Revisão e fixação do texto: CV
Caríssimo Amigo Vicente [ou Fitas]:
De acordo com a nossa conversa telefónica de ontem, vou tentar escrever o que sei dizer, mesmo com imprecisões cronológicas, datas e ausência de muitos nomes, que durante cerca de 40 anos procurei varrer das minhas lembranças.
No entanto, os factos vividos jamais foram esquecidos, sobretudo os que foram menos maus, pelo que te narrarei e documentarei, sempre que possível, o que tu próprio testemunhaste, embora num período curto (do mesmo modo que todas as Unidades que por mim passaram, ou eu por elas passei).
Gostava ainda de referir que passei, entre a minha chegada e a despedida, cerca de 20 dias com o Pelotão Independente de Morteiros 912 e que não sei distinguir quem foram os militares (afora os 2 Cabos e 7 Soldados que sempre estiveram comigo) que pertenciam à minha Secção de 20 homens.
Após a apresentação no BCAÇ 599 e depois ao Pel Mort 912, foi-me ordenada a Missão de, por três meses, render a Secção da mesma Unidade que estava há 4 meses na Ilha do Como.
Na passagem por Bissau, foi-me ordenado, verbalmente, por Sua Ex.ª o CEM, Ten Cor Rebelo de Andrade, que:
1) - A posição do Cachil (Ilha do Como) era vital para as NT; por isso teria que usar todo o meu potencial material e humano, com os critérios que eu próprio estabeleceria;
2) - Operacionalmente, reportar-me-ia exclusivamente a Sua Ex.ª e que ninguém interferiria comigo;
3) - Que, no exterior, me aguardava um condutor para me fazer transportar ao Palácio do Governo, para receber o aval de Sua Ex.ª o Governador, Gen Arnaldo Schulz. Sua Ex.ª informou-me que, tudo quanto o CEM tinha dito, era para ser cumprido, mas que continuaria a ser ordem verbal.
Efectuei a instalação de três Morteiros, em posição adequada, após ter analisado todas as probabilidades da situação militar e do terreno, aliei os conhecimentos adquiridos e aperfeiçoados em Lamego.
Criei a minha própria Carta de Tiro para o local, inventei um transferidor de tiro (tudo tosco como o só o Português sabe fazer).
Ensaiei e esperei. Nessa Noite não tivemos visitas. Passados sete meses (sem sequer ter obtido qualquer resposta, ou comunicação do Cmdt do Pel Mort 912, acerca do que quer que fosse, inclusivamente dos Vencimentos e Pré dos Militares que estavam sob o meu Comando, desloquei-me a Catió, sendo recebido pelo 2.º Cmdt do BCAÇ 616 (?), confrontando-o com os três meses de Missão, com os Vencimentos, com a Disciplina (já não cortava o cabelo há 4 meses) e com a ameaça de agredir um qualquer Oficial, porque se isso resultou com o meu antecessor colocado em Bissau, no BSM (Furriel Miliciano Contente – já falecido), certamente também iria resultar comigo.
Tive a promessa de que iria resolver o nosso problema da Ilha do Como e a meia verdade é que apenas fomos deslocados, dois meses depois, para Cufar. Já não era tão mau, embora durasse mais quatro meses...
No Como, se exceptuássemos as rendições periódicas de Unidades, éramos flagelados todas as noites. Já nem dávamos muita importância. Apenas era muito útil para o açambarcamento de munições de morteiro, já que eram fictícios os números de disparos, porque, raciocinava eu, estávamos completamente à nossa mercê; só podíamos ter LDM durante o dia e se houvesse maré; similarmente se passava com os meios aéreos que só faziam Missões de Apoio de Fogo de dia.
Fizemos abrigos subterrâneos e aí colocávamos as nossas reservas. Nas rotações das Unidades as coisas ficavam um pouco feias. Continuava a reclamar o Pré e Vencimento, até que, finalmente, talvez pressionado por outro alguém, o nosso Alferes Rodrigues, dito Comandante do Pelotão, nos deu o ar da sua graça e enviou-nos os nossos bem merecidos Vencimentos, mas … em cheque.
Ficamos perplexos e até o 1.º Sargento da Companhia (?) ficou abismado e andou pelo aquartelamento com o braço erguido a mostrar o cheque. Só não conseguia ter um encontro, de amigos, com o Comandante Nino para lhe pedir o favor de descontar, o dito, lá por Conacri, onde ia regularmente. É de loucos.
Outrossim, ouvíamos alternada e quase continuamente a Rádio Moscovo e a Rádio Portugal Livre, esta a emitir a partir de Argel e apresentada por um distinto militar português, que havia desertado [, o Manuel Alegre].
Oficialmente, era proibido escutar estas emissoras, mas o facto é que ali se ouviam algumas verdades; era uma questão de saber separar o trigo do joio.
A 16 de Novembro de 1964, avistei dois charutos estampados no escuro do céu, de forma difusa, que aparentavam dois cigarros acesos atirados ao ar, desde o fundo do aquartelamento. A recriação, mais ou menos fiel dos Fortes de defesa contra os Índios, em que a paliçada era construída de troncos de Palmeira, que, como se sabe, são moles e duram cerca de três meses; aquelas tinham mais que isso. Portanto, eram apenas uma defesa psicológica.
Acordei. A Rádio Portugal Livre havia sido extremamente suave e comedida no seu estilo linguístico.
-Fogo! Rápido!
Os objectivos estavam todos (todos, mesmo) planeados, para obstar a continuação do fogo de Morteiro. E assim foi. Mas o caso era muito mais sério, porque deslocaram para a orla da mata muitas metralhadoras pesadas (incluindo quádruplas, destinadas a tiro antiaéreo) que nos fizeram lembrar que o pior estava para vir. A densidade de fogo era tamanha que a iluminação e as antenas do Posto de Transmissões foram destruídas. Chegaram a ter metralhadoras pesadas no perímetro interior do arame farpado (havia duas barreiras aos 30 e 60 metros).
Bem, chuva miudinha, molha tola, e as calças do camuflado completamente secas. Demos o nosso melhor, fazendo tiro, a olho, para os locais em que as pesadas cantavam e chegamos até ao incrível (perigoso e inseguro, embora tivesse a consciência disso) de fazer fogo para as pesadas, dentro do perímetro de segurança. Tínhamos os Morteiros sobreaquecidos, alaranjados…
O inesperado aconteceu. Uma granada não percutiu. Tirei o blusão do camuflado e fui afastado pelo cabo e dois soldados que me pediram para continuar com os outros dois Morteiros. A munição foi retirada com sucesso; no entanto, por precaução, colocamos a arma fora de serviço. Quando arrefecesse, logo se veria.
Foram 216 granadas, durante as duas e horas e vinte que durou o ataque. Depois, de repente, o silêncio expectante e caricato da noite africana.
Apenas nos restavam munições para, naquele rimo de fogo, mais cerca de 15 minutos. Se não fora a batota calculada... Aguardámos algum tempo e tentámos, mais vigilantes pela falha na iluminação exterior, retomar o nosso ritmo normal no meio dum escuro e sepulcral silêncio.
Voltamos ao Noticiário da Rádio Portugal Livre, que estava prestes a começar. Uma gargalhada geral ecoou por aquelas bandas. Não é que o ilustre locutor nosso conhecido, acabara de declamar: ”A Ilha do Como acaba de ser libertada. As tropas colonialistas foram completamente derrotadas. Não há sobreviventes.”
- Então, eu estou morto!
De Catió, soubemos depois, expectantes, viram os clarões, ouviram os rebentamentos e não fizeram nada; absolutamente nada, embora tivessem um Pelotão de Artilharia com duas Peças de 8.8cm e com alcance mais que suficiente para, pelo menos, desmoralizar o inimigo. Não havia comunicações, mas nada ???!!!...
Conjecturas foram mais que muitas, mas que caíam sempre no mesmo: “Não se safou ninguém!”. Eu tinha um soldado que estava em Catió, porque havia ido ao médico.
O balanço do dia seguinte, era dantesco. Massa humana com fragmentos de armas, pedaços de armas, ausência do arame farpado nas duas fiadas, a orla da mata tinha recuado uns 30 a 40 metros, porque as palmeiras ou não tinham ramagem ou estavam partidas, apenas um corpo em muito mau estado, uma PPSH e o mais espantoso, entre três poilões dispostos em triângulo e que formavam uma espécie de salão inexpugnável e a que denominávamos Enfermaria, recolhemos 2 unimogues de ligaduras sanguinolentas e alguns apetrechos médicos.
Mais nada, porque quem conhecia a mata teve todo o tempo para efectuar a sua limpeza de corpos, feridos e armamento.
Em Tite, (estive a acumular operações no BCAÇ 1860, sob as ordens do Ten Cor Costa Almeida e Major Jasmim de Freitas) procurei e descobri que o Comandante Nino levara mais de três mil homens para aquela missão. Pouca sorte a dele...
Quando foram restabelecidas as comunicações, a Guiné, no seu todo, regozijou. Dezenas de mensagens de felicitações… A esta distância, no tempo, a minha gratidão a todos os que compartilharam da nossa alegria. Já havíamos sobrevivido...
Os louros foram todos para a Companhia residente. Afinal, duma Secção de Morteiros, de dois (2) morteiros e vinte (20) homens, apenas havia dez (10) homens e três (3) Morteiros.
Que falem os responsáveis da Companhia que lá estava na época. Sinceramente gostava de conhecer o teor ou o ponto de vista tida do lado da Companhia destacada. Já foram questionados, os meus subordinados, mas nenhum se lembra da identidade da Unidade (tantas foram, as que por nós passaram…)
Os meus três Morteiros estavam com a cor característica de terem sido destemperados (anéis azulados de tons vários) cerca da zona de percussão. Valeu-nos o Mec Auto da Companhia para nos desenrascar lixa de água (a única que dispunha) e tinta dos Unimog.
Nada grave se não se soubesse. Mas com aquela cadência de tiro, cerca de cinco vezes superior ao normal, era, além de anti-regulamentar para a especificação da Arma (disciplinar, também), era esperado acontecesse, mesmo visto por um leigo.
No entanto, com ferramenta improvisada, lá estivemos todo o dia, a rectificar (com lixa de água) o tubo da arma, porque havia apertado e riscado, com o forte aquecimento que teve, e a granada não descia ao percutor.
Para testar, retiramos a espoleta e o cartucho propulsor a uma granada; quando esta começou a passar livremente, demos por terminado o trabalho. Estava como nova, operacional, e foi reintroduzida no Serviço. Nada se soube a nível oficial.
Em Cufar, repeti o estudo pormenorizado do terreno, instalei os Morteiros no local que entendi ser o adequado, ensaiei e, à semelhança da Ilha do Como, elaborei uma Carta de Tiro para os objectivos assinalados.
A situação era incómoda para a CCAV 703 (?). Tivemos um primeiro ataque e, como o terreno era bem mais aberto que no Como, tudo resultou pela positiva. A guerra desvaneceu-se.
Tentaram jogar com a CCAÇ 763 (era sempre assim, quando rodavam as Companhias).
Para mim, já era tudo automático (não simplista), porque os trabalhos de casa eram feitos previamente. Sei que causava muita confusão, mesmo a Companheiros da Especialidade, verem-me fazer fogo sem colocar o aparelho de pontaria (só era utilizado quando se alterava a posição do Prato). Sempre foi uma questão Geométrica, de pontos de referência, estacas, etc.
Tive muitas cumplicidades com o Cap Costa Campos, com quem tive o gosto e a honra de partilhar pontos de vista acerca do modo de fazer a Guerra (firmeza, flexibilidade e humanidade). Foi um grande oficial (um dos poucos oficiais que, frontalmente, valorizava e apreciava o meu trabalho e era humilde para ser capaz, com a sua formação castrense, de mo dizer de viva voz).
O que se passou para a frente, enquanto estive em Cufar, considerava eu, serem pequenas escaramuças; 4 ou 5 granadas bastavam para fazer a paz (excepções para as intervenções que a CCAÇ 763 onde tive que fazer Apoio de Fogo).
Voltei a Tite, não por vontade própria, mas porque o tempo de regresso dos meus homens chegou ao fim.
Comparativamente com o Cachil (Como), a nossa estadia em Cufar, igualmente sem qualquer conforto, eram como que de férias, descanso, tranquilidade, paz interior.
Fotos e legendas: © Santos Oliveira (2007). Direitos reservados.
Tive saudades daquela gente, naquele lugar, que respeito e admiro muito e que igualmente muito me acarinharam (eles nem sabiam quanto…)
Do meu Cmdt de Pelotão, nem sequer a dignidade duma referência, no seu Relatório Final, pelo desterro de 10 homens de quem se deveria sentir responsável. Para ele, não existimos nunca.
Estas são amostras dos episódios por que passámos.
Santos Oliveira
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Nota de CV:
(1) Vd. post de 24 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2301: Tabanca Grande (41): Santos Oliveira, 2.º Sarg Mil de Armas Pesadas Inf (Como, Cufar e Tite, 1964/66)