quinta-feira, 29 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9676: O Cancioneiro de Gandembel (2): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte II) (Idálio Reis)



Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > Aspeto geral do aquartelamento (foto de cima) e vista de um doa abrigos (foto de baixo).


Foto: © Idálio Reis  (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados




1. Continuação do texto da autoria de Idálio Reis (ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835 (Gandembel e Ponte Balana, Nova Lamego, 1968/69):


Os Gandembéis: O Nosso Cancioneiro, as nossas músicas, os nossos poetas (Parte II) (*)


por Idálio Reis
 

(...) [O Hino de Gandembel] caiu em graça, ao ajudar a libertar sentimentos de desesperança e inquietação, e o pessoal, indistintamente, parecia denotar um incontido júbilo no trauteio deste canto, onde os sons e o silêncio se sincronizavam em gesto de deslumbrante generosidade, do louvor à vida.


Quando surge o hino de Gandembel, continuavam a manifestar-se,  nesse acantonamento, situações particularmente amargas, e quando o descomedimento amainava, parecia ter o condão de apaziguamento, quando alguém exclamava de forma sentida “Oh Gandembel das morteiradas!”. O seu contributo para o estímulo da Companhia foi valiosíssimo, na aquietação das animosidades, na pacificidade das tensões 

Fundamentalmente, o hino teve a graça de contextualizar a gesta dos que tiveram a desdita de viverem coactivamente naquele soturno lugar, com inúmeros e alongados estremecimentos de inquietação.

Permita-se-nos uma leitura deste anódino poema, para referir alguns aspectos.

Hino de Gandembel [Ouvir aqui a interpretação do António Almeida]

Ó Gandembel das morteiradas,
Dos abrigos de madeira
Onde nós, pobres soldados,
Imitamos a toupeira.


- Meu Alferes, uma saída! -
Tudo começa a correr.
- Não é pr’aqui, é prá Ponte! (i),
Logo se ouve dizer.


Refrão


Ó Gandembel,
És alvo das canhoadas,
Verilaites (ii) e morteiradas.
Ó Gandembel,
Refúgio de vampiros,
Onde se liga o rádio
Ao som de estrondos e tiros.


A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê (iii)
É preciso protecção.


Gandembel, encantador,
És um campo de nudismo,
Onde o fogo de artifício
É feito p’lo terrorismo.


Refrão (...)


Temos por v’zinhos o Balana (i),
Do outro lado o Guileje,
E ao som das canhoadas
Só a Gê-Três (iv) te protege.


Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!


Refrão (...)


 [Notas: (i) Ponte Balana; (ii) Verylights; (iii) WC;  (iv) G-3; revisão e fixação de texto: L.G.]


Eis o que uma letra de um poema de um profundo sentimento popular, que atendendo aos incríveis circunstancialismos em que foi escrito e musicado, num arrepiador ambiente de uma guerra, que cruentamente avassalava, ferindo e matando, se viria a transformar tão-só num hino à vida, porquanto:

(i) Uma das facetas mais horrendas ao longo da sobrevivência daquele poiso, foram as míseras condições com que nos defrontávamos no dia-a-dia. Pernoitámos em abrigos, onde os corpos se deitavam sobre uma simples tela de borracha, que se estendia sobre o chão de terra nos abrigos-toupeira («imitamos a toupeira») e posteriormente no piso de cimento das casernas-abrigo. Em ambos, os troncos das centenas de árvores abatidas, vieram a desempenhar um contributo muito especial na nossa segurança («dos abrigos de madeira»). Mas estes abrigos, único meio para possibilitar tomar algum descanso, quantas vezes viria a ser suspenso pelas («morteiradas, canhoadas, tiros»), impedindo alívio, apaziguamento e serenidade.

(ii) Das peripécias de guerra mais agressivas, foi a audição dos milhares dos ecos das saídas dos morteiros, em que os de calibre 82 se mostravam demolidores: («Gandembel das morteiradas»), que quase quotidianamente flagelavam aquele poiso; os momentos de ansiedade e expectativa, enquanto a granada silvava os ares na sua trajectória indefinida, eram aterradores: («Meu alferes, uma saída/Tudo começa a correr»). Havia um estrépito quando deflagrava, e tudo se poderia esvair naquele contacto com o solo: onde? longe? ao lado? («Não é p´ra aqui, é p´ra Ponte/Logo se ouve dizer»).

(iii) Um outro negro aspecto, que envolve um doloroso e prolongado tempo, foi a do espectro da fome, pois a variedade das refeições quase não se alterava, em que os frescos praticamente não existiram: («A comida principal/É arroz, massa e feijão»). E quantos períodos sem uma qualquer bebida, que não fosse a água do Balana: («Bebida, diz que nem pó, /Acontece o mesmo ao vinho»).

(iv) A relevância dada à intimidade das valorosas e fidelíssimas companheiras que não largávamos, as nossas G3, que descansavam a nosso lado enquanto dormitávamos, e que em geral tinham um nome de estimação. Sempre limpas e asseadas, mostraram-se sempre ágeis em momentos cruciais: («E ao som das canhoadas/Só a G-3 te protege»).

Sim, Gandembel foi um local onde o perigo pairava a cada momento, e o seu tempo mais agradável conhecia-se por bonança. E, por vezes, ao entardecer, saía de uma caserna-abrigo, um coro à capela, à busca de um contentamento de tranquilidade, e também de rogo para que a noite decorresse sem queixumes

Mas quantas vezes, no pedido não satisfeito, as noites estremunhavam e o cansaço ou desalento agudizavam-se. E mal despontava o alvor da madrugada, ouvia-se um forte brado, de revolta, não mais que um grito de coração, de chamamento para todos
- “TIREEEEEM-NOS DAQUI!”.

A este eco lancinante, de tantas vezes repercutido, incutimos-lhe uma secreta aspiração, ainda que reconhecêssemos ser muito difícil de sobrepujar. De todo não chegou ao seu destino, tudo indiciando que os seus ais se vieram a sumir no marulhar de um macaréu de lua, acabando por se esvanecer na salsugem do Geba. E aí, enquistada talvez nalguma concha perlífera, se quedou de mansinho durante mais alguns meses, de modo a que alguém a remoçasse em melopeia cândida e dolente. Afortunadamente, encontrá-la-íamos quando regressávamos a Bissau, a caminho de um outro futuro mais promissor.

Procurámos perceber as causas desse estancamento repentino, e agora nos lembramos que, naqueles tempos de antanho, havia imensas dificuldades para transpor as fronteiras do império. A autocracia totalitária tudo abafava, inclusive o exaspero ou o desalento.

Nos tempos de agora, o hino de Gandembel, cativantemente, nos vem seduzindo e incontidamente nos emudece, já que ele teve o condão de aglutinar miríades de recordações marcadas por aquele frenesim delirante que aquela tremenda Guiné tantas vezes nos avassalou.

Deleitantemente, houve enlevos que parecem ter-se mantido para sempre, até à chegada 
do dia-noite final, em que definitivo, nos havemos de separar. (...)


[Continua]


(**) Fonte:  REIS, Idálio - A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana. Ed. de autor, [Cantanhede], 2012, pp. 198-201.
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Nota do editor:


(*) Vd poste anterior da série > 28 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9672: Cancioneiro de Gandembel (1): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte I) (Idálio Reis) 

Guiné 63/74 - P9675: Agenda Cultural (190): Confidencial / Desclassificado, exposição do artista plástico Manuel Botelho, a inaugurar no dia 4 de Abril de 2012, às 18h30, no Espaço Fundação PLMJ, Rua Rodrigues Sampaio, 29 em Lisboa

C O N V I T E

1. No passado dia 27 de Março recebemos uma mensagem do artista plástico Manuel Botelho* dando notícia da inauguração da sua próxima exposição "Confidencial / Desclassificado" que estará patente ao público a partir do próximo dia 4 de Abril no Espaço Fundação PLMJ, Rua Rodrigues Sampaio, 29 em Lisboa, até ao dia 7 de Julho de 2012.



Nota de Manuel Botelho:

A minha exposição vai integrar obras das várias séries do meu projeto mais recente: Confidencial/Desclassificado. O tema é a guerra na África Portuguesa. Irei expor fotografias da série Inventário, realizadas em 2006-2007 no Museu Militar de Lisboa, e que retratam armas utilizadas ou apreendidas pelas nossas tropas. Haverá também trabalhos de série Emboscada, onde um velho combatente confronta um duplo de si próprio, num exorcizar de pesadelos pessoais, de receios ou remorsos. Da Ração de Combate e Estado-Maior haverá imagens que falam do tempo sem fim vivido nas unidades de quadrícula, onde vemos surgir mapas de lugares incertos, restos de comida, castelos de cartas. Por último, a série Madrinha de Guerra convoca uma presença feminina; não é certa a origam dessa personagem, que pode ser real ou apenas o fruto da imaginação e desejo de soldado que com ela contracena. 

Um abraço a todos. 
Manuel Botelho
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Notas de CV:

Vd. postes anteriores de Manuel Botelho clicando aqui

Vd. último poste da série de 25 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9658: Agenda Cultural (190): A banda portuguesa Melech Mechaya em Lisboa, Cinema São Jorge, sábado, 31 de Março, 21h30... Convidada especial: Mísia...Ganda ronco! (João Graça)

Guiné 63/74 - P9674: Meu pai, meu velho, meu camarada (27): Feliciano Delfim dos Santos (1922-1989), ex-1º cabo, 1º Comp /1º Bat Exp do RI 11, Cabo Verde (Ilhas de Santiago, Santo Antão e Sal, 1941/43) (Augusto S. Santos)


Setúbal > RI 11 > 1940 > Enquanto recruta...
Feliciano Delfim dos Santos
Natural de Lisboa, nasceu a 20 de Abril de 1922; faleceu a 18 de Março de 1989



1. Texto de Augusto Santos Silva para a série "Meu Pai, meu velho,meu camarada" (*):


O meu pai terminou a recruta em Julho de 1940 e frequentou posteriormente a escola de cabos. Foi como 1º Cabo, com a especialidade de Observador Telemetrista, que foi mobilizado para fazer parte do 1º Batalhão Expedicionário do RI 11 / 1ª Companhia, com destino à então Colónia de Cabo Verde, durante o periodo da 2ª guerra mundial.





Partiu em meados de Junho de 1941 no navio a vapor João Belo, tendo desembarcado na cidade da Praia, Ilha de Santiago,  a 23 do mesmo mês. No entanto o Batalhão viria a ser colocado na Ilha do Sal, a mais inóspita de todas as ilhas do arquipélago, onde já não chovia há 5 anos, não havia árvores, água potável, fruta, e legumes frescos. (**)

Pelos seus relatos que, ainda guardo na memória, esta foi a pior das situações que registou em todas as ilhas por onde passou (Santiago, Sal, Santo Antão e S. Vicente), onde a água supostamente potável para consumo diário era racionada (não chegava a um cantil) e, para banhos, só havia água salgada.




Cabo Verde > Ilha de Santo Antão > 1943 > Aspecto de como grande parte da população vivia no interior da ilha... [ Em 1940 e depois em 1942 e anos seguintes a seca prolongada foi responsável por uma das maiores catástrofes demográficas da história de Cabo Verde: este é o pano de fundo do romance Hora di Bai, publicado em 1962, pelo escritor português Manuel Ferreira (1917-1994), também ele mobilziado como expedicionário em 1941, para São Vicenre] .



Cabo Verde > Ilha de Santo Antão > 1943 > Feiticeiro, fotografado com os seus adereços e talismãs...



Cabo Verde > Ilha de Santo Antão > 1943 > Festa de São João

Dos cerca de 1.000 homens que inicialmente compunham o Batalhão, no final só viriam oficialmente a regressar incorporados no mesmo, cerca de 500. Morreram na missão perto de 20 militares (todos eles por doença), e os restantes foram regressando antecipadamente por baixa médica, igualmente acometidos pelas mais diversas doenças (escorbuto, tifo, paludismo, anemia, disenteria, etc.) originadas pela falta de condições para uma vida normal. (**)

Felizmente naquela altura não havia guerrilheiros, minas, emboscadas, etc., ou seja, guerra propriamente dita mas o clima, a alimentação deficiente, e as condições em que viveram aqueles anos naquelas ilhas, encarregavam-se de fazer as suas vítimas e foram suficientes para reduzir o Batalhão a 50% dos seus efectivos. [Veja-se aqui o plano de defesa de Cabo Verde, elaborado por Santos Costa, em 1942]



Cabo Verde > Ilha de Santiago > 1941 >"O meu pai é o primeiro da direita"



Cabo Verde > Ilha do Sal > 1942 > O 1º cabo F. Delfim


Fotos (e legendas): © Augusto Silva Santos (2012). Todos os direitos reservados


O regresso à Metrópole deu-se no início de Dezembro de 1943, e a passagem à disponibilidade no final do mesmo.

Quiçá, estas foram também algumas das razões para o meu pai ter falecido com 66 anos de idade. A sua passagem por Cabo Verde deixou-lhe marcas profundas física e psiciologicamente, apesar da ausência de guerra efectiva.

Lembro-me ainda de contar que,  na sua passagem por aquelas terras, chegou a viver maritalmente com uma local, de seu nome Maria Helena Almeida, de quem viria a ter um filho chamado Fernando Almeida Santos (hoje teria 70 anos de idade). Ambos faleceram prematuramente por doença, sem que ele o conseguisse evitar. Há relatos de que os anos 40 foram especialmente difíceis em Cabo Verde, havendo ilhas em que as populações foram fortemente atingidas pelas mais diversas epidemias. [Vd. Hora di bai, romance de Manuel Ferreira, capa da edição da Europa-América, coleção Livros de Bolso Europa América]

Referenciou por inúmeras vezes a completa miséria em que as populações daquelas ilhas viviam na altura, e o que os militares faziam (apesar dos parcos recursos) para tentar minimizar o seu sofrimento, nomeadamente das crianças.

Apesar dessas condições desumanas, dizia que na generalidade o povo caboverdeano era alegre e muito virado para a música. Todas as ocasiões eram motivo para uma festa, com as suas improvisadas batucadas, mornas, coladeiras, e funanás, das quais sempre se mostrou muito saudoso. Recordo-me perfeitamente de o ver com lágrimas nos olhos a ouvir Fernando Quejas [1922-2005], aquele que durante muitos anos foi a única referência da música de Cabo Verde em Portugal, com discos gravados. Só muito anos mais tarde se daria o salto para aquilo que conhecemos hoje da real dimensão da musicalidade daquele povo.

Regressado à vida civil, viria a exercer a sua profissão de serralheiro civil, mas as dificuldades em arranjar trabalho condigno e normalmente renumerado mantinham-se, situação que infelizmente estamos de novo a viver.

Lembro-me de contar uma passagem da sua vida, que o marcou profundamente. Estando a trabalhar numa empreitada da qual era responsável o célebre Engº Duarte Pacheco, mais tarde membro do governo, e de alguns trabalhadores se lhe terem dirigido (entre eles o meu pai) a solicitar um pequeno aumento de salário, de este lhes ter respondido não ter conhecimento que o pão e as azeitonas tivessem tido qualquer aumento nos preços. Isto demonstra bem como era viver naquela altura.

Mais tarde viria a concorrer para os quadros do pessoal civil da Marinha de Guerra, onde exerceu a profissão de Maquinista em diversas embarcações (rebocadores e vedetas de transporte de pessoal),  inicialmente no antigo Arsenal de Marinha em Lisboa e posteriormente na Base Naval do Alfeite. Foi com a categoria equivalente a Sargento Ajudante que viria a ser reformado aos 56 anos de idade.

Ainda durante a sua passagem pela Marinha, teve a infelicidade e preocupação (como tantos pais e mães neste país) no início dos anos 70 de ver partir os seus 2 filhos para a Guerra do Ultramar, mais propriamente para a Guiné.

Contou-me por diversas vezes que, ao saber da minha mobilização (o meu irmão já lá estava há quase 1 ano), ainda tentou solicitar que esta fosse para uma outra frente sem um verdadeiro teatro de guerra (por exemplo Cabo Verde ou S. Tomé), pelo que se dirigiu ao então Tenente de Marinha Alpoim Calvão, na altura na Escola de Fuzileiros no Alfeite, de quem era mais ou menos próximo por alguns serviços prestados, para saber se haveria alguma hipótese de, de uma forma oficial, fazer tal solicitação. A resposta desse senhor foi de que o meu pai se deveria orgulhar por conseguir ter os 2 filhos, em simultâneo, na guerra a defender o país, e que por tal facto ele era um privilegiado. Enfim…

Apesar de algo debilitado fisicamente, pois tinha uma atrofia num joelho devido a diversas operações, e estava cego de uma vista por acidente em serviço, ainda ajudou a criar 4 netos que também o recordam com muita saudade, pelas suas manifestações de amor e carinho sempre presentes.

Foi um bom pai e avô para a sua época, era um homem paciente e bom,  apesar das agruras da vida e, no dia em que partiu, deixou um vazio na vida de todos nós, por tudo aquilo que ainda ficou por viver.

Esta é a minha homenagem ao meu pai, meu velho, meu camarada!


Augusto Silva dos Santos [, ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73]
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Notas do editor:

(*)Último poste da série > 25 de amrço de 2012 > Guiné 63/74 - P9657: Meu pai, meu velho, meu camarada (26): Porfírio Dias (1919-1988), ex-sold aux enf, Cabo Verde, São Vicente, Mindelo (de 18 de julho de 1941 a 7 de maio de 1944) (Luís Dias)


(...) Comentário do Augusto Silva Santos (em 19 do corrente):

"Camarada e Amigo Luís Graça, nem calculas como as tuas sábias palavras sobre o teu pai também a mim me tocam. Faz hoje precisamente 23 anos que o meu saudoso pai foi a enterrar. Se fosse vivo, teria perto de 90 anos (faria essa bonita idade no próximo mês de Abril). Tal como o teu, também ele esteve na década de 40 em Cabo Verde, mobilizado pelo R.I.11 (Setúbal) com 18 anos de idade. Lembro-me com saudade de também ele falar na música daquele arquipélago e, de algumas vezes, o ver com lágrimas nos olhos quando ouvia uma morna. Que coincidência ... Muito obrigado por me teres feito recordar bons momentos. Um grande abraço. Augusto Silva Santos" (...)

(...) Resposta de L.G. (em 20 do corrente):

"Querido camarada: Obrigado pelas tuas palavras amigas... Tenho pena que o teu pai já tenha partido precocemente... Compete-nos a nós lembrar essa geração, de gente anónima, que durante a II Guerra Mundial também soube dar o melhor da sua juventude no esforço de defesa do país e dos seus territórios de além-mar...

"Tens fotos de Cabo Verde, do álbum do teu pai ? Não as queres partilhar connosco para esta série Meu pai, meu velho, meu camarada' ? Já descobrimos que o meu, bem como o pai do Nelson Herbert (jornalista, guineense, a da Voz da América) e do Hélder Sousa (que vive em Setúbal) estiveram em Cabo Verde como expedicionários... Fala-nos do teu pai, nosso camarada... Quando e onde esteve, etc. Um abração. Luis" (...).

(...) Resposta imediata do Augusto Santos (a 20):

"Olá,  Luís, Bom Dia!

"Obrigado pelo teu desafio. Estou já a preparar algo sobre o tema para te enviar. Estou só a ultimar as minhas pesquisas e a confirmar alguns dados. Também já tenho algumas fotos.
Um Abraço, Augusto Silva Santos". (...)

(**) Veja-se aqui um excerto do depoimento da filha de António Gavina, outro expedicionário do RI 11, na Ilha do Sal. Fonte: "Viver em Cabo Verde à espera da invasão". Diário de Notícias. 14 de Abril de 2005. (Reproduzido com a devida vénia):

(....)"Eles eram missionários, homens com uma missão de paz e não de guerra. O seu objectivo era defender Cabo Verde de uma possível invasão alemã durante a II Guerra Mundial." A história de um desses soldados, António Gavina, do corpo expedicionário do Regimento de Infantaria 11, de Setúbal, é contada pela sua filha, Vanda Gavina.

"O meu pai devia ter vinte e poucos anos quando foi para a ilha do Sal. Acabou por ficar lá durante quase quatro anos", recorda. Os pormenores da passagem do pai pelo arquipélago de Cabo Verde já começam a ser esquecidos, mas uma coisa ficará para sempre na sua memória "Eles não passavam fome, mas viviam em muitas dificuldades, com muitas restrições."

Os anos da II Guerra Mundial foram anos de seca nas ilhas do Atlântico. A comida não abundava e os soldados alimentavam-se com aquilo que podiam. As recordações desse tempo deixaram marcas em António Gavina. "O meu pai nunca mais comeu percebes na vida. Tudo porque em Cabo Verde viu um dos habitantes locais morrer quando os tentava apanhar", referiu Vanda Gavina.

Outro dos problemas que o regimento teve de enfrentar foram as doenças. "Lembro-me de o meu pai contar que houve muitos colegas que morreram devido a alguns surtos de doenças que afectaram os homens da companhia."


Em 1939, pouco antes do início da II Guerra, Portugal autorizou o Governo de Benito Mussolini a construir um aeroporto na ilha do Sal, para servir de ligação com os países da América do Sul. Com o início do conflito, o projecto italiano, com casas prefabricadas, foi abandonado. Enquanto aguardavam a invasão alemã, que não chegou, os soldados portugueses ajudavam à criação de melhores condições de vida. "Eles ajudaram a construir habitações, não só para eles mas também para os cabo-verdianos", lembra Vanda Gavina. (...)

quarta-feira, 28 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9673: O Nosso Livro de Visitas (131) ): Antonio Vaz, 75 anos, lisboeta, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69: A Tabanca Grande é um fenómeno sem paralelo, que me deixa abismado e surpreendido







Guiné > Região do Oio > Bissorã > Pessoal da CART 1525 (1966/67) e da CART 1746 (1967/69) > Na messe de oficiais: O Rogério Freire, alf mil da CART 1525, é o de "de óculos ao lado do Madaíl" (Gilberto Madaíl, em primeiro plano, no lado esquerdo). "Ao fundo está o (na altura) Capitão Mourão da CART 1525 e, ao seu lado, à direita da foto de óculos, o Capitão Vaz" (RF)... A única foto que temos deste militar, cuja companhia fez a segurança aos "piras" da CCAÇ 2590 (futura CCAL 12), desembarcados de LDG, em 2/6/1969, no porto do Xime...


O Cap Mil António Vaz comandava a companhia a que pertencia o Alf Mil Madaíl, a CART 1746 (que irá acabar a sua comissão no Xime, Zona Leste, Sector L1;  aqui, no Xime, os oficiais dormiam em rulotes que, segundo o Zé Ferraz, terão vindo da antiga estação agronómica de Fá Mandinga onde dizem - mas ainda não vi documentado - terá trabalhado o Eng Agrónomo Amílcar Cabral e possivelmente a sua esposa e colega, portuguesa, Helena).

Em Bissorã, sempre houve uma tradição ligada à actividade desportiva e, nomeadamente, ao futebol... Não sabemos se o jovem Madaíl tinha jeito para a bola ou, na altura, já tinha revelado a sua vocação para dirigente desportivo... Diz o Rogério Freire (RF) sobre o Gilberto Madaíl, que é hoje uma figura pública (ex-presidente da Federação Portuguesa de Futebol): "A imagem que retenho do Madaíl daquele tempo é o de uma pessoa muito alegre e bem disposta e de muito fácil conversa e diálogo"... (LG)

Foto: CART 1525 - Os Falcões (Bissorã,Guiné-Bissau, 1966-67) (Reproduzida com a devida vénia...).



1. Mensagem que nos chegou, no dia 20 do corrente, do nosso camarada António Vaz, ex-cap mil da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69), a que pertenceram o Manuel Moreira e JFerraz... Retribuímos a homenagem deste valoroso militar ao nosso blogue, com o convite para se acolher à nossa Tabanca Grande.  Ele é nosso leitor regular, e é do tempo de camaradas nossos do leste como o Torcato Mendonça, o Beja Santos, a malta do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70)... Para cumprir as formalidades do blogue, só nos faltam as duas fotos da praxe, uma do antigamente da guerra e outra mais atual (com as rugas da expressão)... Quanto à apresentação, está um mimo! Oxalá muitos outros comandantes operacionais, nossos camaradas, porque andaram connosco no mato, seguissem o exemplo do Amtónio!... Sê bem vindo, camarada! A qualquer hora da noite  ou do  dia!... Vamos aproveitar o macaréu da memórias!... É uma boa altura, já que vamos comemorar os 8 (!) anos de existência, ou sejam,  4 comissões... (LG)


  
De: António Vaz [vazav@sapo.pt]
Data: 20 de Março de 2012 22:46
Assunto: Homenagem



O meu nome é Antonio Gabriel Rodrigues Vaz, lisboeta, de 75 anos e andei pela Guiné de Julho de 1967 a Julho de 1969 como comandante (cap mil) da Cart 1746.


Até Janeiro de 1968 em Bissorã e no Xime até ao fim da comissão ou seja até 14 horas antes de embarcar no Niassa de regresso a Lisboa onde cheguei  na véspera do Santo António de 1969.


A Cart 1746 cruzou-se com com algumas unidades de que fazem parte camaradas que frequentam  a Tabanca Grande e que estiveram num e noutro sector embora o L1 [, Bambadinca,] seja mais "concorrido" o que se compreende.


Confissão:   As minhas recordações da Guiné não têm uma intensidade uniforme. Dizendo melhor, vêm e vão por marés durante estes 45 anos embora nestes últimos  tempos tenham vindo como um macaréu que não baixa. Ficam sempre em maré cheia,  talvez por culpa da Tabanca Grande


A idade é também um facto importante e parece que, ao chegar ao fim do caminho (e isto sem dramatismos) aqueles anos tomaram uma relevância que aqui há 20 ou 30 anos não tinham. Andei entretanto  por outras "guerras" mas é aquela que vem sempre à tona talvez  por ser uma coisa que nada ter  tido a ver com a vida profissional, social e civil em que me movimentava. 


As circunstâncias excepcionais  em que decorreu (nem toda a gente esteve envolvida num conflito armado sem ser militar de carreira) é hoje o motivo que escrevo estas palavras e porque presentemente percorro com frequência a Tabanca Grande da primeira à ultima morança.


A Tabanca Grande é um fenómeno que eu , que não sou bloguista, me deixa abismado e de certo modo surpreendido, porque que eu saiba não tem paralelo com outras formas de depoimento escrito sobre outros teatros de operações nem outras actividades.


Para todos que erigiram e alimentaram com contribuições várias este blog presto aqui as minhas merecidas homenagens.


Eu e a malta da Cart 1746 partilhámos convosco, na Guiné, toda a sorte de provações, vivendo em más e precárias instalações, com faltas de toda a ordem, atascámo-nos nas mesmas bolanhas, cortámo-nos no mesmo capim  verde e fugimos do seco, das abelhas, tivemos a mesma  sede, sofremos emboscadas e gramámos ataques ao estacionamento, encharcámo-nos com as mesmas chuvas e tivemos insolações, isto tudo para além dos inevitáveis mortos e feridos que lamentamos e lamentaremos sempre  profundamente e que não esquecemos.


É por tudo isto que nos irmanamos no blog Tabanca Grande
   
Um abraço para todos do António Vaz
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Nota do editor:


Último poste da série > 15 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9610: O Nosso Livro de Visitas (130): Ex-Cap Inf Diamantino Ribeiro André, comandante da CCAÇ 2406 (Olossato e Saltinho, 1968/70), e ex-presidente da CM de Proença-a-Nova, ouviu-nos na rádio e quer ir ao nosso VII Encontro Nacional, em 21 de Abril próximo


Guiné 63/74 - P9672: Cancioneiro de Gandembel (1): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte I) (Idálio Reis)


Monte Real, Palace Hotel, 26 de Junho de 2010 > V Encontro Nacional do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > O saudoso João Barge (1944-2010), ao meio, com o Idálio Reis (à direita, segurando uma cópia das letras do Cancioneiro de Gandembel) e o camarada Eduardo Moutinho dos Santos, ex-capitão miliciano (que comandou a CCaç 2381 "Os Maiorais", 1968/70),  hoje advogado e presidente da Mesa da Assembleia Geral da ONG Tabanca Pequena (Matosinhos).

O João, já o conhecia, superficialmente, de um dos primeiros convívios da Tabanca do Centro. Natural de Aveiro, foi +professor no Instituto Politécnico de Leiria. Agora, o que não imaginava é que ele era também um dos homens-toupeira de Gandembel e um dos famosos letristas do Cancioneiro de Gandembel. Daí ele aparecer ao lado do Idálio Reis que, de resto, me ficou de mandar uma cópia das letras do Cancioneiro (que não se resume ao hino)... Infelizmente, uns meses depois  a morte  roubou-nos o João Barge. 

  

Foto: © Luís Graça (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Nos dia 9 e 10 do corrente, troquei com o Idálio Reis (ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835 (Gandembel e Ponte Balana,  Nova Lamego, 1968/69) a seguinte correspondência:

1.1. Idálio: (...) Diz-me se posso publicar,  no todo ou em parte, no nosso blogue, os Gandembéis!... Aliás, gostava que fosses tu a apresentar: (i) o hino de Gandembel; e (ii) Os Gandembéis (incluindo a introdução sobre o vosso quotidiano em Gandembel)...


Ainda não tinha visto nada parecido, uma magnífica paródia dos Lusíadas!... (Bem, o nosso poeta Manuel Maia, o bardo do Cantanhez, fê-lo em relação à história de Portugal, mas é produção recente)...

Arte, mestria, drama, tragédia, epopeia, humor de caserna!... Uma obra-prima que mete o Cancioneiro do Niassa a um canto (sem desprimor para os anónimos autores, dos 3 ramos das forças armadas, da base de Metangula, que escreveram as letras das cerca de 4 dezenas de canções que integram o cancioneiro moçambicano).

Isto foi escrito em 1969, ainda no calor da batalha, seguramente não muito longe de Gandembel... Ainda cheira a pólvora, ainda sabe a sangue, suor e lágrimas:

(...) "Em Gandembel, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas as vezes a morte apercebida,
No arame farpado, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida;
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida ?
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno. (...)


Isto só pode ter sido escrito por gente com talento (literário), cultura, sensibilidade e... muitos dias de sofrimento e de insónias!!!


Quem são os seus autores ? Tu falas em "2 humildes anónimos"... Isto é claramente "made in Guinea", embora pós-Gandembel, quando vocês foram para o leste, para o Gabu, segundo percebi... Foram escritos em Nova Lamego, é isso, na "ressaca" de Gadembel ?!...Tinhas uma cópia em papel ? Foi reconstituído mais tarde ? De memória, seria impossível... Tens seguramente uma cópia...Nunca me tinhas falado dos "Gandembéis"...

Estou em pulgas para começar a publicar isso, numa nova série, com o teu nome associado... De alguma maneira, estamos ali todos naqueles cantos e naquelas oitavas decassílabas (são cerca de 65 estrofes, divididas por 4 cantos!)... Diz-me qualquer coisa... 


Como sabes, o blogue deu a conhecer ao mundo "o suplício de Sísifo" de Gandembel, há uns anos atrás, na série Fotobiografia da CCAÇ 2317 (*)...Mas hoje temos muito mais audiência: em média, 4 mil visitas por dia (...)

1.2. Respostade Idálio Reis, com data de 10 do corrente:


Meu caro Luís: Em primeiro, aflorarei alguns aspectos quanto à divulgação do livro. Como te referi, atendendo a que o meu primeiro convívio de ex-camaradas da tropa é o de Monte Real, é meu desejo que o início da sua partilha tenha efectivamente aí lugar.

É para a tertúlia da Tabanca Grande, um dia de festa-convívio, e surge a ocasião mais que propícia para se concretizar esta intenção. E terá um digno cicerone, que é o J. Mexia Alves.

Também, como facilmente reconheces, já houve alguns pedidos para o seu envio, e a resposta foi sempre a mesma: (i) se lá estiveres, tudo bem; (ii) acaso não puderes estar presente, pede a um companheiro mais afim para to levar.

Abri, se a palavra for recta, com todo o carinho, duas excepções: há dias, apareceu-me o Paulo Santiago em minha casa, veio propositadamente de Aguada - não é longe da minha aldeia - com quem partilhei um exemplar, com um outro como portador para o seu conterrâneo Victor Tavares. O Torcato Mendonça, para ficar mais sossegado, enviei-lhe a cópia final das provas, em formato pdf.


E sobre isto, julgo que terias o mesmo procedimento, ou haverá algum equívoco da minha parte?

Quanto ao capítulo Os Gandembéis, imodéstia à parte, ficou bem, até porque junta alguma gente da Companhia. Já há muito tempo, o Blogue divulga o Hino. Desde o meu António Almeida, de alguns baladeiros, até aos Furkuntunda, foi uma dádiva muito especial.

Quanto aos Gandembéis, obviamente que sabia da sua existência, mas só consegui obter uma cópia, já em período posterior aos meus apontamentos no Blogue. Como referes, é uma obra-prima. Está lá a história da Companhia, inclusive a do Bigode Reis, que pela Guiné toda faça espanto, de RDMs e recusas singulares, de Gandembel as terras e do Carreiro os ares. E há um fundo de verdade, nestas palavras.

É uma obra que o apaziguador tempo de Nova Lamego proporcionou.  Os seus autores, são anónimos e humildes. De todo o modo, faço-te a revelação: um deles, foi o malogrado e inesquecível João Barge, um filólogo de escol, e que decerto seria a única pessoa capaz de emprestar tanta arte e sensibilidade à sua pena.

Ainda que tivesse surgido em Gandembel, nos finais de outubro/princípios de novembro [de 1968], e num período em que se vivia já numa situação de mais alívio, teve a ajuda de um dos pioneiros da Companhia, um ex-furriel que ao tempo já era professor primário.

Luís, quanto à sua antecipada divulgação, fica ao teu critério. O capítulo tem um texto meu, e o resto já sabes. Para o efeito, faço anexar esse capítulo.


Por fim, uma mensagem. Gostava muito, que o livro fosse inserto da forma que já te enunciei. Ao Blogue, pertence-lhe uma grande quota-parte do seu aparecimento.

Um caloroso abraço do Idálio Rreis.


Guiné > Zona leste >  Nova Lamego (?) > CCAÇ 2317 (1968/69)  > Depois do abandono de Gandembel / Ponte Balana, em 28 de janeiro de 1969, por ordem do Com-Chefe, a companhia  é colocada no leste, no Gabu... 372 ataques e flagelações em menos de 9 meses (abr 68/ jan 69) é capaz de ser um recorde digno do Guiness... Foto nº 223, do álbum de Idálio Reis.



Guiné > Região de Tombali > Gandembel / Balana >CCAÇ 2317 (1968/69) > O Alf Mil Reis, junto à ponte sobre o Rio Balana, Balanazinha, construída em 1946. Foto do álbum de Idálio Reis.

Foto: © Idálio Reis  (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


2. OS Gandembéis: O Nosso Cancioneiro, as nossas músicas, os nossos poetas (Parte I)

por Idálio Reis (*)

Na fria e imensa crueldade dos sofridos tempos de vivência em Gandembel, não seria possível resistir, por inteiro, se um forte espírito de solidariedade e de companheirismo não se irmanassem numa incontida e estóica perseverança. Teria de haver, alicerçada na junção indefectível daqueles homens, tantas e tantas vezes assolados pela perfídia do inimigo, ocasiões a surgirem, para podermos desfrutar de bons momentos de lazer, já que tão essenciais elas se revelavam no alívio de almas angustiosas e inquietantes, que aquele malévolo poiso, acintosa e despudoradamente,  desencadeava.

Se, de todo, jamais poderíamos ficar indemnes a essas incontáveis vicissitudes resultantes das diversas contingências de uma guerra que não dava tréguas, forçosamente teríamos que arranjar formas capciosas de as enfrentar, a fim de serenar os nossos abalados espíritos. A confraternização entre todos, era a mola crucial para o esconjuro, e muito certamente a forma mais enternecedora para superar os fantasmas, que assolavam pungentemente os nossos lídimos sentimentos de aversão e revolta.

No geral, já com a Companhia instalada nas suas casernas-abrigo, e quando as tarefas não se tornavam impeditivas, as tardes propiciavam à junção de grupos mais afins, para reinventarem entretenimentos, e deixar passar o tempo insinuantemente, e que representavam autênticos momentos de um indelével prazer, à mercê da espontaneidade e da imaginação que cada um de nós fazia surtir, para vir a ser a preferida de momento.

Para além de incluir o arranjo de certos artefactos de carácter colectivo, tendentes ao conforto, como os casos de pequenas cabanas muito simples, onde coubessem uma mesa e bancos, de chuveiros em que a água emanasse em maior débito, ou até de zonas da lavagem de roupa ou das marmitas/latas do rancho, havia lugar às brincadeiras de puro divertimento e encanto, que a meninice retivera, mas com um único senão, que era a zona de recreio ser limitativa, imposta por razões de segurança pessoal. É que mesmo durante a claridade do dia, não se inibia a que houvesse olhos e ouvidos permanentemente atentos à emergência de putativos perigos advindos do exterior ao arame farpado.

Mas, se uns tinham mais apetência pelos jogos ao ar livre, outros preferiam os passatempos de caserna, onde preponderava a arte da prestidigitação dos baralhos de cartas, em que o jogo da sueca detinha uma larga primazia. Formaram-se parelhas de grande valia, particularmente difíceis de derrotar nalguns campeonatos que se realizavam a troco de umas cervejas frescas, que era a bebida de maior requinte, que de quando em vez até surgia em Gandembel.


Havia uns quantos, mais propensos a outros tipos de iniciativas, de índole branda e afectiva, que através de um singelo aerograma, buscavam corresponder-se com uma madrinha de guerra de encantamento e sedução, e que em determinadas circunstâncias, muitas vezes se vieram a tornar elementos fundamentais na estabilidade de temperamentos emotivos.

Havia também os mais artífices, que em geral, transformavam produtos utilizados da guerra, em pequenos e preciosos artigos de paz, que se guardavam como adereços de primazia, e ainda hoje perduram como gratificante recordação da comissão.

Mas, os de carácter mais expansivo, talvez os que melhor sabiam contrapor a tolerância às hostilidades, de forma a quietarem as suas incomodidades, entretinham-se no cantarolar ou assobiar as músicas das canções em voga, aprendidas nos bailaricos de há poucos meses atrás.

No trauteio dessas canções, havia uma colectânea vasta para fazer surgir o despique, como forma de reconhecer os mais exímios no ajuste ressonador dessas melopeias.

E daí, surgiu espontaneamente uma ocasião única, singular, um momento particularmente grato, de alguém ter concebido com imaginação e engenho, o hino de Gandembel. Após algumas sessões de requintada afinação, não duraria muito tempo para que não fosse amplamente aceite por toda a Companhia. 


(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd.  postes da série:

16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá

9 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo´

12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel

2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1723: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (4): A epopeia dos homens-toupeiras

9 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1743: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (5): A gesta heróica dos construtores de abrigos-toupeira em Gandembel

23 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1779: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (6): Maio de 1968, Spínola em Gandembel, a terra dos homens de nervos de aço

21 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1864: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (7): do ataque aterrador de 15 de Julho de 1968 ao Fiat G-91 abatido a 28

8 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1935: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (8): Pára-quedistas em Gandembel massacram bigrupo do PAIGC, em Set 1968

19 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1971: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (9): Janeiro de 1969, o abandono de Gandembel/Balana ao fim de 372 ataques

18 de Setembro de 2007>Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

10 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim)

(**) Fonte:  REIS, Idálio - A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana. Ed. de autor, [Cantanhede], 2012, pp. 197-198.

terça-feira, 27 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9671: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (34): Cherno Fanca, aliás Cherno Comando, aliás Cherno Amadu...As peripécias de um jovem fula nos labirintos da guerra colonial



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Guiné > Zona leste > Fajonquito > s/d [c. 1965] > Fajonquito era famosa pelos seus burros... O algarvio Sérgio Neves tanto lidava com burros como com viaturas automóveis... Ele aqui ao volante do único carro existente em Fajonquito, um Simca. Era propriedade de um residente local, guineese, que o emprestava ao mecânico da tropa para dar umas voltinhas.


Fotos do álbum fotográfico de Sérgio Neves, Fur Mil Mec Auto, CCAÇ 674 (Fajonquito, 1964/66), falecido em 1997, gentil e carinhosamente disponibilizadas pelo seu irmão, o nosso camarada Constantino Neves.ex-1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego (Gabu), 1969/71. De seu nome completo, Sérgio Faustino das Neves era algarvio, de Luz de Tavira. Fez uma segunda comissão (1968/69), como 2º srgt mil, CART 2369 em Moçambique (Lourenço Marques, Mueda, Vila Cabral , Nampula e Meponda - Lago de Niass, em Mueda, onde travou amizade como Daniel Roxo. A CCAÇ 674 esteve em Bissau, Fá Mandinga, Fajonquito e Bissau. Era comandada pelo Cap Inf José Rosado Castelo Rio. Mobilizada pelo RI 16, partiu para o TO da Guiné em 8/5/1964 e regressou à metrópole em 27/4/1966.

Fotos: © Constantino (ou Tino) Neves (2007). Todos os direitos reservados.


1. Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (34) > Cherno Fanca... Cherno Comando... Cherno Amadu ... As peripécias de um jovem fula nos labirintos da Guerra Colonial


A história passa-se no regulado de Sancorlã e o herói chama-se Cherno Baldé, um nome tanto ou quanto vulgar na sociedade fula de então. Era natural de Fanca ou Sintchã Fanca, aldeia situada a nordeste de Fajonquito, local histórico para os conquistadores portugueses e fulas onde, por volta de 1886 os homens de Mussa Molo, rei de Firdu, enfrentaram o intrépido Cap Marques Geraldes, depois de algumas escaramuças nas margens do rei Geba, próximo do presídio de mesmo nome, na circunscrição de Bafatá.

Cherno Fanca, como ficou conhecido mais tarde, rapaz esguio e pernalta, já era quase um homem quando começa a frequentar a pequena praça e centro comercial de Fajonquito, em finais dos anos 60, para onde vinha regularmente, com o seu grupo de idade, transacionar em longas caravanas de mulas carregadas de produtos agrícolas, em especial o amendoim, meticulosamente confecionada em enormes sacos (cent-kiló), viajando em cima dos animais de carga.





Guiné > Carta da Antiga Província Portuguesa da Guiné (1961) > Escala 1/500 mil > Detalhes > Posição relativa de Fajonquito (carta de Colina do Norte) e Sinchã Fanca (carta de Tendino)



Eram tempos em que a riqueza de uma família se media pelo número de mulas obtidas por ano agrícola. Uma mula, em língua local, correspondia a dois sacos de cem quilos que era a carga do animal, sendo raríssimas as famílias que conseguiam obter mais de dez mulas por ano. As partidas para os centros comerciais eram antecedidas de longos e minuciosos preparativos, pois se tratava de ocasiões únicas em que rapazes e raparigas exibiam-se em público, vestidos da sua melhor indumentária.

A distância a percorrer não era muito grande, mas a solenidade conferida às viagens em grupos, nas primeiras horas de manhã, exigia alguma preparação prévia, precavendo-se de eventuais surpresas no caminho. Os rapazes levavam consigo as mulas carregadas de amendoim, mel e seus derivados enquanto as raparigas levavam à cabeça o coconote, em cima do qual colocavam a roupa e os chinelos preparados para a ocasião que só usariam quando tivessem entrado nas primeiras moranças de Fajonquito.

Era um dia intenso e muito importante na vida dos jovens que, para muitos, podia acontecer uma única vez ao ano. Quanto aos compradores, não havia problemas de maior, pois cada família estava ligada a uma casa comercial, sua cliente: Havia a casa dos irmãos Adriano e Casimiro Pinheiro, o Campo Quinal (o narigudo), a casa Carduz (Cardoso) ou ainda o Barbosa. Eram comerciantes lusos radicados há muito tempo no chão fula.






















Guiné > Zona leste > Fajonquito > s/d [c. 1965] > O Sérgio Neves com camaradas seus, e com miúdos da localidade... Alguns deles acampavam literalmente no aquartelamento... Na foto de cima, está com o proprietário do Simca... O Cherno Baldé vai adorar ver (ou rever) estas fotos, publicadas no nosso blogue em novembro de 2010. É possível que reconhgeça alguns dos rafeiros do seu tempo.
Fotos: © Constantino (ou Tino) Neves (2007). Todos os direitos reservados.



Quanto ao Cherno, a sua maior preocupação prendia-se com a maneira de fazer frente aos rapazes daquela pequena praça, seus colegas de idade, que jogavam bola, comunicavam entre si numa língua estranha chamada criol e gostavam de pregar partidas estúpidas aos aldeões das localidades vizinhas que se atreviam a entrar na sua zona de influência. Ele lembrava-se, como se fosse ontem, da cena que acontecera com o Aliu-Samba ou Samba-Kondjam (1), do grupo dos últimos e derradeiros apreciadores de vinho de palma entre os fulas. Este, que regressava da casa dos homens (Biré) (2), com algumas calmas (3) de vinho de palma a mais, como sempre, vinha cambaleando e quando chega ao pé dos rapazes pede para que o deixem bater na bola. Estes, sem hesitar, colocam a dita bola a certa distância e o pobre homem, impulsionado pelo álcool e tomando balanço o quanto baste, bate nela com toda a força da sua embriaguês. Não, ele não bateu, ele, a maneira dos não iniciados, cupiu (4) na bola, isto é, fê-lo com as pontas dos dedos do pé.

O “óóiiihh!!!” que saiu da boca de Aliu-Samba subiu, levado pelo vento, até as ruínas de Berecolon ao norte e o seu eco dispersou-se, invadindo a planície de Suncujuma e entrando de rompante nas moranças de Fajonquito em todas as direcções. Depois, seguiu-se um demorado silêncio de escuta e de apreensão. O que teria acontecido para motivar este grito de morte? O grito de um adulto era sempre motivo de uma grande inquietação.

O que tinha acontecido era simplesmente impensável e criminoso.

Em lugar da bola, alguém, dentre os rapazes, tinha colocado uma enorme pedra dentro dos trapos da bola improvisada que, com o impacto, tinha transformado os dedos de Aliu-Samba numa pasta vermelha de sangue e carne moída sem falar da pirueta que o seu corpo comprido e magro, deu pelo ar antes de se estatelar no chão. Quando a aldeia soube, finalmente, o que tinha acontecido, ouviu-se um ensurdecedor coro de gargalhadas, seguidas de suspiros de alivio. Os rapazes tinham dado uma boa lição ao cafir (5), amante do vinho de palma, a água do diabo. Nada mais normal.


Pouco a pouco o Cherno Fanca acabou por se impor no panorama dos grupos e eventos dos jovens de Fajonquito, devido a frequência das visitas e sua participação ativa nos encontros, em disputas cerradas de futebol, de luta tradicional ou de corrida de velocípedes, quando não eram os encontros de futebol, pretos contra brancos, com os elementos da tropa metropolitana, cativando assim os cabecilhas dos grupos locais.

Com o passar do tempo, rapidamente, as ambições do Cherno Fanca, ultrapassando o exíguo circulo de Fajonquito, subiram de nível, abraçando novos horizontes, pois a semelhança de muitos adolescentes da sua idade, já não escondia o seu desejo de vir a usar a farda militar e porque não, integrar mesmo os Comandos Africanos, a tropa de elite que mais atraía os jovens da Guiné. Assim, quando o chamavam pelo nome de Cherno Fanca ele corrigia prontamente:
- Não, eu sou o Cherno Comando, vivo ou morto!!! 
Foi por essa altura que teria chegado a Fajonquito, trazido pelos ventos daquela sofrida e interminável guerra, uma espécie de encenação teatral e que pretendia ser um canto de louvor à bravura indómita dos Comandos Africanos e na qual a juventude de então se deleitava. Ninguém podia suspeitar que, terminada a guerra, o dito cujo se transformaria na mais fina chacota aos mesmos. A cena desenrolava-se com duas ou mais pessoas alinhadas em formatura, pose de comando, pernas firmes, ligeiramente abertas e peito para cima. Os espectadores faziam perguntas em uníssono e eles respondiam com voz corajosa e cheia de determinação:
- Comandós! ... quere bianda? - Não!- Comandós! ... quere batata? – Não!
- Comandós! ... quere bajuda? – Não!
- Comandós! ... quere guerra? – Sim!
- Comandós! ... quere guerra? – Sim!
Mas para se ser comando não bastava querer, era preciso ser aguerrido, passar por algumas etapas de preparação e foi assim que, mesmo a contragosto, ele alista-se para integrar o grupo da milícia local. Em seguida, a sua postura insolente e corajosa, o seu estilo único de fardamento elitista copiado dos Comandos distinguem-no rapidamente dos seus companheiros milícias e a sua fama galga as fronteiras do regulado. E foi sem grandes surpresas que a notícia da sua mobilização para integrar os Comandos se espalhou através das numerosas bocas de Fajonquito. 

Assim, em finais de 1972 o Cherno, muito emocionado, apresenta-se no centro de instrução de Fá Mandinga, arredores de Bafatá. Com a sua partida, Fajonquito e arredores nunca mais voltariam a ser a mesma coisa, pois tinham perdido de uma só vez o seu garboso filho adoptivo, exímio e polivalente atleta, animador de festas, milícia de ocasião, mas comando por amor e vocação, insubstituível; vivo ou morto, como gostava de lembrar.

Corria o ano de 1973 quando, um belo dia, em pleno dia de festa e grande concentração de pessoas na pequena praça de Fajonquito, eis que se apresenta a entrada da estrada vermelha e poeirenta da aldeia, o inconfundível focinho de um Berliet Tramagal que, numa galopada brutal, atravessa a multidão dirigindo-se para baixo, a segunda entrada do aquartelamento. Foi nesse momento que aconteceu o episódio que seria depois objeto de muitos debates e expeculações durante muitos anos.
Quando o Berliet passa, vê-se um vulto preto a sair dele e atirar-se num salto para cima como um pássaro que se lança ao voo e, dando uma volta completa no ar, pouco a pouco se distende, se endireita, posiciona o corpo, as pernas e poisa-se levemente dobrando os joelhos ao tocar no chão e ergue-se no mesmo instante esticando e equilibrando as suas compridas pernas de cegonha.
Apanhados de surpresa, as pessoas ainda demoraram algum tempo para compreender o que se passava e a poeira provocada pela passagem do veículo também complicava a visibilidade. Mas não foi preciso esperar muito e antes que a poeira acabasse por se assentar, os olhos curiosos das pessoas presentes viram e reconheceram o jovem pernalta que, a todo o custo, queria ser comando e foi então que se levantou dentre a multidão a ovação ao seu magnifico herói com o tradicional grito de reconhecimento e admiração:
- Ė o Cherno!!..Cherno Fanca!!..Cherno Comando!!..Gârri Djinnéé6!!..Bharródi maúdhi (7)!!!...
Estava fardado de camuflado novo, apertado ao corpo, com uma pequena boina na cabeça, inclinada ao lado, ostentando placas distintivas da sua corporação no peito e nos ombros onde se podia ler “Comando”. Trazia um punhal preso do lado direito do cinturão. A sua arma de fogo era menor do que aquelas que estávamos habituados a ver e no lugar da coronha tinha dois ferros horizontais e móveis o que a tornava diminuta, autêntico brinquedo, nas mãos possantes do jovem comando.

Depois da espectacular e exuberante apresentação ao público de Fajonquito que o vira crescer e tornar-se homem, exibindo sempre o seu largo sorriso de dentes brancos, seguiu para a sua aldeia natal, pois ele não podia demorar-se, tinha acabado de jurar a bandeira e esperava-o, agora, o árduo trabalho das operações militares que, todavia, não significavam nada diante do prazer que tinha experimentado ao voltar ao seu palco de preferência com o qual sonhara durante toda a sua vida de adolescente. 

Voltaria a Fajonquito muitas mais vezes, mas já não seria o mesmo Cherno, alegre e desprendido que, tão fácil como isso, despia a farda para jogar a bola ou medir forças com os jovens mandingas da sua idade, em prolongadas lutas noite adentro, sob o ritmo dos tambores e aplausos das meninas que lhe limpavam o suor da cara com os seus lenços de cabeça numa fraterna demonstração de carinho e de afeto ou ainda quando pegava a sua namorada e escandalosamente a abraçava em público sem pudor, sem receio dos olhares reprovadores dos mais velhos. Voltaria muitas vezes, mas nunca seria a mesma pessoa. A guerra, entretanto, tinha consumido toda a sua bonomia.

Com a independência em 1974, também ele foi desmobilizado, voltando para a sua aldeia, com a mesma ingenuidade e ligeireza com que tinha partido. Olhos vermelhos de sangue e olhar melancólico, o nosso Cherno Comando em nada se diferenciava do guerrilheiro saído das matas, meio homem, meio animal. Naqueles olhos havia sinais de sofrimento e alguma inquietação. No mesmo ano, juntamente com os colegas, foi trabalhar no Senegal durante a campanha da colheita do amendoim, onde voltou com uma bicicleta nova marca Peugeot. Pensava poder retomar o seu vai-vem entre a sua aldeia e a praça de Fajonquito como fazia antigamente, mas rapidamente apercebeu-se que os tempos tinham mudado. A vigilância e a perseguição política apertava e os raptos noturnos de antigos militares se multiplicavam.

Neste novo e perigoso contexto, o jovem comando teve que utilizar o melhor que tinha no seu arsenal de astúcias para não cair nas malhas dos comissários políticos do PAIGC. Conhecendo a tática dos guerrilheiros que só atuavam na calada da noite, ele aparecia em Fajonquito durante o dia e desaparecia com o anoitecer sem deixar rastos. Parecia mesmo estar a escarnecer a inteligência dos comissários e seus numerosos agentes. Nunca dormia duas vezes no mesmo sítio. E quando se cansou deste jogo do gato e do rato, atravessou a fronteira e foi radicar-se na região da Casamança, Senegal, em casa de familiares.

Quando voltou, novamente, nos anos 80, o homem estava quase irreconhecível. O grand-bubu branco que cobria o seu corpo, as babuchas brancas nos pés e o enorme lençol branco encaracolado na cabeça e rosto, a maneira dos homens do deserto, emprestavam-lhe a sublime imagem de um homem humilde e respeitável. Em pouco tempo, o nosso ex-comando tinha-se transformado num conceituado Marabu, manipulando com a sua mão direita, de forma continua, um extenso rosário, com a mesma perícia com que outrora apertava o gatilho da sua G3. Ele era o primeiro a entrar e o último a sair na mesquita de Fajonquito, onde vinha, a pé, todas as sextas-feiras, talvez para rezar a favor das almas consumidas pelo horror da guerra ou pela paz dos que teimavam em continuar vivos num país que já não lhes pertencia. Os comissários políticos do PAIGC há muito que tinham abandonado as aldeias para se concentrar nas cidades onde arrebataram o espólio da guerra, destinado a compensar os difíceis anos da sua luta terrorista nas matas e estradas da Guiné.

Em Fajonquito não sabiam como lidar com esta nova metamorfose do Cherno e quando alguém lhe chamava pelo antigo nome, espreitando através dos seus óculos escuros para melhor enxergar seu interlocutor, muito calmamente, corrigia:
- Desculpa meu respeitável irmão, mas o meu nome é Cherno Amadu, sou o Almame de Sintchã Fanca, a vossa inteira disposição.

As pessoas ouviam incrédulas, encolhiam os ombros e iam a sua vida, afinal de contas cada um era livre de ser aquilo que lhe convinha melhor nesta(s) vida(s) de mudanças perpétuas e imprevisíveis.


Cherno Abdulai Baldé, Bissau, Março de 2012.

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Notas de C.A.B.:

1. Kondjam – Vinho

2. Biré – Palavra de origem mandinga que se refere ao local onde os homens se reuniam para beber vinho de palma antes da islamização.

3. Calmas – Copos feitos de pequenos cabazes que provêm de uma planta rastejante muito vulgar na África tropical.

4. Cupiu – Uma expressão crioula que substitui a palavra bater quando é feito com a ponta dos dedos do pé.

5. Cafir – Pessoa descrente ou não muçulmano.

6. Gârri Djinnéé – Grande Jin, uma expressão de origem árabe. Jin é um ser imaginário e invisível com poderes extraordinários e que vive ao lado dos homens.

7. Bharródi maúdhi- Grande animal, uma alusão à coragem e agilidade de um leão e ao porte impressionante de um elefante.

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Nota do editor:
Último poste da série > 22 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9638: Memórias do Chico, menino e moço (33): Lembrando os meus amigos da CCAÇ 3549... e discorrendo sobre o meu pessimismo crónico (Cherno Baldé)