quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10793: Meu pai, meu velho, meu camarada (35b): José Baptista de Sousa (1904-1967), capitão médico-cirurgião, expedicionário, um 'anjo di céu', em São Vicente, fev 1942/ set 1944 - Parte II(Adriano Miranda Lima)



Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > Setembro de 1944 > Baptista de Sousa recebendo o diploma do iate Morabeza. Foto cedida por Valdemar Pereira




Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > Setembro de 1944 > Baptista de Sousa no hospital civil de S. Vicente. Foto cedida por Valdemar Pereira.


Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > Setembro de 1944 > Entrega solene do iate Morabeza a Baptista de Sousa. Foto cedida por Valdemar Pereira




Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > Setembro de 1944 > Baptista de Sousa fundeando o Morabeza frente à Praia de Bote. Foto cedida por Valdemar Pereira.



1. Segunda (e última) parte do texto do nosso grã-tabanqueiro Adriano Lima, natural de Mindelo, São Vicente, cor inf na reforma, residente em Tomar  [, foto à direita] (*):

Dr. José Baptista de Sousa, um “anjo di céu” que pousou em S. Vicente 

Texto: Adriano Miranda Lima [, foto à esquerda]
Fotos: Valdemar Ferreira


(Continuação)

Mas o apreço pelo médico não resultou só do seu exercício profissional e da sua bondade. Suscitou admiração pública a sua coragem cívica e moral quando recusou escrever em atestados de óbito que a causa de muitas mortes não era outra senão a fome que desgraçadamente assolava as nossas ilhas, contrariando o que as autoridades oficiais do Regime impunham aos profissionais da Saúde sobre o assunto. Ao proceder desse modo, Baptista de Sousa agia apenas em conformidade com a sua consciência de homem e com os valores morais que estribam a ética e a deontologia da sua profissão, certamente indiferente às consequências em que poderia incorrer na sua carreira militar, e mesmo ao juízo que os seus pares mais conservadores ou timoratos poderiam fazer sobre o seu gesto desassombrado.

Mas não foi meramente circunstancial a atitude do médico. Ele era efectivamente um homem de espírito livre e dotado de vincada consciência política, como aliás viria a demonstrar em etapas futuras da sua vida. Como era de prever, a sua atitude de rebeldia contra a inverdade e a iniquidade viria a trazer-lhe alguns custos pessoais e atinentes à evolução justa da sua carreira militar. Excederia o âmbito desta narrativa fundamentar exaustivamente tudo o que pesquisei no âmbito do seu processo militar. É verdade que o juízo de quem analisa o conteúdo da sua folha de serviços funda-se mais na omissão do que na explicitude, busca-se mais nas entrelinhas do que na factologia do registo formal. É que no antigo regime havia formas dissimuladas de exercer a retaliação sobre alguém em termos profissionais, havendo o cuidado de minimizar a sua percepção exterior quando esse alguém era figura socialmente prestigiada.

No entanto, convém dizer não me parece que haja razões para pensar que a hierarquia militar local, na pessoa do Brigadeiro Comandante das Forças Expedicionárias, Augusto Martins Nogueira Soares, olhasse de soslaio para o êxito social do seu subordinado ou lhe retirasse apoio moral por qualquer razão. Os factos demonstram o contrário. O Brigadeiro atribuiu ao seu médico um muito expressivo louvor, que se pode considerar em perfeita sintonia com as homenagens que a sociedade civil lhe prestou:

“Louvo o capitão médico José Baptista de Sousa pela excepcional qualidade dos serviços prestados durante o período em que desempenhou o cargo de Chefe dos Serviços Cirúrgicos das Forças Expedicionárias de Cabo Verde. Como cirurgião muito hábil, permitiu a recuperação de muitos militares em situações desesperadas, e alguns lhe ficaram devendo seguramente a vida. Sempre pronto e solícito para todos, quer militares quer civis, a sua competência e a afabilidade do seu trato fizeram-no apreciar e estimar e o tornaram um elemento de valor no estreitamento das relações entre as Forças Expedicionárias e a população de Cabo Verde, que por várias maneiras lhe expressou a sua gratidão pelos valiosos e desinteressados serviços, em manifestações partidas de todas as classes sociais e das entidades oficiais da Colónia, dando assim um valioso exemplo no cumprimento dos seus deveres cívicos e militares.”

Além disso, veja-se, como é patente na fotografia [, à direita], que o Brigadeiro Comandante lidera a comitiva de despedida do seu subordinado, ladeando-o e acompanhando-o até ao cais da despedida, o que não é procedimento habitual numa Instituição que se pauta por rigidez protocolar. No rosto do Brigadeiro ia certamente estampada uma expressão de orgulho e satisfação por um oficial que prestigiara o Exército e a Nação com a sua conduta humana e profissional.

Mas o mesmo creio não poder dizer-se do Governador da Colónia, que, no âmbito das suas funções, não reconheceu pública e formalmente os serviços do médico, o que só poderia ter sido vertido em louvor oficial. E ele tinha sobejas razões para o fazer relativamente a um médico que pôs a sua ciência e o seu bisturi ao serviço dos hospitais civis, salvando muitas vidas. É caso para se dizer que a carta de alforria do Governador se prendia a uma lógica diferente da que pauta a Instituição Militar, sobretudo quando esta é servida por homens que sabem o que é a honra, a coragem, a lealdade e a camaradagem. Parece ter sido o caso do Brigadeiro Nogueira Soares, Comandante das Forças Expedicionárias.

Mas o que é realmente extraordinário é a expressividade das homenagens e manifestações de carinho que a sociedade civil mindelense prodigalizou a Baptista de Sousa. Se o louvor militar tem o valor formal que tem, maior é louvor que ele deve ter auscultado, sem precisar de estetoscópio, no coração do povo do Mindelo. Inúmeras homenagens públicas tinham sido dias antes da sua partida prestadas ao doutor Baptista de Sousa pela sociedade mindelense, quer por entidades oficiais quer privadas, como bem refere no seu louvor o Brigadeiro Nogueira Soares. Uma delas, de entre várias, mas esta de grande simbolismo, é a morna “Engenheiro Humano”, com música e letra de Jorge Monteiro, morna que continua a ser ouvida com emoção nos dias de hoje. [Vd. aqui, no You Tube, essa linda morna, na interpretação de Gardénia: Engenheiro Humano, Baptista Sousa]

 Outra homenagem foi a oferta de um pequeno iate ao Dr. Baptista de Sousa, construído nos estaleiros de S. Vicente, iate a que se deu o nome de “Morabeza”, custeado por subscrição pública na cidade, por iniciativa do conhecido industrial Manuel de Matos, dono da Fábrica Favorita. Todo o povo da cidade, rico, remediado ou pobre, contribuiu com pouco que fosse, mas a parte leonina do custo coube àquele industrial. Valdemar Pereira, para ilustrar a veemência do sentimento popular, refere que o seu tio Jom Bintim lhe contou que uma mulher do povo que cosia sacos ao pé da Alfândega teve estas significativas palavras: “cirê ta custá-me 3 testom; ma pa iate de senhor dator um ta dá 10.000 reis” (3).

Contou-me um tio meu que, no acto solene da entrega do iate, o doutor Adriano Duarte Silva, deputado por Cabo Verde, encerrou com estas exactas palavras a prelecção que proferiu: “…Quando estiverdes a velejar no Tejo, no Estoril ou em Cascais, Morabeza (nome do iate) vos fará lembrar este povo altaneiro que sabe amar e compreender aqueles que o amam e compreendem."

Mas os caminhos de um regime político ditatorial não coincidem com as veredas do coração humano. Infelizmente, Baptista de Sousa viria a sofrer as consequências de ter pisado o risco vermelho ao escrever nas certidões de óbito que a causa de algumas mortes em Cabo Verde era a fome. Viria a verificar-se, com efeito, uma sucessão de episódios futuros elucidativos do revanchismo institucional exercido sobre o médico, visando prejudicar ou no mínimo restringir as condições em que poderia dar uma expressão alargada à sua actividade profissional.

Por exemplo, em vez de ser colocado no Hospital Militar Principal, como pediu depois da missão em Cabo Verde, o que era mais que justo e oportuno, foi colocado no Regimento de Cavalaria da Guarda Nacional Republicana, situação mais compatível com o desempenho de um médico de clínica geral do que o de um reputado cirurgião, aí permanecendo quase um ano. É bem possível que Baptista de Sousa, fora do horário militar, tenha exercido cirurgia nos hospitais civis, para manter elevados os seus níveis de proficiência técnica.

Deixa de prestar serviço na Guarda Nacional Republicana em 1945, e a partir daí e até Março de 1947 é colocado no Hospital Militar Regional nº 3, em Tomar, e logo a seguir no Hospital Militar Regional nº 2, em Coimbra. Não se pode deixar de olhar com desconfiança para a sua colocação em hospitais militares regionais, órgãos do serviço de saúde militar onde não se realizam intervenções cirúrgicas importantes, estas só cabendo ao Hospital Militar Principal, para além do facto de essa situação o ter deixado fora da sua área de residência, Lisboa, onde naturalmente melhor se conjugavam os seus interesses de ordem profissional e académica.

É evidente que qualquer oficial médico, no posto de capitão, estava e está sujeito a colocações em qualquer estabelecimento do Serviço de Saúde Militar, e Baptista de Sousa não podia ser excepção. Contudo, estamos a falar de um cirurgião de alta craveira técnica e académica cujo mérito era unanimemente reconhecido. E note-se que o quadro permanente de oficiais médicos do Exército comportava nessa época 65 capitães e 32 tenentes, havendo assim razão para estranhar que um cirurgião como ele tenha sido objecto daquelas colocações, ainda mais depois de regressar de uma colónia onde honrou como ninguém a profissão médica e a instituição militar.

Como se não bastasse, mal refeito do que iniludivelmente fora uma tentativa de o prejudicar, Baptista de Sousa é “requisitado” para a longínqua Índia, para onde embarcou em 1947, destinado à Escola Médico-Cirúrgica de Goa.

Se, durante a minha pesquisa, alguma reserva intelectual poderia ter contido a extravasão da minha conclusão sobre a vitimização política do médico, ela desfez-se completamente quando, no fim do meu trabalho, a família do médico me confessou que ele era efectivamente um opositor declarado ao antigo Regime e, nessa condição, alvo de vigilância da PIDE, que não se desarmava de o procurar apanhar em flagrante em situação comprometedora. Disseram-me os familiares que nunca o conseguiram, pelo que a única possibilidade que se lhes oferecia era prejudicar veladamente a actividade e a ascensão normal da sua carreira. Daí que a nomeação para a Índia o tenha deixado transtornado não só por injustificável à luz das regras normais de nomeação de pessoal militar como por ter sido inoportuna e altamente prejudicial aos planos profissionais que tinha em mente.

Contudo, não se pode deixar de assinalar que na Índia Baptista de Sousa foi alvo de uma idolatria idêntica à que conheceu em S. Vicente. Baptista de Sousa viu os seus serviços na Índia altamente reconhecidos pelas instâncias governamentais e pela sociedade civil. Por portaria de 27 de Abril de 1950, é louvado pelo Governador-Geral do Estado da Índia, nos seguintes termos:

“ (...) Pelos relevantes serviços prestados neste Estado, pela muita competência, elevada dedicação e extremo interesse demonstrados no cumprimento dos seus deveres profissionais, honrando e prestigiando a ciência nacional e bem merecendo a gratidão de todos pela sua abnegação, sempre animada de sentimentos de bem servir, pelo que considero distintos os serviços prestados neste Estado pelo capitão médico Baptista de Sousa”.

As autoridades públicas e o povo da Índia, que o homenagearam de várias maneiras, moveram todos os esforços para evitar ou adiar a sua saída, mas Baptista de Sousa era natural de Lisboa, onde tinha a sua família, e por certo alimentava a expectativa de retomar a normalidade da sua carreira. Mas mais uma vez lhe deve ter calado fundo o reconhecimento e o apreço da sociedade civil pelo seu valor profissional e pela sua humanidade, dessa vez numa outra paragem do Império.

Só a partir de 1951 Baptista de Sousa é finalmente colocado no Hospital Militar Principal, onde se manteria até 1961. Durante esse período, frequentou o Curso de Promoção a Oficial Superior e mais tarde o de Comando e Direcção (destinado a promoção a oficial general), sendo promovido sucessivamente a major, tenente-coronel e coronel, preenchendo as vagas normais da carreira.

Enquanto tenente-coronel é nomeado subdirector desse Hospital. Promovido a coronel, seria previsível que um oficial do seu valor fosse nomeado director, mas tal não aconteceu, pelo que deixa o Hospital à data da sua promoção, em 1961, para ser colocado, para efeitos administrativos, no Conselho Fiscal dos Estabelecimentos Fabris do Exército, onde ocupa o cargo de vogal, embora continue a operar no Hospital Militar Principal. Refira-se que no Hospital Militar Principal ocupou, enquanto ali colocado, o cargo de Chefe da Clínica Cirúrgica, do mesmo passo que na vertente civil da sua vida profissional foi Chefe da Clínica Cirúrgica do Instituto de Oncologia Português [, IPO].

Baptista de Sousa passa à reserva em 1963, por motivos de saúde. Mas se estes eram formalmente impeditivos para efeitos militares não o eram para o exercício normal da sua função de cirurgião, pelo que continua a exercê-la tanto no Hospital Militar Principal como no Instituto Português de Oncologia.

A situação mais estabilizada conseguida pelo oficial médico a partir de 1951, uma vez colocado no Hospital Militar Principal, pode ter duas explicações plausíveis. Uma, é o pressuposto de que pagara o preço da sua afronta ao Regime, depois de passar por uma fase atribulada em que conheceu a instabilidade profissional e familiar. Outra, é a circunstância de que a partir do posto de major, ou mesmo de capitão antigo, se tornava problemática, se não mesmo impraticável, à luz dos quadros orgânicos, a sua colocação em outro órgão do Serviço de Saúde que não fosse o Hospital Militar Principal.

É durante o referido período que é louvado pelo Director do Serviço de Saúde (duas vezes) e pelo Director do Hospital Militar Principal. Além de ter sido condecorado com as medalhas de Mérito Militar de 3ª e 2ª classes (rotina normal no Exército), recebeu também a condecoração da Ordem Militar de Avis, esta no posto de tenente-coronel.

A partir de 1964, estando na reserva, Baptista de Sousa foi proposto e aceitou ser nomeado Consultor de Cirurgia da Direcção do Serviço de Saúde Militar, “em virtude de se tratar de um distinto oficial e cirurgião de grande categoria, e nesta qualidade apoiar o serviço de cirurgia do Hospital Militar Principal com os seus pareceres e eventualmente com a execução de intervenções cirúrgicas.”

O “Registo de Alterações” da vida militar do coronel Baptista de Sousa encerra em 1961, data em que deixa o serviço activo, e só reabre em 1967. Mas reabre, infelizmente, para logo encerrar em definitivo, pois é apenas para registar o seu óbito, ocorrido no seu domicílio, num domingo, dia 3 de Novembro do ano de 1967. Foi uma morte já aguardada porque passara ultimamente a padecer de uma doença que evoluía irreversivelmente, sem deixar qualquer réstia de esperança, como vim a saber, através das suas filhas, já depois de concluído este texto. Assim, súbita e friamente, diz-nos o documento oficial que o nosso “Engenheiro Humano” deixou a vida em 1967, aos 63 anos. A última página da sua vida foi virada, mas a vida de um justo é um livro sempre aberto e para lá do tempo. Santo Agostinho disse: “se semeias o amor em ti, só amor serão os frutos”. Por isso, Baptista de Sousa é um livro nunca encerrado, um livro onde devemos colher os frutos da semente que ele semeou.

No entanto, Baptista de Sousa não atingiu um mais alto patamar na vida militar porque era adverso ao Regime político então vigente. Seria perfeitamente normal que um oficial médico da sua categoria tivesse tido o cargo de director do Hospital Militar Principal e, em seguida, alcançado o posto mais alto na orgânica do Serviço de Saúde, o de brigadeiro. E faltou conceder-lhe no fim da carreira a condecoração com a medalha dos Serviços Distintos, como receberam outros oficiais contemporâneos, porventura mais fiéis ao Regime mas certamente menos qualificados que Baptista de Sousa.

A minha tese correu o risco de ser infundada por presumir propósitos deliberados onde apenas poderia haver simples coincidências administrativas, visto que apenas me limitei a analisar documentos oficiais, lendo nas entrelinhas. Mas o problema é que as coincidências me pareciam tão nítidas e tão incómodas que não resistiam à luz soalheira da transparência. E o meu instinto também me dizia que eu estava centrado no trilho da verdade. Porém, a dúvida só se manteve até ouvir directamente das filhas e genros de Baptista de Sousa a confirmação das suas convicções ideológicas e da sua animosidade ao antigo Regime.

O nosso “Engenheiro Humano”, o ser espiritual, uno e indivisível, é que está acima das conjecturas e especulações de quem, como eu, resolveu desenterrar da poeira dos arquivos o registo das coisas efémeras. Agora tudo repousa na memória e esta, felizmente, tem registos indeléveis. A “Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira” regista para a posteridade a notável figura do homem da ciência médica.




Cabo Verde > Hospital Baptista de Sousa em Mindelo, S. Vicente. Foto colhida na Net.


O “Hospital Baptista de Sousa”, inaugurado em S. Vicente pelo governo de Cabo Verde independente, é uma justa homenagem do povo cabo-verdiano, ligando-o para todo o sempre ao lugar onde salvou muitas vidas humanas. A morna “Engenheiro Humano”, singela expressão poética da gratidão cabo-verdiana, estou crente de que jamais sairá do nosso repertório musical e com ela a sua memória permanecerá sempre viva na população do Mindelo. E, por último, refira-se a rua com o seu nome, a rua José Baptista de Sousa, situada entre a rua Professor Santos Lucas e a avenida do Uruguaio, em Lisboa. Uma justiça que foi feita, segundo penso, pela toponímia portuguesa depois do 25 de Abril de 1974. A toponímia da liberdade.

Tomar, 30 de Novembro de 2012

Adriano Miranda Lima

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 Nota de AML:

(3) "O cirê [espécie de tabaco para introduzir na boca]  custa-me 3 tostões, mas para o iate do senhor Doutor dou 10 mil réis."

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quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10792: Parabéns a você (509): Francisco Palma, ex-Soldado Condutor Auto da CCAV 2748/BCAV 2922 (Guiné, 1970/72)



1. Mensagem de hoje, de cerca das 17 horas, do nosso camarada Francisco Palma (ex-Sold Cond Auto da CCAV 2748/BCAV 2922, Canquelifá, 1970/72), com o seguinte esclarecimento:

Caros amigos e camaradas,
Como devem ter reparado, no facebook e/ou outros Grupos de Combatentes, aparecem vários Camaradas, e amigos a desejar os Parabéns de Aniversário, quando no nosso Blogue consta outra data.
Venho por esta via explicar: eu nasci a 12 de Dezembro de 1947, mas naquele tempo não havia "vagar" para registar os filhos, e então fui registado na Conservatória em 30/07/1948, data que consta nos documentos oficiais e válida para isso, mas a realidade "nua e crua" é que a minha mãezinha me deu à luz na data hoje, em celebração, e que introduzi no meu perfil de Facebook.
Se desejarem alterar igualmente na Tabanca, ou dados do Bloque, ficaria tudo coincidente.

Grato pela vossa sempre preciosa atenção e amizade.
Votos de Óptimo Natal para Vocês, família e todos os Tabanqueiros

Um abraço
Francisco Palma
CCAV 2748/BCAV 2922
Canquelifá, 1970-72


2. Comentário de CV:

Caro Francisco Palma,
Registamos a correcção da data do teu aniversário.
Com respeito a orientarmos a nossa base de dados pelos elementos constantes no facebook dos tertulianos, desistimos da ideia porque já enfiamos um "barrete", considerando um aniversariante que afinal tinha uma data falsa no seu perfil.
Já agora, vamos festejar o teu aniversário pela segunda vez este ano, mas não abuses, porque na nossa idade, fazer anos uma vez em cada 365 dias é mais que suficiente.

Já que sim, a tertúlia deseja-te o melhor para os próximos, quase, 40 anos.
Recebe um abraço do camarada
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10789: Parabéns a você (508): Luís Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491 (Guiné, 1971/74)

Guiné 63774 - P10791: As nossas queridas enfermeiras paraquedistas (31): "É a Céu!", diz a Rosa Serra... Quanto ao resto, "tudo foi possível naquelas terras de África"...

1. Mensagem enviada ontem, pela nossa camarada Rosa Serra, ex-Alferes Enfermeira Paraquedista, BCP 12, Bissalanca, BA12, 1969:

Boa Noite,  Luis

Acabo de ver o mail que me enviou (*) e o Jorge Narciso tem razão, é realmente a enfermeira identificada por ele, [,a Céu].Tanto ela como eu estávamos lá nessa altura. A foto da enfermeira dentro do DO penso que não é da mesma evacuação mas também pode ser por estar desfocada, não sei...! 

Sobre se era possível levar feridos no cockpit,  ou seja na cadeira ao lado do piloto, por vezes acontecia; se o estado do ferido o permitia, se as duas macas estavam ocupadas e não houvesse mais feridos a evacuar naquele momento. Mas houve outras excepções. Há um caso que está descrito por mim que, se tudo correr bem virá a público um dia, que não se enquadra em nada do que acabo de dizer. 

Tudo foi possível naquelas terras de África. 

Aproveito para desejar um Bom Natal e que todos entrem no novo Ano, cheios de Esperança. (**)

Um abraço Rosa Serra

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Notas do editor:

(*) (...) "Camaradas: O melec Jorge Narciso (que é deste tempo , 69/70) diz que é a Céu, a enfermeira pára que está de costas (a 3/4) junto ao DO 27, nº 3331... Que me dizeis ?

Por outro aldo, perguntei ao Jorge (e pergunto a vocês): Em caso algum, por razões de segurança, vocês levavam feridos "feridos", civis ou militares, no cockpit, ao lado do piloto, fosse na DO 27 fosse no heli... Certo ? Confirmam ?

Expliquem-me lá então o que é que faz o "passageiro" da foto, no assento do co-piloto ou do melec, e que me parece um civil (ou então um guerrilheiro), com um gorro típico, guineense ? Os pilotos e melec da FAP andavam sempre impecavelmente fardados, é essa imagem que eu retenho deles... É impensável o homem do gorro ser um piloto ou um melec... Abraços/beijinhos. Luís (...)

(**) Último poste da série > 9 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9168: éu Cerimónia de homenagem e comemoração dos 50 anos de incorporação das primeiras Enfermeiras Paraquedistas na Força Aérea Portuguesa (Miguel Pessoa)

Guiné 63/74 - P10790: Meu pai, meu velho, meu camarada (35a): José Baptista de Sousa (1904-1967), capitão médico-cirurgião, expedicionário, um 'anjo di céu', em São Vicente, fev 1942/ set 1944 - Parte I (Adriano Miranda Lima)



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Foto nº 6 > Comemoração do dia do exército, 14 de Agosto de 1942. Foto: Melo. [Vê-se ao fundo o Ilhéu dos Pássaros e, à direita, a Ponta João Ribeirro; foto do álbum do pai do nosso camarada Hélder Sousa, 1º cabo Ângelo Ferreira de Sousa, expedicionário: nasceu em 1921 e morreu em 2001; esteve em São Vicente, em 1943/44, foi portanto contemporâneo do cap cirurgião-médico José Baptista que esteve no Mindelo,  de fevereiro de 1942 a setembro de 1944].

Foto: © Hélder Sousa (2009). Todos os direitos reservados. 


1. Mensagem do nosso grã-tabanqueiro Adriano Lima, com data de 2 do corrente:

Meus caros familiares, amigos, conhecidos, e correspondentes.

Em anexo, envio-vos um texto sobre o Dr. Baptista de Sousa e explico o porquê deste meu gesto. Todo o meu tempo de menino e moço em S. Vicente, sempre ouvi falar do Dr. Baptista de Sousa mas sem chegar a saber ao certo de quem se tratava. Nem mesmo o vir a saber o seu nome atribuído mais tarde, no pós-independência, ao novo Hospital Civil de S. Vicente espicaçou a minha curiosidade, mas neste caso talvez justificável por eu não viver em Cabo Verde.

Só há meia dúzia de anos, por intermédio da blogosfera e por iniciativa pessoal do meu amigo Valdemar Pereira, fiquei finalmente a conhecer a identidade do médico e o amor imenso que o povo do Mindelo tinha por ele. E como fiquei a saber que afinal ele era ao tempo um oficial médico (capitão) integrado nas Forças Expedicionárias a Cabo Verde durante a II Guerra Guerra Mundial (1941-1945), a curiosidade levou-me a efectuar uma pesquisa no Arquivo Histórico-Militar para obter o máximo possível de dados sobre o seu percurso profissional. E assim aconteceu, tendo elaborado um texto de cerca de 30 páginas, do qual colhi material para, a convite, fazer uma palestra sobre esta figura da medicina e do exército na "Associação de Antigos Alunos do Liceu Gil Eanes", em Lisboa, há para aí uns 6 anos.

Actualmente, tenho vindo a publicar num blogue designado Praia de Bote um conjunto de textos sequenciais e temáticos sobre o historial das Forças Expedicionárias a Cabo Verde. Chegou a altura, mais que propositada e oportuna, de, nesse âmbito, publicar naquele blogue um texto contendo uma síntese biográfica sobre o Dr. Baptista de Sousa (também ele um militar expedicionário), que em particular foca a sua acção em Cabo Verde (S. Vicente). É este mesmo texto que vos estou a enviar (em versão pdf e em versão word, para quem tiver dificuldade em abrir o primeiro). [Já publicado no dia 3 do corrente, no blogue Praia de Bote].

Devo dizer-vos que o que eu escrevi talvez venha a surpreender o leitor, tal como me surpreendi, porque não o esperava, face à constatação de que o Dr. Baptista de Sousa, além de distinto oficial médico, de cirurgião de alta craveira e grande humanista, era dotado de vincada consciência política, e implicitamente de verticalidade ético-moral, o que lhe causou transtornos na sua carreira militar. De notar que em Cabo Verde (S. Vicente) mostrou desassombradamente essa faceta, estribada no seu elevado sentido de deontologia profissional, ao recusar escrever nas certidões de óbito que a causa de muitas mortes não era outra senão a fome que grassava nas ilhas. Foi a partir daí que o antigo Regime político encontrou razões para começar a urdir um estratagema para lhe criar entraves na carreira militar, com inevitáveis consequências na sua actividade como médico cirurgião.

Contudo, o que mais impressiona no texto é a expressividade do carinho que o povo do Mindelo lhe dedicava, que atinge o auge na incontida emoção vivida na cidade no dia da sua partida para Lisboa. Procuro dar uma ideia disso no meu texto, por vários testemunhos recolhidos.

Leiam porque vale a pena. E, já agora, vão ao blogue Praia de Bote ,  quando sair o post referente a este texto, e deixem lá o testemunho da vossa própria emoção e o sentido da vossa gratidão a um Homem que tanto bem fez à nossa gente.

Faleceu em 1967, aos 63 anos de idade, em Lisboa [, com o posto de coronel]. Os crentes do Racionalismo Cristão em S. Vicente dizem que ele pertence ao Astral Superior e aí preside, mas isso já é assunto de um domínio que me ultrapassa. Mas seguramente que ele foi, sim, uma Grande Alma, de uma dimensão incomensurável, quase sobrenatural.

Um abraço
Adriano Miranda Lima

Nota do editor - No nosso blogue,  Luís Graça & Camaradas, este texto será publicado em duas partes. Ele é também uma homenagem à geração dos nossos pais que, em Cabo Verde e noutros do império, estiveram em missão de soberania durante a II Guerra Mundial. (LG).-
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Dr. José Baptista de Sousa, um “anjo di céu” que pousou em S. Vicente

Texto: Adriano Miranda Lima [, foto à esquerda]

Fotos: Valdemar Ferreira [, foto à direita,  a seguir]

Nos meus tempos de menino e moço, o nome do Dr. Baptista de Sousa era volta e meia aflorado em conversas dos mais velhos, tido como um “anjo di céu” que um dia pousara em S. Vicente. Mas nunca cheguei a saber ao certo de quem se tratava, nem sequer cuidando-me de indagar algo de concreto sobre a sua identidade. Dezenas de anos decorridos, e já no pós-independência, viria a saber que o novo hospital de S. Vicente recebeu o nome médico, mas nem isso espicaçou a minha curiosidade sobre os pormenores da sua identidade, ficando no entanto sensibilizado por ver assim consagrada a memória de alguém verdadeiramente querido na nossa terra.


Dr. Baptista de Sousa, com a bata branca de serviço. Foto colhida na net. Só há meia dúzia de anos, com a fruição da blogosfera, eu viria a saber quem era afinal esse personagem do mundo da medicina. Tudo se proporcionou através do blogue “Mindel na Coraçon”, editado por Jorge Martins e em que eu e outros conterrâneos participávamos desenterrando memórias e cruzando informações e opiniões. Chegou o dia em que veio a propósito o nome do médico. E então o conterrâneo Valdemar Pereira ], foto à direita], portador de uma fabulosa memória, não deixou os seus créditos por mãos alheias quando resolveu rebobinar a fita do tempo para recuperar factos relacionados com a passagem do Dr. Baptista de Sousa por S. Vicente, designadamente com a sua despedida em 1944. Tinha o Valdemar nesse tempo apenas 11 anos de idade, mas o que entretanto também ouviu dos mais velhos e guardou a sete chaves na memória consubstanciou uma importante informação, ainda por cima ilustrada com expressivas fotografias. E no-la trouxe, incólume e preciosa, para gáudio das gerações mais velhas, que revisitaram o acontecimento, e para grata surpresa das que lhe são posteriores.

Surpreendido, porque não o esperava, fiquei então a saber que Baptista de Sousa era médico militar, ao tempo capitão. Esta é que foi a minha maior surpresa, porque sempre o supus civil. Mas não, afinal Baptista de Sousa foi também um Militar Expedicionário, como outros já mencionados em episódios anteriores da minha narrativa sobre esta temática.

Justo é dizer que todos ficámos siderados com o relato feito por Valdemar sobre a homenagem que a população de S. Vicente prestou a essa figura da medicina à data do seu regresso à Metrópole, terminada a sua comissão de serviço integrado nas forças expedicionárias. A palavra do Valdemar foi de grande eloquência mas as imagens das fotografias do acontecimento por ele publicadas foram igualmente uma peça importante para se perceber o quanto era o médico idolatrado pelo povo de Mindelo. A ponto de se poder dizer que a emoção da despedida de Baptista de Sousa transborda-se das fotografias e tem o condão de tocar quem as observa.

Esclareço que, na sequência das revelações daquele blogue, decidi realizar uma pesquisa sobre a vida militar do Dr. Baptista de Sousa, recolhendo e trabalhando algum material que me permitiu, por sugestão do Valdemar e outros amigos, efectuar uma palestra sobre a sua biografia na Associação de Antigos Alunos de Liceu de Cabo Verde. Seria ocioso derramar aqui o conteúdo do que foram cerca de 30 páginas, mas aproveitarei algumas das suas passagens mais significativas para deixar aqui algo sobre o Homem que os cabo-verdianos nunca esqueceram, tanto que o seu nome está para sempre imortalizado na designação do novo hospital civil de S. Vicente.

José Baptista de Sousa ], foto à esquerda, retirada da Net  pelo autor do texto]:

(i) nasceu em 2 de Março de 1904 na freguesia de Camões, em Lisboa, filho de José Augusto de Sousa e de Victoria Alves Baptista de Sousa.

(ii) De 1922 a 1927, fez o curso de Medicina na Faculdade de Medicina de Lisboa;

(iii) De 1928 a 1929, frequentou com aproveitamento, no Hospital Militar Principal, o Curso Técnico de Oficiais Milicianos Médicos e a seguir concorreu ao Quadro Permanente de Oficiais Médicos, tendo sido promovido a alferes em 1929;

(iv) Foi em seguida colocado em unidades do Exército e, depois, na Guarda Nacional Republicana, onde serviu de 1936 a 1942, tendo entretanto sido promovido a tenente em 1930;

(v) De realçar que numa das unidades militares, ainda oficial subalterno, foi louvado “pelo zelo, competência e dedicação manifestados nos diferentes serviços para que foi nomeado”; entretanto, concorreu ao internato de Cirurgia dos Hospitais Civis de Lisboa e fez o concurso para cirurgião dos mesmos hospitais;

(vi) Foi igualmente assistente na Faculdade de Medicina de Lisboa, ao mesmo tempo que frequentava o internato de cirurgia nos Hospitais Civis de Lisboa, tudo isso em acumulação com as suas funções militares, o que demonstra uma firme disposição de alargar e diversificar as experiências e desafios da sua actividade médico-científica;

(vii) É quando prestava serviço na Guarda Nacional Republicana que, em 17 de Janeiro de 1942, é nomeado para integrar as Forças Expedicionárias a Cabo Verde;

(viii) Deste modo, embarca em Lisboa a 16 de Fevereiro de 1942, no vapor Guiné, com destino a S. Vicente de Cabo Verde, onde desembarca a 22 do mesmo mês;

(ix) É já em S. Vicente que é promovido ao posto de capitão médico.


Baptista de Sousa vai viver em S. Vicente talvez uma das fases mais marcantes da sua vida pessoal e profissional, durante a qual deve ter encontrado o verdadeiro significado da carreira que abraçou e a sublimação dos altos valores humanos que eram parte integrante do seu ser. Ele é o médico-cirurgião dos militares mas é-o também dos civis, movido pelo seu impulso natural de pôr a sua ciência médica indiscriminadamente ao serviço de quem dela precisava.

Seria por demais exaustivo enumerar as vidas que o Dr. Baptista de Sousa salvou e as malformações físicas (casos de pé boto) de civis que reabilitou com a sua técnica cirúrgica. Fez uso de intervenções terapêuticas até aí pouco utilizadas em Cabo Verde por falta de meios adequados ou mesmo por insuficiência de pessoal médico qualificado. Mas tudo fazia sem olhar a quem, fosse rico ou pobre, militar ou civil, demonstrando uma total disponibilidade e uma dedicação e humanidade sem limites. Era director do Hospital Militar Principal de Cabo Verde e tinha como adjunto o capitão médico Lisboa, outro que deixou boas recordações em S. Vicente.

A acção do Dr. Baptista de Sousa durante quase 3 anos de permanência em Cabo Verde granjeou-lhe o mais alto prestígio e consideração quer entre o contingente militar quer, sobretudo, entre a população civil. Para se ter uma ideia do que alguém significa para o seu próximo, nada como a expressividade de um coração agradecido. E para se perceber isso, veremos como se soltaram as rédeas, não de um coração agradecido, mas de milhares de corações no dia em que o Dr. Baptista de Sousa deixou a ilha de S. Vicente, regressando à Metrópole, finda a sua missão militar. Isso aconteceu em 10 de Setembro de 1944.

Rezam as crónicas que naquele dia a cidade de Mindelo parou em peso para acompanhar o médico ao cais de embarque. O povo concentrou-se em massa formando alas entre a sua residência, na Praça Nova, e o cais de embarque, afluindo de todas as partes da cidade e seus arredores. As janelas se escancararam e os passeios estavam pejados de gente, algumas pessoas alcandoradas em pontos dominantes para lograrem uma observação mais vantajosa.

Valdemar Pereira refere o seguinte testemunho coevo que ouviu ao senhor Antoninho Santiago, funcionário dos CTT: ao sair da sua casa na Praça Nova para entrar no automóvel militar que o levaria ao cais, o médico foi imediatamente levantado e levado em ombros por figuras gradas da sociedade mindelense, ao que ele, modestamente, se procurou opor, mas sem êxito. Assim, em ombros parece ter sido conduzido até às imediações do cais, com o povo a soltar ensurdecedores e emotivos vivas ao doutor Baptista de Sousa e vivas ao “Engenheiro Humano” (1). As mulheres do povo derramavam lágrimas enquanto gritavam vibrantes palavras de saudação e apreço àquele que elas já tinham como um querido filho adoptivo da terra.


Cabo Verde > São Vicente > Midelo > 10 de setembro de 1944 >Baptista de Sousa acompanhado, na hora da despedida, pelas forças vivas do Mindelo e o povo da cidade. À sua direita, o Comandante das Forças Expedicionárias, Brigadeiro Nogueira Soares, e à sua esquerda, o Presidente da Câmara de S. Vicente. Foto cedida por Valdemar Pereira.



Cabo Verde > São Vicente > Midelo > 10 de setembro de 1944 > Baptista de Sousa levado em ombros no cais da despedida. [Ao fundo, o Hospital de São Vicente, fundado em 1890]. Foto cedida por Valdemar Pereira.


Nunca se vira coisa igual em Mindelo, nunca a cidade inteira se tinha comovido tanto na hora “di bai” (2). Depois da despedida, calcule-se a nostalgia que deve ter ficado a pairar na cidade. Ora, para um homem ser assim alvo de tanta unanimidade no reconhecimento e no aplauso à grandeza do seu mérito e da sua acção, unindo autoridades e povo anónimo, ricos e pobres, gente de todos os estratos e condições, é porque verdadeiramente invulgar foi o modo como exerceu o seu múnus profissional em prol da comunidade local, é porque excepcional foi ele na esfera da sua humanidade e civismo. E foi assim que uma onda de emoção se formou no alto mar da “morabeza” do povo de Mindelo, atingiu altura indescritível, galgou as ruas da cidade e foi inundar de saudade o cais da despedida.

A minha mãe contou-me que as sirenes de todos os navios fundeados no Porto Grande tocaram continuamente durante o embarque de Baptista de Sousa, só se calando quando o navio se perdeu da vista da imensa mole humana que o acenava incessantemente no cais e na orla do porto. O mar seria uma vez mais motor do destino luso e cabo-verdiano, esse mar que é lugar mitológico de encontro e separação; levou para longe aquele que se tornara um querido filho do povo do Mindelo. Ao tumulto da apoteose daquele dia 14 de Setembro de 1944 iria seguir-se, calcule-se, um vazio no coração da ilha, um sentimento de desamparo difícil de mitigar. O povo do Mindelo jamais esqueceria a atenção, a disponibilidade, a simpatia, a bondade e a proficiência com que Baptista de Sousa operou e recuperou tanta gente em estado clínico desesperado, salvando muitas vidas que, antes da sua chegada a Cabo Verde, estavam praticamente condenadas.


Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > 10 de setembro de 1944 > Eflúvios da emoção popular no cais da despedida de Baptista de Sousa. Foto cedida por Valdemar Pereira.



Cabo Verde > São Vicente > Mimdelo > 1944 > Baptista de Sousa na sua última despedida ao povo do Mindelo. Foto cedida por Valdemar Pereira

(Continua)

Tomar, 30 de Novembro de 2012

Adriano Miranda Lima

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Notas de AML:

(1) Nome que foi dado a uma morna em homenagem a Baptista de Sousa, da autoria de Jorge Monteiro.

(2) Hora de despedida.

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Nota do editor:

ÚItimo poste da série > 23 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10712: Meu pai, meu velho, meu camarada (34): Tropas expedicionárias portuguesas, em São Vicente, Cabo Verde, 1941/45, mostram solidariedade com o povo sofrido da ilha (Adriano Miranda Lima, cor inf ref, Tomar; cortesia de Praia de Bote)

Guiné 63/74 - P10789: Parabéns a você (508): Luís Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491 (Guiné, 1971/74)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10779: Parabéns a você (507): Fernando Barata, ex-Alf Mil da CCAÇ 2700 (Guiné, 1970/72)

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10788: Álbum fotográfico do Alberto Pires, Teco, ex-fur mil, CCAÇ 726 (Guileje, out 64/ jun 66) (Parte V): A vida de um quartel de fronteira (Parte I)









Guiné> Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 726 (1964/64 > Aspetos diversos da vida de um quartel de fronteira:

(i) o temível morteiro 81, o "botabaixo" (. bem manobrado, fazia razias entre o pessoal atacante, num raio até 6 km);

(ii) a célebre e heróica  Fox, de matrícula MG-36-24, que resistiu a tudo e todos, acabando ingloriamente, como ferro velho, nas mãos do PAIGC em 25 de maio de 1973;

(iii) uma não menos heróica GMC, caída finalmente por terra; (iv) uma também heróica GMC, de matrícula ME-00-589, de alcunha "Sobre Rodas", que deve ter fintado e sobrevoado muita mina...;

(v) mais uma foto da epopeia da construção dos abrigos;

e, por fim, (vi) uma missa campal, porque Guileje  era uma terra de fé e de coragem, lembrava o nosso saudoso  Zé Neto (1929-2007) [, o primeiro membro ativo da nossa Tabanca Grande que a morte veio ceifar; estava reformado como capitão,  e tinha uma brilhante folha de serviço; a última batalha contra o cancro do pulmão teve um desfecho fatal no dia 29 de maio de 2007; o Zé era o nosso patriarca, o nosso decano, o nosso homem grande; pertenceu à CART 1613, Guileje, 1967/68].

O historial da  Fox MG-36-24 também merece ser aqui relembrado: pertenceu aos Pipas, foi sendo sucessivamente rebaptizada: Bêbeda, Diabos do Texas...

Segundo Nuno Rubim, "a matrícula da Fox é a mesma que consta numa fotografia tirada por elementos do PAIGC em Maio de 1973, quando ocuparam o quartel! Portanto a Bêbeda (que vai ficar para a história, representada com essa mesma inscrição no diorama de Guileje ....) terá servido desde 1965 até 1973, integrada nos sucessivos Pel Rec Fox que por lá passaram"...  

Fotos: © Alberto Pires (Teco) (2007) / AD - Acção para o Desenvolvimento. [Editadas por L.G.]. Todos os direitos reservados


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Alberto Pires, mais conhecido por Teco, natural de Angola, ex-fur mil na CCAÇ 726, a primeira subunidade a ocupar Guileje em 1964)... A companhia esteve em Guileje entre Outubro de 1974 e Junho de 1966.

As fotos que estamos a publicar pertencem a um lote que o Teco pôs à disposição do Núcleo Museológico Memória de Guiledje e do nosso blogue (são mais de 60 fotos). Não trazem legenda, mas estão agrupadas por temas: (i) CCAÇ 726 (Guileje); (ii) construção de abrigos (Guilje); (iii) destacamento de Mejo; (iv) operação militar; e (v) guerrilheiros mortos (neste caso, são apenas duas as fotos disponibilizadas)...

Estas fotos que publicamos hoje, têm a ver com o primeiro tema. As fotos foram editadas por nós com vista à melhoria do seu enquadramento e resolução. Sabemos que o Teco e o Carlos Guedes têm em mãos a elaboração de uma publicação com a história da CCAÇ 726. E esperamos que um dia destes eles nos ajudem a melhorar a legendagem do álbum. (LG)
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Guiné 63/74 - P10787: Agenda cultural (240): Lançamento do livro "Guiné - Guerra e Poesia", de José Martins Gago, dia 16 de Dezembro de 2012, pelas 15h00, na Livraria Bar Les Enfants Terribles, Rua Bulhão Pato, 1 - Lisboa (José Martins)

C O N V I T E

Para o lançamento do livro "Guiné - Guerra e Poesia - Canjadude e Bolama", de autoria de José Martins Gago, dia 16 de Dezembro de 2012, pelas 15h00, na Livraria Bar Les Enfants Terribles (Cinema King), Rua Bulhão Pato, 1 - Lisboa



Capa do livro

Guiné – Guerra e Poesia 

O José Martins Gago não é só um conhecido da guerra na Guiné. O Zé Gago é um camarada de armas e calcorreamos juntos as bolanhas e matas da Guiné, “desde o Gabu ao Boé”, como “reza” no Hino dos Gatos Pretos.

Foi mobilizado quando prestava serviço na Carreira de Tiro da Serra da Carregueira, perto de Sintra. Eu já estava na unidade há quase um ano, quando chegou, a 21 de Março de 1969, o Alferes Gago, em rendição individual, visto que toda a nossa Companhia de Caçadores 5, era de militares africanos e Oficiais, Sargentos e Praças especialistas, de rendição individual.

Na primeira operação que comandou, a sul de Canjadude, fui incorporado no grupo de combate reforçado. Recordo esta operação, já que durante a mesma, o guia se “perdeu” e foi necessário “fazer uns ajustes” na organização e orientação da operação.

Deixou Canjadude, por transferência para o Centro de Instrução Militar / CTIG, em Bolama, sendo abatido à unidade em 23 de Abril de 1970. Um mês depois, eu terminava a minha comissão de serviço, regressando à Metrópole.

Em Maio do ano passado pediu-me, por mail, um mapa do subsector de Canjadude, para incluir no seu livro. Enviei o mapa e aguardei. O livro vai chegar!

José Martins
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10756: Agenda cultural (239): O grã-tabanqueiro, nova-iorquino, João Crisóstomo, é um dos "Portugueses Pelo Mundo", retratado no livro que será apresentado hoje, 2ª feira, dia 3, às 18h30, na FNAC - Chiado

Guiné 63/74 - P10786: História da CCAÇ 2679 (57): Encontro com a má fortuna (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 7 de Dezembro de 2012:

Olá Carlos,
Aqui vai mais um trecho insólito da história da minha Companhia.
Dedico-o ao nosso amigo Chico, ou Tcherno Baldé, que tão bem tem colaborado com o blogue a partir da Guiné. Pois há alguns dias o Chico referiu ter encontrado um puto, que como ele, andava pelo aquartelamento e estava a desempenhar funções na messe de Bajocunda.
Era um puto, talvez de 12 a 14 anos entre 1970/71, mas que se desembaraçava como gente grande, com competência e alegria, até que uma vez, há sempre uma vez, teve um encontro com a má fortuna.
Oxalá que a má fortuna lhe tenha proporcionado a ocasião para singrar na vida.

Hoje anexo uma espécie de documento em que ele intervém.
Para um, como para o outro, envio um abraço afectuoso, com votos de que sejam muito felizes, e que pelo Natal tenham bastantes motivos de alegria.

Votos natalícios que também te dirijo, Carlos, e à Tabanca.
Quem dera que houvesse uma trégua nas incomodidades, que, em boa verdade, poderia durar de um Natal até ao próximo, continuadamente, se não fosse uns moralistas estarem a fazer-me pagar por actos que não cometi. Nem indirectamente, pois há muitos anos que não voto.

Abraços fraternos
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (57)

Encontro com a má fortuna

Corria o ano de 1971 em Bajocunda, localidade da fronteira nordeste da Guiné, e a tropa ali estacionada vivia com a rotina habitual, no que poderia parecer um ambiente pacífico, até harmonioso, onde o capitão Trapinhos e dois sargentos, sem sangue, nem suor, nem lágrimas, pacata e serenamente levavam a carta a Garcia, que nas circunstâncias, equivalia à justa partilha das mais-valias que resultavam de venda de bens de mercearia e de carburantes, que entrariam por via deles no retalho comercial.

Aqueles senhores, de quando em vez faziam o favor de dispensar artigos que tinham em stock's excedentários, a um ou dois comerciantes locais que os vendiam no mercado. Os bens eram do Estado para benefício exclusivo do pessoal militar ali deslocado, e os stocks tornavam-se excendentários, pelas frequentes reposições sempre que era dada notícia de destruição por via de algum ataque, tanto em Bajocunda, como em Copá, um destacamento sob comando da Companhia. Eram flagelos de praticamente 100% da existência, resultantes de manobras ilegítimas, ilegais, e de enriquecimento doloso e traiçoeiro pelo açambarcamento da coisa pública, que nem sequer tinha em conta os perigos para a saúde do pessoal, que se sujeitava a uma alimentação pobre, repetitiva, descuidada, e desmerecedora da qualidade mínima.

Já no que respeita ao negócio relativo à gasolina, consubstanciava-se por um pacto estabelecido entre aqueles senhores e o empregado da Casa Gouveia no Gabu, onde o carburante era adquirido e pago mediante requisição. O combustível chegava a Bajocunda através das colunas regulares que se organizavam àquela localidade. Alguém dirigia-se ao armazém, apresentava a requisição, carregava os tambores, e ficava em conta-corrente a liquidar uma ou outra vez, quando algum membro da "sociedade" se deslocava. Às vezes, em atitude que disfarçava a tramóia, o funcionário dizia que só tinha metade, e que o restante seguiria na próxima coluna. Para desenrascar, seguia aquela quantidade.

Quanto ao parque automóvel da Companhia, esse encontrava-se em estado lastimoso, e raramente havia disponibilidade superior a duas viaturas para as colunas, e chegaram a estar todas inoperacionais. Muitas vezes recorria-se a viaturas de empréstimo. O parque parecia o de uma sucata, e os mecânicos extraíam peças de umas para remediar outras. No entanto, nos mapas para Bissau, as viaturas funcionavam plenamente e com elevados consumos, em vez de se declarar que um pelotão era arrumado a monte sobre um ou dois Unimogues, com os riscos que advinham da falta de segurança. Arranjar dinheiro é que não era problema.

A messe situava-se no edifício que comportava os quartos dos furriéis e a enfermaria. Na messe serviam dois rapazes, o Alberto, um puto expedito de olhar esperto, e o Muntagá, mais velho e mais alto, que fazia de chefe. Os dois faziam uma boa equipa, e em dias de festa como o Natal, a Páscoa, ou algum aniversário, abrilhantavam a mesa com flores colocadas em garrafas de refrigerante, ou de água Perrier, em manifestação de naif juvenil. Também garantiam a limpeza dos quartos e da casa-de-banho. Eram prestáveis, dedicados, e bem educados, e como remuneração recebiam meia-dúzia de pesos, alimentação, e alguma sobra para as famílias.

Uma noite aconteceu um crime horrendo de elevadas consequências e perigo eminente para a segurança nacional: o sargento D... surpreendeu o Muntagá a "roubar" um bocadinho de petróleo. Aquele sargento, senhor de elevadas qualidades morais, que roubava o Estado e atraiçoava a tropa nos termos antes descritos, conseguiu impressionar toda a gente presente com a descompostura passada ao jovem Muntagá, e despediu-o das funções que exercia na messe. Se calhar nem estava a roubar, pois todos sabiam que ele levava garrafinhas de petróleo para iluminação doméstica, o que seria um luxo na aldeia.

O exagero foi comentado entre a malta, que não nutria amizade pelo sargento.

No outro dia chamei o Muntagá, e depois de saber por ele o que se passara, e ele confirmava, disse-lhe para ficar ao meu serviço na limpeza do quarto, pois condoía-me a forma desproporcionada do tratamento, mais a mais, provindo donde provinha. Pois ainda nesse dia fui surpreendido com uma chamada ao capitão Trapinhos, que algo incomodado dava-me a ler um rascunho de participação contra mim, apresentado pelo sargento D..., e que basicamente referia ser intolerável que eu o tivesse desautorizado.

Respondi que não o tinha desautorizado, pois nem sequer tinha assistido à cena do dia anterior, e que apenas chamara o Muntagá para meu empregado e a minhas custas. Não podia ser! O capitão Trapinhos referiu que o Muntagá estava definitivamente proibido de entrar na área aquartelada, e quanto a mim, voluntária, ou involuntariamente, tinha feito uma provação ao nosso Segundo por uma atitude de desobediência. Não me recordo em pormenor da conversa, mas concluía o capitão, que ou eu aceitava a situação como ela se apresentava, ou ele teria que considerar a participação. Sorri, pois se o capitão havia decretado a proibição de o Muntagá frequentar o quartel, e estava a transmitir-me essa sanção, como é que eu poderia contrariá-la sem incorrer numa pena que ele me aplicaria? Confirmei que tinha percebido a questão e tranquilizei-o, apesar de discordar da decisão.

Pedi-lhe o rascunho, e o capitão, obviamente distraído deu-mo. Por isso hoje reproduzo-o para conhecimento da Tabanca, com os retoques esclarecedores que sirvam para boa ilação: os grandes malfeitores protegem-se e têm capacidade para se ajuizarem uns aos outros; os pequenos malfeitores têm que evitar confusões, para que não caiam sob a alçada dos grandes malfeitores, que não perdem oportunidades para pregar a moral e os bons costumes.

Tal como nas comunidades de animais em que os mais fortes marcam territórios, onde os mais fracos não podem exercer concorrência.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10635: História da CCAÇ 2679 (56): A evacuação insólita (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P10785: Do Ninho D'Águia até África (34): Aquela garotada (Tony Borié)

1. Mais um episódio, enviado em mensagem do dia 8 de Dezembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (34)

Aquela garotada 



Quase sempre ao domingo, e quando estava de folga e livre das suas tarefas, o Cifra dava o seu passeio habitual pela tal aldeia, com casas cobertas de colmo que existia próximo do aquartelamento. Parava aqui e ali, já conhecia alguns habitantes, e as crianças andavam sempre em seu redor, pois sempre trazia no bolso rebuçados que comprava na loja do Libanês.


Atrás das crianças, foto com o Cifra acima, vinham os adultos e sempre se passava um pouco de tempo, falando disto e daquilo, e algumas “bajudas” eram uma companhia agradável, mas por favor, não sejam mal intencionados nos vossos pensamentos, pois o Cifra, sempre respeitou a dignidade e o forte carácter dos naturais, que muito admirava, alguns até o tratavam por “irmão”, e sempre seguiu as leis, as ordens e os ensinamentos dos “homens grandes” que, com toda a sua sabedoria, e com muitas “chuvas” no corpo, que deviam de ser anos, apontando com uma espécie de bengalim, com que afugentavam algumas moscas, e batiam nos cães, que famintos se aproximavam das “moranças”, que eram as suas casas cobertas de colmo, e que entre outras coisas, pronunciavam num português acrioulado, que o Cifra compreendia perfeitamente, e não se podia duvidar das suas palavras, pois eram sinceras, e para mais vindas de um “homem grande” para o “irmão Cifra”, e diziam, olha aquela ali... “cabaço ká tem”... anda para aqui... aquela “bajuda” além... “mama firme”... porque depois de... “tem manga di sabe sabe”... ela precisa de... está na altura de... “conversa giro”... e o irmão Cifra é que... fica no Guiné, “ca bai” no Portugal..., e quando se despedia, agarravam-lhe na mão e diziam, Cifra “ca bai”, e davam-lhe “mantenhas”, e às vezes até ficavam “tchora”. Bem, é melhor ficarmos por aqui, pois o Cifra, está com um pressentimento, que os seus amigos antigos combatentes e não só, já estão a sorrir com alguma maldade e a pensar coisas, que não eram.


Mas adiante, pois já nos estamos a desviar do principal, que era aquela garotada.
As crianças tocavam em tudo o que reluzisse da farda do Cifra, como por exemplo a fivela do cinto, os emblemas da boina, os ilhós das botas, os botões, o relógio de pulso, que algumas vezes usava, e faziam mesmo guerra, entre elas para andarem em redor do Cifra. Numa dessas vezes, estando elas em pleno convívio, e com alguma algazarra própria de crianças, de repente, desaparecem, começando a correr, cada uma para junto da sua “morança”.


O Cifra admirado com esta situação, abre os braços e pergunta a uma das “bajudas” que estavam presentes, qual o motivo desta atitude, e uma logo lhe respondeu, numa linguagem que se compreendia perfeitamente:
- O lobo do mato que come criança, anda por aí!

Fazendo um gesto em círculo com o braço, e o lobo do mato, a que se referia a “bajuda”, era uma hiena que há algum tempo andava a rondar a aldeia, e diziam que já tinha levado um bebé a uma mãe menos cautelosa.

O Cifra, como não tinha ouvido nenhum ruído, nem nenhuma movimentação em seu redor, ficou admirado como era possível as crianças, foto com o Cifra em cima, terem dado pela presença da referida hiena. Ainda hoje não sabe, só tem uma explicação, talvez o olfacto ou o instinto natural de protecção que um ser humano tem, mas só sensível em alguns. Era mesmo uma hiena, pois passados uns minutos ela passou um pouco ao longe, com o rabo curto, caído e quase entre as patas traseiras.

O Mamadú, um caçador que costumava passar as madrugadas esperando que os animais viessem beber a uma pequena bolanha que havia para os lados de Porto Gole, onde caçava as suas prezas, um dia apresenta-se no aquartelamento, dizendo:
- Pessoal vai buscar lobo do mato que está morto e não come mais criança!

E lá foi a caminho da casa do Libanês, levando outra preza que era uma gazela morta, pendurada à tiracolo, pela levou uma nota de cinquenta pesos, embrulhadinha e metida na sacola do seu farnel, onde não faltava coca que mascava quase vinte e quatro horas por dia.

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10773: Do Ninho D'Águia até África (33): O Grupo do Cifra (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10784: (Ex)citações (204): Razões portuguesas e razões guineenses (João Meneses / Cherno Baldé)

1. Resposta do João Meneses [, fo to ao lado, ] ao comentário do Cherno Baldé ao poste P10769 (*)


Data: 7 de Dezembro de 2012 23:54

Assunto: Resposa a comentário de Cherno Baldé


Caro Luís e Carlos

Deixo exclusivamente ao vosso critério, em vez de o fazer directamente, a publicação da resposta (a seguir) que gostaria de dar a Cherno Baldé, critério que são vocês os únicos indicados para decidir.

Na actualidade:

1 - Sempre fui e serei Português (com muito orgulho)

2 - Cherno Baldé é Guineense (certamente com muito orgulho)
No tempo da guerra éramos todos Portugueses, independentemente de conceitos diversos sobre o tema.

Segue a minha resposta.

Um grande abraço, Luís e Carlos

2º TEN FZE João Carvalho Meneses
_________________________
Em resposta a Cherno Baldé [, foto à direita] (**):

Desejo-lhe a melhor sorte da vida. Não o conheço a si, nem me conhece igualmente a mim, como prova o seu comentário. Logicamente que o Zé Macedo nada tem a haver com isto, conforme esclarece, e oportunamente, o Luís Graça, estando ele totalmente isento, por direito, e como tal sugiro que lhe apresente desculpas, ou admita que se enganou. Bastava que antes de escrever, tivesse lido com mínima atenção. Levou-o simplesmente o ataque. Do que escrevo, sou eu o único responsável, conhecendo que por vezes, para que todas as sensibilidades fiquem esclarecidas, para dizer uma única palavra, deva fazer uma explicação do sentido que essa mesma palavra pretende.

Se esse comentário se dirigiu ao meu artigo, certamente que sim, caro Baldé. Mas ataque, o conceito e não a pessoa. Não distingo, nem sequer admito que eu o pudesse fazer, entre o PAIGC e o POVO da Guiné Bissau, dado que num estado democrático, é o Povo que elege (ou deve eleger) qual o partido ou os partidos que o devem governar. As lutas internas dos partidos deveriam só a eles dizer respeito, não tendo o direito de fazer sofrer um Povo inteiro, ao tentarem impor-se. Posso extrapolar para qualquer povo. Acrescento qu, e para além da linha PAICG, existem outras, e que é o povo que as escolhe. Não entro, aqui, em análises políticas, por saírem fora do interesse deste espaço e do meu próprio.

Assim, com esta introdução, afirmo-lhe que o PAIGC não tem a importância que o povo tem. Só o tem, se for eleito e o servir na realidade. Vê qual a ordem de prioridades?

Sobre a existência de lutas tribais, já Amílcar Cabral, inconfesso defensor da Guiné e seu Povo, reconhecia essa evidência, derivada de variadíssimos factores, entre eles as diferentes crenças religiosas e comunicação. Verifique-se primeiro: O território da Guiné Bissau diminui 1/3 entre a maré vazia e a cheia. As vias de comunicação são dificílimas de implantar dado que, de um ponto a outro, se tem que contornar bolanhas extensas, aumentando exponencialmente as distâncias. A comunicação entre as diversas ilhas, necessitariam de um serviço minimamente eficiente de meios de transporte, marítimos e fluviais. Os recursos naturais têm limitados meios de produção, etc, etc, que saberá mais aprofundadamente do que eu.

Quanto à droga, está à vista. É organizada por estrangeiros que se servem da Guiné, mas que acabam por os envolver. Não são os Guineenses que plantam, fornecem e distribuem a droga. O dinheiro fácil, corrompeu alguns que, por razão da movimentação dos capitais envolvidos, tentam impor à política a facilitação do pretendido. Estudos internacionais sobre este problema já reconheceram a sua existência, a razão da mesma e o descontrolo.

Quanto ao "está-lhes no sangue", referi-me às evidências do que tem acontecido nas classes dirigentes, até à data, não desde a autoproclamação da Independência, mas a partir da saída dos Portugueses.

Repare, tudo isto, à revelia do Povo.

Dou por finda a minha explicação sobre o que penso da Guiné, desejando a todos os Guineenses que consigam entender-se e estabilizar, para que o Povo tenha a legítima dignidade que ele merece.

Não me leve a mal que escreva o que penso. Não pretendo ofender nenhuma sensibilidade. No tempo em que estive na Guiné morreram Portugueses de várias cores incluindo camponeses.

Com respeito

João Carvalho Meneses

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Nota do editor:


(*) Vd. poste de 7 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10769: Tabanca Grande (371): João Carvalho Meneses, ex-2º TEN FZE RN, DFE 21, 1972, grã-tabanqueiro nº 591

(...) (i) Comentário de Cherno Baldé,com data de 7/12/2012:

Caro João Meneses,

"(...)aquela terra está ainda muito longe da calma e estabilidade, com sucessivos golpes. Infelizmente está-lhes na massa do sangue, tanto pelas guerras étnicas, como pelo dinheiro fácil - a droga, como também por ganâncias pessoais".

Esta frase cega, que não faz nenhuma diferença entre o PAIGC e os cidadãos da Guiné-Bissau, vinda de um português de origens caboverdianas e que fez a guerra no território que hoje considera violenta e cujos habitantes têm a violência no sangue, é no mínimo infeliz e lamentável.

O FZE do DFE, Tenente Meneses, hoje advogado, tinha a obrigação de conhecer bem a história da Guiné, ou melhor, da Guiné de Cabo-Verde e saber quem, na verdade, semeou, ao longo dos séculos nos rios da Guiné, ou ainda trás no sangue os germes da intriga étnica e da violência.

Tanto assim que o próprio nos esclarece melhor quais as suas origens e a vocação da sua familia:

"(...) Meu Bisavô, meu Avô também morreu em Angola, etc. Família, sabes. (...)".

Afinal, quem trás a guerra e a violência na massa do sangue?

São os Guinenses, concerteza. Quem havia de ser?

Cherno Baldé. (...)

(...) (ii) Novo comentário do Cherno Baldé, com data de 10/12/2012

Caro Luis e amigos da TG,

Desculpem esta recepção um tanto crispada ao João Meneses que confundi com o José Macedo, mas a intenção foi chamar a atenção sobre a ambiguidade de certas frases e discursos que, não sendo intencionais, acabam em generalizações abusivas.

Na Guiné nunca houve guerras étnicas, pois aquilo que se considera como tal, por exemplo entre fulas e mandingas, na minha opinião, era muito mais que isso, porque dificilmente se poderá tomar cada um destes grupos simplesmente como uma etnia. Mas isto é outra história.

Desejo boas vindas ao amigo João Meneses a nossa Tabanca Grande porque eu sei que ele gosta da Guiné e dos Guineenses e aproveito dizer-lhe que tivemos familiares integrados nos FZE (não sei se no 21 ou 22) dos quais me lembro do Sedjali Embaló, preso e morto nos primeiros anos após a independencia.

Cherno Baldé

(**) Último poste da série > 3 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10757: (Ex)citações (203): O "fado das comparações"... ou o humor sarcástico do Cancioneiro do Niassa(Luís Graça)

Guiné 63/74 - P10783: Blogoterapia (219): Reflexão sobre a nossa condição militar (António Melo, camarada da diáspora)

1. Mensagem, de 1 do corrente, do António Melo (ex-1.º Cabo Rec Inf,  BCAÇ 2930, Catió e QG, Bissau, 1972/74), camarada que vive em Espanha [, foto à direita]:
Hoje quero falar um pouco sobre as verdades do passado, presente e futuro dos ex-militares que na sua juventude partiram para uma aventura desconhecida, que para uns foi enriquecedora, para outros nem fu nem fa, para outros amarga e para alguns, não poucos , foi o final da sua curta vida (e que aqui rendo a minha homenagem a esses valorosos caídos).

Hoje todos nos somos  esquecidos  pela classe politica que nos governa.
  
Mas vou explanar-me sobre o fictício mas que foi um extrato retirado de cada um de nós, ex-militares, e que ao lê-lo cada um extraia a parte  que lhe corresponde da verdade.

E que assim este texto seja de todos nós ex-soldados do Exército, Marinha ou  Força Aérea,  quer tenham sido praças, sargentos ou oficiais, hajam servido nos comandos, fuzileiros, paraquedistas ou tropa regular, e de todos os que estavam na frente de combate e dos que estavam na cidade no ar acondicionado como assim já aqui li algumas vezes.

Mas que,  sem esses que estavam na cidade,  ns os que estávamos na frente de combate não sobreviviríamos porque nos faltaria a logistica de apoio, como as munições, os conbustíveis  para a viaturas, os alimentos,  a organização de comando e o correio das nossas famílias que tanto apreciávamos e que era para nós o ar que necessitávamos para continuar a viver e não me quero alongar mais porque era incomensurável o labor que faziam para podermos  sobreviver.

E que ao ler este,  saibam que aqui inclu0 a todos que tenham servido Portugal em Cabo Verde, Guiné, São Tome e Príncepe, Angola, Moçambique, Índia, Macau ou Timor,  para todos os meus respeitos.

Um dia partia um jovem vestido de verde, azul ou branco,  com sua mochila ao ombro e uma mala na mão,  caminhava com passo seguro,  cabeça baixa e por seu rosto lhe caíam as lágrimas e sem olhar para trás,  pois nesse momento não queria ver o rosto dos que deixava destroçados e de rastros, sua mãe,  seu pai, seus irmãos,  tios,  primos,  vizinhos e amigos, e que que aos gritos pronunciavan o seu nome.

 Partia em direção à sua unidade  e no dia seguinte era o embarque  rumo a África.
  
No dia seguinte o embarque e a viagem. Para África,  claro está.   

E cada um que idealize a sua,   e já chegados  ao seu destino  lhe foi dado o seu lugar na unidade que lhe tocou, para uns um aquartelamento adequado,  para outros umas tabancas e ainda para outros uma árvore, uma arma, uma pá e uma pica e agora...  vai à vida que a tropa manda desenrascar.

Já acomodado a sua nova vida, pára. E pensa um pouco.

Mas de verdade,
 o que faço eu aqui???????'??????????????? 
aqui nao perdi nada!!!!!!!!! 
por isso nada posso encontrar!!!!!!!,
lutar, combater, morrer ou ser morto, porquê? 
se esta gente não me fez nada,   porque tenho eu que lutar? 
a mim sempre me ensinaram que tens que lutar pelo que é teu,
e isto não é meu? 

E de momento voltou à realidade e se deu conta que havia passado quase uma hora, rebobinou os seus pensamentos e encontrou a resposta:
- Sim,  é verdade,   tenho que combater, lutar,  porque e a minha vida é essa,  sim que é minha e está aqui.

Assim foram passando dias, meses e anos,   lá foi vivendo, lutando,  recebendo o correio que tanto adorava da família. E asim passa o tempo e, quase chegada a hora do regresso, ,cada vez e maior o aperto que sente dentro de si porque as saudades são muitas e quer ver a família e agora que lhe restam poucos dias para os ver adopta todas as cautelas para que nada lhe passe  porque lhe vem a mente alguns dos camaradas que como ele para ai foram e ja nao estao partiram para uma viagem sem retorno uns por acidente outros por enfermidade e outros na frente de combate.
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Se termina o tempo e  são substituídos por outros,   chega a hora do regresso e lá vem o jovem.  Ao chegar é recebido por sus familiares e amigos,  agora já um homem curtido,  endurecido pelo que representou aquela estadia em África. Os primeiros dias vai visitando os sítios que costumava frequentar antes da vida militar, em alguns casos entra a medo,

Não  é medo que lhe possam fazer mal,  mas porque não quer aceitar a realidade que alguns dos amigos vizinhos ou conhecidos ou até   pessoas com que pouco havia tratado,  também já partiram uns que morreram,  outros que imigraram,  mas assim é a vida e,  aos poucos, vai assumindo a realidade porque quando partiu deixou uma realidade e agora encontra outra.

Dias depois começa a pensar o que vai fazer da nova vida pois nada é o mesmo,  a empresa onde trabalhava fechou as portas e ele tem de tomar uma decisão.

De todos esses que regressaram uns continuam seus estudos que tiveram que interromper para cumprir o serviço militar,   outros  voltam aos mesmo posto de trabalho que deixaram,  outros que não tiveram tanta sorte e a sua cabaça não aguentou  foram para lá uns homens com todas as faculdades mentais intactas e voltaram feitos farrapos, a sua cabeça já não é a mesma e se lançaram às ruas da cidade uma vida sem rumo. Outros há que seguiram a vida militar, outros ainda deles optaram pela imigração e assim alguns se encontram hoje repartidos pelos quatro cantos do mundo desde a Patagónia ao Canada, desde as gelidas terras do norte da Europa  África, Austrália e países asiáticos,  nunca mais se voltaram a ver aqueles que um dia e por determinado tempo foram camaradas,  viveram melhor ou pior, mas da mesma maneira sofreram choraram ou riram juntos.

Formaram um lar,  casaram, vieram os filhos e os netos,  hoje gente com o cabelo prateado, vamos sendo cada vez menos.

Agora, caros amigos, tabanqueiros,  deram-nos estes avanços técnicos  e estamos aqui reunidos ou atabancados,  como queiram.

Aquele jovem és tu,   sou eu e somos todos. Espero um dia poder estar num conivio e que possamos falar de coisas alegres e tristes mas isso só a vida nos dirá o que nos reserva.

Um grande abraço a todos e para ti amigo, Carlos, um muito especial. António Melo
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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10534: Blogoterapia (218): Voltei ao Éden (Felismina Costa)