Do Ninho D'Águia até África (39)
Já lá ia mais de ano e meio que vivia no aquartelamento em Mansoa, vamos descrever um dia normal do Cifra, que já conhecia o local e as pessoas.
Creio que este texto, fará relembrar todos os companheiros, que na mesma situação, estiveram ali estacionados. Embora estivesse rodeado de militares e equipamento bélico, o dia foi passado sem ataques ao aquartelamento, ou qualquer outro incidente, e estando de folga das suas tarefas, portanto cá vai.
Levanta-se mais ou menos pelas seis e meia, sete horas da manhã, que era quando alguns camaradas do pelotão de morteiros se preparavam para saírem em patrulha, não faz a cama, pois a partir de um certo tempo de estadia em cenário de guerra era um “desleixado”, como dizia o Trinta e Seis, mas diziam que dava sorte, deixando a cama por fazer, única e simplesmente fecha o mosquiteiro, veste os calções, coloca nos pés umas tamancas, que lhe fez o Mister Hóstia, com umas tábuas e uma tira de lona, que faziam de dobradiças de uma caixa de munições, coloca ao ombro o farrapo branco e encardido, que fazia de toalha, que em novo se chamava oficialmente toalha, e era feito de pano cru, pega na barra de sabão “Lifebuoy”, que tinha comprado ao achinesado “Life Boy”, mas que ficou a dever, pois só acertava contas no fim do mês quando recebia o “patacão”, mas apontou a lápis numa tábua de uma caixa de granadas que fazia de mesinha de cabeceira, pois o achinesado do “Life Boy” não era lá muito certo nas contas de fiado, pelo menos no parecer do “Marafado”, e encaminha-se para um local, na parte mais a sul do aquartelamento, onde tinham sido abertos três furos de água, que vinha quente, mesmo muito quente, a cheirar a enxofre ou coisa parecida, e onde havia alguns bidões vazios de gasolina, gasóleo ou mesmo óleo, que tinham sido lavados e estavam já cheios dessa água, do dia anterior, e estava morna, onde o Cifra toma banho nu ao ar livre.
Uma vez aconteceu, àquela hora cedo da manhã, o Cifra ir lá tomar banho com outros companheiros, onde ia o Curvas, alto e refilão, aparecendo por lá os tais polícias que faziam interrogatórios, e se passeavam pelo aquartelamento, creio que nessa altura andavam a fiscalizar a instalação do arame farpado, e o Curvas, alto e refilão ao vê-los, chama-os, e com o seu ar agressivo, na sua linguagem, toca com as duas mãos nos seus órgãos genitais, e diz, numa voz, que quase se ouvia em todo o aquartelamento:
- Venham cá filhos da p..., interrogar o Cifra! O que vocês querem é disto, cabrões, cornudos, qualquer dia faço-vos a folha!
Os polícias, começaram a caminhar rápido, sempre encostados ao arame farpado, em direcção à saída do aquartelamento, talvez já tivessem conhecimento da pessoa que era o Curvas, alto e refilão.
Mas continuando com a narrativa, toma banho, regressa ao dormitório, por vezes vestia roupa lavada, outras não, calça as botas de lona, coloca um cigarro “três vintes” na boca e dirige-se à cozinha, onde o “Arroz com pão”, gravura ao lado, lhe dá uma caneca de café, sem açúcar, que tirava ao de cima, de uma enorme panela.
Senta-se cá fora, bebe o café e pensa como devia estar o tempo lá na sua aldeia em Portugal, naquela altura da primavera, com um sol brilhante, lindo e sem aquela humidade que naquele momento já se fazia sentir.
Enfim, com estes pensamentos, dirige-se à aldeia que existia próximo do aquartelamento, visita o tal africano que como sempre estava deitado na rede, e que fazia os tais cigarros especiais. O Cifra, levanta a mão e diz-lhe “olá”. Ele vendo o Cifra àquela hora da manhã, sem dizer nada vai dentro da “morança”, trás uma mão cheia de cigarros, de onde o Cifra tira dois, que não fumou, guardando-os para mais tarde.
Cá fora da morança, duas das suas mulheres tentavam arrumar alguma lenha (foto em cima com o Cifra no meio delas), passa pela vila, vai ao mercado (foto em baixo), ver os produtos que estavam para venda.
Já aqui falámos de outras vezes, viu os tais cães vadios, e os africanos, alguns quase nus, outros vestidos com uma vestimenta que tinha sido branca, há algum tempo atrás, diziam que eram “os Gilas”, que lhes cobria o corpo até aos pés, quase todos descalços, a falarem e sempre a mascarem algo, que cuspiam de vez em quando, sem repararem em ninguém, e sempre que encaravam com um militar, calavam-se, virando a cara para outro lado. Também havia mulheres com um balaio de qualquer coisa à cabeça, que equilibravam como se estivessem num circo, e crianças com o ranho no nariz e o dedo na boca, agarradas às pernas da mãe. O Cifra, que quase sempre andava com rebuçados no bolso, dava-os a essas crianças, que sempre que o encontravam se aproximavam dele, outras ainda bebés, amarradas com um pano largo às costas das mães. Quando choramingavam, as mães ouvindo o choro, passavam por baixo do braço uma das mamas para trás, para que o bebé se amamentasse e se calasse.
Seguidamente passa pela casa onde está uma espécie de câmara municipal e diz “olá” ao funcionário, que é seu amigo, também passa pelos correios e compra dois selos para colocar numas cartas que quer mandar com fotografias para os seus pais. Estes selos têm o formato de losangos e representam animais, são compridos, tendo de ser colocados no envelope, antes de escrever a direcção, pois ocupam muito espaço.
Vai em frente, passa pela loja do Libanês, para comprar rebuçados, não era porque precisasse, mas sempre via as filhas do Libanês (gravura em baixo), continua caminhando, e mais à frente, junto ao rio, onde estão algumas canoas, umas em terra seca, outras na água, são quase todas do Iafane, africano seu amigo, que lhe chama “irmão”, que faz o transporte de pessoas e bens, que vieram trazer os seus produtos, para vender no mercado ou na Casa Ultramarina. O Cifra reparou, que alguns desses africanos, quando viajam na canoa, vão nus, só colocando uma tanga, depois de as atracar.
Foi à sede do clube de futebol, deu dois dedos de conversa com o rapaz africano que servia no bar, muito educado, que já sabia qual a bebida preferida de quase todos os militares, ao qual tratava pelo nome, pois já os conhecia, mas que neste momento andava a varrer, com uma vassoura feita de ramos de alguns arbustos, cá fora, o chão térreo, levantando algum pó, portanto sujando mais do que limpava. Questionado pelo Cifra porque fazia tanto pó, ele respondeu que o “Homem Grande”, seu pai, lhe dizia que o pó e a lama faziam bem à pele e a protegia do sol. O Cifra, quando por vezes encontrava alguém que quisesse jogar às cartas, lá ia numa “sueca” ou numa “bisca lambida”, quase sempre na disputa de uma cerveja, até que chegava a hora de ir à “Bóia”, como dizia o saudoso cabo Bóia, que era a refeição do meio dia, que o Cifra, quase nunca comia, pois esperava pelo fim dela para ir visitar o sargento da messe, que sempre guardava qualquer coisa do almoço, e que sabia que o Cifra gostava.
Aí ficava por quase toda a tarde, ajudando nas contas ou simplesmente conversando, dava um cigarro dos especiais ao sargento da messe, guardando o outro. Quando já era um pouco mais fresco, quase no fim da tarde, que era quando os mosquitos apertavam mais, mas que pouca diferença já fazia, pois a pele do corpo já estava rija e curada, na companhia do Setúbal e do Curvas, alto e refilão, iam dar uma volta pela ponte e admirar o rio (foto em baixo), que adorava na altura da maré cheia, pois parecia o rio da vila a que a sua aldeia do vale do Ninho d’Aguia, pertencia, por altura do inverno quando a água das chuvas, vinda da montanha, o fazia transbordar e alagar os campos vizinhos.
O pôr do sol era um espectáculo lindo com o astro rei a brilhar sobre o manto de água reluzente, pois na sua superfície existia sempre uma camada de lama. Nessa altura fumavam o cigarro especial, entre os três, sentados na beira da ponte, e talvez por isso, o cenário se tornasse encantador, tal qual como se viam nas películas, que às vezes se exibiam na sede do clube de futebol.
Ao final, chegavam ao aquartelamento, passavam pela cozinha, onde o Cifra sempre roubava um naco de pão, sobre o olhar do “Arroz com pão”, que sabia que o Cifra fazia isso quase todos os dias, por isso tinha o pão, sempre no mesmo sítio, que era numa espécie de banca de cozinha, mas muito mal feita, com os restos de umas tantas caixas de munições, bebendo cada um uma cerveja, que já tinham trazido da messe dos sargentos, vinham para o dormitório, onde o Cifra ouvia as aventuras dos que tinham saído em patrulha, ou em alguma operação de destruição de bases inimigas, e adormecia, quase sempre tarde, quando o último terminava de falar, ou alguém deixava de ressonar.
(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 26 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10866: Do Ninho D'Águia até África (38): ...a guerra e o amor (Tony Borié)