1. Terceiro episódio da nova série do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66) Bom ou mau tempo na bolanha.
O António, mais conhecido pelo nome de “Tótó”, talvez por
ter o nariz um pouco grande e achatado, era oriundo do
Alentejo. Depois de fazer o exame da quarta classe de instrução
primária, veio para os arredores da capital, para um bairro
bastante popular, para casa de um tio que tinha uma tasca, que
vendia vinho ao copo e sandes de presunto, de queijo, e
sardinhas e carapaus fritos de escabeche.
O tio, aos poucos, foi ensinando o sobrinho as manhas do
negócio. À noite, depois de fecharem a tasca, na altura de
arrumarem as cadeiras para varrerem o chão, em que nalguns
sítios até era térreo, ele explicava ao sobrinho, dizendo:
- Ouve lá, oh António, por exemplo, a água serve para fazer
vinho de tudo, até de uvas. O presunto das nossas sandes é de
puro porco preto, mas na verdade é de porca prenha que já
pariu seis vezes e morreu ao parir a sétima
vez. O nosso queijo, puro da serra, de ovelhas
que pastam na montanha e que só comem carqueija,
mas na verdade é de leite de vaca, misturado
com batata cozida e moída depois de seca. O
peixe que nós vendemos depois de frito, e
dizemos que é fresco, apanhado umas
horas antes, foi apanhado a semana passada,
pois é o resto do mercado, mais barato, e nós fazemos este
molho de escabeche que é para lhe tirar o gosto do atrasado, compreendes? Às vezes, se há muita freguesia, e conseguimos
vender a travessa toda, fritamos mais, e até é fresco, mas
nesse caso aumenta-se o preço.
E terminava, dizendo:
- Aprende António, que a vida não é simples, é complicada,
temos que ser mais espertos, para sobreviver, rapaz!
Foi neste ambiente que o António cresceu. Era um bom
companheiro e tinha algum “esperto no cabeça” pois a sua
posição no aquartelamento era deveras importante, a sua
principal tarefa era padeiro, por sinal um bom padeiro, pois
trabalhava sob umas condições bastante precárias, mas
desempenhava o seu trabalho com uma certa eficiência. Também
estava encarregue da distribuição desse precioso líquido, que era
o vinho, portanto o “Tótó” era popular no aquartelamento.
Trabalhava debaixo das ordens do Sargento da messe e do Arroz
com Pão, que era o cabo rancho. Normalmente havia sempre de
reserva cinco barris de vinho, pois o Sargento da messe, dizia:
- Pode faltar tudo na vida dos militares, mas vinho tem que
haver, nem que vá eu próprio a Portugal, comprá-lo!
Era assim o Sargento da messe, “burro” no dizer de alguns,
pois não sabia fazer contas, mas muito boa pessoa no trato e nas
atitudes.
Mas vamos continuar com a história, pois
o protagonista é o “Tótó”.
Havia um pequeno
armazém, podemos chamar-lhe assim, debaixo do
mesmo cabanal, onde estava instalada a padaria,
armazém este, onde só o “Tótó”, o Sargento da
messe e o Arroz com Pão, tinham acesso, e era
onde se guardava, entre outras coisas, os barris de
vinho, que eram cinco, mas que em determinada
altura passaram a seis. Por acaso, o Arroz com Pão
reparou na anomalia, também por acaso fez saber ao Sargento da
messe, e vão verificar porquê esse engano, pois apesar de ter
fama de ser “burro”, sabia contar até cinco, verificando melhor, havia seis barris de vinho novos, todos selados, sinal de que
nunca foram abertos, mas não estavam cheios, um, até parecia que
estava pouco mais que meio, todos tinham falta de líquido, o que
no pensamento do Sargento da messe que era “burro”, até lhe
parecia natural, pois dizia que talvez o líquido se tivesse
evaporado durante o transporte e mudança de clima. Havia a um
canto, em cima de uns troncos de palmeira, um outro barril que
estava em uso, com uma torneira de metal, fechada com um
cadeado, cuja chave, normalmente o Arroz com Pão trazia consigo,
e que facultava ao “Tótó”, na altura das refeições. A partir
desse momento, o Sargento da messe disse que se tinha que
reduzir para cinco barris cheios e um em uso.
E tinha sido verdade, esses seis barris estavam selados,
nunca foram abertos pelo local que deviam de ser, pois o “Tótó”,
tinha o seu pequeno negócio de um púcaro do café, quase cheio de
vinho e um bocado de pão quente, que podia ser comido simples,
ou com alguma manteiga que alguns traziam, que vendia por um
mísero “peso”, às vezes mesmo nada, era de graça, só pagava quem
tinha “patacão”. Tudo fora de horas, pela noite dentro até
madrugada, num canto, atrás da rima da lenha, fora das vistas,
onde se guardava os sacos da farinha, que também serviam de
assentos, do cabanal da padaria, aos amigos de
confiança e já conhecidos, no qual se incluía o grupo
do Cifra. Para os estranhos e tropas novas, a padaria
àquela hora estava em pleno labor, mas fechada aos
militares, e a maneira como fazia acrescentar o número
de barris e sempre selados, era simples, removia um
arco de ferro ao barril, fazia um buraco, tirava o
líquido, tapava o buraco com uma peça redonda de
madeira e colocava de novo o arco no seu lugar, ficando tudo
impecável, selado sem qualquer vestígio, e deste modo tinha
quase sempre um barril a mais, que neste caso era o que estava
um pouco mais que meio. Com vinho tirado dos outros barris, que
estava sempre em uso, de onde tirava o que dispensava aos
amigos, pois à noite, retirava o arco de ferro e colocava uma
pequena torneira de madeira no buraco já aberto, virava o barril
300
ao contrário, e era a maneira simples como enchia o púcaro.
Depois da inspecção do Sargento da messe
e do Arroz com Pão, que nunca descobriram
porque havia seis barris, e quando começou a
haver só cinco barris de reserva, o negócio
parou, pois o “Tótó”, dizia que era um
“taberneiro sério” e tinha um nome a
defender, e também desconfiava que depois da
inspecção, pelo menos o Arroz com Pão, ficou
a saber que havia por ali alguma tramóia, se
já não soubesse antes, pois tudo fazia crer
que já sabia. Tudo isto aconteceu, para
grande desgosto do Cifra e de alguns, mas havia sempre maneira
de um modo ou de outro, de não faltar o precioso líquido, fora
da sua rede normal de distribuição, pois o vinho, era a alegria
da maior parte dos militares, já fazia parte das suas miseráveis
vidas, naquele cenário de guerra a que estavam sujeitos.
O “Tótó”, cobrava um mísero “peso”, não era pelo valor, era o
vício do negócio que o tio lhe ensinou.
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Nota do editor:
Último poste da série de 14 DE ABRIL DE 2013 >
Guiné 63/74 - P11391: Bom ou mau tempo na bolanha (2): Regresso a Portugal e matrimónio (Tony Borié)