sexta-feira, 18 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15873: Agenda cultural (469): Apresentação do livro "A Tropa Vai Fazer De Ti Um Homem", da autoria de Juvenal Amado, levada a efeito no dia 16 de Março de 2016, na Tertúlia semanal da Tabanca de Matosinhos

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 17 de Março de 2016, a propósito da apresentação do seu livro na Tertúlia semanal da Tabanca de Matosinhos, no passado dia 16:

Meus caros amigos e camaradas
Eu não escrevo por compulsão mas por impulso. Assim necessito de uma ignição, dum clique que me desbloqueie e que faça voar e alinhar as palavras.
Por isso eu não sou um escritor mas sim um contador de estórias. E contador porquê? Porque é necessário um facto, uma foto, um risco no chão, um encontro com um amigo, um cheiro, um lugar etc, enfim um momento que faz despoletar a imaginação que dá ordem aos dedos e então escrevo.

Por vezes quando me faltam as palavras e se me embarga a voz, recorro a outro estratagema. Passo a alinhar pensamentos, palavras, emoções, donde saem arremedos de poesia, mais ditados pelo coração do pela razão e pela qualidade.
E foi o que aconteceu ontem na Tabanca de Matosinhos a Tertúlia onde amigos me receberam para além do que eu esperava.
Naquele encontro aconteceu calor humano, amizade, poesia e emoção e pensarão alguns, que é coisa pouca, mas não é, pois nem só de pão vive o homem.
Para acontecer amizade, só precisamos de um amigo e estavam lá tantos!

Comecei este texto a denunciar-me.
Não tenho nenhuma formula mágica, sai naturalmente após o clique, escrevo as “coisas” que evoluem como cozinhado, onde se vai fazendo e provando de sal aqui, ervas aromáticas ali e finalmente, deixando apurar até que o calor manso, faça libertar os aromas e o sabores que estavam escondidos.
Depois disto tudo, leio e digo para comigo, “foi fácil, como é que não me tinha lembrado disto”?

Ontem o José Teixeira leu um poema retirado do meu livro. Ouvi-lo ler, foi das experiências mais maravilhosas que me aconteceram na vida.
O poema não era meu, era de quem o estava a ler, pois ele ao fazê-lo recriou-o, deu-lhe tudo o que lhe tinha faltado até então.
Deu-lhe voz, deu-lhe som, projectou as imagens de frescura e luz, fez-me recordar o rapazola que foi para a Guiné e a pessoa que de lá regressou.

Zé Teixeira ao ler o poema e a amizade demonstrada por todos, fez de mim um homem feliz num dia que não esquecerei nunca.
A todos os camaradas quero agradecer as provas de amizade e na verdade, ir para a tropa e para a Guiné fez de nós homens diferentes.

Está mais que provado.
JA

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2 - Poema lido pelo José Teixeira

UMA PARTE DE NÓS FICOU PARA SEMPRE LÁ

A luz fere-me os olhos
O mar que me embalou na viagem
Quebrou-se manso na barra
Lá está a ponte no seu vai e vem
Ainda guardo a imagem da partida

Para trás ficaram as águas barrentas
O calor sufocante
O cacimbo
O Céu de chumbo
Os dias e noites de insónia
A insanidade afogada num copo
O rosto, que duvido se terá existido

Tão ansioso da partida
Mal posso esperar pela chegada
O Sol resplandece na manhã fria
A maresia invade-me o peito
Voltam os cheiros adormecidos
No cais a molhe de sorrisos cresce

Lisboa maravilha-me
O ar fresco e límpido
Mal posso esperar pelos braços que me aguardam
Haverá lágrimas, serão de alegria

Deito o cigarro fora
Fico a vê-lo rodopiar até tocar na água
Finalmente caminho no passadiço
Vim para ficar
Pensei que o passado ficara para trás

Como pude ser tão cego
Pensar que esquecia tudo
Que uma parte de mim não ficaria lá para sempre
Na ânsia da partida
Neguei-me a olhar para trás

E agora, que a saudade me corrói
Sei que nunca regressei na totalidade

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3 - Algumas fotos da apresentação do livro "A Tropa Vai Fazer De Ti Um Homem", na Tabanca de Matosinhos

É este o ambiente de camaradagem que se vive na Tabanca de Matosinhos, semana após semana, todas as quartas-feiras, desde há muitos anos...

...Onde a música também marca presença. À esquerda, atacando o cavaquinho, o nosso camarada tertuliano João Rebola

Juvenal Amado durante a sessão de autógrafos

Juvenal Amado com o António Tavares e o Manuel Carvalho Passos. Três camaradas da tertúlia do nosso Blogue

Juvenal Amado e Francisco Baptista. Ambos têm em comum o saber falar das suas terras e das suas gentes

Muito bem "intrometido" entre o Juvenal e o Tavares, o nosso contador-mor de belas histórias de amor, o José Ferreira da Silva (o Silva da CART 1689).

 Juvenal Amado veio a Matosinhos também para saborear o belo bacalhau do Milho Rei. Aposto.

Juvenal Amado e o seu colega escritor António Marques Lopes, autor do livro "Cabra Cega - Do Seminário para a Guerra Colonial".

Juvenal em conversa com o Manuel Passos, combinando talvez outra visita a Matosinhos. Quem sabe?

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Selecção e legendagem das fotos da responsabilidade do editor
Fotos enviados por Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15851: Agenda cultural (468): Juvenal Amado apresenta o seu livro "A Tropa Vai Fazer de Ti um Homem! (Guiné 1971-1974)", na sua terra, Alcobaça, na Biblioteca Municipal, sábado dia 19 deste mês, às 16h00. Além do alcobacense José Alberto Vasco, o livro será apresentado também por Belarmino Sardinha, nosso grã-tabanqueiro

Guiné 63/74 - P15872: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - VI Parte: V - Vagabundo


Vila Fernando em festa..., Banda do Instituto de Reeducação (c. anos 60)



Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], o nosso querido camarada Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67, e cofundador e "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô.

Esta edição é uma segunda versão, reformulada, aumentada e melhorada, do livro "Putos, gandulos e guerra" (edição de autor, Estoril, Cascais, 2000). 

A sua pré-publicação, no nosso blogue, em formato digital, está devidamente autorizada pelo autor.

Texto e fotos: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados


Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra >  V Vagabundo (pp. 25-26)

por Mário Vicente [, foto atual à direita]


Calças de Palanco acaba finalmente os estudos e ingress­a, como educador, no Instituto de Reeducação. Faz aqui então uma experiência interessante, na recuperação de menores, sendo integrados na escola de Baden Powell. Os primeiros resultados foram bastante animadores. Pena foi não ter sido continuado o aproveitamento desta semente.

Mais maduro e na convivência com a cultura, a sua vida começa a transformar-se. Nos corredores do Instituto, há sã convivência e aprende-se muito com os mais velhos, cuja vida é já súmula da experiência. E há a brincadeira, às vezes um pouco brejeira, que inofensivamente vai divertindo o pessoal.

Rafael de Oliveira, para além da cultura e arte em termos de teatro, gosta da brincadeira e teatraliza, por vezes, no dia a dia.

Um dia de muita chuva, enquanto Manuel vai aviando um quartilho de açúcar, o Sr. Zé vai apontando na caderneta. Rafael de Oliveira entra procurando cravar um proibido cigarro. Otília fazia as queixas de tanta chuva e de tanta água. Até a sua senhora, de manhã, tinha encontrado uma minhoca atrás da porta, o que foi aproveitado para uma logo directa, do produtor e coreógrafo, exclamando:
– Oh rapariga, isso não é admiração nenhuma. Vê lá tu que a minha Maria hoje de manhã encontrou uma na cama!
– Não me diga?
– Verdade!...

À hora de almoço já todo o prédio da Colónia sabia do aparecimento da minhoca na cama da Dª. Maria Florete.

E assim seguia o entrosamento na vida de Calças de Palanco, que colabora e chega a integrar a Conferência de S. Vi­cente de Paulo. Os excluídos da sociedade principiam a mere­cer-lhe grande atenção. Na sua mente, começam mesmo a delinear-se hipóteses de missionário em África, ou mesmo, quem sabe, a entrada no seminário. Crente, entrosado e estudioso da vida de Cristo, julga estar no caminho certo da sua vida.

Mas não somos nós que delimitamos os nossos cami­nhos. Os desígnios de Deus são imponderáveis, como se diz e eternamente continuará a dizer-se! Sempre assim será!

Existirá sempre um senão! E ele existiu e tornou-se realidade, pois é precisamente neste momento que na sua vida entra uma mulher a sério. Tânia!

Naquele dia do Santo Mártir, à tarde depois da procissão, junto ao Pelourinho quando o Maestro da Colónia com a sua banda de excluídos procurando reinserção, atacou o seu reportório. Os olhares, cruzando-se e penetrando-se, aconteceu! Bem fundo, no âmago dos seus sentimentos e coração, Calças de Palanco sentiu a transformação dentro de si.

Eis a mudança! Eis a alma gémea! Nunca será sua mas jamais o largará! Começou aqui a sua metamorfose em Vagabundo.

Sua irmã mais nova interpela-o e goza com ele:
– Corres com as pernas partidas para lados do norte!

Só que ele não vê, não ouve ninguém só existe para ela. É aconselhado, amigos e outros tentam abrir-lhe os olhos, para o logro em que está a cair. Impossível! O pior cego é, de facto, aquele que não quer ver. Na sua verdade, na sua honestidade, há gente que antevê que vai sair ferido. É doloroso ver perder a esperança nas pessoas, é triste ver as pessoas serem traídas, é horrível ver a reacção do leão ferido.
– Aqui, tu,  estrangeiro, não serás ninguém para os outros. Vão-te trair!

Fantásticas e veras, estas palavras do padre António por volta dos anos sessenta. O padre mais parecia bruxo! Bom homem, o padre António! Por onde andará? Será que ainda continua pobre, as calças bem coçadas, bainhas desfiadas por debaixo de uma batina, também há muito a pedir reforma?!... Em tempos idos andaria ele por terras de Endovélico, Deus dos Lusitanos, o que seria Terena, Alandroal ou Mourão, conforme João Aguiar descreve na "Voz dos Deuses".

Calças de Palanco sente-se traído. É evolutivo o seu estado de desespero, sem coragem na sua cegueira consentida. Começa a sua adulte­ração. Seu amigo Niotetos tenta trazê-lo à realidade, mas em vão, a sua revolta começa a definir o sangrar de uma companhia dolorosa que o levará a grandes loucuras.

Com João Valente forma a "patrulha", alcunha atribuída por os dois andarem na boa vida até altas horas da noite. Fazem cantar os galos da aldeia às horas mais díspares, pois descobri­ram qual deles dava o mote. Os santos populares este ano são vividos, como o princípio do fim de uma era. A "patrulha" é tramada, tem em mãos todos os cadernos da pequena aldeia, é o princípio de um Verão diabólico!

Seis de Agosto de 1963. É patética a despedida com Niotetos Principalmente quando este olhos nos olhos lhe diz:
– Nunca mais serás o mesmo. Só aquela mulher, se quisesse, te poderia ajudar e ser a tua salvação, caso contrário entrarás no fosso e na lama.

Calças de Palanco já não é, já foi, já não existe, ele é neste momento “Vagabundo”. Viva o Vagabundo!

Sete de Agosto. Com o ti Lagarto na condução, o carro de cavalos começa a subir a ladeira. Deixando a sua aldeia, a caminho do CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria em Tavira, Vagabundo leva guarda de honra. Acompanham-no até ao ramal da Terrugem, Saragoça (sem concertina), Carmélia, Peta e João Valente. No cruzamento, ao cimo da ladeira, olha para as indicações das povoações no sentido Norte. O seu pensamento não resiste. A coragem é areia esfarelando-se entre dedos. Olhos húmidos, sente a afloração de saudade que viverá escondida, da mulher que nunca irá esquecer.

Revolta-se. Os companheiros de meia viagem, calados, pressentem que algo de estranho se está a passar. Fala alto, mas ninguém o entende. Lá, bem dentro, o coração sangrando pede-lhe amor, mas a cabeça recusa. Nunca mais! Poderias fazer de mim um "bibelô." Agora é tarde!

Tânia, comigo irão sempre a tua franzina figura e teus negros olhos cintilantes. A tua negação ficará eternamente cica­triz aberta, dentro do peito do cigano errático em que me trans­formei. O resto será aventura. Olhou para os amigos e lembrou-se das palavras de Niotetos: nunca mais seria a mesma pessoa. Um abraço a todos e até ao meu regresso. Esperem pelo Vagabundo, gritou, sem nenhum som lhe sair da garganta.

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quinta-feira, 17 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15871: (De) Caras (36): Morrendo de paludismo, com 42º, em Mansambo, em 1973, provavelmente no mesmo abrigo onde, cinco anos antes, apanhavam "banhos de luar" os alf mil da CART 2339, Cardoso e Rodrigues (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)





Guiné > Zona Leste > Setor L1 > CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974) > 1973 > O Jorge Alves Araújo, ex-fur mil op esp, convalescente...  da terceira e última crise de paludismo... Provavelmente no mesmo abrigo onde, cinco anos antes, dormiram ao luar os alferes milicianos Cardoso e Rodrigues, da CART 2339, "Os Viriatos"  (Mansambo, 1968/69).

Foto: © Jorge Araújo  (2016). Todos os direitos reservados.




Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Mansambo > CART 2339 > Abril de 1968 >  Os alferes milicianos Cardoso e Rodrigues apanham "banhos de luar" (sic)... Legenda do Carlos Marques dos Santos, o primeiro dos Viriatos a chegar ao nosso blogue, logo em 2005, tendo depois trazido com ele o Torcato Mendonça: (...) "Em Mansambo, a céu aberto. Camas de ferro nos fossos que iriam ser o aquartelamento fortificado de Mansambo. Data: abril de 1968. A foto é do Henrique Cardoso, alferes da CART 2339 e seu comandante. Os 3 Capitães, que comandaram a Companhia anteriormente estiveram sempre doentes !!! Ele assumiu o comando. Era miliciano e responsável" (...).

Foto: © Henrique Cardoso / Carlos Marques Santos (2005). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem de Jorge Araújo [ ex-fur mil op esp,  CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974)]

Data: 17 de março de 2016 às 13:23
Assunto: P15869


Caro Camarada Luís,

Como complemento da imagem inserida no P15.869, de hoje (*), do camarada Henrique Cardoso [ex-Alf. da CART 2339, Mansambo, 1968/69] tomei a iniciativa de juntar outra, esta com cinco anos de diferença [1968-1973] para valorizar o trabalho daqueles que me antecederam naquele Aquartelamento. (*)

Trata-se, quem sabe!?,  do mesmo espaço mas agora fechado, logo com mais dignidade. A ser verdade, é muito provável que seja a mesma cama com um novo visual, enquadrada por mobiliário adequado ao espólio de cada um. A decoração é anterior à minha curta estadia.

Esta foto não corresponde à recuperação de um "pifo", mas sim à fase final de uma dose de paludismo, a 3.ª e última com que fui brindado durante a comissão. Esta foi a mais difícil de debelar, tendo inclusive pedido ao Carvalhido da Ponte, meu camarada Fur Enf,  para me matar, tal era o meu estado de desespero, com mais de 42ºC.

Boa semana.

Um abraço, Jorge Araújo.

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Notas do editor:

(*) Vd, poste de 17 de março de  2016 > Guiné 63/74 - P15869: Inquérito 'on line' (46): Apanhei um "pifo de caixão à cova", uma, duas, três ou mais vezes... confessam 65 em 100! (Resultados finais)

(**) Último poste da série > 5 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15824: (De) Caras (34): Bla, bla, bla .... e o almoço de 16 de Abril (António Matos)

Guiné 63/74 - P15870: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (8): Quem não se lembra do antigo ditado que diz: "em tempo de guerra não se limpam armas"

1. Mensagem do nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art da CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) com data de 4 de Março de 2016:


Quem não se lembra do antigo ditado que diz: "em tempo de guerra não se limpam armas"

Esta é uma afirmação perfeitamente falsa, pelo menos no conceito de um coronel de quem não sei o nome, mas que tinha a alcunha do "Onze".

Estava eu no destacamento do Biombo, do qual guardo boas recordações, quando fui visitado por este oficial, que chegou acompanhado por vários militares armados e também por um major que mal colocou os pés no chão, a primeira coisa que fez, foi mandar formar os meus soldados, neles incluídos uma secção de milícias, tendo de seguida começado a inspeccionar as armas que lhes estavam distribuídas.

Ao encontrar a Mauser de um dos milícias, suja de pólvora, quis saber o porquê, ao que o mesmo respondeu:
- Soldado branco foi à caça.

Foi o suficiente para este coronel olhar para o lado e pretender saber o que se tinha passado. O meu militar, para quem o milícia apontou, lá tentou desculpar-se que tinha encontrado umas munições abandonadas, mas não foi o suficiente juntamente com as minhas justificações, para nos ser levantado um auto, do qual resultou uma punição de 8 dias de detenção para o soldado e de 10 de detenção para mim.

Temos de voltar ao serviço militar, porque esta "punição" nunca chegou a ser cumprida.

Alguns meses antes já havia sido visitado pelo coronel "Onze", no terceiro dia em que cheguei ao Biombo. No total das duas vezes que esteve no destacamento, não permaneceu mais do que vinte minutos, apenas pretendeu saber se estávamos bem fardados e bem barbeados. Em seu entender o barracão a que chamavam destacamento ou quartel, onde nem sequer entrou, tendo entrado apenas na nossa mini cantina, não se encontrava em perfeito estado de limpeza, porque havia algumas folhagens no chão.

Não me perguntou pelo meu estado de saúde, pois eu tinha a cara com um enorme inchaço e também estava com alguma febre devido a um problema dentário, problema este que só se resolveria completamente após o meu regresso à Metrópole e infelizmente com a raiz do dente ao sol.

Não pretendeu saber como é que nos alimentávamos e em que condições os alimentos eram confeccionados, a cozinha era um telheiro apoiado em 4 pilares e pouco mais, e a nossa mesa do "refeitório" era feita de umas quantas tábuas mal pregadas.

E o posto médico? Simplesmente não existia e havia apenas um armário de madeira, que felizmente estava razoavelmente apetrechado com medicamentos, porque a CArt 2520 tinha uma excelente equipa de enfermeiros comandada pelo Furriel Enfermeiro Augusto Costa e da qual fazia parte o Cabo Silva que nos acompanhou durante os seis meses em que permanecemos naquele destacamento. Mesmo assim, quantas vezes fomos pedir medicamentos a uma Missão Anglicana que existia lá perto de nós. Também cooperávamos com esta Missão.

A água, se é que era potável, íamos buscá-la em bidões de gasolina vazios, a um poço existente a mais de quinhentos metros das nossas instalações, de qualquer modo não estava envenenada porque esta seria a primeira habitação de dezenas de rãs que por lá moravam.

E como é que nos defenderíamos se porventura o inimigo quisesse organizar connosco uma "excursão" a partir do Biombo até um sítio qualquer do Senegal ou da Guiné Conacri? Ou, o mais certo seria não haver interesse por parte do PAIGC em nos molestar, porque a zona do Biombo/Ondame era "colónia" de férias dos seus militantes?

Para a iluminação existiam um ou dois "petromax". Eu próprio adquiri um candeeiro a petróleo daqueles que as carroças usavam antigamente, para ter luz nos meus "aposentos".

Gostava de poder dizer ao "meu" coronel que não gastámos 3 munições abandonadas numa prateleira. Gastámos sim, mas foram mais de 3 mil e já não faziam parte da dotação da Companhia, foram trazidas por prevenção quando deixámos o Xime.

A nossa permanência no Biombo foi quase um caso de sobrevivência, os mantimentos não eram nem em quantidade nem em qualidade suficientes para alimentar diariamente quase um pelotão de militares e muitas vezes tivemos que nos socorrer da caça para nos alimentarmos.Também comprávamos por imposição aos nativos das tabancas, cabritos ou galinhas ao preço que nós próprios estabelecíamos, mas nunca roubámos. Algumas vezes também comprávamos uma ou duas pernas de vaca quando havia "choro", cerimónia fúnebre em que os nativos matam os seus animais para as celebrações.

Sempre se procedeu à limpeza de armas, mas não era regra, normalmente era de acordo com a convicção de cada um e até me recordo de um soldado ter disparado acidentalmente um tiro enquanto cuidava da sua G3, foi por pouco que não houve graves consequências, o que contradiz o ditado: "Em tempo de guerra não se limpam armas".

Foi muito ingrato quase no fim da comissão e depois de tantos sacrifícios, de tanto sofrimento, de tanta luta e de tantos perigos passados, ter recebido como recompensa uma punição registada na caderneta militar. Felizmente esta detenção não chegou a se concretizar e acabou por ser ultrapassada. Tenho a perfeita consciência de que fui uma peça importante para a CArt 2520, principalmente para o 3.º Pelotão. Cheguei a ser durante muito tempo o único graduado deste grupo de combate e também o seu comandante, com a certeza de que conduzi os meus homens nas matas do Xime, tão bem quanto o saudoso Alferes Joaquim da Costa Marques e com absoluta confiança dos combatentes deste Pelotão.

O tempo já apagou a ira e a raiva que ficaram dentro de mim, mas quando me recordo deste episódio ainda sinto alguma revolta e essa jamais me abandonará.

Para que não haja dúvidas aqui vai a respectiva transcrição da caderneta militar.

"...e na verificação do estado de limpeza e conservação do material e munições do destacamento de que é comandante, dando lugar a que embora na sua ausência, uma praça metropolitana utilizasse munições que se encontravam abandonadas numa prateleira da cantina e, com uma espingarda Mauser distribuída a um milícia fosse à caça dos pássaros".

Para todos os amigos da Tabanca Grande, aqui vai também um grande abraço.
José Nascimento
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15742: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (7): O Soldado João Parrinha, natural de Cabeça Gorda, Beja

Guiné 63/74 - P15869: Inquérito 'on line' (47): Apanhei um "pifo de caixão à cova", uma, duas, três ou mais vezes... confessam 65 em 100! (Resultados finais)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 > Abril de 1968 > Não, não estavam a curar nenhum pifo de caixão à cova, estavam simplesmente a dormir ao luar...Fase de construção do aquartelamento de Mansambo  (que a "Maria Turra", na rádio Libertação, em Conacri, chamava "campo fortificado de Mansambo")...Os alferes milicianos Cardoso e Rodrigues apanham "banhos de luar" (sic)...

Legenda do Carlos Marques dos Santos, o primeiro dos Viriatos a chegar ao nosso blogue, logo em 2005, tendo depois trazido com ele o Torcato Mendonça:  "A propósito!... Sabem onde foi tirada esta foto? Em Mansambo, a céu aberto. Camas de ferro nos fossos que iriam ser o aquartelamento fortificado de Mansambo. Data: abril de 1968. A foto é do Henrique Cardoso, alferes da CART 2339 e seu comandante. Os 3 Capitães, que comandaram a Companhia anteriormente estiveram sempre doentes !!! Ele assumiu o comando. Era miliciano e responsável. Podes publicar, se quiseres. O Cardoso autorizará. Tenho o seu aval. CMSantos".

Foto: © Henrique Cardoso / Carlos Marques Santos (2005). Todos os direitos reservados.



INQUÉRITO: "NUNCA APANHEI NENHUM PIFO DE CAIXÃO À COVA NA TROPA OU NO TO DA GUINÉ"




Resultados finais > 102 respondentes

1. Nunca > 31  (30,4%)

2. Uma vez, por acaso > 25 (24,5%)

3. Duas vezes > 10 (9,8%)

4. Três vezes > 4 (3,9%)

5. Mais vezes > 26 (25,5%)

6. Não me lembro > 5 (4,9%)

7, Não aplicável: não bebia > 1 (1,0%)

Total > 102 > (100,0%)


Votos apurados: 102
Sondagem fechada em 15/3/2016 | 18h04

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Nota do editor;

Último poste da série > 17 de março de 2016 >  Guiné 63/74 - P15868: Inquérito 'on line' (46): os pifos que apanhei durante a campanha africana, aconteceram sempre pelas melhores causas e produtos (José Manuel Matos Dinis, adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha)


Guiné 63/74 - P15868: Inquérito 'on line' (46): os pifos que apanhei durante a campanha africana, aconteceram sempre pelas melhores causas e produtos (José Manuel Matos Dinis, adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha)

1. Mensagem, de 11 do corrente,  do José Manuel Matos Dinis,  adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha [que se reune hoje, 5ª feira,  17 de março, em Oitavos,  Guincho, Cascais, para mais uma sessão de (de)lib(er)ações] 


[José Manuel Matos Dinis  ex-fur mil, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71]


Assunto - Inquérito: "Nunca apanhei nenhum pifo de caixão à cova na tropa ou no TO da Guiné"


Camaradas Luís e Carlos,
Não vos peço que publiquem o texto anexo, mas achei-lhe graça, parecendo-me fiel à vida social no leste da Guiné, durante os anos da graça de 1970 e 1971, quando o pessoal tirava partido dos melhores "resorts".
Abraços fraternos
JD



Parabéns, Luís,  pelo texto bem destilado que acabaste de produzir [, e que circulou pela Tabanca Grande, lançando o mote para o inquérito desta semana. É de pendor escocês, mas foi para uso nas terras quentes e húmidas da Guiné enquanto là malhàmos a cornadura. 

Hoje sou fraco bebedor, apesar de ainda gostar de debicar diferentes derivações devidamente embotelhadas, ou a saírem do pipo numa adega fresca. Naqueles verdes anos também apanhei uns pifos, pois já tinha uma certa noção da igualdade, e da necessidade de me manter próximo das vanguardas.

Em Piche, que foi o local onde cumpri a periquitagem, tive a sorte de dormir na cama apenas metade das noites, pois as restantes andava envolvido em escuros jogos de guerra, que na melhor das hipóteses só contariam com as luzinhas do magnífico firmamento para iluminar os sonhos. Na​s restantes​ noites de adormecer no quarto, a famosa suite 3, nunca me faltaram os vinhos do Reno, brancos secos que acompanhavam com distinção um cabrito assado, uma posta de queijo, ou um naco de presunto que se deixavam mastigar acompanhados de um casqueiro ainda quente. 7

Lá na minha suite, que era partilhada por mais 5 valentões, mas onde havia sempre alguns penetras que iam esperar pelo joão pestana, proibidos de barulhar durante as emissões da RVFM - Rádio Voz do Furriel Milicano, faziam depois a algazarra que calhava, talvez em resultado da festança e da rica variedade das bebidas, quase sempre reunidas em festejos estomacais que acabavam por subir à cabeça. Ele eram uísques simples ou de malte, novos ou velhos, escoceses ou irlandeses; conhaques, brandies e aguardentes da França e de Portugal; gins ingleses (muito bons para matar a sede, já que estávamos em guerra, e ainda complementavam uma função preventiva do paludismo); bem como os incolores líquidos de algumas garrafitas - na época ainda pouco divulgadas - em fuga das ditaduras comunistas, que para nosso gáudio iam desembocar ao lado contrário da ideologia revoltada
​ - com créditos firmados na distante Rússia, a vodka​.

​ Não sei porquê, mas a garrafeira naquela região remota era bem abastecida.​
Pois bem, durante esses meses pichenses acho que não houve noite adormecida sobre o lençol, que não tivesse tido o feliz adormecimento volatilizado, ou não fosse eu um dos felizes descendentes de Dionisius, um gajo porreiro, promotor de devassas e incrementador do extraordinário e lúcido princípio: se conduzir, beba à fartazana. 

Mais tarde, em Bajocunda, eu e o Tito tivemos sempre camas no quarto,  não nos aventurando às perigosas deslocações para as catacumbas periféricas, insanas para quem se preocupava com a melhor condição física e psicológica. O Zé Tito tinha alargadas fronteiras sobre a espiritualidade, e aos caudais de ideias que lhe afloravam na carola, regava-os cuidadosamente com os melhores líquidos de diferentes proveniências, desde que houvessem, claro, e ainda tinha a gentileza de me acordar a desoras da noite com uma solidária recomendação: bate-te à hepatite, pá!

Ele bateu-se com valentia, muito mais do que eu, e por isso foi medalhado com umas férias estivais de três meses durante um Verão de Cascais, e como prémio complementar, foi assistido por uma dedicada enfermeira francesa que nunca lhe faltou com carinhosos tratamentos. Foi no parque do Guincho de onde não saíu a caravana, enquanto o menino recuperava para o regresso à guerra, e o Carlos Santa - que viria a bater-se em Nova Lamego - estudava sob a batuta atenta de outra francesa, e preparava os exames finais de engenharia. Passou, e foi uma festa cujo ronco chegou desapiedadamente à Guiné.

Conclusão: os pifos que apanhei durante a campanha africana, aconteceram sempre pelas melhores causas e produtos, pois resultaram de manifestações de festa e alegria que eram tão frequentes durante a minha juventude. De facto, não tenho memória de ter bebido para esquecer. (**)

Abraços fraternos

JD

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P15867: Parabéns a você (1050): José Armando F. Almeida, ex-Fur Mil TRMS do BART 2917 (Guiné, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de Guiné 63/74 - P15861: Parabéns a você (1048): Joviano Teixeira, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 4142 (Guiné, 1972/74)

quarta-feira, 16 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15866: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (11): Porque continuamos a falar da guerra que vivemos na então província da Guiné?

1. Em mensagem de ontem, dia 7 de Março de 2016, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) enviou-nos esta mensagem e reflexão:

Amigo Carlos
Faço votos para que te encontres de boa saúde junto dos que te são queridos.
Carlos, quero agradecer a mensagem que me enviaste quando do meu último poste, a propósito da minha saúde dizer-te que me sinto bem.
Há já muito tempo que não tenho publicado nada no meu blogue, vou publicar hoje um poste igual ao que te envio, fala da Guiné se quiseres publicar estás à vontade…
Recebe um abraço


MEMÓRIAS QUE ME ACOMPANHAM

11 - Porque continuamos a falar da guerra que vivemos na então província da Guiné?

Quando a minha Companhia esteve em Mansambo, três dos nossos camaradas ficaram cada um sem um pé, vítimas de rebentamento de minas, o que se for dito agora leva alguns a dizer ainda tiveram sorte ficarem só sem um pé, como se alguém com vinte e poucos anos que foi obrigado a deixar tudo e todos e ir para a guerra tivesse sorte em ficar apenas com um pé. Mas já ouvi…

Ou quando dois camaradas nossos em Cobumba morreram vítimas de uma mina levantada pelos nossos homens que viria a rebentar na nossa arrecadação, ou ainda num dos dias mais desmoralizadores que vivemos em todo o tempo de comissão, em Cobumba, quando quatro feridos estiveram várias horas esperando que o héli chegasse para fazer a evacuação para Bissau e o mesmo não chegou… mais tarde, com o tempo de comissão já terminado há muito, outro camarada viria a falecer já na cidade.

Quando alguém tenta explicar por que é que isso aconteceu, são alguns dos próprios que viveram essas situações que acham que isso é perder tempo, dizendo, são coisas que já não interessam. Pois não é esse o meu entendimento. Dar a conhecer o passado, neste caso o que vivemos na guerra, é sempre interessante. Se mais não for, para que aqueles que vierem depois de nós saibam o que nesse tempo aconteceu e porque aconteceu e, se possível contribuírem para que tal não volte a acontecer…

Se esse passado não for dado a conhecer aos mais novos que nasceram no tempo em que não é obrigatório ir à tropa, que aos cinco ou seis anos já usam o telemóvel e alguns até já mexem na Internet, que antes de nascerem os pais já tem um cuidado especial com eles. A resposta deles provavelmente seria, mas que atrasados que eles eram.

 Vítimas de uma emboscada

Não é novidade para ninguém, ou não deveria ser, que é muito importante arrumar o nosso passado, mas isso não implica esquecer. Sabendo de onde vimos, se mais não for, é sempre mais fácil decidir para onde queremos ir…

Tudo tem um tempo para acontecer. Havia um homem que andou cerca de três anos a colocar degraus para subir a um ponto muito alto onde ninguém antes tinha conseguido subir, faltava pouco para atingir o cimo, um dia, a morte chegou e não conseguiu aquilo porque tanto tinha lutado… Outro continuou o trabalho que há anos ele tinha começado, passados poucos dias chegou ao cimo, nesse dia fizeram uma grande festa e o seu nome ficou gravado para que todos soubessem quem foi o primeiro a chegar àquele sítio. Lamentavelmente esqueceram, que aquele só lá chegou porque outro durante muito tempo trabalhou para que isso fosse possível…

Por tudo isso é bom haver quem se preocupe em dar a conhecer o nosso passado, neste caso na guerra, sempre com o rigor possível, para que aqueles que vieram depois de nós possam saber as dificuldades porque passamos, se mais não fosse, só a ausência de familiares e amigos durante muitos meses, alguns, mais de dois anos naquela que devia e podia ter sido a melhor fase da nossa vida…

Viver num clima de guerra só por si era terrível, mas a esmagadora maioria dos que passaram pela Guiné teve que conviver com o sofrimento de camaradas feridos, quer em combate, vítimas de flagelações à distância ou das terríveis minas em que ficaram marcados para sempre. Outros, não resistiram ao sofrimento e mesmo ali a nosso lado acabaram por perder a vida.

Quando se fala nas migrações como está a acontecer nesta altura, faz-me lembrara uma frase que disse a alguns amigos quando cheguei da Guiné: se um dia houver guerra em Portugal só se não puder é que não abalo com a minha família para um país onde exista paz…

Creio, que se o sofrimento que advém da guerra a todos por igual chegasse não haveria na terra homem que em guerra pensasse.

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13653: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (10): Quando a manta passou a servir de colchão

Guiné 63/74 - P15865: Convívios (731): XXXIII Encontro Nacional dos ex-Oficiais, Sargentos e Praças do BENG 447 - Guiné, dia 16 de Abril de 2016, em Fátima (Lima Ferreira)

XXXIII ENCONTRO NACIONAL DOS EX-OFICIAIS, SARGENTOS E PRAÇAS DO BENG 447 - GUINÉ

FÁTIMA, DIA 16 DE ABRIL DE 2016 


O almoço vai ser no Restaurante "Pastilha & Filhas".

Antes, às 11 horas, haverá uma missa pelos falecidos do Batalhão na Igreja da Santíssima Trindade.

As inscrições devem ser feitas por telefone ou e-mail para:
Lima Ferreira - Telef. 919 977 304 - e-mail lf.limaferreira@gmail.com
Francisco Araújo - Telef 963 154 718 - e-mail f.g.araujo@live.com.pt

Lima Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15850: Convívios (730): X Encontro dos Combatentes do Ultramar do Concelho de Matosinhos, levado a efeito no passado dia 5 de Março de 2016 em Leça da Palmeira (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P15864: Tabanca Grande (483): Álvaro Magro (ex-1.º Cabo Aux Enf da CART 3493, Mansambo e HM 241 de Bissau, 1971/74). Passa a ser o grã-tabanqueiro n.º 712, com direito a sentar-se à sombra do nosso poilão, ao lado dos seu manos Abílio Magro e Fernando Valente Magro

1. Aceitou o nosso convite para integrar a Tabanca Grande, sob o n.º 712,  o Álvaro Magro, ex-1.º Cabo Aux Enf (CART 3493, Mansambo e HM 241, 1971/74), um dos seis "Magros do capim", co-autor do livro "Seis Irmãos em África" (*)

O convite fora há dias dirigido nestes termos:

(...) "E como há sempre um Magro desconhecido, aqui vai a ficha da tropa do Álvaro Valente Lamares Magro, o terceiro da família que foi parar à Guiné e a quem eu peço licença para enfileirar na Tabanca Grande, ao lado dos manos Fernando Valente (Magro) e Abílio Magro, se eles. os três, concordarem... 

O mais importante é a vontade e a opinião do Álvaro, por muito que prezemos a opinião do mano mais velho (Fernando) e do mais novo (Abílio). Temos um número para ele, o 712, um lugar jeitoso à sombra do mágico poilão da Tabanca Grande... Era muito honroso termos cá, todos sentadinhos e bem comportadinhos, os três manos Magro que foram à Guiné... É caso único...

Se os outros três, que andaram por outros "matos" (Angola e Moçambique) se quiserem juntar a nós, era ouro sobre azul!... Acho que nos podíamos candidatar ao Guiness Book of Records!... (Na verdade, não conheço até agora nenhum blogue da guerra que tenha juntado, sob o mesmo poilão, seis irmãos, combatentes)...

Vou pedir ao mano Abílio para fazer uma reunião de família... Convidar só o Álvaro, até parece mal!... Bolas, os outros três, também são filhos do mesmo pai e da mesma mãe: o Rogério, o Dálio e o Carlos!... (LG) (...).

O Álvaro respondeu logo,  na sua página do Facebook, e a mensagem chegou-nos através do mano Abílio, nestes termos:

Caro Luís Graça,

E com todo prazer e honra, enfileirar na Tabanca Grande, ao lado dos manos Fernando e Abílio.

Um abraço a todos Tabanqueiros.

Álvaro.

2. Ficha da tropa

(i) em janeiro e 1971, é  incorporado no Exército, fazendo a recruta no RI 7, Leria;

(ii) em abril, faz a instrução de especialidade no Regimento de Serviços de Saúde, Coimbra;

(iii) em Julho/agosto, faz estágio  HMR-1, Porto;
O Álvaro Magro, em Mansambo (1972)

(iv) em setembro/outubro, EPI, Mafra;

(v) em Novembro, é mobilizado para Moçambique;

(vi) em dezembro, é desmobilizado e novamente mobilizado, mas desta vez para a Guiné, onde chega no final do mês:
(vii) é integrado na CART 3493 (Mansambo, 1971/72), como 1.º Cabo Aux Enf; 

(viii)  em março de 1972, consegue transferência para o HM 241, Bissau onde presta serviço na Secretaria até ao fim da Comissão;

(ix) passa à situação de disponibilidade em 26 de fevereiro de 1974.

3. Comentário do editor:

Álvaro, sê bem vindo  a esta fantástica comunidade, real e virtual, dos camaradas e amigos da Guiné. As nossas regras de convívio são simples, estão aqui "on line": todos cabemos nesta tabanca (e por isso ela é grande) com tudo o que nos uniu ontem e une hoje, e até com as diferenças que nos pode separar (política, religião, futebol, etc.). 

Os manos estão por aqui: Abílio Magro (mais de 30 referências) e Fernando Valente (Magro) (um quarteirão de referências)... Apreciamos histórias e fotos... Para que os nossos filhos, netos e bisnetos não se esqueçam de nós, que na Guiné fizemos a guerra e a paz. Sabemos que fazes anos a 19 de maio, diz-nos se queres festejar connosco, na Tabanca Grande.

 Apreciaríamos, por outro lado, poder  ter o teu endereço de email. Manda uma mensagem com um OK na volta do correio. (**)
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Notas do editor:

Guiné 63/74 - P15863: Os nossos seres, saberes e lazeres (145): O ventre de Tomar (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março de 2016:

Queridos amigos,
Não se trata de fazer a apologia do antigo, do artífice/artesanal ou até mesmo do comércio local. Há espaços de comércio, há usos e costumes, há formas de habitar e de decorar que estão fora da tirania do instante, conseguem galgar a efemeridade das inovações em catadupa. Trata-se de uma sedimentação cultural em que baseiam os lugares, os espaços de convivência, os modos de intercambiar o saber fazer e o fazer saber. De certo modo, é o que aqui se pretende, misturando o novo e o velho, porque Tomar, como tantas outras localidades portuguesas, vive o turbilhão de ver muitas coisas às avessas, o que foi fortemente industrial definhou e vai morrendo, deixa marcas, são feridas por sarar, e nem tudo o que nasce sob a égide do progresso e do desafogo tem pés para ficar. Regista-se a memória e a homenagem às passagens de testemunho.

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (9)

Beja Santos


O céu desanuviou, o viajante já passou em frente às ruínas do que foi o quartel da região militar, estava ali especado e alguém lhe explicou que havia mais exército em Tomar que o RI 15, aquele comandante era um oficial general que pontificava na região centro, tempos que já lá vão, vamos avançar, dos mortos não reza a história, o viajante aprecia o esforço por vezes hercúleo de reedificar e manter Tomar na rota indispensável do mais importante turismo cultural. Deu mais uns passos e entrou numa oficina de turismo que é um curioso compósito de estilos, o propósito era visitar a exposição de Romy Castro, mas deparou-se com este guerreiro religioso vigilante, mais a mais adornado por belos azulejos. Ora toma, austeridade templária com muitíssimo bem gosto.


São coisas que acontecem, está-se numa exposição que até evoca um cenário do tipo planetário, a artista deverá ter viajado numa nave e guardou ideias de um mundo obscurecido, provavelmente o nosso, há para ali visões da Terra iluminando-se e perdendo-se no negrume da noite. Pois o que o viajante mais apreciou, canhestro como é a registar imagens em atmosfera de luz difusa, parece que tudo bateu certo, também ele se meteu numa nave e dali avistou as preocupações de Romy Castro, é um mundo que nos obriga a pensar não na nave Terra marcada pelo azul mas pela fuligem poluidora. Mas será mesmo assim?


Confesso que me caiu no goto este senhor manequim em robe de banho, está muito limpo e calçado para sair. A imaginação permite várias liberdades, uma delas supor que lhe bati à porta, ele veio ver-me em preparativos de se arranjar. Há muito tempo que não encontrava um senhor manequim como este, ainda por cima rodeado por muita roupa exterior. A senhora da loja perguntou-me duas vezes se era mesmo uma fotografia do manequim, tal a surpresa da intrusão. Depois conversámos e até prometi voltar. O senhor manequim não nos olha a direito, não temos classe para tal, e nem nos estende a mão, que grande exibicionista!




Há memórias que não se apagam, nossos avoengos aproveitam os longos serões para fazer, refazer e reparar: o enxoval, a roupa de sair e a roupa de bater, os bordados, as cortinas, as malhas quentes, e daí a luminosidade das lãs e destes carrinhos de linhas, autênticos arco-íris. A senhora riu-se quando por ali entrei pedindo-lhe que me deixasse fotografar, afinal a comunicação mediática nada tem a ver com este tipo de realidade, é uma comunicação feitas das frases do Cristiano Ronaldo, das noites dos óscares, das tiradas sloganísticas dos políticos nacionais e estrangeiros, o que eu ali vinha fazer era prestar homenagem às entranhas desse saber fazer que nunca se perdeu, mesmo que a sociedade de consumo nos procure banquetear com as réplicas das lojas de chineses, as nossas mãos terão sempre talento, os lavoures femininos são histórias de encantar, acreditem ou não.



Há mais de 50 anos atrás, as artes do mobiliário deram uma guinada, ao invés de móveis pesados apareceram umas linhas suaves, uns pés roliços entortados, os cadeirões lembravam remotamente o estilo rústico, as mesas pareciam cair com uma rabanada de vento – chamou-se estilo americano, e foi de pouca dura. Não é que o viajante viu da montra este cadeirão todo embonecado com motivos portugueses, pois claro, pediu licença para fotografar, conversou com a lojista e apurou que se arrancara a napa original e assim se chegara a esta peça vistosa. E para fazer ponto final nesta deambulação nada como este cenário de carpintaria, em primeiro plano a mesa em que se tortura a madeira, até ela ganhar forma, e na sua envolvente tábuas de todas as dimensões e feitios. Como é evidente, são coisas da imaginação, para o viajante estão aqui na imagem o criado e o incriado, fica por sondar o génio marceneiro. E aquela bata, como descuidadamente abandonada, na mesa de trabalho, também nos deixa a incógnita se acabou ou vai começar a laboriosa sessão de fazer das tábuas um móvel de eleição.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15834: Os nossos seres, saberes e lazeres (144): O ventre de Tomar (8) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15862: Fotos do álbum da minha mãe, "Honra e Glória" (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Nova Lamego e Paunca, 1969/70) - Parte I



Foto nº 1  > Capa do álbum da minha saudosa mãe, "Honra e Glória"



Foto nº  2  > O meu saudoso pai, militar do Regimento de Infantaria de Lisboa, 1943-45


Foto nº 3 >  A foto da ordem, com a farda emprestada... [A farda nº 1...]



Foto nº 4 > Recruta nas Caldas da Rainha [, em farda nº 3, no RI 5, que faz hoje 42 anos que se revoltou,...]



Foto nº 5 > Juramento de bandeira [, no RI 5, Caldas da Rainha]



Foto nº 6 > Em Vendas Novas, EPA [Escola Prática de Artilharia]



Foto   nº 7 >  Diploma do Curso de Minas e Armadilhas [, Escola Prática de Engenharia; nota, 79,8, "regular"]





Foto nº 8 >  Eu e o famoso e afamado Pechincha  [, do meu pelotão, fur mil op esp, desenhador na vida civil,,,]



Foto nº 9 > Eu [, à esquerda,]  com o fur mil Pais, numa jogatana, na nossa messe no Gabu [Nova Lamego], e o devido bioxene.







Foto nº 10 > Eu e o Pais, uns trinta anos depois






Foto nº 11 > Eu, o Pais e o Valdemar [Queiroz]


Fotos (e legendas): © Abílio Duarte (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar. L.G.]


1. Mensagem, de 12 do corrente, do Abílio Duarte [, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Nova Lamego, Paunca, 1969/1970]

Olá,  Luís,

Conforme teu pedido semanas atrás, aqui vão algumas fotos, que farás o favor de lhes dar o destino que entenderes, fui buscá-las a um Álbum, que a minha saudosa mãe criou com fotos que eu lhe enviava.

O interesse delas é relativo, tudo depende de quem as vê.

Nas mesmas vou pôr legendas, para melhor interpretação do seu significado.

Agradecendo desde já a tua paciência, daqui um grande abraço.

Abílio Duarte

2. Comentário do editor:

Obrigado, Abílio... Vamos publicar, numa série com o teu nome... Se quiseres, podes ir mandando pequenos textos, a partir das legendas (que são sucintas, mas nem sempre suficientes)... Quem disse que uma imagem vale por mil palavras, esqueceu-se dos cegos... São frases de senso comum, que vale pouco, como aquela, que costumávamos dizer e repetir em Bambadinca: Quem não sabe ler, que veja os bonecos... (Lembras-te, Tony Levezinho ?).

Todas estas fotos (mesmo as mais pessoais...) são preciosas, ajudando, em muito, a reconstrução do "puzzle" esburacado da nossa memória, da memória de toda uma geração que passou pela Guiné, entre 1961 e 1974... 

Mas é preciso "contextualizá-las"... Um ET, da geração dos nossos filhos, netos ou bisnetos, vai olhar para as tuas/nossas fotos como um boi para um palácio... Quem são esses gajos, em que época é que viveram, o que estavam para ali a fazer ?... Não havia telemóveis, ipads, tablets, PC, o Skype, nem sequer telefones!... Um homem podia estar (estava!) dois anos sem falar, "ao vivo", com a família e os amigos!... Tal como no tempo, 500 anos atrás, em que se ia à Índia e voltava (quando voltava!) dois anos depois... Havia, entretanto, uma coisa que se chamava "aerograma", inventada pelas senhoras do Movimento Nacional Feminino, e uma máquina montada pela tropa chamada "Serviço Postal Militar" (SPM)... Ajudaram a "encurtar" as distâncias, que o império, de dois mil quilómetros quadrados, era longe e largo...

Ao pores à nossa disposição algumas fotos que mandavas à tua mãezinha e que ela foi guardando e colando carinhosamente no seu álbum, prestas, a todos nós, um serviço altruista: ao vê-las, estamos a "avivar" as nossas próprias memórias individuais (e grupais): a tua história de vida é também a nossa. a de cada um de nós... Bem hajas!... Luís.

PS - Tens sabido do nosso comum amigo (, meu, de Bambadinca, teu, do BNU),  o José Carlos Lopes ? Ele tem um excelente album fotográfico... Fazia muitos "slides" e de boa qualidade... É meu vizinho (, eu moro em Alfragide). Mas não arranjo tempo para o ir visitar a Linda a Velha... Estive com ele cerca de 1 ano em Bambadinca... Ele, da CCS/BCAÇ 2852 (1968/70), eu, da CCAÇ 12 (1969/71)... Em tempos combinámos juntarmo-nos, eu, tu e ele... Vamos ver quando poderei ou quando poderemos juntarmo-nos, os três...

Guiné 63/74 - P15861: Parabéns a você (1049): Joviano Teixeira, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 4142 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Março de 2016 Guiné 63/74 - P15856: Parabéns a você (1047): António da Silva Baptista, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 3490 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 15 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15860: Brunhoso há 50 anos (6): Uma terra rica e auto-suficiente (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 8 de Março de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta a falar-nos da sua terra natal há 50 anos.


Brunhoso há 50 anos

6 - Uma terra rica e auto-suficiente

O planalto de Miranda, que para sul se prolonga bastante pelo concelho de Mogadouro, vem ainda dar forma à parte norte de Brunhoso, com terras planas, pouco fundas e secas, próprias para o cultivo do trigo e do centeio, que se produzia em abundância. Os meses de Julho e Agosto eram meses de grande azáfama com a ceifa das searas, a acarreja dos molhos de cereais, feita pelos carros de bois e de mulas, para as eiras do Prado, onde as medas iam crescendo em largura e altura e finalmente as malhas e a recolha do grão e da palha.

Nessa zona de planalto, numa parte sobranceira à aldeia a cerca de um quilómetro, existia um grande souto, implantado num terreno de muitos hectares, propriedade da Junta da Freguesia, sendo os castanheiros propriedade dos naturais da terra, divididos desigualmente através de um processo já antigo que desconheço, possivelmente com vendas e trocas posteriores. As castanhas eram tão boas, sobretudo as variedades predominantes: a longal e a judia, pouco a rebordega só própria para dar aos porcos.

Seara de centeio em Trás-os-Montes
Com a devida vénia a Panoramio

Nos dias de domingo, já um pouco frescos de Outono, os rapazes e raparigas solteiras faziam magustos na Serra (sítio dos castanheiros, seria Serra porque ficava noutro plano acima da aldeia, penso eu) com grandes fogueiras e faziam bailes ao som de realejos (harmónicas de boca) para aquecer os corpos e as almas. As castanhas eram uma riqueza que não saía da aldeia, pois nesse tempo não tinha compradores, as pessoas comiam algumas cruas, mais cozidas ou assadas e a maioria davam-se aos porcos, para os cevar, pois as matanças não estavam longe e elas eram um bom alimento para eles. Guardavam-se sempre algumas nas despensas, em talhas de barro, para serem comidas cruas no dia primeiro de Maio senão o burro mordia, vá-se lá saber porquê.

Para sudoeste o termo de Brunhoso integra-se na paisagem formada por montes e vales a perder de vista que identificam e dão nome à província de Trás-Os-Montes. As montanhas da Ribeira e da Lagariça que acompanham os vales dos mesmos nomes, onde correm ribeiros bastante caudalosos no Inverno e na Primavera, quase secos no Verão, estão cobertas de sobreiros e de estevas, giestas e outros arbustos. As giestas e estevas na humildade do seu porte aqueciam as casas dos trabalhadores sem terras nas noites frias de Inverno e eram uma lenha excelente para aquecer os fornos onde se coziam os grandes pães trigos e centeios. Os sobreiros no seu porte altivo produziam a bolota, tão do agrado das ovelhas e carneiros e a cortiça que proporcionava uma fonte de rendimento extra para alguns lavradores.

Nesse tempo, do norte ao sul da província, na zona de terras entre o rio Sabor e o Douro Internacional, Brunhoso era a aldeia que produzia mais cortiça e mesmo fora dessa área muito poucas aldeias haveria no norte de Portugal com maior produção.

Caminhando montes fora por caminhos e carreiros vamos encontrar a cinco quilómetros o vale do rio Sabor com uma ladeira muito extensa coberta de oliveiras com muitos socalcos de pedra, chamados safardas, que permitiram que se fizessem os plantios e manutenção dessas grandes áreas de olival. Para aproveitamento dos terrenos planos para o cultivo dos cereais e dos montes com menor declive para o montado de sobreiros, os nossos antepassados reservaram esses terrenos de encostas íngremes que descem para o rio e com um clima menos frio para as oliveiras. Encostas por vezes tão íngremes que as oliveiras tinham que ser cavadas pela mão do homem pois as juntas de vacas ou de mulas não conseguiam equilíbrio suficiente para as puder lavrar. Terrenos tão íngremes onde não havia caminhos onde pudessem circular os carros de bois e a azeitona tinha que ser transportada dentro de sacos por burros e mulas.


Para além de todo o trabalho em excesso, essas árvores, que dizem que um Deus há muitos séculos abençoou, davam azeite para dar e vender, azeite óptimo feito sobretudo das variedades madural, negra e verdial com algumas lentisca, cobrançosa e bical.

Junto ao rio Sabor numa planície de 100 a 200 metros de largura, que lhe acompanhava a margem, estavam as oliveiras centenárias, com troncos mais largos do que um abraço de dois homens. Muitas delas teriam mais de 500 anos. A memória da aldeia, que transmitida de gerações em gerações geralmente se perde nos nossos bisavós, estava no seu ADN, caso houvesse um cientista que o soubesse descodificar e revelar todos os que ao longo dos séculos as plantaram, as limparam, as lavraram, as estrumaram, as varejaram e lhe apanharam a azeitona.

Infelizmente essas grandes oliveiras, há dois anos, foram arrancadas para dar espaço livre à inundação provocada pela barragem do Sabor. Enfim é o progresso a descaracterizar o passado, num país mais rico e mais respeitador da sua história natural, essas árvores, monumentos da natureza, seriam transplantadas para terrenos livres e há tantos agora ao abandono.

 A povoação está situada numa parte mais baixa, abrigada entre o planalto e a zona montanhosa. Ao redor dela, num raio de 1 a 2 quilómetros em terrenos mais fundos e com maior abundância de nascentes de água situavam-se as hortas e lameiros. As hortas produziam batatas, feijões, melões, melancias, abóboras, beterrabas, milho e muitos outros produtos hortícolas para consumo das pessoas e dos animais. Produziam ainda linho com que as mulheres fabricavam nos teares: toalhas, colchas, peças de roupa e grandes sacos de linho para transportar o trigo e o centeio.

Vale do Sabor
Foto: © Miguel Barbosa

Os lameiros e regadas davam bom pasto ao gado bovino, asinino e muar e os freixos e olmos, que cresciam neles, forneciam-lhes também as suas folhas, comestíveis no tempo quente e seco do Verão, em que havia pouca erva. Havia muitas vacas para o trabalho dos campos que pariam muitas vitelos para venda ou para criação.

Há um mês, à lareira da casa de Brunhoso, que herdámos dos nossos pais, à conversa com o senhor António, lavrador de Mogadouro, um homem rijo e com boa cabeça, apesar dos seus 90 anos, com muitas estórias para contar, falou-nos nas carneiradas já esquecidas nas dobras da minha memória. Segundo ele, em 1945, com a idade de 18 anos, foi contratado por um negociante de gado para ir a pé com mais quatro pastores para levar 900 carneiros a Celorico da Beira, a uma distância de cerca de 130 quilómetros. A viagem, de ida e volta, sempre a pé, demorou quatro dias e conta que ganhou 50 escudos, uma boa importância para a época,  segundo afirmou. Segundo ele, nesse tempo e ainda em tempos posteriores, que eu recordo vagamente da minha meninice em Brunhoso, havia três ou quatro carneiradas. As carneiradas eram rebanhos de carneiros capados, para atingirem maior crescimento e como tal próprios para serem vendidos para produção de carne.

Rebanhos de ovelhas nesse tempo haveria 15 a 20 que produziam muito leite de que as mulheres fabricavam bons queijos e produziam muita lã aproveitada para fazer, tal como o linho, muitas roupas para uso pessoal e doméstico, estou a lembrar-me das meias grossas de lã, usadas no Inverno.


Os carneiros e as ovelhas andavam por montes, terras não semeadas, por hortas não plantadas, terras de adil, raramente lameiros. Nessa sociedade de subsistência nada se desperdiçava, havia lugar para todos os tipos de plantas e animais e cada um ocupava o seu espaço próprio em proveito da comunidade.

Não havia cabras em Brunhoso, um acordo antigo entre os lavradores, instituiu essa proibição para proteger os sobreiros no seu crescimento pois esses animais gostavam de roer os caules e ramos tenros dessas árvores. Dentre as aldeias em redor esta "lei" era única e respeitada pelos cabreiros das terras próximas, sendo já antiga, talvez nos ajude a compreender porque razão se produzia tanta cortiça na aldeia.

Produzia-se algum vinho, não o suficiente para consumo da aldeia, já que estando situada numa zona de terra fria, o clima não era o melhor para o amadurecimento das uvas. A melhor zona para plantar a vinha seria, penso eu, nas arribas do Sabor, pela sua exposição solar e por ter clima mais quente, porém esses terrenos estavam reservados, há longos anos, por vontade dos mais velhos, para a produção desse líquido dourado, abençoado pelas mulheres e pelos deuses, que produziam as oliveiras.

 Para a economia das famílias eram também muito importantes os porcos que cada uma criava para matar no Inverno e guardar o presunto, o toucinho, os salpicões, as linguiças, as alheiras e outros enchidos para consumir durante o ano, assim como a criação de galinhas e perus que além de ovos forneciam boa carne. Muito importante também para a dieta dos mais pobres e apreciada igualmente por todos os habitantes eram as produtos que cresciam espontâneamente nos campos, os míscaros, as azedas, os cunqueiros, os agriões, as merugens. Para variar as dietas alguns tinham acesso à carne de caça, perdizes, coelhos e lebres e aos peixes que alguns pescadores pescavam no rio Sabor por vezes em grandes quantidades.

Tudo é relativo, assim Brunhoso, nesse tempo, que era uma aldeia rica e auto-suficiente, uma sociedade rural de subsistência, com os recursos agrícolas e florestais explorados até ao limite, não conseguia alimentar nem dar trabalho a todos os seus filhos porque a explosão demográfica fazia crescer exponencialmente a população. Tendo cada casal uma média de seis ou mais filhos, a única saída para os mais desfavorecidos da fortuna quando se atingia um certo limiar populacional, era o drama da emigração. Actualmente com o declínio acentuado da agricultura tradicional, esse drama converteu-se na tragédia da vida que a grande poetisa galega Rosália de Castro retratou em verso em relação à sua terra.

Em Brunhoso só já moram alguns desfavorecidos da sorte e outros que por muito amor às mães que os geraram e à terra mãe onde nasceram e foram criados, nunca tiveram coragem de abandoná-la. Ficaram também alguns mais velhos a sonhar com o movimento das gentes e dos animais de antigamente e algumas mais velhas com o olhar mortiço e desalentado pois estão privadas da presença dos netos e dos filhos que davam calor às suas vidas e tanto brilho ao seu olhar. Os da minha faixa etária (já velhos!) que vamos periódica ou ocasionalmente à aldeia, que acompanhámos a transição entre estes dois mundos, temos a alma repartida pois em troca de algum bem-estar fomos perdendo as nossas raízes. Os olmos tão verdes e frondosos na Primavera e no Verão morreram há muitos anos com a grafiose, doença holandesa dos ulmeiros, os freixos vão ficando enrugados porque não há rapazes ou homens que lhes esgalhem os ramos, nem vacas que lhe comam as folhas, os castanheiros morreram também todos de outras pragas, os sobreiros têm morrido, uns por velhice, outros por causa das alterações climáticas.

Os terrenos da minha aldeia, que tem 20 km2 de área agrícola e florestal, está dividida em dezenas de sítios com nomes que podem identificar uma área de dois ou três hectares ou uma área de trinta ou mais hectares. Sem estarem assinalados com qualquer marca física, toda a gente da terra conhece os seus limites.

A minha vida na aldeia que nunca esteve confinada às quatro paredes da casa dos meus pais, abre-se para esses espaços livres que percorri tantas vezes e fazem parte da minha memória geográfica e afectiva, que passo a nomear: Lagariça, Ribeira, Hortelã, Miragaia, Gaiteiro, Fonte da Dona, Fonte do Buraco, Fonte do Junco, Juncais, Juncaínhos, Urzal, Entre-Caminhos, Ferreiros, Cachão, Barca, Perdigosa, Rabo da Vaca, Cova dos Lobos, Sapo Torrado, Boiselas, Cabecinho, Canadinha, Crasto, Lamas, Fraga do Poio, Fraga da Tecedeira, Forno dos Mouros, Lama das Vinhas, Vinhas dos Cães, Milhares, Balhelhos, Serra, Cinzas, Chabouco, Vale de Cabo, Vale de Meio, Valedramum, Vale da Nina, Couço, Azinhal, Arrebentão, Escaleiras, Figueiredo, Picotas, Prado, Orretas, Olmos, Lameira, Lameirões, Rodelas, Barriguinho, Queimada, Maias, Francos, Picotas, Netos e outros que agora não recordo.

Um abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de junho de 2015 Guiné 63/74 - P14714: Brunhoso há 50 anos (5): Uma sociedade paternalista (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)