Bissau - A Presse Lusitânia