Afastou-se apressado. Aiveca foi fazer a apresentação da praxe ao comandante do RI 1.
– Já sei quem você é. O coronel da EPI falou-me de si.
O coronel carregou num botão que tinha na secretária e entrou logo a seguir uma ordenança.
– Vai dizer ao capitão Ferreira para chegar aqui – ordenou-lhe.
Bonito, a minha fama já chegou aqui, pensou Aiveca. O coronel continuava.
– Você vai ficar na CCS da unidade, o capitão Ferreira é o comandante. Ele, depois, vai dar-lhe a indicação das suas tarefas.
O capitão compareceu nessa altura.
– Ó Ferreira, está aqui o aspirante Aiveca, tem a especialidade de atirador mas vai ficar na CCS. Integre-o lá e diga-lhe o que é que ele vai fazer – parou um pouco – e , olhe, depois diga a alguém para o levar às instalações dos oficiais. É isto, podem ir.
O Ferreira era um tipo gorducho e andava com ar pesadão. Depois da sala contígua ao gabinete do coronel enveredaram pelo corredor que lhe estava em frente. O capitão balançava o corpanzil e ele, magro, ia ainda estilo cadete instruendo, quase que em marcha de desfile. O capitão parou quando se cruzaram com um sargento e virou-se para ele:
– Ó Faustino, arranje aí um faxina que vá buscar a mala do nosso aspirante que está na porta d’armas. Que a leve até à porta do meu gabinete e espere lá.
Chegado ao gabinete, o capitão esparramou-se ruidosamente na cadeira fazendo-a gemer.
– Então, nosso aspirante, o que é que sabe fazer?
Que raio de pergunta, apeteceu-lhe dizer. Mas teve calma.
– Meu capitão, eu sei fazer o que aprendi na EPI.
É mesmo palerma, disse Aiveca para si mesmo. Aqui na tropa e para a tropa o que é que acha que eu faça?
– Isso para aqui não adianta nada, só quando for para o Ultramar… talvez. O que eu quero saber é o que fazia na vida civil.
Não sabia o que era isso de CCS, nunca ouvira falar de tal em Mafra. Mas, pronto, nada do que aprendera servia ali. A expressão Ultramar é que o alertou.
– Diga lá – insistiu ele.
– Desculpe, meu capitão, estava a pensar – não lhe disse em quê –, fui estudante na Faculdade de Letras, foi o que fiz.
Não tinha nada que saber que trabalhara num armazém, senão ainda o ligava à malfadada arrecadação de material, nem que estivera no seminário, se calhar ainda o punha a organizar missas e coisas do género.
A resposta pareceu agradar ao capitão.
– Ainda bem. Ando há algum tempo a pensar numa coisa e você é a pessoa indicada para isso, estou a ver. Fica encarregado de fazer um jornal de parede para a companhia. Venha cá depois do almoço para falarmos sobre os conteúdos desse jornal. Além disso, é claro, vai ser integrado nas escalas de serviço dos oficiais da unidade e da companhia. Prontos, veja se o faxina já está aí fora com a sua bagagem e diga-lhe para ir consigo até aos quartos dos oficiais. Você vai ficar num dos que há com duas camas, veja em qual há uma vazia.
– Meu capitão, posso fazer-lhe uma pergunta?
– Diga.
– O meu capitão falou no Ultramar de uma forma que eu fiquei com a ideia de estar decidido que eu vou para lá. Já está, meu capitão?
Mirou-o com ar de comiseração, como quem observa alguém ingénuo ou atrasado mental. Sentiu isso e ele percebeu. Falou-lhe com voz calma:
– Tem de estar preparado para tal, Aiveca. Todos estão sujeitos, muito mais você que é atirador. Estou a ver que aqueles artistas de Mafra não lhe disseram porque é que veio para aqui, enfiaram-lhe burocraticamente nas mãos a guia de marcha e disseram-lhe toca a andar, sem mais nada. Mas eu vou-lhe dizer. Você e mais três ou quatro que andam aí foram mandados para cá para ficarem à espera de ser mobilizados. Vai ficar aqui uns meses até receber ordens para se apresentar noutra unidade, até pode ser nesta, não sei, para ser integrado numa companhia operacional formada para o Ultramar. É assim. Bem, vá lá ver onde vai ficar.
Agradeceu as explicações e saiu. Não ficou admirado, já sabia o que o esperava, mas, de facto, aqueles tipos de Mafra bem lhe podiam ter logo explicado que o esquema era este.
Ao almoço, na messe de oficiais, ficou na mesa dos aspirantes, com o Gonçalves e mais outros dois. Falaram de Mafra, da «aldeia dos macacos», dos instrutores que tinham tido, de coisas agora já triviais para eles. Aiveca acabou por saber que um deles era do seu curso, tinha chegado há uns dias, tinha estado na 1ª companhia do COM, não na dele, e não o conhecia, nunca se tinham encontrado lá.
– E tu, há quanto tempo estás cá? – perguntou ao Gonçalves.
– Estamos cá há seis meses, eu e este – apontou para o que estava à frente dele.
– Mas, então, vocês devem estar a ser mobilizados, não?
– É claro. Há-de ser já um dia destes Não se esqueceram de nós, com certeza.
– Não pensei que se esperava assim tanto tempo.
– Não me digas que estás com pressa, pá. Está descansado que há-de chegar a tua vez. Não é tarde nem cedo para morrer.
– Deixa-te de agoiros, pá –disse o que estava à frente dele, batendo com os nós dos dedos na mesa. –Este gajo está sempre com estas merdas. É sempre muito animador. (...)
António Marques Lopes
Página do Facebook do A. Marques Lopes | 19 de janeiro de 2022, 22:00 e livro "Cabra Cega" (2015, pp. 160/165)