1. Mais episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, que retoma a sua actividade no seu aquartelamento.
Do Ninho D'Águia até África (39)
Já lá ia mais de ano e meio que vivia no aquartelamento em
Mansoa, vamos descrever um dia normal do Cifra, que já conhecia
o local e as pessoas.
Creio que este texto, fará relembrar todos
os companheiros, que na mesma
situação, estiveram ali
estacionados. Embora estivesse
rodeado de militares e
equipamento bélico, o dia foi
passado sem ataques ao
aquartelamento, ou qualquer
outro incidente, e estando de
folga das suas tarefas,
portanto cá vai.
Levanta-se mais ou menos
pelas seis e meia, sete horas
da manhã, que era quando alguns
camaradas do pelotão de morteiros se
preparavam para saírem em
patrulha, não faz a cama, pois
a partir de um certo tempo de
estadia em cenário de guerra
era um “desleixado”, como dizia o Trinta e Seis, mas diziam que
dava sorte, deixando a cama por fazer, única e simplesmente
fecha o mosquiteiro, veste os calções, coloca nos pés umas
tamancas, que lhe fez o Mister Hóstia, com umas tábuas e uma
tira de lona, que faziam de dobradiças de uma caixa de munições,
coloca ao ombro o farrapo branco e encardido, que fazia de
toalha, que em novo se chamava oficialmente toalha, e era feito
de pano cru, pega na barra de sabão “Lifebuoy”, que tinha
comprado ao achinesado “Life Boy”, mas que ficou a dever, pois só
acertava contas no fim do mês quando recebia o “patacão”, mas
apontou a lápis numa tábua de uma caixa de granadas que fazia
de mesinha de cabeceira, pois o achinesado do “Life Boy” não
era lá muito certo nas contas de fiado, pelo menos no parecer do
“Marafado”, e encaminha-se para um local, na parte mais a sul do
aquartelamento, onde tinham sido abertos três furos de água, que
vinha quente, mesmo muito quente, a cheirar a enxofre ou coisa
parecida, e onde havia alguns bidões vazios de gasolina, gasóleo
ou mesmo óleo, que tinham sido lavados e estavam já cheios dessa
água, do dia anterior, e estava morna, onde o Cifra toma banho
nu ao ar livre.
Uma vez aconteceu, àquela hora cedo da manhã, o Cifra ir lá
tomar banho com outros companheiros, onde ia o Curvas, alto e
refilão, aparecendo por lá os tais polícias que faziam
interrogatórios, e se
passeavam pelo
aquartelamento, creio que
nessa altura andavam a
fiscalizar a instalação do
arame farpado, e o Curvas,
alto e refilão ao vê-los,
chama-os, e com o seu ar
agressivo, na sua
linguagem, toca com as
duas mãos nos seus órgãos
genitais, e diz, numa voz,
que quase se ouvia em todo
o aquartelamento:
- Venham cá filhos da p..., interrogar o Cifra! O que vocês
querem é disto, cabrões, cornudos, qualquer dia faço-vos a
folha!
Os polícias, começaram a caminhar rápido, sempre encostados
ao arame farpado, em direcção à saída do aquartelamento, talvez
já tivessem conhecimento da pessoa que era o Curvas, alto e
refilão.
Mas continuando
com a narrativa, toma
banho, regressa ao
dormitório, por vezes
vestia roupa lavada,
outras não, calça as
botas de lona, coloca
um cigarro “três
vintes” na boca e
dirige-se à cozinha,
onde o “Arroz com
pão”, gravura ao
lado, lhe dá uma
caneca de café, sem
açúcar, que tirava ao
de cima, de uma enorme panela.
Senta-se cá fora, bebe o café e
pensa como devia estar o tempo lá na sua aldeia em Portugal,
naquela altura da primavera, com um sol brilhante, lindo e sem
aquela humidade
que naquele
momento já se
fazia sentir.
Enfim, com
estes
pensamentos,
dirige-se à
aldeia que
existia próximo
do
aquartelamento,
visita o tal
africano que como
sempre estava
deitado na rede,
e que fazia os
tais cigarros especiais. O Cifra, levanta a mão e diz-lhe
“olá”. Ele vendo o Cifra àquela hora da manhã, sem dizer nada vai
dentro da “morança”, trás uma mão cheia de cigarros, de onde o
Cifra tira dois, que não fumou, guardando-os para mais tarde.
Cá
fora da morança, duas das suas mulheres tentavam arrumar alguma
lenha (foto em cima com o Cifra no meio delas), passa pela vila, vai ao mercado (foto em baixo), ver os produtos que estavam para
venda.
Já aqui falámos de outras vezes, viu os tais cães
vadios, e os
africanos, alguns
quase nus, outros
vestidos com uma
vestimenta que tinha
sido branca, há algum
tempo atrás, diziam
que eram “os Gilas”,
que lhes cobria o
corpo até aos pés,
quase todos
descalços, a falarem
e sempre a mascarem algo, que cuspiam de vez em quando, sem
repararem em ninguém, e sempre que encaravam com um
militar, calavam-se, virando a cara para outro
lado. Também havia mulheres com um balaio de
qualquer coisa à cabeça, que equilibravam como se estivessem num circo, e crianças com o ranho no nariz e
o dedo na boca, agarradas às pernas da mãe. O Cifra,
que quase sempre andava com rebuçados no bolso, dava-os a
essas crianças, que sempre que o encontravam se
aproximavam dele, outras ainda bebés, amarradas com
um pano largo às costas das mães. Quando choramingavam, as mães ouvindo o choro, passavam por baixo do braço uma das mamas para trás, para que o bebé se amamentasse e se calasse.
Seguidamente passa pela casa onde
está uma espécie de câmara municipal e diz “olá” ao funcionário,
que é seu amigo, também passa pelos correios e compra dois
selos para colocar numas cartas que quer mandar com fotografias
para os seus pais. Estes selos têm o formato de losangos e representam animais, são compridos, tendo de ser colocados no
envelope, antes de escrever a direcção, pois ocupam muito espaço.
Vai em frente, passa pela loja do Libanês,
para comprar rebuçados, não era porque precisasse, mas sempre
via as filhas do Libanês (gravura em baixo), continua caminhando,
e mais à frente, junto ao rio, onde estão algumas canoas, umas
em terra seca, outras na água, são quase todas do Iafane,
africano seu amigo, que lhe chama “irmão”, que faz o transporte
de pessoas e
bens, que vieram trazer
os seus produtos, para
vender no mercado ou na
Casa Ultramarina. O
Cifra reparou, que
alguns desses africanos,
quando viajam na canoa,
vão nus, só colocando
uma tanga, depois de
as atracar.
Foi à
sede do clube de
futebol, deu dois dedos
de conversa com o rapaz
africano que servia no bar, muito educado, que já sabia qual a bebida preferida de
quase todos os militares, ao qual tratava pelo nome, pois já os
conhecia, mas que neste momento andava a varrer, com uma
vassoura feita de ramos de alguns arbustos, cá fora, o chão
térreo, levantando algum pó, portanto sujando mais do que
limpava. Questionado pelo Cifra porque fazia tanto pó, ele
respondeu que o “Homem Grande”, seu pai, lhe dizia que o pó e a
lama faziam bem à pele e a protegia do sol. O Cifra, quando por vezes
encontrava alguém que quisesse jogar às cartas, lá ia numa
“sueca” ou numa “bisca lambida”, quase sempre na disputa de uma
cerveja, até que chegava a hora de ir à “Bóia”, como dizia o saudoso
cabo Bóia, que era a refeição do meio dia, que o Cifra, quase nunca
comia, pois esperava pelo fim dela para ir visitar o
sargento da messe, que sempre guardava qualquer coisa do almoço,
e que sabia que o Cifra gostava.
Aí ficava por quase toda a
tarde, ajudando nas contas ou simplesmente
conversando, dava um cigarro dos especiais ao sargento da messe,
guardando o outro.
Quando já era um pouco mais fresco, quase no fim da tarde,
que era quando os mosquitos apertavam mais, mas que pouca diferença
já fazia, pois a pele do corpo já estava rija e curada, na
companhia do Setúbal e do Curvas, alto e refilão, iam dar uma
volta pela ponte e admirar o rio (foto em baixo), que adorava na
altura da maré cheia, pois parecia o rio da vila a que a sua
aldeia do vale do Ninho d’Aguia, pertencia, por altura do
inverno quando a água das chuvas, vinda da montanha, o fazia
transbordar e alagar os
campos vizinhos.
O pôr do sol era um
espectáculo lindo com o astro rei a
brilhar sobre o manto de água
reluzente, pois na sua
superfície existia sempre
uma camada de lama. Nessa
altura fumavam o cigarro
especial, entre os três,
sentados na beira da ponte, e
talvez por isso, o cenário se
tornasse encantador, tal qual
como se viam nas películas,
que às vezes se exibiam na sede
do clube de futebol.
Ao final, chegavam ao aquartelamento, passavam pela cozinha,
onde o Cifra sempre roubava um naco de pão, sobre o olhar do
“Arroz com pão”, que sabia que o Cifra fazia isso quase todos os
dias, por isso tinha o pão, sempre no mesmo sítio, que era
numa espécie de banca de cozinha, mas muito mal feita, com os
restos de umas tantas caixas de munições, bebendo cada um uma
cerveja, que já tinham trazido da messe dos sargentos, vinham
para o dormitório, onde o Cifra ouvia as aventuras dos que
tinham saído em patrulha, ou em alguma operação de destruição de
bases inimigas, e adormecia, quase sempre tarde, quando o último
terminava de falar, ou alguém deixava de ressonar.
(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 26 de Dezembro de 2012 >
Guiné 63/74 - P10866: Do Ninho D'Águia até África (38): ...a guerra e o amor (Tony Borié)