segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7042: Recortes de imprensa (31): A guerra do José Martins, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70 (Correio da Manhã)


O nosso Camarada José Marcelino Martins, (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos mais uma mensagem, com data de 25 de Setembro de 2010, para a série “Minha Guerra”:

Comissão: GUINÉ 1968/1970
Unidade: Companhia de Caçadores nº 5 /CTIG
Ramo: Exército
Arma: Infantaria
Especialidade: Transmissões
Posto: Furriel Miliciano

Fez parte de que Batalhão?

Fui mobilizado em rendição individual., isto é, sem ir integrado em qualquer tipo de unidade, já que era destinado à Companhia de Caçadores nº 5, uma unidade da Guarnição Normal do CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné).

Era uma unidade, havia apenas três no exército na Guiné, que era constituída por Oficiais e Sargentos, do Quadro Permanente ou Milicianos, recrutados e mobilizados para o ultramar, em rendição individual.

Também tinha praças metropolitanas, (Cabos e Soldados) de diversas especialidades. Os restantes elementos da companhia eram recrutados na província, começando por serem só atiradores, mas com o correr do tempo foram sendo ministradas outras especialidades, assim como muitos foram recrutados para cursos de sargentos milicianos.

Quando é que chegaram?

Cheguei no dia 2 de Junho de 1968 (embarquei em Lisboa em 28 de Maio) a bordo do NM Alenquer que, alem de duas tripulações (4 marinheiros/cada) de LDP (Lancha de Desembarque Pequena) seguiam mais quatro furriéis do exército. O barco transportava material de guerra e outros materiais para as tropas em serviço na província.

Soube logo para onde ia?

Estava no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 2, em Torres Novas. Tinha sido promovido ao posto de 1º Cabo Miliciano, com a especialidade de Transmissões de Infantaria, no dia 18 de Abril de 1968. Fui informado da mobilização, teatro de operações e unidade de destino, perto do final desse mês, iniciando os 10 dias de licença NNAPU (Norma de Nomeação e Apoio às Províncias Ultramarinas).

A minha mobilização foi, como a de quase todos os combatentes, efectuados ao abrigo da alínea c) do art.º 3º de Decreto nº 42.937 de 22 de Abril de 1960.

O que sentiu quando chegou?

A par da preocupação da chegada a um teatro de guerra, havia a expectativa de tomar contacto com realidades, até aí desconhecidas.

A “ida para a guerra” já era como que uma certeza, já que se desenrolava desde 1961 e, contrariamente ao que o Regime pretendia deixar transparecer que era “um assunto já resolvido”, o que a realidade desmentia uma vez que se procedia à “formação de mais soldados” para aumentar a presença militar nos teatros de operações.

No ano de 1961, tinha eu 14/15 anos, foi um “ano beligerante”.

Em 22 de Janeiro é desencadeada a Operação Dulcineia, pelo Capitão Henrique Galvão, contra o paquete Santa Maria, onde perde a vida um oficial – João José do Nascimento Costa – quando se opôs aos assaltantes. Como tinha pertencido à Mocidade Portuguesa, como a maioria dos estudantes, o regime elevou-o às maiores honras, apresentando-o como herói nacional e modelo a seguir.

A 4 de Fevereiro desse mesmo ano, inicia-se o terrorismo em Angola, para outros Luta de Libertação, com o assalto às prisões que, nos anos seguintes, se estenderá a outras províncias ultramarinas.

No dia 18 de Dezembro, na Índia Portuguesa, consuma-se a invasão, por parte da União Indiana, dos territórios portugueses de Goa, Damão e Diu (em 1954 Portugal já tinha perdido os territórios de Dadrá e Nagar-Haveli). A força atacante composta por cerca de 45.000 elementos e tendo, para uma segunda vaga, um número ainda maior encontra, para fazer face à invasão, uma força portuguesa, mal armada e desmoralizada que, praticamente, se rendeu sem dar um tiro; entre 2.500 a 3.000 homens, que foram feitos prisioneiros. Foi nessa altura que se deu o último combate naval da nossa história, com a Lança Vega foi atacada e afundada em combate, com a morte da maioria da tripulação.

No final do ano, precisamente no último dia, é tentado um assalto ao Quartel de Infantaria nº 3, em Beja, dirigido pelo Capitão Varela Gomes, onde, na madrugada seguinte encontraria a morte o Subsecretario de Estado do Exercito, Tenente coronel Jaime Filipe da Fonseca, quando tentava entrar no quartel.

Quando cheguei à Guiné em 1968, com seis anos de guerra já decorridos, havia a expectativa de, no terreno, “viver” o que já me tinha sido relatado, apesar de muito pouco explícito, como eu próprio o faria ao regressar, como “defesa e tentativa de esquecer” esse passado recente e, “sempre presente”.

Como foram os primeiros tempos?

Para mim como para todos, mas todos, apesar de “muitos” quererem mostrar o contrário, estávamos numa terra que, apesar de a “sentir-mos como Portugal”, não era o nosso cantinho, na nossa cidade ou na nossa aldeia.

Numa unidade africana, como a minha, o número de metropolitanos era reduzido (seriamos no máximo 50 europeus). Também a rotação do pessoal era frequente, o que poderia ser, ou originar, um sentimento de “não integração”, dada a alteração ser cíclica, com a partida de camaradas e a chegada de novos, até que chega a nossa vez.

O clima era outra vicissitude, que provocava alterações “sensíveis” no nosso próprio comportamento, provocando alterações físicas e psicológicas.

O próprio ambiente de expectativa, em relação ao “minuto seguinte”, originava uma alteração comportamental que, ainda hoje, muitos de nós só lavem um ouvido ou um olho da cada vez, para que tenhamos os sentidos alertas e disponíveis.

A unidade, para a qual fui enviado, tinha a sede e o comando em Nova Lamego (actual Gabu) e os grupos de combate a guarnecer os destacamentos de Canjadude, Cabuca e Ché-che, todos na Zona Leste.

O meu primeiro contacto com as operações deu-se, ainda no mês de Junho de 1968, quando fui enviado para visitar os destacamentos da companhia instalados em Canjadude e Che-che, aproveitando a coluna que iria retirar as nossas tropas do destacamento de Béli e coloca-las em Madina do Boé (evacuada, posteriormente, em Fevereiro de 1969).

Ao longo do percurso viam-se viaturas destruídas por minas, seguidas de incêndio, as crateras abertas pelas mesmas minas, o ouvir o rebentamento das bombas lançadas pelos aviões tentando “limpar” os possíveis locais de esconderijo das forças adversas, o novo tipo de refeições (as celebres rações de combate) e a sede, fundamentalmente a sede.

Quando voltou?

Deixei o destacamento de Canjadude, para onde fora destacada a Companhia em Agosto de 1968, no dia 28 de Maio de 1970, exactamente dois anos após ter largado do Tejo. Passei por Nova Lamego, “arranjei” transporte numa avioneta militar para Bissau e, aqui, foi a corrida para encontrar transporte rápido para a metrópole. O “Rita Maria”, um barco de passageiros civil em que regressei, partiu de Bissau em 2 de Junho de 1970, tendo passado pelo arquipélago de Cabo Verde, aportado em Lisboa no dia 10 desse mesmo mês. Já lá vão 40 anos!

Qual foi o dia mais marcante? E porquê?

O dia 6 de Fevereiro de 1969. Nesse dia deu-se um dos maiores desastres da guerra do ultramar: o desastre do Che-che, em que morreram afogados 47 homens.

Acresce que, além do drama que envolveu este acidente, onde centenas de homens participaram, directamente e no terreno, na “Operação Mabecos Bravios” que retirou de Madina do Boé a Companhia de Caçadores nº 1790, que tinha assumido a responsabilidade daquele subsector em Janeiro de 1968, fui incumbido de recolher, junto dos comandantes das unidades envolvidas, o nome e a patente dos homens que tinham desaparecido, para sempre, nas águas do Rio Corubal. De posse da listagem, já transcrita para o impresso de mensagem, assinado pelo comandante da unidade e enviada para os escalões superiores, (Batalhão – Quartel General – Comando Chefe) foi altura de começar a receber, por parte de muitos militares, o pedido para que enviasse às suas famílias telegramas, através do sistema rádio militar, informando-os que se encontravam bem. Era assim. Mesmo em guerra, e talvez por isso, os militares nunca esqueciam a família.

O que lhe lembra a guerra?

Lembra algo que não devia existir, mas que, infelizmente existe desde o nascer dos tempos. Portugal sempre foi um “país em armas” desde a sua nacionalidade. No espaço de um século, Portugal enfrentou três guerras, de alguma dimensão, e outras que a história registou, mas a que não deu grande relevo. Muitas famílias estiveram presentes nessas guerras, incluindo a minha.

O meu avô materno esteve em Moçambique nas Campanhas de Ocupação, para onde embarcou em 5 de Julho de 1899, regressando em 24 de Junho de 1900. Em 1916 foi mobilizado, como 2º Sargento do Quadro Permanente, para o Batalhão do Regimento de Infantaria nº 7 (Leiria) afim de integrar o Corpo Expedicionário Português presente na I Grande Guerra, embarcando para França em 19 de Janeiro de 1917. Regressou, chegando a Lisboa em 23 de Julho de 1917, vítima do gás lançado sobre as trincheiras. Foi evacuado, após ter permanecido em hospital de campanha, tendo sido dado como incapaz para o serviço militar, pela junta médica militar a que foi submetido à chegada.

Nessa mesma unidade, Batalhão do RI 7, estava integrado um tio paterno que cumpriu todo o tempo que as tropas portuguesas estiveram em França, tendo participado no desfile da Vitória. Foi repatriado, como se dizia na época, em 31 de Julho de 1919. Em 1961, residindo em Angola, pegou em armas para defender os seus haveres e, um ano depois, era o primeiro comandante das Milícias de São Salvador do Congo (A Voz de Domingo, Leiria, de 30 de Maio de 1971, pagina 7).

Em 1968 foi a minha vez! Fui a terceira geração em armas.

Fazem-se irmãos?

Na guerra não se fazem irmãos, fazem-se camaradas: “Camarada não é bem irmão, amigo, companheiro, cúmplice… é uma mistura disto tudo com raiva, esperança, desespero, medo, alegria, revolta, coragem, indignação e espanto, é uma mistura disto tudo com lágrimas escondidas” (António Lobo Antunes, 2007).

Eu entrego nas tuas mãos a minha vida, enquanto recebo, nas minhas mãos, a tua vida. E “vida” é tudo. È a vida, é a amizade, é a camaradagem, é, se necessário, o morrer para que tu vivas. É um laço tão forte que, dezenas de anos depois, ainda somos os mesmos “miúdos” que fizeram a guerra. Parece que a vida parou e, entre a nossa despedida e o nosso reencontro, nada passou. E é curioso! O sentimento que liga os combatentes é tão forte, que consideramos que os “Filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são”.

Esteve debaixo de fogo?

Por duas vezes, durante a operação “Lacoste” em 27 e 28 de Junho de 1969, por coincidência um ano após a minha partida de Lisboa, em que houve contacto com o inimigo, nos dois dias. Felizmente não houve baixas (feridos e/ou mortos), mas houve “autênticos” milagres:

Uma granada de RPG embateu num monte de baga-baga, monte com muita resistência formado pelas formigas, resvalando para junto das nossas tropas e acabando, por não explodir.

Um Alferes, o Gomes, quando regressou dessa operação retirou um estilhaço de granada de dentro de um dos carregadores de reserva da G3. Se não fosse o equipamento que trazia à cintura. Sem esta “protecção improvisada por Alguém”, as coisas teriam sido diferentes. Não lhe pôs fim à vida, por milagre.

A guerra marca para sempre?

A guerra, e tudo o que representa e tudo o que passamos, fica colada à nossa pele, e para sempre. É algo que nunca conseguiremos esquecer, e que se transmite, pelo nosso comportamento muitas vezes incontrolado, a quem connosco priva, quer familiar quer profissionalmente.

Marca quem esteve em teatro de operações e quem não esteve, mantendo-se na “retaguarda”, ansiando por noticias e tremendo quando “alguém batia à porta” a horas inesperadas.

Marca pela ausência e marca pela presença. Pela ausência em muitos momentos únicos, quer de alegria quer de dor, junto da família o dos amigos; pela presença junto de situações indesejadas mas normais numa guerra, assistindo àquilo que julgávamos impossível de existir.

Marca pela partida e marca pelo regresso.

E marca, mas marca muito fundo, quando se sente a incompreensão de tudo aquilo que “fomos obrigados a fazer e a viver”. Quando se ouve, os que estiveram ausentes daquelas situações, falar da guerra e da paz, sabemos que:

“Nenhuma voz é mais qualificada para defender a paz do que a dos homens que combateram na guerra”

Lema da FMAC – Federação Mundial dos Antigos Combatentes,

Organização internacional, não governamental, que reúne mais de 150 associações de antigos combatentes e vítimas de guerra de 88 países.

Nota Biográfica:

Nascido em Leiria a 5 de Setembro de 1946, frequentei o Jardim-escola João de Deus e a escola Primária de Santo Estêvão, em Leiria e, depois, na Marinha Grande e Vila Nova de Gaia.

Iniciei a minha actividade profissional aos 16 anos, como empregado de escritório, enquanto continuava a frequentar o Curso Geral do Comercio, que conclui já no serviço militar.

Recrutado, fui integrado no Contingente Geral, fazendo a Instrução Básica e a Especialidade de Teleimpressor. Por ter terminado o curso comercial, fui mandado apresentar no CISMI (Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria) em Tavira, sendo colocado no GACA 2 (Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 2) em Torres Novas, onde fui mobilizado.

Regressado do Ultramar, retomei a minha actividade profissional, passando durante sete anos por uma instituição bancária.

Adquirida a habilitação para a inscrição na Direcção Geral das Contribuições e Impostos, passei a exercer a função de Técnico Oficial de Contas, profissão que ainda desempenho.

Sou casado, há 39 anos, com a Maria Manuela, três filhos – Susana (38 anos), Tiago (34 anos) e Diogo (31 anos) – e netos David (14 anos), Duarte (num futuro próximo) e Gonçalo (15 anos, por laços de amizade recíproca).

Como hobby tenho o estudo/pesquisa e divulgação da História de Portugal, mormente desde 1890 até 1974, com especial incidência na área militar e africana.

José Marcelino Martins
Fur Mil Trms da CCAÇ 5

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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

25 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7037: Recortes de imprensa (30): A guerra do José Corceiro, CCAÇ 5, Canjadude, 1969/71 (Correio da Manhã)

Guiné 63/74 - P7041: Parabéns a você (155): Luís Filipe de Magalhães Borrega, ex-Fur Mil da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche, 1970/72 (Tertúlia e Editores)

1. Conforme os nossos usos e costumes, estamos aqui hoje, dia 27 de Setembro de 2010, a festejar o aniversário do nosso camarada Luís Borrega que foi Fur Mil Cav e MA da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche, 1970/72.

Caro Luís, são nossos votos que mantenhas uma vida com qualidade, sentindo-te tão útil quanto possível à família e à sociedade em que te inseres.

Que passes um dia cheio de alegria junto dos que te são mais queridos. Na hora dos festejos lembra-te destes camaradas e amigos que se associam à tua alegria.



Pela Tertúlia e pelos Editores
CV

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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5017: Parabéns a você (28): Luís Borrega, ex-Fur Mil da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche, 1970/72 (Os Editores)

Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2010 Guiné 63/74 - P7017: Parabéns a você (154): O veterano Coutinho e Lima, Cor Art Ref, Gadamael (1963/65), Bissau (1968/70), COP 5 (1972/73)

domingo, 26 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7040: Notas de leitura (150): A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, de António Duarte Silva (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Setembro de 2010:

Queridos amigos,
Junto o que faltava quanto à recensão do importante livro de António E. Duarte Silva.
Escrito por investigadores portugueses, não conheço nada de mais profundo nem mais rigoroso instrumento de análise.

Um abraço do
Mário


A independência da Guiné-Bissau e a descolonização portuguesa (2)

Beja Santos

A Guiné depois do 25 de Abril: o processo jurídico-político da descolonização

O processo de independência da Guiné-Bissau definiu os termos e os limites da descolonização portuguesa, foi o seu factor decisivo e o paradigma da formação dos novos Estados do PALOP. Esta tese aparece claramente desenvolvida no livro “A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa”, um incontornável estudo que adopta uma perspectiva multidisciplinar e de que é autor António E. Duarte Silva (Edições Afrontamento, 1997).

Este investigador não se compraz com a vertente política e jurídica, fá-la cruzar com as perspectivas históricas e sociais, entrosando-as com o desenvolvimento do nacionalismo guineense. Daí resulta um conjunto de olhares de grande angular, permitindo ler os porquês da formação da Guiné-Bissau, o seu modo e consequências. Vejamos abreviadamente o que nos permite a leitura do trabalho de António Duarte Silva.

Logo em 1961, quando Amílcar Cabral previu que o Governo de Salazar iria recusar conversações para a independência, escreveu: “Estamos seguros de que a liquidação do colonialismo português arrastará a destruição do fascismo em Portugal”. Nesse ano de 1961 a oposição ainda privilegiava a democratização, não punha frontalmente em causa o império colonial. A mudança virá sobretudo em 1964 quando o PCP passou a defender “o exercício pelos povos das colónias portuguesas do direito à auto-determinação”. Nessa época coincidiram os EUA e a URSS: descolonizar era fundamental. Não cabe aqui recapitular tudo quanto aconteceu entre 1961 e 1974, no campo da guerra colonial. “O problema do Ultramar” entrara, a partir de 1973, numa irreversível quadratura do círculo, com o triunfo do MFA, com a própria postura das Forças Armadas nos três teatros de operações, com o conjunto de exigências manifestadas pelo PAIGC, era impossível embarcar numa qualquer tentativa federalista, perdera-se tempo de mais para conjecturar processos democráticos ocidentais para a auto-determinação e referendos. A atmosfera internacional era igualmente inequívoca: a ONU reclamava a Portugal a aplicação dos princípios e resoluções referentes à auto-determinação e independência dos povos coloniais. E assim aconteceu.

O autor descreve detalhadamente o que aconteceu depois do 25 de Abril em Bissau e um pouco por toda a Guiné, a adesão popular ao fim das hostilidades, os comícios de apoio ao PAIGC, as sucessivas reuniões entre as novas autoridades e o movimento de libertação: Dakar, Londres, Argel. As propostas de Spínola, uma a uma, caíam por terra, ele foi obrigado a proceder à declaração de que Portugal ia negociar com os movimentos de independência. O acordo de Argel marcou o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau e consequente transferência de administração. Em 19 de Outubro de 1974 a direcção do PAIGC entrou oficialmente em Bissau. Uma multidão compacta enchia a antiga Praça do Império e aclamava Nino, Luís Cabral e Aristides Pereira. Chega o momento de apreciar os meandros políticos e jurídicos do novo Estado. Sem querer repetir o que aparecerá desenvolvido no seu livro “Invenção e Construção da Guiné-Bissau” (Edições Almedina 2010), apercebe-se que a Constituição do Boé legitima um partido único que comanda a todos níveis um estado soberano. Importa relevar que a Guiné-Bissau é, quanto aos modos de formação do Estado, um Estado criado por descolonização graças a uma declaração unilateral de independência. Encontra legitimidade no direito à auto-determinação consagrado pela ONU e enquadra-se, a todos os níveis naquilo que foi a contestação colonial, a partir dos anos 50. Foi no uso desta argumentação e na demolição das teses do Governo de Salazar, mostrando aos observadores internacionais o controlo de largas parcelas do território que Cabral se impôs como nome sonante na arena internacional. Acresce que há um dado histórico que hoje se pode ver à lupa com absoluta nitidez: Cabral, além de impulsionador do PAIGC, foi um dos obreiros do MPLA e liderou claramente o movimento anti-colonial, de língua portuguesa.

Condicionou a independência da Guiné à das outras colónias. É, pois, legítimo dizer que o processo independentista da Guiné-Bissau se constituiu como uma locomotiva de toda a descolonização. Vale igualmente a pena acompanhar a vasta documentação brandida pelo autor relativa à formação do Estado, que permite uma leitura inequívoca sobre os termos do reconhecimento da Guiné-Bissau, um caso paradigmático de um país que começou por ter uma causa, consolidar um movimento político, encontrar um líder de craveira excepcional, dotar-se de um exército destemido e respeitado, assenhorear-se de largas parcelas do território, dotando-o de vida própria, fazer aprovar uma constituição, ver-se reconhecido na cena internacional e, na consonância deste procedimento, ter contribuído para a falência do regime colonizador.

É nestes termos que o autor desvela todo o processo de independência da Guiné-Bissau como o factor dominante que levou a escancarar as portas à descolonização, entre 1974 e 1975.

É um documento de trabalho imprescindível, pelo que se sugere que António E. Duarte Silva combine harmoniosamente o que escreveu em 1997 com o seu trabalho recentemente publicado este ano. Na actualidade, e numa perspectiva externa à Guiné-Bissau, nada há de mais profundo e objectivo, no campo das investigações sociais, políticas e jurídicas, em simultâneo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7031: Notas de leitura (149): A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, de António Duarte Silva (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7039: Álbum fotográfico de Jacinto Cristina, o padeiro da Ponte Caium, 3º Gr Comb da CCAÇ 3546, 1972/74 (3): De facto, Eduardo, nem só de pão vive o homem...

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1. Estive ontem com o Jacinto, a sua esposa Maria Goretti, a sua filha Cristina, o seu genro Rui Silva e a sua neta...numa tarde agradabilíssima, partilhando memórias e emoções... O dia acabou com um arroz de lebre que poria a salivar, senão um regimento, pelo menos o estado-maior...


Tenho cada vez mais admiração por este homem, o Cristina (como era conhecido na sua companhia, a CCAÇ 3546) que foi para a Guiné, casado, pai de uma filha de três anos, e que mal sabia ler e escrever... Que a vida foi-lhe madrasta e a sua meninice acabou cedo: aos onze anos já trabalhava no duro, para o "pai e patrão"  (ainda vivo, com 89 anos)...

Foi a Goretti que foi a sua professora, em casa e no monte, no meio do gado que ele guardava, ainda antes do tempo da recruta (que ele fez em Viseu, no RI 14, vd. foto ao lado, à direita), ensinando-lhe as letras suficientes para ele ler os aerogramas e as cartas, sofridas e apaixonadas, que ela lhe mandaria depois, de Figueira de Cavaleiros,  para o Ultramar (para onde quer que ele fosse, Angola, Guiné  ou Moçambique), e para de volta ele lhe contar,  a ela (e só a ela),  os seus segredos e sofrimentos, sem necessidade de partilhar a sua vida íntima com mais ninguém (e nomeadamente os camaradas que tinham andado da escola)... 

É uma grande lição de amor!!! E foi a mesma Goretti, a Maria Goretti, quem o incentivou, dez anos depois de regressar da Guiné, a meter-se no negócio do pão: afinal, ele tinha sido o melhor padeiro do leste... Por que é que não haveria de  montar a sua empresa, em vez de andar à jorna ?!

Continuação da  publicação do álbum  fotográfico de Jacinto Cristina (Sold At Inf, CCAÇ 3546, 1972/74) (*).











Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Ponte Caium > Dois monumentos de homeagem aos bravos de Caium, construídos presumivelmente em 1975: (i) Memorial aos mortos da CCAÇ 3546 (1972/74): "Honra e Glória: Fur Mil Cardoso, 1º Cabo Torrão, Sold Gonçalves, Fernandes, Santos, Sold AP Dani Silva. 3º Gr Comb,  Fantasmas e Lestos (?). Guiné- 72/74"; (ii) "Nem só de pão vive o home. Guiné, 1972-1974".


Recorde-se o trajecto do Jacinto Cristina e dos seus camaradas: 

(i) o Cristina fez a recruta no RI 14, em Viseu, e a especialidade no RI 2, Abrantes; 

(ii) foi mibilizado para a Guiné, como Sold At Inf, da CCAÇ 3546; 

(iii) esta subunidade  pertencia ao BCAÇ 3883, mobilizado pelo RI 2; 

(iv) a CSS estava sediada em Piche; 

(v) o comandante era o Ten Cor Inf Manuel António Dantas; 

(vi)  o comandante da CCAÇ 3546 era o Cap QEO José Carlos Duarte Ferreira; 

(vii) as outras companhias do BCAÇ 3883 era a CCAÇ 3544 (Buruntuma e Piche; teve dois comandantes: Cap Mil Inf Luís Manuel Teixeira Neves de Carvalho; Cap Mil Inf José Carlos Guerra Nunes) e a CCAÇ 3445 (Canquelifá e Piche; comandante, Cap Mil Inf Fernando Peixinho de Cristo);

 (viii) estas quatro subunidades partiram para a Guiné de avião, o comando e a CCS/BCAÇ 3883, em 19/3/1972; a CCAÇ 3544, a 20; a CCAÇ 3545, a 22; e a CCAÇ 3546 a 23; 

(ix) Regressaram a casa, de avião, em Junho de 1974.


Fotos: © Eduardo Campos (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.



O mais espantoso foi que, quando eu cheguei lá a casa, em Figueira de Cavaleiros, por volta das 16h de ontem, sábado, e lhe dei as duas fotos do Eduardo Campos, o Jacinto comentou, logo de rajada:
- Mas é o mê forno!...

Há dois monumentos que se conservam na ponte de Caium, mandados erigir por alguém da CCAÇ 3546 que terá sido empresário na Guiné-Bissau, depois da independência... O Jacinto diz que poderá ser um ex-furriel do 1º Gr Comb. Um desses monumentos é uma simples base de pedra, encimada pelo forno de Caium, que pura e simplesmente terá sido cirurgicamente "removido" e "trasladado" do sítio onde estava originalmente... E nessa pedra pode ler-se a melhor homenagem que alguém poderia  fazer aos heróis de Caium: "Nem só de pão vive o homem. 72-74"...

O Cristrina agradece, emocionado, ao Eduardo  Campos as fotos que ele lhe mandou, bem como ao "mais velho" Luís Borrega, pelos comentários que deixou no blogue...






Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 25 de Setembro de 2010 > Jantar em casa do Jacinto Cristina (aqui à esquerda, seguido da sua filha Cristrina, do seu genro, o médico Rui Silva, meu ex-aluno e grande amigo, e eu próprio, brindando aos nossos felizes encontros).



Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 25 de Setembro de 2010 > Jantar em casa do Jacinto (aqui ao lado da esposa, Maria Goretti; em segundo plano, a filha única do casal, Cristina, que tinha 3 anos quando o pai foi mobilizado para a Guiné, em 1972, e que rezava todos os dias por ele...




Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 25 de Setembro de 2010 > Jantar em casa do Jacinto  > O famoso arroz de lebre à moda da Maria Goretti... (Só falta o gosto e o cheiro, para completar a foto).




Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 25 de Setembro de 2010 > Jantar em casa do Jacinto   > Até à última gota de... uísque. Buchanan's, from Scotland, for the Portuguese Armed Forces... with love... Esta foi comprada em Bissau, em Junho de 1974, e aberta no nosso primeiro encontro, na festa de anos da Cristina, em Março passado.


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2010).  Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].





Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > Destacamento da  Ponte do Rio Caium > Da direita para a esquerda: Jacinto, Alexandre (Trms, natural de Peniche), Rocha (condutor, algarvio) e Santiago (1º cabo, atirador, estavana na cantina, onde havia uma arca a petróleo, pelo que, apesar de tudo, não faltava a cerveja, a coca-cola e a  fanta, estupidamente geladinhos)... Na ponte, estava o 3º Gr Combate (c. 30 elementos).




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > Destacamento da  Ponte do Rio Caium, 3º Gr Comb, 1973/74 > O "campo da bola",  no lado esquerdo da ponte, no sentido Piche/Buruntuma... Um bocado da lala que circundava as margens do Rio Caium...




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > Destacamento da  Ponte do Rio Caium, 3º Gr Comb, 1973/74 > Da esquerda para a direita, quatro bons amigos: JacintoCristina, Rocha, Sobral (amigalhaço do Jacinto, hoje residente no Cercal do Alentejo, Santiago do Cacém) e um quarto camarada que o Jacinto não conseguiu identificar (seria alguém de rendição inidvidual, proveniente de outra companhia)... 

Estão vestidos, dois, "para a fotografia"... Da ponte não se podia ir a lado nenhum, por razões de segurança: afinal, estava-se a escassos quilómetros da fronteira com a Guiné-Conacri onde o PAIGC gozava de total liberdade de movimentos; por outro lado, verdadeiramente não havia onde ir ... A sul da ponte do Rio Caium corria o Rio Coli, que servia de fronteira, e de que o Caium era um afluente... A nordeste da ponte, havia uma aldeia fula, a cerca de 3 quilómetros... Ele não se lembra do nome: pela carta de Piche, verifica-se haver (pelo menos antes da guerra) duas tabancas a nordeste da ponte: uma mais próxima, Temanco (Malã Dalassi): e outra mais acima, Sinchã Mádi Maudô.

O Jacinto nunca lá foi a Temanco (julgo que seja esta a tabanca em causa), sobretudo depois de um conflito, na ponte, com uma lavadeira e, por tabela, com o régulo, conflito esse que deu origem a um processo disciplinar, que foi "limpo" com a chegada do novo Governador Geral e Com-Chefe, em meados de 1973, o Bettencourt Rodrigues... (A solução salomónica a que se chegou foi: a lavadeira pagou 250 pesos por uns calções de banho que levaram sumiço (e que nem eram dele,era de um furriel); ele, Cristina, teve que pagar 200 pesos por um brinco da lavadeira, que ele partiu ou amolgou...).

O Jacinto e o Sobral tinham uma máquina fotográfica comprada a meias (...por 500 escudos, em 2ª mão, a um rapaz de Grândola, da companhia de Canquelifá)... O tenente (dos serviços gerais) de Piche, da CCS do batalhão, é que revelava as fotos... O Jacinto e o Sobral revendiam-nas, salvo erro,  a três escudos por foto ("metade era lucro", confessa)... Maduro e responsável, com mulher e filha na Metrópole à espera dele, o Cristina não era homem para gostar o pré, logo no primeiro dia, em bebedeiras de cerveja... "Andava sempre com um conto no bolso", mas sabia gastar com conta, peso e medida...



Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium > O Alexandre e o Jacinto...


fotos: © Jacinto Cristina (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


[Fotos digitalizadas, editadas e legendadas por L.G.]

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Nota de L.G.:

(*) Último poste da série > 25 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7036: Álbum fotográfico de Jacinto Cristina, o padeiro da Ponte Caium, 3º Gr Comb da CCAÇ 3546, 1972/74 (2): Os tempos livres de um caiumense...

Guiné 63/74 - P7038: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (6): Tivemos bons mestres, dizem angolanos, guineenses e brasileiros, quando falam de corrupção

1. Texto de António Rosinha [, foto à direita]:


Somos mesmo assim tão corruptos?

É que na Guiné, no Brasil ou em Angola, quando se fala em corruptos, e estiver um português por perto,  dizem logo "tivemos bons mestres".... Se na nossa cara falam assim, imaginemos nas nossas costas o que dizem.

A história do engenheiro Alves dos Reis que venceu todas as burocracias necessárias para mandar fazer notas de 500 na Inglaterra, nos anos vinte do século passado, era do conhecimento de todos os adultos que sabiam ler, na cidade de Luanda, quando eu lá cheguei.

Eu, e a maioria que íamos daqui com carta de chamada e passagem do próprio bolso, nunca tinhamos ouvido falar nessa história. Como esse vigarista tinha vivido em Angola, havia gente que o tinha conhecido, ou sabia pelo menos da sua actividade. Talvez soubessem disso os que iam em comissão de serviço por quatro anos, como os governadores gerais e seus secretários, ou comandantes militares.

De facto, esse Alves dos Reis demonstra a capacidade de alguém para corromper tanta gente, desde conseguir assinaturas, carimbos, ser recebido por ministros, e depois distribuir e pôr esse dinheiro a circular em bancos e comércio...E esse génio da vigarice e corrupção era português, com fama internacional.

Agora andam por aí banqueiros que talvez já ultrapassem aquela antiga glória dos anos vinte do outro século.

Claro que se a vida não tivesse uma qualidade melhor em Angola do que cá, seria deprimente para mim e todos os que íamos daqui, ouvindo bocas como de atrasados, íamos só para viver à custa deles, mas esta de corruptos era aquela que talvez se estranhava mais, para quem nunca tinha ligado a tal coisa. Claro que eram conversas de café e o tal jeito da adaptação, dificil de explicar, resolvia tudo, em Angola, no Brasil ou na Guiné.

No Brasil era pior, onde o português era o alvo das anedotas do "menos inteligente". Hoje, os brasileiros emigrantes em Portugal também ficam marcados por outros motivos.

Na França, as marcas do português emigrante também se fariam sentir mas penso que não por corrupção. Mas por sua vez o emigrante que retornava, voltava a ser novamente marcado na sua terra.

Mas essa marca do "mestre da corrupção", penso que é invocado mais nas ex-colónias. Pessoalmente, em Bissau vi sinais de corrupção e vigarices bem (mal) disfarçadas por gente portuguesa em conluio com guineenses, em que a vítima era o Estado Português e o Guineense. Claro que não posso dizer nomes porque não sou polícia e não sou tetemunha. Mas casos descaradissimos não faltavam.

Eu próprio, não sei se me considere corrupto ou não. O que escrever um dia aqui, se tiver oportunidade, quem leia, julgará. Se era corrupto ou "ficava à porta". Mas não sei se já disse outras vezes, em Bissau não são precisos jornais. E o povo em Bissau tudo sabe, e até um dia Nino Vieira teve que fazer um comício para demonstrar que não era corrupto, no fim eu conto.

Eu acredito que na chamada África a sul do Sahara, antes de Diogo Cão ir visitar aquela gente, não havia corrupção tal qual como a praticamos hoje, europeus e africanos.

Sempre se falou e fala muitas vezes nas riquezas "fabulosas" dos países africanos, principalmente em Angola, e Congo que eu conheci um pouco, mas tambem na Guiné e é sabido que os dirigentes dos movimentos independentistas e muita gente pensava isso, que as riquezas das colónias portuguesas não eram divulgadas, para evitar a cobiça das potências estrangeiras.

Essas ideias também provocavam e provocam corrupção e tudo o que de negativo venha atrás, como no caso extremo em certos países africanos com os afamados "diamantes de sangue". No caso de Angola, parece que os diamantes continuam a ser moeda de troca. Não me admira que,  igualmente ao tempo colonial, haja muita dinheiro a ser investido em quartzo e vidro triturado.

Mas na Guiné, como não há grandes riquezas naturais à vista, talvez não haja grandes escândalos, mas é constante falar-se em corrupção e se um tuga estiver por perto pode ouvir a insinuação de mestre da dita mania da corrupção.

Houve um Natal de 1980 em que a Tecnil por hábito fazia a distribuição pelos clientes de umas lembranças, e como habitualmente era obrigatório uma lembrança para o presidente da República e outra para o Ministro das Obras Públicas. Ora naquele ano, 'Nino' Vieira era presidente havia um mês e o ambiente estava muito tenso e até algo violento devido ao golpe recente, e da Tecnil ninguém se achava com à vontade para levar essa lembrança à residência do Presidente, porque não se sabia qual seria a reação. Mas alguém teve que ir, e esse alguém lá entregou umas caixas com garrafas e mais umas embalagens com um cartão aos seguranças, mas passados uns minutos estava tudo devolvido sem explicações.

Dentro de uma perspicácia especial dos guineenses, toda a gente é baptizada com uma alcunha, e sempre com muita originalidade. Quem não podia escapar era o Presidente 'Nino' Vieira. que embora já tivesse a alcunha habitual, adaptavam-lhe uma alcunha (não muito às claras, penso eu) de uma novela brasileira, Sinhôzinho Malta. Desde o poder absoluto, aos carrões, ao relógio de ouro que exibia no pulso, e toda a gente ter um respeito absoluto àquela figura, e até a corrupção que se imaginava, tudo se adaptava à alcunha.

E passados uns anos, 'Nino' Vieira teve que explicar que não era corrupto, como se andava a falar. Usou um comício, transmitido pelo rádio e televisão e entre outros assuntos falou do "boato que anda por aí a correr". E agora digo apenas do que me lembro de ouvir e o sentido que o Presidente queria transmitir, e o pessoal comentou durante uns dias:
- Dizem que sou corrupto, mas se por exemplo, este relógio de ouro que tenho no pulso (e levanta o pulso com um relógio vistoso) que me foi oferecido pela Soares da Costa (a maior empresa a trabalhar na Guiné), como uma lembrança, eu devia recusar? Se o fizesse até era má educação.
- Isso é ser corrupto? - perguntava 'Nino' à assistência.

Claro que o povo que assistia ao comício respondeu em côro: 
- Nããão!

E agora, podemos nós aqui perguntar se, apesar de dezenas de nacionalidades representadas com seus nacionais em Bissau, e ser exactamente uma empresa portuguesa, a  Soares da Costa,  a dar um relógio ao Presidente, isso faz-nos,  aos portugueses,  mais suspeitos de corrupção do que os outros?

Claro que alguns de nós diremos: 
- Siiiim!

Mas concerteza haverá lugar para outras definições desse acto desde nããão, talvez ou niiim.

Não estou a imaginar ver os Suecos que tanto ajudaram o PAIGC, a dar particularmente um relógio a 'Nino' Vieira e este a explicar publicamnte. Mas vi os Suecos darem a cada ministro um Volvo topo de gama e renová-lo periodicamente e grandes máquinas para madeireiros trabalharem.

Também não imaginamos Russos que tanto ajudaram o PAIGC, oferecer um relógio ao Presidente. Mas vimos oferecer carros de combate e aviões de guerra.

O acto dos russos e suecos são ajudas de um povo a outro povo , no caso português são apenas negócios com uma empresa portuguesa em que uma da mãos lava a outra.

É esta a imagem que fica das diferenças de uma cooperação e outra. O que a Soares da Costa fez, é aquilo que podemos imaginar que foi a aventura,  de séculos por esse mundo fora, da diáspora portuguesa. Podemos dizer que é o tal desenrascanço, e ficam sempre suspeitas (os guineenses chamam o soco por baixo da mesa, em crioulo).

Enquanto outros cidadãos e empresas só agem com colaboração de embaixadas e consulados, em Portugal parace que se evitam mutuamente esses contactos.

Chegava-se a ver em Angola, no tempo colonial, comerciantes totalmente isolados durante anos, sem chefes de posto, nem missionários nem postos médicos que se instalassem a menos de um dia de viagem a pé (estradas nem vê-las). Claro que tinham que se desenrascar através de uma integração desde a aprendizagem das línguas, até aos remédios do povo e certamente compra de favores (corrupção?). 

Eu aprendi com colegas angolanos, logo nos meus primórdios, a deslocar-me em lugares distantes de povoações, acompanhado com um saco de sal. Era ouro com que comprava desde alimentação, informações e até protecção. Seria corrupção?

Claro que muitas vezes referem-se casos de imenso sucesso de portugueses na França, Brasil, Angola e até na China e América, mas os insucessos são varridos para baixo do tapete. Mas que a imagem que fica,  podia ser melhor se não nos auto-marginalizássemos, disso não tenho dúvida.

 Cumprimentos,

Antº Rosinha (*)
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Nota de L.G.:

(*) Último poste da série > 19 de Setembro de 2010  > Guiné 63/74 - P7006: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (5): Portugal nem explorava nem desenvolvia, colonizava pouco e mal

sábado, 25 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7037: Recortes de imprensa (30): A guerra do José Corceiro, CCAÇ 5, Canjadude, 1969/71 (Correio da Manhã)


1. O nosso Camarada José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos, Canjadude, 1969/71), enviou-nos a seguinte mensagem com data de 22 de Setembro de 2010:

Camaradas,

Aqui estou eu a enviar para o Blogue o depoimento que mandei para o Correio da Manhã, para a série a “Minha Guerra”, para ser publicado na revista ”Domingo” que acompanha o Jornal, nas edições dos Domingos.
É lógico que em função do extenso conteúdo que eu enviei para publicação na rubrica “A Minha Guerra”, e atendendo ao limitado espaço que a revista reserva para a edição do artigo, não me surpreendeu a súmula que saiu no jornal, são peças jornalísticas.
Eis pois o depoimento que eu enviei para o Correio da Manhã, em função das perguntas feitas pela Jornalista:
A MINHA GUERRA (DEPOIMENTO ENVIADO PARA O CORREIO DA MANHÃ)
1) - Fez parte de que Batalhão?
Em 24 de Maio 1969, por volta do meio-dia, deixo o Porto de Lisboa no N/M Niassa, rumo à Guiné, como rendição individual.
Foi emocionante e comovente, ver aquela moldura humana de familiares e amigos a despedirem-se.
No cais, eram uns com lenços nas mãos a acenar, outros com lenços nos olhos, no nariz, na boca, outros deitavam as mãos à cabeça, enquanto outros apertavam a barriga, cada familiar e amigo expressava queixume e desespero com o sentimento de gesto diferenciado.
Um quadro impressionante que me fez cogitar e questionei-me:

- Será, que é a atitude mais acertada, eu empenhar-me a defender a Pátria e as cores da Bandeira, neste caso?

- Será, que têm razão os que desertam, como fizeram alguns da minha terra?

Fiquei confuso, ao ver tanto rosto carregado de tristeza, fisionomias que transpiravam sofrimento e mágoa e deu para pensar muita coisa. Perplexo, olhava as pessoas que gostavam de mim.
Eu fui mobilizado para a Guiné, em rendição individual e já na Guiné, no Aquartelamento dos Adidos, no dia 3 de Junho de 1969, informaram-me que tinha sido colocado na CCAÇ.5, uma Companhia de Africanos, cognominados – Os Gatos Pretos – Metropolitanos éramos cerca de 40 militares e Nativos 220 a 230, sediados em Canjadude - Sector Leste - Nova Lamego.

Destacamento de Canjadude.

2) - Quando é que chegaram?

Dia 29 de Maio 1969, por volta das 21.00 horas, cheguei ao Porto de Pidjiguiti em Bissau, só desembarquei no dia 30.

Levaram-me para o DGA (Depósito Geral de Adidos), onde logo que cheguei, quis a minha fada madrinha, estrelinha da sorte, que encontrasse por mero acaso, um amigo, tínhamos estudado juntos.

3) - Soube logo para onde ia?

Só no dia 3 de Junho de 1969, fui informado que tinha sido colocado na CCAÇ. 5, em Canjadude, e nesse dia deixei Bissau, estrada rio Geba, rumo Bambadinca numa LDG, onde iam militares e civis acomodados como sardinha em lata.

Além da massa humana, havia muita mercadoria e os civis levavam de tudo, desde alfaias agrícolas, produtos alimentares, pilões, gaiolas com galinhas e pintos, todo o tipo de animais, que barafunda, até cabras iam!

O Sol era abrasador, sombra ou lugar para me sentar não havia, isto tornou-se fatigante, se ao menos houvesse um mínimo de conforto, para quem gosta de Natureza como eu, isto era um mimo, pois a paisagem nas margens do rio, que se avistava do barco, parecia-me deslumbrante, só que nestas condições desconfortantes, não havia serenidade e predisposição para apreciar e desfrutar o meio circundante.

O Geba era bastante largo e o barco deslocava-se na parte central.

As margens estavam praticamente ladeadas, em toda a sua extensão, por arvoredo compacto, pareciam ser matas virgens encantadoras, eram para mim, matas onde a pata do homem nunca tinha posto a mão, familiar para os meus olhos, só conheciam as palmeiras, de espaço a espaço viam-se habitações.

4) - O que sentiu quando chegou?

Foi desolador ver tanta pobreza e um modo de viver tão primitivo.

Surpreendi-me ao confrontar-me com os hábitos e condutas sociais dos habitantes de Bissau, que me pareceram conformados e felizes com o pouco ou nada que tinham.

O meu amigo e outro amigo dele, levaram-me a ver, e não só, umas lavadeiras numa bolanha, relativamente perto do DGA, não sei bem o local exacto, quando se ia de Bissau para o DGA, era do lado direito.

Sou por natureza bucólico, encanta-me o campo, a paisagem, a floresta, fiquei admirado, havia muito contraste entre o espaço que ladeava a estrada que ligava Bissau ao DGA, cujo terreno era árido e algo despovoado de arvoredo, destoando da Bolanha, onde me levaram, que tinha mata bem luxuriante.

Além disso, foi agradável ver lá as lavadeiras, algumas completamente nuas, uma mais atrevida e desinibida, vendo o nosso olhar maroto e malicioso, aveludado de concupiscência, dirigiu-se ao meu amigo nestes termos:

- Bu mamé é puta, sinon bu cá tinha nascido.

Não sei se será algum provérbio guineense, mas foi oportuno, nunca o esqueci.

Para o meu íntimo, estes momentos a que estava a viver, eram bem reveladores do fosso cultural existente entre nativos e metropolitanos, começava-me a aliciar a idiossincrasia e a genuidade do povo guinéu, despido de formalismos e preconceitos; para mim era pureza, esplendor natural, como que um ode à criação.

Ali continuou a estruturar-se o meu despertar e a avolumarem-se as minhas dúvidas, por um lado a intuição, por outro o raciocínio, comecei a ficar sobressaltado e a entender que era outra cultura, outra forma de ser e estar na vida, era a sua Pátria, os nativos estavam no seu habitat e adaptados aos costumes do seu Povo.

Só havia que aceitar e respeitar, eu estava desintegrado, era invasor!


Eu “Periquito” quando cheguei a Canjadude.

Eu na parada de Canjadude ainda “Periquito”.

5) - Como foram os primeiros tempos?

A adaptação foi dificílima. Sobretudo acomodar-me à alimentação e aclimatizar-me ao meio.

Eu sentia-me descompensado.

Era um calor tórrido e mortiço, atmosfera carregada e tensa, humidade misturada com as partículas em suspensão ameaçam explodir a qualquer momento, transpira-se preocupação e insegurança, paira incerteza e receio no ambiente, aproxima-se temporal, será chuva, trovoada ou vendaval, o desconforto e a palpitação são gerais, o suor é melaço e teima em não se deixar limpar, está tudo agitado, a brisa está calma, mas as folhas das árvores estão a baloiçar, os mosquitos põem à prova toda a astúcia e rebeldia, para fintar o indígena e conseguir a sua sugadela, as lagartixas, no quintal, andam num frenesim desenfreado e estonteante, como se hoje fosse o último dia das suas vidas, no quartel de Nova Lamego respira-se desconfiança, há muita movimentação militar, já vieram dois Pelotões de outro Destacamento, saíram três Pelotões para o mato na eventualidade de ataque estarem a postos, está tudo de prevenção, eu estou de Cabo de Dia ao Comando, é dia 9 de Junho 1969.


Eu junto da tabuleta que estava no local de entrada, vindo de Nova Lamego, onde anteriormente estava o arame farpado, antes do Aquartelamento ser alargado.

Cheguei a Canjadude, dia 13 de Junho de 1969, na parte de tarde.

Após a refeição do jantar, comunicaram-me que no dia seguinte, às 07.00h, devia estar pronto para alinhar na operação a nível de Companhia, ao Cheche.

De transmissões iam o Silva, o Carvalho (que era o mais velho de transmissões), e eu, o mais novo, que para me familiarizar acompanharia sempre o Carvalho.

Era norma, o “periquito” chegado, pagar umas cervejas aos camaradas da secção e eu não fugi à regra. Mas não chegava.

Eles estavam concertados e queriam amigavelmente infernizaram-me a vida, mais parecia que me queriam praxar.

Eu era uma novidade, um “periquito” e estava muito verde… era um novato.

Eles diziam: “Nós já somos velhinhos!”.

O que queriam era “folia” e atormentar-me. Às tantas, um deles, causticamente, sai-se com esta:

- Tu chegaste hoje, dia 13 sexta-feira, e amanhã vais logo para o Cheche, onde há quatro meses perderam a vida perto de meia centena de militares (47), isto não é, convém que se diga, uma colónia de férias, para vires com discos e gira-discos na bagagem.

Isto aqui é a guerra, amigo, e não vais ter propriamente vida facilitada, até porque os nossos graduados não são flor que se cheire, as surpresas não vão ser glico-doces para o teu lado.

Eu a ouvir música em cima do abrigo, no gira-discos que levou da metrópole.

6) - Quando voltou?

Regressei à Metrópole, o dia 2 de Julho de 1971, no navio Angra do Heroísmo.

7) - Qual foi o dia mais marcante? E porquê?

No teatro operacional foi o dia 3 de Agosto de 1970, porque perderam a vida dois camaradas, um dos quais o enfermeiro Dinis que éramos amigos. E depois toda a polémica gerada em torno do caso…

8) - O que lhe lembra a guerra?

Só deseja a guerra, o homem que não tem paz interior e vive em conflito permanente com ele próprio.

Portugal não teve, infelizmente, um estadista à altura, para em tempo oportuno, ter encontrado uma saída politica honrosa para as duas partes, de forma a solucionar todo o problema Ultramarino, sem que houvesse necessidade de recorrer à via da guerra, que é sempre um desastre, sobre tudo para inocentes indefesos.

A guerra é uma atitude que embrutece os homens e os torna mais fracos…

Messe de Oficiais e Sargentos > Da direita para a esquerda: Capitão Costeira, Alferes Sousa, Alferes Luís Alberto Gil Duarte, Furriéis Ramos, Saúde e Gonçalves.

Jogo futebol na CCAÇ. 5 > Solteiros contra casados > Da direita para a esquerda: Sarg. Farinha, Fur. Laminhas, Sarg. Rodrigues, Sarg. Cipriano, Furs. Adelino, Gil e Saúde, Cap. Oliveira, Alf. Sousa, Furs. Gonçalves, Vieira da Silva, Rito, José Martins (um pouco adiantado do perfilado), Fur. Borges.

Troca de galhardetes no jogo de futebol > O Alf. Sousa oferece à equipa dos casados, um “Corno” e o Cap. Oliveira oferece à equipa dos solteiros, um “Vergalhinho dum cabritinho” > As personagens nesta foto são as mesmas que na foto anterior.

9) - Fazem-se irmãos?

Estive 40 anos sem ter contacto nenhum com Gatos Pretos, que tenham coexistido comigo em Canjadude.

Quando em Janeiro passado começo tibiamente e com certa timidez a estabelecer alguns contactos telefónicos, para os endereços que já existiam numa lista de alguns Gatos Pretos que me foi fornecida, constato que há um desejo desmedido para que se realize um encontro convívio, dos Gatos Pretos.

Exigia-se determinação e aplicação e, à medida que vou descobrindo mais uma morada, ou um telefone, dava-me um gozo de “êxtase,” porque era mais um Gato Preto que apanhava “c´o mão” (era clamor de guerra em Canjadude gritar-se: “Gato Preto apanha c´o mão”).

Assim, com a conivência de todos, se tem vindo a estruturar uma listagem, com dados de cada um, que já tem uma ninhada de mais de 150 Gatos Pretos.

Fui ouvindo desabafos e desalentos, de uns e outros, que me diziam frases tais como:

- Todos os Batalhões e Companhias, tem anualmente o seu dia de festa e convívio, não compreendo como é que nós da CCAÇ 5, não conseguimos ter essa alegria;

- Era o maior sonho da minha vida e, podê-lo complementar com uma ida a Canjadude, sentir-me-ia realizado;

- Estou a ver que vou morrer sem ver concretizada a realização dum convívio dos Gatos Pretos, se o quiserem fazer em Canjadude desde já podes contar comigo…

10) - Esteve debaixo de fogo?

Eram 22.48h, do dia 11 de Julho de 1969, quando se precipitou inusitado ribombar, em que eu, o primeiro estrondo que ouvi, quis-me convencer que fosse um trovão, mas em milésimos de segundo, acordei o espírito e consciencializei-me que era o meu baptismo de fogo que estava em urdidura, estava a perder a virgindade de fogo no flagelo ao Aquartelamento de Canjadude.

Saltei da cama para o chão, da parte superior do beliche, quis encontrar uma G3, pois eu não tinha arma distribuída.

A lei da necessidade primária, sobrevivência, impôs que eu agisse e procurasse instrumento para me defender. Nestas décimas de segundo o gerador de energia eléctrica foi-se abaixo e ficou tudo às escuras, eu corro de mãos vazias para a saída do abrigo, saio e meto-me numa das valas, que me poderá conduzir ao abrigo do Posto de Transmissões.

Cá fora, os rebentamentos eram constantes e afiguravam-se ser mesmo por cima de mim, ouvindo-se um ruído sibilo a cruzar o espaço em todas as direcções.

Eu fiquei boquiaberto e pensei:

- Que festival de fogachal tão bem orquestrado é fogo de guerra mesmo para matar, parece que os deuses estão contra mim?!

O bramir das detonações, era incessante e havia ecos de explosões de proveniência indeterminada, vinham de todos os lados!

Eu cogitava: que razões assistem a estes seres para despoletar tamanha barbárie?

Fiquei cismado, atrapalhado, embora não estivesse nervoso, mas estava um pouco amedrontado! Sempre me imaginei a reagir, numa situação destas, com conduta bem pior do que esta que estava a revelar, ao defrontar-me perante uma bagunçada com esta factual perigosidade, para a minha integridade física.

Foi uma grande surpresa, para mim, esta minha atitude comportamental, diante de ameaça tão iminente, concreta e real.

O fogo continuava violento e insistente, desconcertante, indistinguível, não conseguia percepcionar, nem ajuizar qual a proveniência dos disparos, era uma barafunda de silvos na atmosfera envolvente e por cima da minha cabeça, que me deixava baralhado.

Os roncos dos rebentamentos são no ar, eram na frente, por trás e dos lados, era aterrorizador.

Da nossa parte a reacção é quase nula, não se fazem sentir esboços de defesa!

Mas logo que as nossas morteiradas do 81 começaram a ser certeiras e a colidir com as posições do inimigo, tudo amainou…

Dia 12 de Setembro de 1969 houve coluna a Nova Lamego.

Depois de termos feito picagem da estrada até Uelingará, subimos para as viaturas. Ainda não eram 8.30h, começamos a avançar.

Eu estava a estabelecer contacto via rádio, com Canjadude.

A viatura da frente arrancou, eu ia na segunda viatura, a última da coluna ainda não estava em movimento de progressão.

Neste intervalo de tempo ouviu-se um violento rebentamento, tudo à minha frente voou pelos ares, envolto em cortina de fumo e terra, devido ao rebentamento de mina anti-carro accionada pela primeira viatura.

Não sei como saltei do transporte onde eu ia, foi tudo tão rápido que só me lembro que estou no chão de pé e com uma G3 na mão, que não era minha, pois não tinha arma distribuída.

Olho em frente e vejo a escassos metros uma viatura atravessada na picada, com a parte frontal toda destruída e, o chão assolado com corpos humanos, pensei o pior, aproximei-me ajudei alguns a levantarem-se, mas deparei-me logo com um ferido que me inspirou muito cuidado e preocupação, caso que nunca esqueci e me marcou.

Estava caído no chão, inerte, desconsolado, a gemer desfalecido com muito padecimento, não havia mobilidade e a visão daquela fácies hipocrática com a sua fisionomia de músculos contraídos, atestavam bem o sofrimento e dor porque estava a passar aquele ser humano, imagem que já mais apaguei da minha mente.

Verifiquei que não tinha contracções musculares nem sensibilidade nos membros inferiores, ajudei-o a apoiar a cabeça e pedi para que não o movimentassem, continuava a gemer desesperadamente e acabou por desmaiar.

Nunca mais tive notícias deste militar nativo, presumo que tenha sido mais uma vítima da guerra que ficou paraplégica.

Fui para a viatura de Transmissões para enviar mensagem a Canjadude, a pedir evacuações urgentes e apoio de enfermagem, pois havia muitos feridos, alguns com gravidade e deitados no solo em sofrimento, sequencialmente, pediu-se a Nova Lamego que enviasse um grupo de protecção e um pronto-socorro para levar a viatura acidentada (do local do acidente a Nova Lamego eram aproximadamente 15km).

Placar no refeitório de Canjadude, onde o Corceiro colocou um recorte de revista, que cortou da revista Salut les Copains, com a imagem da Francoise Hardy.

11) - A guerra marca para sempre?

Em Canjadude, passei 25 meses, com poucas ausências.

Foi muito tempo fora da civilização que eu conhecia, logo, desejava, confinado a um espaço tão limitado em condições tão carenciadas, privado das necessidades mais elementares, sem as quais o ser humano consegue harmonia emocional e física; tentava, conforme podia e deixavam, compensar o não gozo em pleno das três necessidades primárias dos seres vivos, e como podia tentava desequilibrar os pólos das baterias.

A Cády, uma bonitinha bajuda (rapariga) de Canjadude, de etnia mandinga.

Foi muito difícil a falta de presenças, de carinhos, de mimos, de pequenos nadas, os afectos… era a saudade… a tensão e a pressão que era preciso conter para não haver explosão.

Cada um refugiava-se e representava o que lhe ia na alma, o que lhe parecia mais plausível: álcool, bajudas, petiscos, escrita, leitura, simulações guerreiras e teatrais, afeição a animais, apegados às coisas mais inverosímeis, tentava-se suprimir as deficiências e lacunas do meio a que estávamos expostos, recorrendo aos mais variados hobbies para nos compensarmos, eram necessidades primárias desvirtuadas a actuar!

Talvez tivesse facilitado a minha integração e minimizado o meu desconforto, se o meu código genético tivesse no respectivo cromossoma um gene com aptidão mais guerreira que dominasse o alelo correspondente, ficaria por ventura mais acomodado no teatro de guerra, mas deixava de ser EU, eu batia-me interiormente com as minhas limitações, por valores que queria preservar e dignificar, queria, sem ser lírico ou utópico, (com toda a estima e consideração por eles) continuar a ser amante de diálogos, respeito, consensos e paz, não tinha preparação para este tipo de guerra, estava a ficar com a percepção que neste meio (teatro de guerra) obrigavam-me a renunciar à minha personalidade e a valores que eu queria acautelar, vivia num conflito ambíguo, meio externo (ambiente) guerra, meio interno (raciocínio) paz, esta ambivalência era morrinha para o meu EU!

Os meus hobbies, entre outros, foram a fotografia e o diapositivo (slide), tirei muito… milhares.

Eu em Canjadude, a digerir e organizar pensamentos, sentado na Bolanha que se recusava a secar mas onde a água se estava a acabar.

Nota Biográfica:

O meu nome é: José Manuel Silva Corceiro, natural de Vale de Espinho, concelho de Sabugal, data de nascimento 1947. Vivo em Lisboa, na Rua Pascoal de Melo.

O serviço militar, no meu caso, teve graves e nefastas implicações na orientação da minha vida profissional. Interferiu e muito, no que poderia ter sido o meu percurso de vida, entrei na Faculdade de Medicina de Lisboa, mas por razões diversas, que não interessam para o momento, não terminei o curso de medicina.

Profissionalmente estive ligado ao ramo das telecomunicações, presentemente sou pré-reformado.

Sou casado, pai de três filhos, os dois mais velhos, um licenciado pelo IST em Engenharia (tecnologia e computação), outro licenciado em Química e o terceiro está no 12º ano.

Tenho dois netos descendentes do filho mais velho, o Tomás e a Laura.

Um abraço e boa saúde para todos,

José Corceiro

1º Cabo TRMS da CCaç 5

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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

23 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7024: Recortes de imprensa (29): A guerra do António Branco, CCAÇ 16, Bachile, 1972/74 (Correio da Manhã, 24 de Agosto de 2008)