1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Junho de 2010:
Queridos amigos,
Acho que nos faz bem a todos rever o conjunto de depoimentos referentes à Guiné recolhidos pelo José Freire Antunes.
Sem ele, teríamos demorado mais tempo para saber que o Governo de Caetano estava a negociar com o PAIGC ou que o sistema financeiro avançava rapidamente para o colapso.
Um abraço do
Mário
A Guerra de África, 1961 – 1974, Volume II
Por José Freire Antunes
Beja Santos
A obra em dois volumes “A Guerra de África”, organizada por José Freire Antunes, obedece à metodologia designada por “história oral”, o investigador, a propósito de uma determinada época em análise, convoca protagonistas, dá-lhe voz ou socorre-se da sua escrita. Esta metodologia não é hoje completamente aceite como primeiro recurso, exige-se-lhe que seja complementada com outras diferentes fontes, posta em confronto com outros testemunhos, documentos e até com o tratamento do contraditório. Seja como for, há que reconhecer que no acervo dos protagonistas seleccionados por José Freire Antunes trazem um importante contributo para a história de guerra da Guiné. Como se compreenderá, são exclusivamente este tipo de protagonistas os que aqui vão ser enunciados.
Começando por Lemos Ferreira, General da Força Aérea, que serviu na Guiné onde comandou a Base Aérea n.º 12. Referindo-se ao último período da guerra, o general observa: “A convicção do PAIGC era a de que seria possível uma vitória militar e então arriscou e fez o contrário da guerrilha, que era aparecer no terreno com forças relativamente vultosas. Eles consideravam que o que faria a diferença seria a parte aérea, portanto, o que eles precisavam era qualquer coisa que anulasse a Força Aérea. Isto foi perfeitamente claro e apareceram os mísseis Strella. E o que aconteceu foi que, de repente, numa tarde, nós perdemos três aviões: um T6 e dois DO. Quando se tem um núcleo de 60 ou 70 pessoas e, só numa tarde, em duas ou três horas se perde cinco por cento da sua capacidade, isto é muito complicado. Um soldado de infantaria podia-se preparar num mês e meio, um piloto demorava muito mais tempo.
Criaram-se vícios de forma nas Forças Armadas. Pensava-se que era possível realizar tudo devido à cobertura aérea. Mas a nova situação levou a que se decidisse que tinha que haver algumas restrições. Tivemos que ser inventivos: se a ideia do adversário era de que a Força Aérea estava de gatas, havia que provar o contrário. E provar o contrário como? Com a utilização muito mais intensa da arma aérea. Eu nunca fiz tantos bombardeamentos na vida, nunca fiz tantos disparos, como nessa altura, exactamente para a contraprova. Normalmente, a noite era o refúgio do guerrilheiro e, por isso, nós tivemos que inverter a situação. A maior parte flagelações que eles faziam às nossas guarnições eram feitas de noite, muitas delas com morteiros. Havia que responder de forma muito mais pesada. Na altura, vimo-nos no embaraço de consumirmos mais munições – bombas e foguetes – na Guiné do que consumiam Angola e Moçambique juntos”.
O brigadeiro Martins Marquilhas serviu na Guiné entre 1966 e 1968. O seu depoimento é alusivo à instrução dos comandos. Comenta ele: “O inimigo da Guiné era mais aguerrido, mais evoluído culturalmente a nível do soldado. Não estou a falar das elites. Uma gala da Guiné, que era dos fulas, era mais evoluído. Um exemplo era a capacidade de decisão: um terrorista guineense, num aperto, era capaz de tomar uma decisão muito mais rápida e acertada do que um quioco. Na Guiné, a própria religião islâmica desenvolvia-os um bocadinho mais”. Falando dos comandos, observa: “Na Guiné, mataram-nos depois do 25 de Abril, não a todos mas a muitos. Mataram-nos com o receio da reacção deles em relação aos que tinham poder na altura, não foi por mais nada”.
O depoimento do general Almeida Bruno é detalhado, começa por explicar o projecto da Guiné Melhor e as dificuldades militares que Spínola encontrou quando chegou à Guiné. Spínola pretendia em simultâneo aumentar a actividade operacional e desenvolver a Guiné, queria dialogar com o PAIGC numa posição de força. Refere ao pormenor as tentativas de negociação de Spínola e como elas foram inviabilizadas por Caetano. E desabafa: “Quando saí da Guiné em Julho de 1973, nós tínhamos perdido a batalha no plano político. Enquanto se fez a guerra na esperança de que a solução estava à vista porque estávamos a ganhar terreno no plano político, tudo bem. Mas quando nos apercebemos que no plano político tínhamos perdido a batalha, voltámos ao princípio de fazer a guerra pela guerra... Quando percebi que tinha perdido essa batalha, só vi uma hipótese: derrubar o regime. Aderi e ajudei a derrubar o regime, vi na queda do regime a única hipótese de continuar Portugal através da lusofonia”.
O testemunho de Manuel Maria Monteiro Santos, combatente do PAIGC conhecido por “Manecas” tem igualmente muita importância. Destaco o seguinte comentário: “Quando Spínola foi para a Guiné substituir Schultz como comandante-chefe, a situação militar já era nitidamente favorável ao PAIGC. Schultz fez muitas asneiras. Não fez uma anti-guerrilha moderna, dado que os portugueses estavam a bater-se contra um movimento bem estruturado e bem equipado. Schultz não fazia trabalho com as populações... o PAIGC sempre procurou constituir a suas unidades com elementos vindos de todas as etnias. Procurou, mesmo, fazer mover todas as unidades do Sul para o Norte, do Norte para o Leste, do Leste para o Sul, etc., para não vincular nenhum combatente à sua área, à sua região ou à sua etnia”. Falando da sua preparação sobre os mísseis Strella, explicou: “Estive na União Soviética, numa escola militar, com o grupo de soldados que foi lá fazer o estágio dos foguetes anti-aéreos. Da primeira vez vieram umas 24 instalações de lançamento Strella, via Conacri. Os Strella acabaram com a guerra no sentido em que o exército colonial ficou completamente na defensiva. Foi exactamente nesse momento que começamos a fazer operações de maior envergadura, de dia... Em termos de luta armada, o assassinato de Cabral teve um efeito oposto àquele que se esperava: houve um recrudescimento da actividade armada e, quando chegaram os Strella, foi a gota de água. Lembro-me que a chegada de Bethencourt Rodrigues foi saudada com uma operação ofensiva que os portugueses fizeram. Foi uma operação no chão dos manjacos com duas companhias de comandos que se infiltraram ali de helicóptero mas que os helicópteros já não puderam ir buscar por causa dos mísseis terra-ar. Essas suas companhias foram perfeitamente destruídas e até foi capturado o comandante de uma delas”. Deixamos para o próximo texto os depoimentos de Dias Rosas, Tomé Pinto, Hélio Felgas e o Rui Patrício.
(Continua)
__________
Nota de CV:
Vd. postes de:
9 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6569: Notas de leitura (120): A Guerra de África, 1961-1974, Volume I, por José Freire Antunes (1) (Mário Beja Santos)
e
11 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6577: Notas de leitura (121): A Guerra de África, 1961-1974, Volume I, por José Freire Antunes (2) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Acho que nos faz bem a todos rever o conjunto de depoimentos referentes à Guiné recolhidos pelo José Freire Antunes.
Sem ele, teríamos demorado mais tempo para saber que o Governo de Caetano estava a negociar com o PAIGC ou que o sistema financeiro avançava rapidamente para o colapso.
Um abraço do
Mário
A Guerra de África, 1961 – 1974, Volume II
Por José Freire Antunes
Beja Santos
A obra em dois volumes “A Guerra de África”, organizada por José Freire Antunes, obedece à metodologia designada por “história oral”, o investigador, a propósito de uma determinada época em análise, convoca protagonistas, dá-lhe voz ou socorre-se da sua escrita. Esta metodologia não é hoje completamente aceite como primeiro recurso, exige-se-lhe que seja complementada com outras diferentes fontes, posta em confronto com outros testemunhos, documentos e até com o tratamento do contraditório. Seja como for, há que reconhecer que no acervo dos protagonistas seleccionados por José Freire Antunes trazem um importante contributo para a história de guerra da Guiné. Como se compreenderá, são exclusivamente este tipo de protagonistas os que aqui vão ser enunciados.
Começando por Lemos Ferreira, General da Força Aérea, que serviu na Guiné onde comandou a Base Aérea n.º 12. Referindo-se ao último período da guerra, o general observa: “A convicção do PAIGC era a de que seria possível uma vitória militar e então arriscou e fez o contrário da guerrilha, que era aparecer no terreno com forças relativamente vultosas. Eles consideravam que o que faria a diferença seria a parte aérea, portanto, o que eles precisavam era qualquer coisa que anulasse a Força Aérea. Isto foi perfeitamente claro e apareceram os mísseis Strella. E o que aconteceu foi que, de repente, numa tarde, nós perdemos três aviões: um T6 e dois DO. Quando se tem um núcleo de 60 ou 70 pessoas e, só numa tarde, em duas ou três horas se perde cinco por cento da sua capacidade, isto é muito complicado. Um soldado de infantaria podia-se preparar num mês e meio, um piloto demorava muito mais tempo.
Criaram-se vícios de forma nas Forças Armadas. Pensava-se que era possível realizar tudo devido à cobertura aérea. Mas a nova situação levou a que se decidisse que tinha que haver algumas restrições. Tivemos que ser inventivos: se a ideia do adversário era de que a Força Aérea estava de gatas, havia que provar o contrário. E provar o contrário como? Com a utilização muito mais intensa da arma aérea. Eu nunca fiz tantos bombardeamentos na vida, nunca fiz tantos disparos, como nessa altura, exactamente para a contraprova. Normalmente, a noite era o refúgio do guerrilheiro e, por isso, nós tivemos que inverter a situação. A maior parte flagelações que eles faziam às nossas guarnições eram feitas de noite, muitas delas com morteiros. Havia que responder de forma muito mais pesada. Na altura, vimo-nos no embaraço de consumirmos mais munições – bombas e foguetes – na Guiné do que consumiam Angola e Moçambique juntos”.
O brigadeiro Martins Marquilhas serviu na Guiné entre 1966 e 1968. O seu depoimento é alusivo à instrução dos comandos. Comenta ele: “O inimigo da Guiné era mais aguerrido, mais evoluído culturalmente a nível do soldado. Não estou a falar das elites. Uma gala da Guiné, que era dos fulas, era mais evoluído. Um exemplo era a capacidade de decisão: um terrorista guineense, num aperto, era capaz de tomar uma decisão muito mais rápida e acertada do que um quioco. Na Guiné, a própria religião islâmica desenvolvia-os um bocadinho mais”. Falando dos comandos, observa: “Na Guiné, mataram-nos depois do 25 de Abril, não a todos mas a muitos. Mataram-nos com o receio da reacção deles em relação aos que tinham poder na altura, não foi por mais nada”.
O depoimento do general Almeida Bruno é detalhado, começa por explicar o projecto da Guiné Melhor e as dificuldades militares que Spínola encontrou quando chegou à Guiné. Spínola pretendia em simultâneo aumentar a actividade operacional e desenvolver a Guiné, queria dialogar com o PAIGC numa posição de força. Refere ao pormenor as tentativas de negociação de Spínola e como elas foram inviabilizadas por Caetano. E desabafa: “Quando saí da Guiné em Julho de 1973, nós tínhamos perdido a batalha no plano político. Enquanto se fez a guerra na esperança de que a solução estava à vista porque estávamos a ganhar terreno no plano político, tudo bem. Mas quando nos apercebemos que no plano político tínhamos perdido a batalha, voltámos ao princípio de fazer a guerra pela guerra... Quando percebi que tinha perdido essa batalha, só vi uma hipótese: derrubar o regime. Aderi e ajudei a derrubar o regime, vi na queda do regime a única hipótese de continuar Portugal através da lusofonia”.
O testemunho de Manuel Maria Monteiro Santos, combatente do PAIGC conhecido por “Manecas” tem igualmente muita importância. Destaco o seguinte comentário: “Quando Spínola foi para a Guiné substituir Schultz como comandante-chefe, a situação militar já era nitidamente favorável ao PAIGC. Schultz fez muitas asneiras. Não fez uma anti-guerrilha moderna, dado que os portugueses estavam a bater-se contra um movimento bem estruturado e bem equipado. Schultz não fazia trabalho com as populações... o PAIGC sempre procurou constituir a suas unidades com elementos vindos de todas as etnias. Procurou, mesmo, fazer mover todas as unidades do Sul para o Norte, do Norte para o Leste, do Leste para o Sul, etc., para não vincular nenhum combatente à sua área, à sua região ou à sua etnia”. Falando da sua preparação sobre os mísseis Strella, explicou: “Estive na União Soviética, numa escola militar, com o grupo de soldados que foi lá fazer o estágio dos foguetes anti-aéreos. Da primeira vez vieram umas 24 instalações de lançamento Strella, via Conacri. Os Strella acabaram com a guerra no sentido em que o exército colonial ficou completamente na defensiva. Foi exactamente nesse momento que começamos a fazer operações de maior envergadura, de dia... Em termos de luta armada, o assassinato de Cabral teve um efeito oposto àquele que se esperava: houve um recrudescimento da actividade armada e, quando chegaram os Strella, foi a gota de água. Lembro-me que a chegada de Bethencourt Rodrigues foi saudada com uma operação ofensiva que os portugueses fizeram. Foi uma operação no chão dos manjacos com duas companhias de comandos que se infiltraram ali de helicóptero mas que os helicópteros já não puderam ir buscar por causa dos mísseis terra-ar. Essas suas companhias foram perfeitamente destruídas e até foi capturado o comandante de uma delas”. Deixamos para o próximo texto os depoimentos de Dias Rosas, Tomé Pinto, Hélio Felgas e o Rui Patrício.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. postes de:
9 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6569: Notas de leitura (120): A Guerra de África, 1961-1974, Volume I, por José Freire Antunes (1) (Mário Beja Santos)
e
11 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6577: Notas de leitura (121): A Guerra de África, 1961-1974, Volume I, por José Freire Antunes (2) (Mário Beja Santos)