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Guiné > Zona leste > Fajonquito > s/d [c. 1965] > Fajonquito era famosa pelos seus burros... O algarvio Sérgio Neves tanto lidava com burros como com viaturas automóveis... Ele aqui ao volante do único carro existente em Fajonquito, um Simca. Era propriedade de um residente local, guineese, que o emprestava ao mecânico da tropa para dar umas voltinhas.
Fotos do álbum fotográfico de Sérgio Neves, Fur Mil Mec Auto, CCAÇ 674 (Fajonquito, 1964/66), falecido em 1997, gentil e carinhosamente disponibilizadas pelo seu irmão, o nosso camarada Constantino Neves.ex-1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego (Gabu), 1969/71. De seu nome completo, Sérgio Faustino das Neves era algarvio, de Luz de Tavira. Fez uma segunda comissão (1968/69), como 2º srgt mil, CART 2369 em Moçambique (Lourenço Marques, Mueda, Vila Cabral , Nampula e Meponda - Lago de Niass, em Mueda, onde travou amizade como Daniel Roxo. A CCAÇ 674 esteve em Bissau, Fá Mandinga, Fajonquito e Bissau. Era comandada pelo Cap Inf José Rosado Castelo Rio. Mobilizada pelo RI 16, partiu para o TO da Guiné em 8/5/1964 e regressou à metrópole em 27/4/1966.
Fotos: © Constantino (ou Tino) Neves (2007). Todos os direitos reservados.
1. Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (34) > Cherno Fanca... Cherno Comando... Cherno Amadu ... As peripécias de um jovem fula nos labirintos da Guerra Colonial
A história passa-se no regulado de Sancorlã e o herói chama-se Cherno Baldé, um nome tanto ou quanto vulgar na sociedade fula de então. Era natural de Fanca ou Sintchã Fanca, aldeia situada a nordeste de Fajonquito, local histórico para os conquistadores portugueses e fulas onde, por volta de 1886 os homens de Mussa Molo, rei de Firdu, enfrentaram o intrépido Cap Marques Geraldes, depois de algumas escaramuças nas margens do rei Geba, próximo do presídio de mesmo nome, na circunscrição de Bafatá.
Cherno Fanca, como ficou conhecido mais tarde, rapaz esguio e pernalta, já era quase um homem quando começa a frequentar a pequena praça e centro comercial de Fajonquito, em finais dos anos 60, para onde vinha regularmente, com o seu grupo de idade, transacionar em longas caravanas de mulas carregadas de produtos agrícolas, em especial o amendoim, meticulosamente confecionada em enormes sacos (cent-kiló), viajando em cima dos animais de carga.
Guiné > Carta da Antiga Província Portuguesa da Guiné (1961) > Escala 1/500 mil > Detalhes > Posição relativa de Fajonquito (carta de Colina do Norte) e Sinchã Fanca (carta de Tendino)
Eram tempos em que a riqueza de uma família se media pelo número de mulas obtidas por ano agrícola. Uma mula, em língua local, correspondia a dois sacos de cem quilos que era a carga do animal, sendo raríssimas as famílias que conseguiam obter mais de dez mulas por ano. As partidas para os centros comerciais eram antecedidas de longos e minuciosos preparativos, pois se tratava de ocasiões únicas em que rapazes e raparigas exibiam-se em público, vestidos da sua melhor indumentária.
A distância a percorrer não era muito grande, mas a solenidade conferida às viagens em grupos, nas primeiras horas de manhã, exigia alguma preparação prévia, precavendo-se de eventuais surpresas no caminho. Os rapazes levavam consigo as mulas carregadas de amendoim, mel e seus derivados enquanto as raparigas levavam à cabeça o coconote, em cima do qual colocavam a roupa e os chinelos preparados para a ocasião que só usariam quando tivessem entrado nas primeiras moranças de Fajonquito.
Era um dia intenso e muito importante na vida dos jovens que, para muitos, podia acontecer uma única vez ao ano. Quanto aos compradores, não havia problemas de maior, pois cada família estava ligada a uma casa comercial, sua cliente: Havia a casa dos irmãos Adriano e Casimiro Pinheiro, o Campo Quinal (o narigudo), a casa Carduz (Cardoso) ou ainda o Barbosa. Eram comerciantes lusos radicados há muito tempo no chão fula.
Guiné > Zona leste > Fajonquito > s/d [c. 1965] > O Sérgio Neves com camaradas seus, e com miúdos da localidade... Alguns deles acampavam literalmente no aquartelamento... Na foto de cima, está com o proprietário do Simca... O Cherno Baldé vai adorar ver (ou rever) estas fotos, publicadas no nosso blogue em novembro de 2010. É possível que reconhgeça alguns dos rafeiros do seu tempo.
Fotos: © Constantino (ou Tino) Neves (2007). Todos os direitos reservados.
Quanto ao Cherno, a sua maior preocupação prendia-se com a maneira de fazer frente aos rapazes daquela pequena praça, seus colegas de idade, que jogavam bola, comunicavam entre si numa língua estranha chamada criol e gostavam de pregar partidas estúpidas aos aldeões das localidades vizinhas que se atreviam a entrar na sua zona de influência. Ele lembrava-se, como se fosse ontem, da cena que acontecera com o Aliu-Samba ou Samba-Kondjam (1), do grupo dos últimos e derradeiros apreciadores de vinho de palma entre os fulas. Este, que regressava da casa dos homens (Biré) (2), com algumas calmas (3) de vinho de palma a mais, como sempre, vinha cambaleando e quando chega ao pé dos rapazes pede para que o deixem bater na bola. Estes, sem hesitar, colocam a dita bola a certa distância e o pobre homem, impulsionado pelo álcool e tomando balanço o quanto baste, bate nela com toda a força da sua embriaguês. Não, ele não bateu, ele, a maneira dos não iniciados, cupiu (4) na bola, isto é, fê-lo com as pontas dos dedos do pé.
O “óóiiihh!!!” que saiu da boca de Aliu-Samba subiu, levado pelo vento, até as ruínas de Berecolon ao norte e o seu eco dispersou-se, invadindo a planície de Suncujuma e entrando de rompante nas moranças de Fajonquito em todas as direcções. Depois, seguiu-se um demorado silêncio de escuta e de apreensão. O que teria acontecido para motivar este grito de morte? O grito de um adulto era sempre motivo de uma grande inquietação.
O que tinha acontecido era simplesmente impensável e criminoso.
Em lugar da bola, alguém, dentre os rapazes, tinha colocado uma enorme pedra dentro dos trapos da bola improvisada que, com o impacto, tinha transformado os dedos de Aliu-Samba numa pasta vermelha de sangue e carne moída sem falar da pirueta que o seu corpo comprido e magro, deu pelo ar antes de se estatelar no chão. Quando a aldeia soube, finalmente, o que tinha acontecido, ouviu-se um ensurdecedor coro de gargalhadas, seguidas de suspiros de alivio. Os rapazes tinham dado uma boa lição ao cafir (5), amante do vinho de palma, a água do diabo. Nada mais normal.
Pouco a pouco o Cherno Fanca acabou por se impor no panorama dos grupos e eventos dos jovens de Fajonquito, devido a frequência das visitas e sua participação ativa nos encontros, em disputas cerradas de futebol, de luta tradicional ou de corrida de velocípedes, quando não eram os encontros de futebol, pretos contra brancos, com os elementos da tropa metropolitana, cativando assim os cabecilhas dos grupos locais.
Com o passar do tempo, rapidamente, as ambições do Cherno Fanca, ultrapassando o exíguo circulo de Fajonquito, subiram de nível, abraçando novos horizontes, pois a semelhança de muitos adolescentes da sua idade, já não escondia o seu desejo de vir a usar a farda militar e porque não, integrar mesmo os Comandos Africanos, a tropa de elite que mais atraía os jovens da Guiné. Assim, quando o chamavam pelo nome de Cherno Fanca ele corrigia prontamente: - Não, eu sou o Cherno Comando, vivo ou morto!!!
Foi por essa altura que teria chegado a Fajonquito, trazido pelos ventos daquela sofrida e interminável guerra, uma espécie de encenação teatral e que pretendia ser um canto de louvor à bravura indómita dos Comandos Africanos e na qual a juventude de então se deleitava. Ninguém podia suspeitar que, terminada a guerra, o dito cujo se transformaria na mais fina chacota aos mesmos. A cena desenrolava-se com duas ou mais pessoas alinhadas em formatura, pose de comando, pernas firmes, ligeiramente abertas e peito para cima. Os espectadores faziam perguntas em uníssono e eles respondiam com voz corajosa e cheia de determinação:
- Comandós! ... quere bianda? - Não!- Comandós! ... quere batata? – Não!
- Comandós! ... quere bajuda? – Não!
- Comandós! ... quere guerra? – Sim!
- Comandós! ... quere guerra? – Sim!
Mas para se ser comando não bastava querer, era preciso ser aguerrido, passar por algumas etapas de preparação e foi assim que, mesmo a contragosto, ele alista-se para integrar o grupo da milícia local. Em seguida, a sua postura insolente e corajosa, o seu estilo único de fardamento elitista copiado dos Comandos distinguem-no rapidamente dos seus companheiros milícias e a sua fama galga as fronteiras do regulado. E foi sem grandes surpresas que a notícia da sua mobilização para integrar os Comandos se espalhou através das numerosas bocas de Fajonquito.
Assim, em finais de 1972 o Cherno, muito emocionado, apresenta-se no centro de instrução de Fá Mandinga, arredores de Bafatá. Com a sua partida, Fajonquito e arredores nunca mais voltariam a ser a mesma coisa, pois tinham perdido de uma só vez o seu garboso filho adoptivo, exímio e polivalente atleta, animador de festas, milícia de ocasião, mas comando por amor e vocação, insubstituível; vivo ou morto, como gostava de lembrar.
Corria o ano de 1973 quando, um belo dia, em pleno dia de festa e grande concentração de pessoas na pequena praça de Fajonquito, eis que se apresenta a entrada da estrada vermelha e poeirenta da aldeia, o inconfundível focinho de um Berliet Tramagal que, numa galopada brutal, atravessa a multidão dirigindo-se para baixo, a segunda entrada do aquartelamento. Foi nesse momento que aconteceu o episódio que seria depois objeto de muitos debates e expeculações durante muitos anos.
Quando o Berliet passa, vê-se um vulto preto a sair dele e atirar-se num salto para cima como um pássaro que se lança ao voo e, dando uma volta completa no ar, pouco a pouco se distende, se endireita, posiciona o corpo, as pernas e poisa-se levemente dobrando os joelhos ao tocar no chão e ergue-se no mesmo instante esticando e equilibrando as suas compridas pernas de cegonha.
Apanhados de surpresa, as pessoas ainda demoraram algum tempo para compreender o que se passava e a poeira provocada pela passagem do veículo também complicava a visibilidade. Mas não foi preciso esperar muito e antes que a poeira acabasse por se assentar, os olhos curiosos das pessoas presentes viram e reconheceram o jovem pernalta que, a todo o custo, queria ser comando e foi então que se levantou dentre a multidão a ovação ao seu magnifico herói com o tradicional grito de reconhecimento e admiração:
- Ė o Cherno!!..Cherno Fanca!!..Cherno Comando!!..Gârri Djinnéé6!!..Bharródi maúdhi (7)!!!...
Estava fardado de camuflado novo, apertado ao corpo, com uma pequena boina na cabeça, inclinada ao lado, ostentando placas distintivas da sua corporação no peito e nos ombros onde se podia ler “Comando”. Trazia um punhal preso do lado direito do cinturão. A sua arma de fogo era menor do que aquelas que estávamos habituados a ver e no lugar da coronha tinha dois ferros horizontais e móveis o que a tornava diminuta, autêntico brinquedo, nas mãos possantes do jovem comando.
Depois da espectacular e exuberante apresentação ao público de Fajonquito que o vira crescer e tornar-se homem, exibindo sempre o seu largo sorriso de dentes brancos, seguiu para a sua aldeia natal, pois ele não podia demorar-se, tinha acabado de jurar a bandeira e esperava-o, agora, o árduo trabalho das operações militares que, todavia, não significavam nada diante do prazer que tinha experimentado ao voltar ao seu palco de preferência com o qual sonhara durante toda a sua vida de adolescente.
Voltaria a Fajonquito muitas mais vezes, mas já não seria o mesmo Cherno, alegre e desprendido que, tão fácil como isso, despia a farda para jogar a bola ou medir forças com os jovens mandingas da sua idade, em prolongadas lutas noite adentro, sob o ritmo dos tambores e aplausos das meninas que lhe limpavam o suor da cara com os seus lenços de cabeça numa fraterna demonstração de carinho e de afeto ou ainda quando pegava a sua namorada e escandalosamente a abraçava em público sem pudor, sem receio dos olhares reprovadores dos mais velhos. Voltaria muitas vezes, mas nunca seria a mesma pessoa. A guerra, entretanto, tinha consumido toda a sua bonomia.
Com a independência em 1974, também ele foi desmobilizado, voltando para a sua aldeia, com a mesma ingenuidade e ligeireza com que tinha partido. Olhos vermelhos de sangue e olhar melancólico, o nosso Cherno Comando em nada se diferenciava do guerrilheiro saído das matas, meio homem, meio animal. Naqueles olhos havia sinais de sofrimento e alguma inquietação. No mesmo ano, juntamente com os colegas, foi trabalhar no Senegal durante a campanha da colheita do amendoim, onde voltou com uma bicicleta nova marca Peugeot. Pensava poder retomar o seu vai-vem entre a sua aldeia e a praça de Fajonquito como fazia antigamente, mas rapidamente apercebeu-se que os tempos tinham mudado. A vigilância e a perseguição política apertava e os raptos noturnos de antigos militares se multiplicavam.
Neste novo e perigoso contexto, o jovem comando teve que utilizar o melhor que tinha no seu arsenal de astúcias para não cair nas malhas dos comissários políticos do PAIGC. Conhecendo a tática dos guerrilheiros que só atuavam na calada da noite, ele aparecia em Fajonquito durante o dia e desaparecia com o anoitecer sem deixar rastos. Parecia mesmo estar a escarnecer a inteligência dos comissários e seus numerosos agentes. Nunca dormia duas vezes no mesmo sítio. E quando se cansou deste jogo do gato e do rato, atravessou a fronteira e foi radicar-se na região da Casamança, Senegal, em casa de familiares.
Quando voltou, novamente, nos anos 80, o homem estava quase irreconhecível. O grand-bubu branco que cobria o seu corpo, as babuchas brancas nos pés e o enorme lençol branco encaracolado na cabeça e rosto, a maneira dos homens do deserto, emprestavam-lhe a sublime imagem de um homem humilde e respeitável. Em pouco tempo, o nosso ex-comando tinha-se transformado num conceituado Marabu, manipulando com a sua mão direita, de forma continua, um extenso rosário, com a mesma perícia com que outrora apertava o gatilho da sua G3. Ele era o primeiro a entrar e o último a sair na mesquita de Fajonquito, onde vinha, a pé, todas as sextas-feiras, talvez para rezar a favor das almas consumidas pelo horror da guerra ou pela paz dos que teimavam em continuar vivos num país que já não lhes pertencia. Os comissários políticos do PAIGC há muito que tinham abandonado as aldeias para se concentrar nas cidades onde arrebataram o espólio da guerra, destinado a compensar os difíceis anos da sua luta terrorista nas matas e estradas da Guiné.
Em Fajonquito não sabiam como lidar com esta nova metamorfose do Cherno e quando alguém lhe chamava pelo antigo nome, espreitando através dos seus óculos escuros para melhor enxergar seu interlocutor, muito calmamente, corrigia: - Desculpa meu respeitável irmão, mas o meu nome é Cherno Amadu, sou o Almame de Sintchã Fanca, a vossa inteira disposição.
As pessoas ouviam incrédulas, encolhiam os ombros e iam a sua vida, afinal de contas cada um era livre de ser aquilo que lhe convinha melhor nesta(s) vida(s) de mudanças perpétuas e imprevisíveis.
Cherno Abdulai Baldé, Bissau, Março de 2012.
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Notas de C.A.B.:
1. Kondjam – Vinho
2. Biré – Palavra de origem mandinga que se refere ao local onde os homens se reuniam para beber vinho de palma antes da islamização.
3. Calmas – Copos feitos de pequenos cabazes que provêm de uma planta rastejante muito vulgar na África tropical.
4. Cupiu – Uma expressão crioula que substitui a palavra bater quando é feito com a ponta dos dedos do pé.
5. Cafir – Pessoa descrente ou não muçulmano.
6. Gârri Djinnéé – Grande Jin, uma expressão de origem árabe. Jin é um ser imaginário e invisível com poderes extraordinários e que vive ao lado dos homens.
7. Bharródi maúdhi- Grande animal, uma alusão à coragem e agilidade de um leão e ao porte impressionante de um elefante.
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Nota do editor:
Último poste da série > 22 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9638: Memórias do Chico, menino e moço (33): Lembrando os meus amigos da CCAÇ 3549... e discorrendo sobre o meu pessimismo crónico (Cherno Baldé)