terça-feira, 3 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6818: Notas de leitura (141): Corte Geral, de Carlos Lopes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
Despeço-me até 10 de Agosto.
Estejam descansados, levo livros sobre a Guiné, prometo mais recensões. Depois, tenho que dirigir mais a minha atenção para A Viagem do Tangomau que tem andado tão mal tratada.

Um abraço a todos,
Mário


Estórias da crioulidade, entre a mordacidade e a profunda decepção

por Beja Santos

Carlos Lopes é um nome sonante e prestigiado de um guineense que serve as Nações Unidas. Nasceu em Canchungo (antiga Teixeira Pinto) em 1960. Doutorou-se em Estudos Africanos em Paris; tem igualmente graus académicos em Sociologia, História e Planificação Estratégica. Intelectual prodígio, foi director-geral aos 24 anos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa. Repartiu a sua actividade académica em universidades como Zurique, Uppsala, México e Coimbra. A partir de 1988 trabalhou no PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Foi assessor de Kofi Anan, o anterior secretário-geral das Nações Unidas. O actual secretário-geral, Ban Ki-moon, nomeou Carlos Lopes como director executivo do Instituto das Nações Unidas para a Formação e Investigação. Anteriormente Carlos Lopes ocupara as funções de director de assuntos políticos do gabinete executivo do secretário-geral.

Corte Geral é a primeira obra de ficção de Carlos Lopes (Editorial Caminho, 1997).

Ele apelida o conjunto de crónicas de “deambulações no surrealismo guineense”. É um livro assombroso, de uma grande coragem, pintalgado de humor e de uma crueldade bastante sofrida. É, acima de tudo, um retrato da Guiné-Bissau após a independência, os seus traumas sociais e económicos, os permanentes choques culturais, a África dos curandeiros e dos irãs, a reminiscência do período colonial em que as coisas funcionavam e incompreensivelmente se tornaram disfuncionais. De igual modo, um olhar arguto, matreiro, sobre as falsas mudanças, as medidas pseudo-revolucionárias que a carapaça tradicionalista acaba por atirar ao lixo. E também uma crítica aos falhanços políticos, numa perspectiva anterior à guerra civil que chegou pouco tempo depois de publicado este livro.

O ambiente geral que envolve estas estórias é o tempo da liberalização, o ajustamento estrutural em que, uma vez mais, se prometia o fim do túnel para os sofrimentos guineenses. Ele escreve: “A tendência para a regressão económica em África não é apenas o resultado de má gestão interna. É também a prova factual, translúcida e vibrante do falhanço da ajuda internacional como mecanismo de desenvolvimento. Uma realidade reconhecida, mas que não tem sido alterada por conveniência de muitos”.

Neste ambiente geral cabem os problemas estatutários dos agentes coloniais, o uso de expressões como “mufunesa” (uma associação entre o estranho e o sobrenatural para anunciar o advento de um desastre ou o fatalismo de um azar), a corrupção e o arrivismo, o sentimento de que o peso do clã se sobrepõe à vontade individual, o uso do amor ácido em torno de datas ou acontecimentos ícone. A tal propósito, a crónica “Aos mártires do Pindjiquiti” é elucidativa. Há um descrente e um desgraçado sobrevivente, um antigo combatente da liberdade da pátria, Mbunhe, que encontra o refúgio na estátua dedicada aos mártires do Pindjiquiti. O ambiente é de caos, o Pindjiquiti é um estaleiro permanente de obras inacabadas. O monumento é um punho preto estilizado “que qualquer peão menos avisado da história recente do país confundirá com toda uma série de formas”. A prova aprovada de que os guineenses vivem indiferentes a este punho erguido é que ele vive na base do monumento e ninguém o incomoda. O autor observa: “Já ninguém se lembra dos mártires do Pindjiquiti. Agora estamos em democracia. O que conta é quem é que vai ter mais casas ou carros. Mbunhe não tem nem uma coisa nem outra e ainda por cima começaram as chuvas. Nos primeiros dias de Agosto chove sempre torrencialmente e o punho erguido não poderá servir de refúgio senão aos grilos que invadem Bissau”.

São histórias que desvelam até os triunfos que se transformaram em desastres. É o caso da Cicer, a cerveja que os guineenses se orgulhavam: “Os cooperantes gabavam a nossa cerveja, e nós, em coro, dizíamos que era feita a partir de arroz – como tudo na Guiné-Bissau – e tinha uma água de qualidade superior, a do Alto Bandim, onde a fábrica está instalada. Na altura, a Cicer tinha tudo: a melhor oficina do país, o melhor serviço de pessoal, o melhor jardim da cidade, a melhor contabilidade… a Cicer começou a perder influência quando se abriram mais fábricas, até uma de montagem de automóveis Citröen. De repente, já não eram só os produtos da Cicer que nos faziam orgulhosos, era uma série de outras coisas que contribuíram para que a nossa dívida externa passasse de zero a três vezes o produto nacional bruto. Uma dívida também ela revolucionária, já que só há três ou quatro países no mundo que se atreveram a chegar tão alto”. Por vezes é iconoclasta, como quando fala da praça principal dedicada aos heróis nacionais. Ridiculariza os falsos políticos democráticos que não têm substância nem visão. Não tem clemência ao apresentar jovens sonhadores cujas esperanças estão traídas pelo lado mais negro da sociedade de consumo. Bissau aparece suja ou encardida, tudo ao abandono, desapareceu a iluminação, os escroques vivem impunes. O choque cultural tem amplas dimensões, ele estiliza um Chico mulato, de cabelo fininho que cultivava a sua identidade como mulato assumido, deste modo: “Se lhe perguntavam sobre a sua nacionalidade dizia ser guineo-luso, se o interrogavam sobre a sua música preferida, era o afro-new-age e quanto à roupa usava um par de jeans com feitio de calças de bu-bu, com fundinho, feito por um costureiro do Cupelon de Baixo. O seu sonho era abrir um café-concerto no Pilun, zona quente de Bissau, onde os fast-foods de carne de cabra assada, na berma da estrada, abundam. Tinha também decidido introduzir um cocktail de rum de cana-de-açúcar com sumo de mandiple, fruto exótico até em Bissau. Quanto a aperitivos, incluía, entre outros, um pastel feito como o de bacalhau, mas com a variedade local de peixe seco”.

O leitor agora faça o resto, este prodigioso livro “Corte Geral” ainda se pode obter nas livrarias. Carlos Lopes não é só uma figura de proa das Nações Unidas, é um grande escritor da língua portuguesa. Percebe-se o seu desalento, o seu chiste, a sua toada ácida. Homem cultíssimo, sabe muito bem que a Guiné foi a primeira colónia moderna do mundo. Aqui aconteceu uma guerra que levou ao arrasamento do último império colonial e que sufragou a democracia e a liberdade em Portugal.

Nessa Guiné, o comportamento dos combatentes foi heróico, em 1974 ninguém esperava que tantos sonhos fossem levados pela torrente das lamas que acodem na época das chuvas. Sim, é muito importante ler Carlos Lopes para perceber quais são os caminhos, as práticas, os procedimentos que urge corrigir. A Guiné merece mais pelo que ajudou a mudar Portugal.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6811: Notas de leitura (139): Contos Mandingas, de Manuel Belchior (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 1 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6814: Notas de leitura (140): As elites militares e as guerras de África (Manuel Rebocho)

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6817: Os nossos médicos (20): O atentado contra o Cap Mil Med José Joaquim Magalhães de Oliveira, de que eu fui testemunha (Augusto Inácio Ferreira, 1º Cabo Op Cripto CCAV 2482, Fulacunda, 1969/70)








Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > BCAV 2867 / CCAV 2482 (1969/71) >  "Caro Camarada Luis Graça: Tal como prometi aqui vão 2 fotos 'iguais', sendo que uma mostra um circulo, que é o local exacto onde o Capitão Médico Oliveira estava sentado a ler antes do incidente"...

Fotos (e legendas): © Augusto Inácio Ferreira (2010). Direitos reservados


1. Mensagem do Augusto Inácio Ferreira (ou Augusto Ferreira):

Data: 1 de Agosto de 2010 16:08
Assunto: GUINÉ 63/74 - Os nossos médicos - O malogrado Cap José Joaquim Magalhães de Oliveira. (Augusto Inácio Ferreira, 1º Cabo Op Cripto CCAV 2482, Boinas Negras de Fulacunda 1969/70) (*)

Caro Camarada Luis Graça

Um destes dias fui alertado por um camarada que tal como eu pertenceu ao BCAV 2867 e à CCAV 2482, para a existência do teu blogue.
Antes de mais quero deixar aqui o meu reconhecimento pela tua dedicação na elaboração deste blogue. Camaradas como tu merecem-me todo o respeito e admiração, e nós só poderemos estar gratos por ver que NÓS não nos esquecemos de NÓS.

Agora vamos ao que me trouxe aqui.

Ao consultar os registos sobre o BCAV 2867, sou levado a concordar que os mesmos não são famosos.

Chamou-me a atenção um facto ali descrito que continua a envolver algum "mistério" por parte de quem procura dar uma notícia correcta e não possui dados. Espero que ainda vá a tempo de poder dar uma ajuda, e tentar esclarecer este triste acontecimento, de que fui testemunha. Tem a ver com o incidente verificado com o Capitão Médico OLIVEIRA. Assim o referencio, pois era assim que o conhecia. Tudo o que já foi descrito sobre ele "penso" que está correctamente feito. Apenas aqui estou para esclarecer o que é motivo de "mistério" para quem não teve conhecimento dos factos e para que conste como verdadeiro, evitando especulação sobre o caso.

Vou começar por descrever o que nesse mesmo dia anotei no meu diário: (6.9.1969) 


 EVACUADO CAPITÃO-MÉDICO DO BATALHÃO QUE AQUI SE ENCONTRAVA,  MOTIVADO POR ATENTADO DE MORTE. UM FURRIEL PERTENCENTE À CCAV 2483 DE NOVA SINTRA QUE AQUI SE ENCONTRA COM O SEU GRUPO DE COMBATE, DISPAROU SOBRE ELE, QUANDO SE ENCONTRAVA SENTADO NUMA CADEIRA DE BRAÇOS A LER. FORAM DISPARADOS TRÊS TIROS, MAS APENAS UM O ATINGIU NA PERNA DIREITA NA REGIÃO DA COXA. O CASO PARECIA BASTANTE GRAVE.
Isto foi o que escrevi nesse mesmo dia. Agora vou procurar relatar o que se passou.

À data a região de Fulacunda estava envolvida em operações, o  que exigiu o reforço de outras forças além das pertencentes à CCAV 2482, tendo inclusive  motivado a deslocação do COMANDO liderado pelo então Ten Coronel Trinité Rosa.

 Além do pelotão a que pertencia o Fur Moreira, estava a 15ª CCOMANDOS comandada pelo então Major ROBLES. No dia 30.8.69, - (8 dias antes do incidente com o Cap Oliveira), quando os Camaradas pertencentes aos Comandos faziam o percurso entre Fulacunda e o rio onde iriam "tomar" a LDM que os conduziriam a BISSAU (em final de comissão), uma das viaturas UNIMOG accionou uma mina anti-carro. Daí resultou a morte imediata de 5 camaradas, tendo vindo a falecer mais 2 em Bissau passado algum tempo. 

No dia 1.9.69, perto do local onde se dera este incidente,  outro aconteceu. Um Camarada da CCAV 2482 pisou uma mina anti-pessoal. Resultado que todos nós infelizmente conhecemos.

O ambiente não era o mais favorável e o moral de alguns camaradas começava a dar sinais de fraqueza. Tenho relatos impressionantes, mas que não vou relatar. Apenas vou procurar esclarecer o "caso do Furriel Moreira e o Cap Médico Oliveira".

Nessa manhã o Furriel Moreira, "GUIMARÃES" para os seus camaradas, havia estado na Enfermaria (mesmo ao lado estava o Posto Rádio e o Centro Cripto), pequenos edificios mesmo no centro da parada. Segundo relato dos enfermeiros, o Furriel Moreira apresentava um ar doentio (muito amarelo). Segundo os seus camaradas, tinha problemas físicos, e era ajudado com frequência pelos mesmos. 

Naquela manhã (segundo versão dos enfermeiros), relatou isso mesmo ao Capitão-Médico, e após algum diálogo este lhe terá dito: 
- A SUA DOENÇA É FALTA DE MATO!

 O Furriel saiu da enfermaria com um: 
- Então até logo. 

Premeditação para o que vem a seguir?

Ao meio da tarde, estava eu no Centro Cripto quando sou despertado por um tiro ali bem perto, .... seguido de outro ... e mais outro. Foi tudo muito rápido, mas quando soou o terceiro tiro já estava fora do centro. A primeira imagem que tenho é que na minha frente vejo um corpo tombar de bruços, ali a cerca de 40 metros. Corri com alguns camaradas nessa direcção. Verificamos que era o Cap Médico que antes se encontrava sentado numa cadeira de braços a ler. 

O edificio de comando ficava mesmo ao lado das instalações reservadas aos furriéis. Afim de nivelar o terreno havia um muro que se elevava do chão cerca de 50 cm naquele local, fazendo um pequeno passeio de cerca de um metro de largo que circundava todo o edíficio. Era ali que o Cap Médico se encontrava sentado numa cadeira de braços com fundo em lona,  segundo creio. 

O Furriel Moreira "deve" ter feito tiro instintivo e a primeira bala atingiu o solo a pouco mais de 10 metros do local onde se encontrava. O objectivo estaria a cerca de 20/30 metros. A segunda bala atingiu o parapeito do tal muro que foi feito para nivelar o terreno aquando da construção do edifício, e que naquele local teria cerca 80/100 cm de altura. A terceira bala atingiu a perna direita na região da coxa. A bala no local onde entrou, "deve" ter provocado danos graves na zona do "baixo ventre". 

Não houve rajada alguma. Foi tiro a tiro. 

Foi feita uma mensagem a pedir a evacuação, que foi muito rápida. Acompanhei-o sempre desde o ínicio, tal como o Cap Morais até à pista. Durante os preparativos médicos, ainda recordo que foi difícil à enfermeira que o assistiu junto ao Heli, "encontrar" a veia para lhe pôr o soro. Registei estas últimas palavras antes do Heli partir.
-  Ó Morais ... estou a sofrer muito. 

E é com "elas" que termino este relato. TODOS NÓS SOFREMOS MUITO. Que a camaradagem que ainda hoje nos une, sirva para aliviar os traumas porque todos nós passámos.

Camarada Luis Graça.

Eu sou um dos responsáveis por anualmente reunir a CCAV 2482. Estivemos 26 anos sem o fazer, mas enquanto eu por cá andar, nenhum dos meus camaradas será privado desse convívio anual. Todos os anos o faremos no último sábado de Maio. O ano passado (2009) reunimos o BCAV 2867 na Quinta do Paul na ORTIGOSA. 

 Apesar das poucas notícias sobre o BCAV 2867 ainda há registos. Não morremos. Há um site,  "RUMO A FULACUNDA", via GOOGLE, que poderás consultar,  caso não conheças. A semana passada estive a falar com a minha lavadeira (via telefone) para FULACUNDA, ao fim de 40 anos. Uma ansiã com 85 anos. Foi bonito.

Irei (ainda hoje), enviar uma foto de FULACUNDA sobre o edifício de comando onde estava sentado naquela tarde o malogrado Capitão Médico Oliveira.

Com os meus respeitosos cumprimentos

Um forte abraço de amizade

Augusto Inácio Ferreira (**)

Ex-1º Cabo Op  Cripo da CCAV  2482 / BCAV 2867

GUINÉ /FULACUNDA,  1969 / 70

2. Comentário de L.G.:

Obrigado pela tua generosa intervenção, disponibilizando no nosso blogue a versão do teu testemunho. Foste testemunha ocular deste atentado. Mereces todo o nosso crédito. Mesmo de férias, aproveito a circunstância para te convidar a integrar a nossa Tabanca Grande... Do alto do seu poilão podes, com o nosso "megafone", fazer chegar mais longe o teu "toque a reunir" dado à rapaziada do BCAV 2867... Manda-me também duas fotos tuas, que é para poderes ser apresentado, condignamente, aos demais "tabanqueiros"... Um Alfa Bravo. Luis.
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Notas de L.G.:




Guiné 63/74 - P6816: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (4): A cabra do PIDE de Nova Lamego

1. Mais uma história do Hoss, : Slvio Fagundes de Abrantes (*)

Data: 1 de Agosto de 2010 20:56
Assunto: A cabra do Berguinhas


Antes de mais devo dizer aos nossos interlocutores que foram uns cagados  da maneira como trataram a vossa querida amiga, ou dizendo de outra maneira mais abrasileirada que se confunde cágados com cagados, não sei o que vos chamar, mas  a verdade é que eu sinceramente não fazia isso a um amigo, mas fome é fome, e eu até comi a carne mais horrível que pode existir (ai fome onde andas!)...   ABUTRE!!!

Esta estória faz-me lembrar o cabrito do PIDE de  Nova Lamego. O tipo da PIDE tinha um cabrito de estimação que um dia teve a infeliz, dele, sorte (feliz nossa...), de ir parar ao nosso quartel que era junto à igreja e à administração. Entrar entrou, saír também saíu, só que de outra maneira.

Mata-se o cabrito,  passado pouco tempo o tinhoso entra no quartel aos berros pelo cabrito. O nosso bom Capitão Mira Vaz não sabia o que responder ao PIDE. Sorte a nossa que os abutres em poucos minutos desapareceram com os restos mortais... de identificação. Então vou ter com o Nogueira que estava no bar, conto a situação e só havia uma saída.Tiramos toda a cerveja que estava na arca congeladora, espalmámos o casbrito que fica no fundo da arca, e enchemos esta até ao cimo com loirinhas à espera de melhores dias.

Ninguém vai mandar tirar a cerveja da arca, pensei eu. O meu afoito Capitão Mira Vaz não sabia onde se meter. Primeira pessoa a ser chamada, o Hoss... que jura a pés juntos nada saber.
-  Juro por estes dois,  meu capitão, que a terra há-de comer,  em como não sei de nada.

Tão parvo... Passado pouco tempo aparece um nativo muito aflito que a mulher estava para dar à luz e o bébé não nascia. Por uma questão de respeito não vou escrever como eles falavam. Lá fui eu e o Vicente. Nunca na nossa vida tinha-mos visto tal coisa. Eu sou da aldeia, com muito orgulho, já tinha visto muitos animais parirem e lembrei-me que de vez em quando os filhotes vinham atravessados e era preciso meter a mão lá dentro e colocar cabeça do dito cujo para a saída.

Fez-se  luz. Meto a mão dentro da senhora e ajeitei a cabeça do bébé para a saída, o tipo salta cá para fora sem problema. O pior foi quando eu cortei a umbímia [, cordão umbilical ?]. Não era para cortar à nossa maneira, mas depois da explicação tudo bem. Fomos presenteados com DOIS, DOIS cabritos!... Fui ter com o comandante de pelotão expliquei a situação, para que não pensassem que era o cabrito do PIDE  e o resto para bom entendedor meia palavra basta.

Mas o Sr Mira Vaz não lhe enterrou os dentes. Não tinha tempo para essas coisas banais,  preocupava-se com outras de maior interesse para a carreira militar que tinha pela frente. E assim foi. Ai, FOME,  onde é que andavas, FARTURA  ?

Atenção,  nos Pára-quedistas,  não passávamos fome, às vezes o vago mestre esquecia-se e nós lembrávamos que o dinheiro não era só para eles. Muito se roubava, não digas isso parvo, ainda vais parar à pildra. Eu que fazia a escrita da companhia,  estou proíbido de falar, por estes dois que a terra há-de comer.

 Hoss

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Nota de L.G.:


Guiné 63/74 - P6815: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (2): A elite guineense, nos anos 50



Lisboa > c. 1947 > Subindo o Chiado, Artur Augusto da Silva e Clara Schwarz da Silva... Futuros pais do nosso muito querido Pepito (Carlos Schwarz da Silva).

Artur Silva,  nascido em Cabo Verde, em 1912, viveu os primeiros anos em Farim, na Guiné, e depois em Lisboa onde se licenciou em Direito e conheceu Clara (n. em Lisboa, em 1915). Teve uma vida intelectual intensa enquanto estudante, frequentando as tertúlias literárias da Baixa. Ainda conheceu Fernando Pessoa (que morreu em Novembro de 1935), e privou com intelectuais com o poeta António Botto, o romancista Ferreira de Castro, o músico Luís Freitas Branco, o pintor Eduardo Malta. Esteve de 1939 a 1941 em Angola, como secretário do Governador Geral; de regresso a Portugal exerceu advocacia em Lisboa, Alcobaça e Porto de Mós)..Em 1949, o casal partiria para a Guiné, onde o Artur foi, até 1966, advogado, notário e até substituto do Delegado do Procurador da República. Morreu em Bissau, em 1983.

Por sua vez, Clara Schwarz, de pais judeus (o pai polaco e a mãe russa), licença em letras, e diplomado em volino pelo Conservatório de Música de Lisboa, foi uma notável pedagoga, tendo sido professora, no Liceu Honófrio Barreto, em Bissau, de alguns dos futuros dirigentes e quadros do PAIGC. Membro do nosso blogue, faz em Fevereiro passado a bonita idade de... 95 anos!

Fotos: © Mikael Levin (com a devina vénia...)




Excerto do documento policopiado, "Memórias de Carlos Domingos Gomes"... (ª1 Parte, p.5).


Continuação da publicação das memórias de Cadogo Pai (*)... O documento, de 26 páginas, tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

O texto, que foi entregue em Março de 2008, em Bissau, pelo próprio autor,está dividido em duas partes, com numeração autónoma: 1ª parte (9 pp.): Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai, Galardoado com a Medalha de Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Luta de Libertação Nacional. Guiledje, Simpósium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008; a II parte (17 pp): Simpósium Internacional, História da Mobilização da Luta da Libertação Nacional: Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai.

No poste anterior, vamos encontrá-lo em Bolama, em1951, como encarregado de uma empresa francesa, a SCOA, a mesma onde trabalharia, até 1956, Elisée Turpin, um dos históricos do PAIGC. Em Bolama, convive de muito perto com Aristides Pereira, outro histórico do PAIGC.




Na pág. 5, Parte I, o autor refere o nome de diversas personalidades que, ainda antes da chegada de Amílcar Cabral, foram influentes na vida pública, social, cívica e cultural, da cidade de Bissau, devendo ser tidas em conta no estudo da génese do nacionalismo guineense... Entre esses nomes (vd. recorte acima, ponto 13), o autor cita os dos pais do nosso amigo Pepito, o Dr. Artur Augusto Silva [, 1912-1983, ] "advogado, defensor dos arguidos políticos", e a Dra. Clara Schwarz da Silva, "esposa do Dr. Artur Silva, mãe dos estudantes", professora do Liceu Honório Barreto, e hoje membro da nossa Tabanca Grande, com a notável idade de... 95 anos, feitos em Fevereiro passado!

O autor justifica a menção destes e doutros nomes influentes, nestes termos: "Antes de se falar do camarada Amílcar Cabral [, que regressa à Guiné, em 1952, vinte anos depois de ter partido para Cabo Verde, terra de seus pais], surgiu o movimento da Associação Recreativa, Cultural e Desportiva, que encobria motivos políticos. Daí que tem de se falar das seguintes, não do movimento, que desempenharam um papel importante na viragem histórica dos pacíficos filhos da Guiné-Bissau" (p. 5, 1ª parte)... Foram homens (e mulheres) que, nas suas diferentes actividades, públicas e profissionais, "souberam incutir discretamente nos guineenses [...] a voz da revolta"...

Não sei exactamente a que associação Cadogo Pai se refere. Sabemos que, na 1ª metade da década de 1950, Amílcar Cabral  tinha redigido os estatutos de um clube recreativo, desportivo e cultural, aberto a todos os guineenses,, independentemenmte da sua condição . Ao que parece, os estatutos foram "chumbados" pelas as autoridades portugueses, sob o pretexto de que a maioria dos signatários não era portadora de bilhete de identidade. Em 1955, o governador Melo e Alvim obriga Cabral a deixar a Guiné, embora lhe permita voltar uma vez por ano, por razões familiares.

Cadogo Pai refere-s à importância que tiveram, no despertar da consciência nacionalista dos guineenses, os "torneios de futebol" que se realizavam nos países limítrofes (Senegal, Gânbia, Guiné-Conacri). "Apareciam médicos, advogados, jornalistas"... Os guineenses olhavam para a sua terra e apercebiam-se do atraso em que se vivia...

Foi no imediato após-guerra, sob o consulado de Sarmento Rodrigues, que Bissau conhece um certo progresso...Surgem "os primeiros agrupamentos sociais da elite guineense, o Club Cila, o Ciem [...], depois o agrupamento desportivo, recreativo e cutural"... Tudo isto "antes de Amílcar Cabral" (p. 6, 1ª Parte).

Apareceram também clubes de futebol como o Sport Lisboa e Benfica. "por iniciativa de alguns nomes conhecidos da sociedade portuguesa, Gama das Construções [Gama] Lda,  Pimenta do Cadastro, Casqueiro, etc." e o Sporting Club de Bissau, "sob a égide de Eugénio Paralta, irmão Zé Paralta, Chico Correia"... 

A UDIB já existia, diz-nos Cadogo Pai. No entanto, o desenvolvimento do futebol, "trouxe mais um bafo de rivalidades, olhando a situação dos jogadores cabo-verdianos , importados pelo Benfica, que, para os atrair,  os adeptos bem colocados, tinham que lhes oferecere bons empreegos. Bons rapazes, no fundo, Antero, os sinais [?] Tcheca, Marcelino Ferreira (Tchalino), etc." (1ª Parte, p. 6).

[ Revisão / fixação  de texto/ excertos / digitalizações / título: L.G.]

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Nota de L.G.:

domingo, 1 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6814: Notas de leitura (140): As elites militares e as guerras de África (Manuel Rebocho)


1. O nosso Camarada Manuel Godinho Rebocho, ex-2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, (hoje Sargento-Mor na reserva), cedeu ao nosso blogue a publicação do seu livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, o que muito agradecemos em nome dos editores e demais camaradas.
A publicação iniciar-se-á, no presente poste, com o currículo pessoal, os agradecimentos, a constituição do livro, nota do autor e prefácio:

Currículo Pessoal
Manuel Godinho Rebocho nasceu a 4 de Dezembro de 1949, numa aldeia próxima de Évora. Ingressou como voluntário nas Tropas Pára-Quedistas aos 18 anos. Efectuou o antigo 5.º ano dos Liceus durante a sua comissão de serviço na Guiné, entre 1972 e 1974. Preparou-se para os exames do antigo 7.º ano dos Liceus durante a sua prisão, resultante dos acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, de cujos actos foi judicialmente ilibado.
Por ordem do então Chefe do Estado-Maior da Força Aérea permaneceu em residência fixa até 1982, o que o impediu de ingressar na Academia Militar, em 1976. Como alternativa à Academia, e com a devida autorização judicial, ingressou na Universidade de Évora, em 1976.
É Eng.º Agrónomo, Mestre em Economia Agrícola e Doutorado em Sociologia (ramo Sociologia da Paz e dos Conflitos). É Sargento-Mor Pára-Quedista, na reserva, à qual passou por limite de tempo no posto (oito anos).

AS ELITES MILITARES
E AS GUERRAS D’ÁFRICA
Aos que, na Guerra de África,
Deram parte de si à Pátria
E a Pátria nada lhe deu
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer particularmente à minha mulher, Maria Jacinta, e aos meus filhos Cláudia Leonor e Nuno Miguel, o apoio e incentivo que me expressaram.
À Professora Doutora Maria José Stock, agradeço todo o apoio que me concedeu na estruturação e leitura do texto. Creio mesmo que, sem o seu apoio, não teria alcançado o meu objectivo, nem a qualidade da obra atingiria o patamar que julgo ter conseguido.
À Instituição Militar, particularmente ao Exército, agradeço a permissão para consultar os múltiplos arquivos militares, onde obtive a informação que sustenta a obra; sem essa consulta seria absolutamente impossível efectuar a investigação com a objectividade conseguida.

O livro tem a seguinte estrutura e sequência de anexos:

Título
Dedicatória
Índice
Prefácio (páginas 1 a 6)
I Capítulo (páginas 7 a 82)
II Capítulo (páginas 83 a 240)
III Capítulo - desdobrado em 4 anexos - (páginas 241 a 428)
III I (páginas 241 a 341)
III II (páginas 342 a 369)
III III (páginas 370 a 400)
III IV (páginas 400 a 428)
IV Capítulo (páginas 429 a 506)
V Capítulo (páginas 507 a 532)
VI Posfácio (páginas 533 a 548)
VII Bibliografia (páginas 549 a 596)
Currículo Pessoal

NOTA DO AUTOR
O trabalho de investigação que desenvolvi, ao longo de vários anos, cujo resultado final constitui a presente obra, teve como fontes de informação fundamentais a análise que efectuei sobre diversos documentos militares, a minha própria experiência e um vasto número de entrevistas a Oficiais do Quadro Permanente.
A investigação científica que realizei provou que, no decurso da Guerra de África, os Oficiais do Quadro Permanente foram-se progressivamente afastando do Comando Operacional, para se instalarem nas posições de gestão militar. Desta situação, inusitada, resultaria terem sido os Milicianos quem, de facto, comandou as Unidades de Combate, nos últimos e mais gravosos anos da Guerra.
Reconhecendo esta situação e dado não ter ouvido, na dimensão adequada, os graduados milicianos, nem lhes ter dado o destaque que justamente merecem, entendi, para corrigir este lapso, convidar um miliciano para prefaciar a presente obra, para além de ter igualmente convidado um miliciano de cada uma das suas classes: Capitães, Alferes e Furriéis, para escreverem livremente um depoimento sob a forma de posfácio, enfatizando particularmente a sua experiência enquanto combatentes. Presto, assim, o meu total reconhecimento pelo trabalho desenvolvido pelos Milicianos no seu todo, ao longo da Guerra de África.
PREFÁCIO
O dado fulcral, que faz da obra de Manuel Rebocho um caso singular, escorado basicamente em procedimentos metodológicos da “nova” sociologia, a observação-acção, ou melhor a observação empenhada, como dela disse Adriano Moreira durante a discussão académica, é o ponto de partida do investigador: foi a sua participação e envolvimento directo na guerra que, anos depois, viria a despoletar o seu interesse sociológico no tema, a ponto de a estudar e de apresentar a escrutínio doutoral os resultados a que chegou.
Não espanta, por isso, que, uma vez e muitas, se pressinta alguma dificuldade de “afastamento” e “isenção” do autor face ao real que analisa. Mas isso não menoriza ou empobrece a qualidade científica do trabalho, antes o valoriza: afinal foi feito por quem, com instrumentos da ciência social, se debruça sobre o que viveu e sofreu. Este trabalho, no essencial da obra, deve ser, por isso, entendido como portador de uma parcela autobiográfica, como uma “história de vida”, como sublinhou Maria José Stock, orientadora do novel Doutor.
Se é verdade que a Guerra Colonial demorou alguns anos a tornar-se tema ficcional, já hoje há obras bastantes, particularmente testemunhos pessoais mais ou menos ficcionados, que permitem uma visão global sobre a vida no teatro de operações. O mesmo não pode dizer-se quanto a estudos académicos sobre o interior da instituição que fez a guerra, as Forças Armadas. Este trabalho de Manuel Rebocho vem iluminar zonas das nossas últimas Campanhas em África que até agora se mantinham na sombra.
A radical mudança política operada em Portugal em 1974, protagonizada, aliás, pelas Forças Armadas que triunfando sobre a ditadura abriram, “ipso facto”, caminho à sua “derrota” na Guerra Colonial, não propiciou, por isso, condições facilitadoras do estudo do processo “Guerra Colonial”.
Ao rastrear os “curricula” e a formação dos oficiais, particularmente após 1959 – ano da criação da Academia Militar –, quando se tornara imparável e acelerado o movimento independentista dos territórios africanos administrados por potências coloniais e, face à intransigente política “ultramarina” de Salazar, a guerra era inevitável. Manuel Rebocho concluiu que a Academia Militar passou então a preparar a elite não para o comando operacional, mas sim para funções técnicas e administrativas.
Em vez de comandantes operacionais, os militares do quadro permanente, na sua esmagadora maioria e nos mais diversos escalões, tornaram-se, progressivamente, ao longo dos treze anos que a guerra durou, “administradores” da logística e gestores da estratégia dos três teatros de operações.
A guerra no terreno, na frente de combate, assente numa quadrícula à base da companhia e realizada quotidianamente a nível de meia companhia ou, mesmo, de pelotão, essa, passou a ser feita quase exclusivamente, por capitães e alferes milicianos que enquadravam furriéis milicianos e praças do serviço militar obrigatório – essa foi, de facto, a “guerra” em que eu combati, no norte de Moçambique, e foi a conclusão generalizada a que chegou Manuel Rebocho. Chamou-lhe, ele, a milicianização da guerra.
Sem a triagem quantitativa que este estudo nos aporta, já outros, antes, tinham chamado à atenção para este aspecto da gestão cirúrgica do pessoal; Diniz de Almeida refere que “acentuadas diferenças de colocação dos oficiais, quer do Q. P. (Quadro Permanente) quer do Q. C. (Quadro de Complemento), determinavam ainda a vida particular e profissional dos militares originando, assim, um novo quadro de injustiça a corrigir. Deste modo, em função das mais diversas motivações, eram normalmente colocados em funções burocráticas ou em quartéis de cidade, os oficiais afectos ao regime. Quanto aos restantes, menos identificados com o regime, aguardavam-nos, regra geral, os postos longínquos e incómodos do mato.”
Após dez anos de guerra, no dia-a-dia, os pouquíssimos militares profissionais (Quadro Permanente e Serviço Geral) que estavam na frente de combate “nunca” saíam para o mato, ficando no “arame farpado” em funções de comando, colheita e coordenação de informações, planeamento de operações e apoio logístico; na picada e no mato andavam os capitães, alferes e furriéis milicianos e os cabos e soldados do serviço militar obrigatório. A estes juntavam-se, no mato, mais ou menos regularmente segundo as dificuldades do teatro de operações, companhias de comandos, de fuzileiros e de pára-quedistas, nas quais, aí sim, os soldados eram enquadrados por sargentos e oficiais do quadro permanente.
Foi essa realidade vivida na “frente” que Manuel Rebocho veio, agora, com números “arrasadores”, constatar: no Leste de Angola, de 1971 a 1974, das 68 companhias só 3 tinham capitães oriundos da Academia Militar; em Moçambique, em 1973, das 101 companhias apenas 1 era comandada por um capitão do Quadro Especial de Oficiais, e esse estava lá “por castigo”!
Reflexos dessa forma de administrar sabiamente “os riscos”, colhem-se, ainda hoje, quando se analisam as listagens de sócios da Associação dos Deficientes das Forças Armadas: o padrão médio indica-nos que cerca de 92% eram militares do Serviço Militar Obrigatório.
A gestão do pessoal afecto à guerra, feita pelas chefias militares, em seu benefício e salvaguarda, foi possível, sem escrutínio do poder político, porque o regime não permitia que, sequer, se questionasse a sua existência, nem mesmo na campanha eleitoral da “primavera marcelista”. O Ministro do Ultramar, Silva Cunha, era muito claro quanto a isso, dizendo que “o Governo não ia dizer (...) às Forças Armadas como combater” porque “a questão militar estava à parte do Governo, e a responsabilidade cabia ao Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas”.
Ao considerar a “Guerra do Ultramar” como desígnio patriótico, inevitável e inegociável, porque culpa do “outro” e dos ventos da história, a ditadura remetia, implicitamente o seu êxito ou inêxito para a esfera militar, tanto mais que garantia na Metrópole, na retaguarda, as condições ideais para o êxito das nossas tropas, ao não permitir que a opinião pública a contestasse, a condenasse. Tal situação até dispensou, em última análise, o poder político de apetrechar as frentes com condições logísticas e de material de combate capazes de potenciar as hipóteses de êxito militar.
Até ao fim da Guerra, uma vara ou uma cana de bambu a que se atava uma ponteira de aço afiada, era o nosso detector de minas – o que explica o número “indecoroso” de amputados e de cegos que a guerra produziu.
Por isso, às vezes, ainda acordo a meio da noite, quando não devia, no estertor de um pesadelo.
Manuel Joaquim Calhau Branco
Licenciado e Mestre em História
Ex-Alferes Miliciano; deficiente das Forças Armadas.
Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados
(continua)

2. Nota de Luís Graça, editor principal do blogue:

De férias, esperando um Agosto calmo como as águas da enseada da minha Praia do Paimogo ou suave como a brisa que sopra no planalto das Cesaredas, nos pedrogosos caminhos calcorreados por Pedro e Inês entre Moledo e Serra d'El-Rei, protagonistas da mais trágica paixão de amor da nossa história,  sou surprendido com o início de uma mais uma polémica bloguística, em que dois antigos camaradas da Guiné (o Manuel Rebocho e o Morais da Silva) já estão a ser utilizados, de novo,  como armas de arremesso em guerras que não são as do nosso blogue e para eventuais ajustes de contas que não são da nossa conta.

Comecemos por esclarecer a decisão do editor de serviço, Eduardo Magalhães Ribeiro (EMR), ao publicar este poste. Diz ele que que o nosso camarada Manuel Rebocho, membro de longa data da nossa Tabanca Grande, "cedeu ao nosso blogue a publicação do seu livro 'Elites Militares e a Guerra de África', o que muito agradecemnos em nome dos editores e demais camaradas"... E logo a seguir escreve: "A publicação iniciar-se-á, no presente poste, com o currículo pessoal, os agradecimentos, a constituição do livro, nota do autor e prefácio" (...).

Acontece que eu não tenho conhecimento da mensagem do Manuel Rebocho (que pode ter sido enviada por mail apenas para a caixa do correio do EMR) e, portanto, não posso avaliar os termos e as comdições em que ele autoriza a (re)publicação do seu livro... Como eu sou, legalmente, o responsável do blogue, e esta alegada cedência de direitos de autor tem implicações legais, tenho que esclarecer algumas questões prévias: a) o detentor dos direitos de publicação não é (ou não é apenas) o Manuel Godinho Rebocho: b) o livro foi publicado pela Editora Roma, que tem direitos legais sobre a obra; c) sem uma autorização expressa, por escrito, da Editora Roma, não podemos reproduzir, no nosso blogue, a obra que, de resto,  tem mais de 500 páginas (com anexos).

Por outro lado, por muita estima que eu tenha pelo camarada Manuel Rebocho (e meu confrade da academia) (como tenho por todos os membros deste blogue, meus camaradas da Guiné), não posso compromerter-me a publicar a obra na "íntegra"... Não faz sentido, por várias razões: a) o nosso blogue publica, de preferência, inéditos (o que não é o caso); b) o livro é um trabalho académico, resulta de uma tese de doutoramento em sociologia, a parte teórico-metodológica (Cap I, pp. 45-85) só pode interessar uma público mais restrito; c) Apenas o Cap III (A guerra de África e o desempenho das elites militares, pp. 220-375) tem mais directamente a ver com o 'core business' do nosso blogue; d) Tal não quer dizer que o Cap II (A formação base das elites militares, pp. 87-213) não seja importante para o debate oficiais QP/Milicianos; e) Quanto ao Cap IV (As elites militares no pós-marcelismo, pp. 375-440), é matéria que extravasa, em muito, o âmbito do nosso blogue; f) Por fim, e não menos, importante a publicação integral do livro "Elites Militares e a Guerra de África"  teria um efeito de "Caixa de Pandora": de futuro, ficaríamos comprometidos a reproduzir, no blogue, todos os livros de todos os nossos camaradas, escritores, o que não me parece razoável e, sobretudo, significaria a morte (já tantas vezes anunciada...) do nosso blogue que deve ser de todos e para todos...

O livro do nosso camarada Manuel Rebocho pode e deve merecer um lugar de destaque na literatura da guerra colonial, no domínio das obras de ensaio, de investigação académica ou outra.  Como aliás, já teve, na devida altura, na sessão de lançamento do livro. Eu próprio me comprometi a fazer uma recensão crítica do livro, prometida para as leituras de férias... Terei então a oportunidade, agora em Agosto,.  de usar excertos, mais extensos, da obra, em nosso poder, em suporte digital... A publicação, não das 500 páginas, mas de algumas das partes mais significativas da obra, terá que ser negociada e acordada  por mim, com o autor (e com o EDITOR!!!, uma vez que não se trata de uma edição de autor).

Falei com o EMR, também a caminho de férias, na Nazaré ("onde vai pôr ao sol o bacalhau"), procurando esclarecer alguns destes pontos... Ele próprio já me tinha tentado contactar, em vão, para me dar conta desta oferta, generosa, do nosso camarada,  e da sua iniciativa (dele, EMR), algo prematura, de "iniciar a publicação de uma obra", correndo (sem se dar conta) do risco de clara violação da lei sobre proprieddae intelectual. Fê-lo, como sempre, com a melhor das intenções de assegurar o pluralismo do blogue e de colmatar alguma falta de materiais nesta altura do ano...

Com votos de boa continuação de férias para os nossos leitores, colaboradores e editores. Cuidado com o stresse térmico! Luís Graça (Lourinhã, 1 de Agosto de 2010, 16h30).

Adenda (2 de Agosto de 2010, 17h):

O EMR acabou de telefonar da Nazaré (onde fazer 15 dias de férias) a explicar as circunstâncias em que se encontrou, em Évora, almoçou com ele e ele teve a gentileza de lhe oferecer um CD com o conteúdo do livro... Não terá posto quaisquer exigências ou pedido contrapartidas (, publicitárias ou outras): "Aqui tens o livro em suporte digital, utiliza-o como quiseres, no blogue"... O EMR agiu, de motu proprio, com a melhor das intenções, mas esquecendo que um livro  é um "produto comercial" e que o autor, quando edita um livro através de uma editora comercial (ou pulica um simples artigo numa publicação periódica, jornal ou revista) , "vende ou cede os seus direitos de autor"...

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Notas de M.R.:
Vd. postes relacionados desta série em:

A investigação desenvolvida e necessária para redigir a presente obra nunca seria possível sem que um elevado número de pessoas e instituições me tivessem concedido o seu apoio. Os dados estão dispersos, uns disponíveis em suporte de papel, outros constando apenas da memória de quem os viveu, deles ainda se recorda e se disponibilizou para os relatar. A todas estas pessoas e instituições, sem qualquer excepção, expresso o meu mais profundo agradecimento.

sábado, 31 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6813: Tabanca Grande (234): Tina Kramer, 27 anos, etnóloga, da Universidade de Frankfurt, Alemanha

1. Mensagem de hoje, da Tina Kramer (*)

Assunto: foto e descrição

Olá,  Luís,

Tudo bem?

Mando-te uma foto minha e uma pequena descrição minha:

Nasci no dia 31 de Outubro em 1982 numa vila no leste da Alemanha. Depois da escola,estudei Estudos Africanos e Estudos da Cultura em Leipzig. Trabalhei em Malawi e fiz pesquisas no Togo.  Quando terminei o meu Mestrado,  ensinei e trabalhei num projecto de arquivamento (fotos de antigas missões alemãs na África). Ao mesmo tempo eu fiz pedidos para projectos em várias universidades.

Escolhi estudar mais a África Lusofóna, porque estes países ainda são pouco conhecidos no meio científico na Alemanha. Tive sorte e depois de algum tempo os membros dum projecto da universidade de Frankfurt (Instituto de Etnologia)  gostaram da minha ideia.

Portanto mudei-me para Frankfurt e agora estou aqui para fazer pesquisas. Estudo as memórias da Guerra Colonial/Guerra de Libertação na Guiné-Bissau, do povo em Portugal e na Guiné-Bissau hoje em dia. Significa que quero saber quais são as formas de memória e através de que meios as pessoas   recordam  a Guerra.

O que me interessa particularmente são as ligações e as interdependências entre os tratamentos do passado entre a Guiné-Bissau e Portugal. Por isso gostava falar sobretudo com alguns participantes da guerra, artistas, jornalistas que estavam ou estão em contacto com Guiné-Bissau.

Em Frankfurt o meu orientador é o etnólogo Mamadou Diawara, mas eu ficaria  se aqui o Jorge Cabral puder ajudar-me como "padrinho" uma ou outra vez.

Um abraço da
Tina

2. Comentário de L.G.:

Tina, entendo o teu mail como uma resposta ao meu convite para ingressares na nossa Tabanca Grande (**). O interesse é mútuo, teu e nosso. Aqui tens um fonte de documentação notável, ao alcance de um clique... Tens por outro a boa vontade de centenas de amigos e camaradas da Guiné, portugueses, guineenses e outros, que poderão colaborar contigo como membros do blogue, interessados em ajudar a produzir e a reproduzir  a(s) memória(s) da guerra da Guiné, 1963/74, que opôs o PAIGC às autoridades coloniais portuguesas, e que conduziram à independência da Guiné-Bissau, hoje país lusófono, nossos irmão, da CPLP - Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Fica bem. Dá notícias. Escreve um pouco mais sobre o teu plano de trabalho de campo.

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Notas de L.G.:

(*)  Vd. postes de:

26 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6791: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (2): Tina Kramer, etnóloga, Universidade de Frankfurt, em trabalho de campo, em Lisboa


 22 de Julho de 2010  >  Guiné 63/74 - P6774: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (1): Pedido de colaboração da doutoranda alemã Tina Kramer 

(**) Vd. último poste da série > 26 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6786: Tabanca Grande (233): João Crisóstomo, ex-Alf Mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/66), e grande português da diáspora

Guiné 63/74 - P6812: Ser solidário (83): A partir de hoje, aqui em Amindara estamos a viver como os brancos (José Teixeira)

A partir de hoje, aqui em Amindara estamos a viver como os brancos…

Foi com este linda e saborosa frase que o Chefe da Tabanca de Amindara anunciou aos seus familiares em Bissau que Amindara já tinha água fresquinha e boa, ali a 18 metros de profundidade e não a cerca de três quilómetros, enquanto as mulheres e as crianças em delírio cantavam e dançavam.

Esta atitude espontânea e sincera do Chefe de Tabanca de Amindara, demonstra bem como aquela gente se contenta com pouco para se sentir feliz. Um "pouco" que é imenso. Apenas uma torneira de água fresca e potável para toda a Tabanca.

Agora já não é preciso ir buscá-la a quilómetros de distância, à bolanha ou a uma lagoa na floresta sem a mínima garantia de salubridade.

Agora as crianças da escolinha local já podem beber água a qualquer hora do dia.

O seu sonho de décadas realizou-se graças a solidariedade dos antigos combatentes portugueses, seus familiares e amigos.

Foi dia di ronco, garandi ronco para Amindara que se vai repetir em breve na tabanca de Medjo, porque a solidariedade não tem fronteiras.

Agora só falta colocar o depósito para garantir que a água não falte, mesmo nos dias de chuva

Já arrancamos em Medjo.

Os poceiros (especialistas da AD em abrir poços) já lá estão a trabalhar. Dentro de alguns dias os habitantes de Medjo terão água potável junto à porta de casa.

Como ainda não dinheiro para o equipamento terão de puxar a água a balde.

O dinheiro conseguido ainda está longe de responder às necessidades para cobrir as despesas com a abertura do novo poço em Medjo, mas... eu acredito.

José Teixeira

Os poceiros e a obra acabada

A Alegria das mulheres
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Notas de CV:

Vd. http://www.adbissau.org/adbissau/noticias/2010.07.30.1.pdf no site da AD

Vd. poste de 27 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6796: Ser solidário (82): Arrancou da melhor maneira a campanha de fundos para se abrir um poço em Medjo (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P6811: Notas de leitura (139): Contos Mandingas, de Manuel Belchior (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
Estou quase a fazer uma pausa, regresso às lides aí por 10 de Agosto.
O cabaz de leituras não pára de crescer, é uma permanente tentação. Mas não posso desleixar-me mais o livro que tenho em mãos, praticamente suspenso há dois meses por afazeres profissionais.

Um abraço do
Mário



Contos Mandingas: voltar a um clássico de Manuel Belchior

por Beja Santos

Manuel Belchior foi um prestigiado funcionário colonial, tem uma vastíssima bibliografia onde Moçambique e a Guiné ocupam lugar de relevo. Em 1971 editou os seus “Contos Mandingas” (Portucalense Editora), que mereciam, tal o valor histórico-cultural e a beleza narrativa neles contidos, uma justa reedição.

O investigador justifica o seu trabalho depois de ter permanecido largos meses, entre 1967 e 1968, na região de Bafatá e Gabu, trabalhando com fulas e mandingas num inquérito etnológico. Ao fazer o inventário do material recolhido, descobriu, muito agradado, que recolhera quase uma cinquentena de contos e fábulas. O conjunto de generalidades sobre o povo mandinga ainda hoje se lê com deslumbramento. Não querendo abstrair o número de mudanças operadas nos últimos 40 anos, continua a ter a maior utilidade o que Manuel Belchior escreve sobre a distribuição dos mandingas no território da Guiné-Bissau, as suas origens, o tipo de povoamento, a sua organização familiar, social e política, a religião, a visão do trabalho, as actividades económicas e os divertimentos.

Dito resumidamente, até aos anos 70 do século passado, os núcleos principais da população mandinga distribuíam-se pelas regiões do Gabu, por Gussará, Ganadu e Badora (Bafatá) e região do Oio (Farim e BIssorã). Os mandingas pertencem ao grande ramo dos negros sudaneses, aparecem historicamente relacionados com os povos mandés, com o império de Ghana e mais tarde o império Mali. Tornaram-se na etnia preponderante até ao século XIX, quando foram derrotados pelos Fulas. Em termos de organização social, a generalidade da população dedica-se à agricultura, mas já que ter em conta os artífices (como os ferreiros, os ourives, os tintureiros e os sapateiros) os cantores e músicos e os comerciantes.

Os contos e fábulas recolhidos são um repositório impressionante da amálgama e do sincretismo cultural dos mandingas: a influência do Corão e do animismo; a influência da literatura árabe e da narrativa oral africana; a exemplaridade de justiça muçulmana, o rigor a que se deve sujeitar o comportamento do soberano justo; o prémio da fidelidade do amor; a importância do Irã, a divindade protectora dos povos animistas; a história dos clãs; o castigo da inveja e da infidelidade, entre outras manifestações.

O fabulário mandinga tem atraído muitos investigadores, nele se cruza um vasto património de narrativas morais que acabam por aparecer na generalidade das narrativas de toda as etnias. O estudo que Benjamim Pinto Bull fez às fábulas crioulas decorre deste complexo interétnico: envolve lobos que comem cabras, lebres ladinas que conversam com jagudis e crocodilos; serpentes que esperam a hora de vingança; lobos que conversam com hipopótamos, mas há também morcegos, leoas, macacos e personagens como os curandeiros.

Enfim, contos e lendas onde encontramos toda a trama da história, da língua, da educação, dos conceitos de direito e justiça deste povo. A problemática religiosa, insiste-se, tem bastante complexidade. Não só o mandinga islamizou povos pelo poder da espada como se mantém intransigente na recusa em abandonar as práticas de fundo animista (caso da circuncisão).

Quem puder, não se furte ao esplendor desta literatura que ajuda a dissipar o preconceito de que estes povos não possuem um elevado recorte literário.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6808: Notas de leitura (138): Os Tempos de Guerra De Abrantes à Guiné, de Manuel Batista Traquina (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6810: Parabéns a você (135): Para o Manuel Reis, com miminhos de todo o pessoal da Tabanca Grande, incluindo os que fugiram... da canícula (Miguel e Giselda Pessoa, Luís Graça, Vasco da Gama)


"Aquele que conhece o inimigo e se conhece a si mesmo sairá vitorioso de cem batalhas; aquele que se conhece a si mesmo mas não ao inimigo, por cada vitória conquistada conhecerá uma derrota; aquele que não se conhece a si mesmo nem ao inimigo será derrotado em todas as batalhas" (In: Sun Tsu,  A Arte da Guerra, Séc. VI a.C.)



1. Mensagem do Luís Graça, editor:


Manuel Reis, querido camarada e amigo:

Esta é a pior altura do ano para um tabanqueiro fazer anos, porque a debandada, na Tabanca Grande, é geral... Meteu tudo licença de verão, ou melhor os amigos e camaradas da Guiné terão debandado face à iminência do ataque do General Verão ... Eu próprio parti hoje para férias, para fugir da canícula de Lisboa... Mas tinha o compromisso, assumido logo no princípio do mês, de editar este poste, em tua honra...

Eu escolhi o dia para ir de férias, tu não escolheste o dia nem a hora nem os progenitores nem a terra, para nasceres... Mas ainda bem que nasceste cá nesta santa terrinha e te puseram o nome de Manuel... A minha obrigação é, pois, a de dar-te os parabéns por este dia, para que se repita por muitos anos, em paz e liberdade, e com saúde, muita saúde. Em meu nome e em nome de todos nós, tabanqueiros desta Tabanca Grande, reunidos à volta do poilão onde todos os dias vamos reconstituíndo, peça a peça, letra a letra, byte a byte, pixel a pixel, o puzzle da(s) nossa(s) memória(s)... Como eu costumo (re)lembrar, agora o único inimigo que temos o tempo, ou a falta dele...

Mas vamos às prendas... Tens aqui mais dois miminhos: uma lembrança do Miguel, em nome dele e da Giselda, que ele teve também o cuidado de nos mandar com a devida antecedência, antes de ir para o seu retiro de Sesimbra... E, mais em cima da hora, acabadinha de chegar à Lourinhã por estafeta especial, uma mensagem do almirante de Buarcos, o teu/nosso grande amigo e camarada Vasco da Gama...

Julgo que ele, o Vasco, disse, com aquela frontalidade e sinceridade que lhe conhecemos, tudo aquilo - o essencial - que te queríamos dizer. Ele tem, sobre mim, a grande vantagem de te conhecer de longa data, e de poder usar o privilégio da amizade e da antiguidade. Ele não, contrariamente a mim, uma amigo da 24ª hora...
Eu vou-te conhecendo dos nossos encontros virtuais e reais, ainda pouco mas já o suficiente para poder dizer, em público, no terreiro da Tabanca Grande, jurando a todos os irãs, que tem vindo a aumentar o meu apreço e consideração pelo camarada que estava em Guileje no dia 22 de Maio de 1973... e que tem orgulho em ter sido um Pirata de Guileje.

Manuel: Espero poder-te encontrar em breve quando vieres (se puderes vir, como eu espero) a São do Martinho do Porto entregar à AD - Acção para o Desenvolvimento, na pessoa do seu director executivo, Pepito, em férias, a pequena contribuição, em dinheiro, ofertada pelo Grupo de Amigos da Capela de Guileje, numa campanha que aceitaste liderar, dando a cara e disponibilizando o nº da tua conta bancária...

Um chicoração apertado do Luís Graça.

Infogravura: Miguel Pessoa (2010). Direitos reservados


2.  Mensagem do Vasco da Gama:
Antes de Camarada, Amigo, que continuo a ser depois de ter sido Camarada, Manuel Reis, quero neste dia do teu aniversário, registar a minha patente de camarada e amigo, antes, durante e no pós 25 de Abril.

Eu, que por tantas vezes discordo da tua opinião sobre assuntos tão díspares, que tu retrucas com a mesma moeda e por vezes com maior vivacidade;

Eu, que contigo converso ao telefone durante horas (sem exagero), acerca de tantos assuntos;
Eu, que admiro a tua frontalidade na defesa dos teus pontos de vista, quando outros, por motivos que não descortino, se "encolhem";

Eu, Vasco, quero no dia de hoje dar-te um abraço de parabéns bem apertado, de amigo, e desejar que as nossas conversas/discussões, continuem até ficarmos como os Marretas, por todo o sempre, aqui, onde a sombra do poilão se vai encurtando cada vez mais, ou noutro qualquer lugar, onde nos sintamos melhor.

Obrigado Manuel Reis

Até sempre,

Vasco A.R. da Gama

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6809: Controvérsias (100): O que é que o País pode dar aos ex-combatentes? (José Brás)

1. Mensagem do dia 29 de Julho de 2010 de José Brás*, ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68:

Que belo texto o do camarada Pereira da Costa

Camarada Pereira da Costa
Bem, camarada... depois disto** o que poderei eu dizer sem correr o risco de me apoucar a mim, sem pedalada de entendimento e de expressão para te acompanhar na discorrência e na agilidade com que pensas e dizes, e de te apoucar a ti próprio por, banalizando-me no discurso, banalizar também o teu.

À fala episódica de António Barreto, confesso que nem liguei muito, no hábito que estou (estamos todos?) do paleio sem outro fim que o... paleio.
Sei que posso ser injusto nisso como injusto já fui em tantas coisas e nem por isso me suicidei nem de mim fugi, nem dos injustiçados ocasionais. Mas vou em frente e siga a dança, aguentando dores e prazeres.

É o teu texto que me preocupa. Quer dizer, preocupa porque me dá que pensar, que moer a castanhola e tomar parte por consciência ou apenas pelo instinto.
E que diabo, para que necessito eu de chatear-me a pensar e a tomar parte em coisas que marcam ainda (ou sempre marcarão), se daqui a um bocado dá o Sporting (são agora 18h45), logo à noite posso ver o "quem quer ser milionário", ou imaginar-me a ganhar o euromilhões (não jogo)?

Perguntar não ofende, dizemos todos quando perguntamos coisas que talvez não sejam de responder. E tu perguntas. Perguntas, primeiro, "o que se entende por ex-combatentes?".
Eu não sei responder a isso, tu não estarias à espera que o fosse e, provavelmente nem acreditas que haja alguém capaz de te dar uma resposta que não seja de circunstância, uma resposta de cimento, dura, angular e firme, justa e idealmente completa.

Posso dizer algumas coisas. Posso.

Por exemplo! Eu, José Brás, gajo nascido nas desgraças das vinhas da Estremadura, vítima desde cedo das trapaças de comerciantes de meia tigela, ladrões do suor e do sangue de outros, eu que toda a gente sabe ter já uma dessas ideologias que me venderam manhãs que cantam e homem novo, quando daqui parti para a Guiné, eu que nessa esperança admirava os que na África pegavam em armas para nos combater, alegadamente na senda de uma libertação qualquer, saí daqui já combatente porque nem me passava pela cabeça deixar de cumprir uma obrigação que os meus vizinhos de Alenquer, do Porto e de Faro tinham de gramar.

E tinha uma consciência de Nação que se sobrepunha à tal simpatia pelo inimigo. Nessa consciência, bem ou mal assumida, não cabia a fuga que me propunham antes do Niassa. Nessa consciência não cabia deixar de combater quem nos combatia, ainda que a ideia de matar me fosse um facto de horror. Nessa consciência não cabia abandonar um companheiro fosse onde fosse e custasse o que custasse.

Libertamo-nos todos os dias de alguma prisão e todos os dias construímos novas. Daí que a ideia de liberdade seja o que é no concreto, concretizado o sonho de a atingir.

De volta, vivo e inteiro mas com marcas, o facto de ser ex-combatente não me perturbou o re-engajamento no combate da "guerra de cá", nem ninguém no seio das organizações onde me alistei me questionaram uma vez fosse.

Por vezes, eu próprio me ponho em dúvida, indagando-me se o que aceitei do modo que digo, daqui partindo para um combate que rejeitava, obedecia a um desígnio qualquer, elevado pela ideia pátria e de nação, ou apenas porque sempre assim fui, também noutras coisas da vida, aceitando pegar os toiros mais difíceis, realizar o maior esforço e o maior quinhão de trabalho.
É que isto pode não ter em si qualquer virtude, antes ser uma manifestação qualquer de egoísmo ainda que posto de avesso, uma galhardia marialva, um defeito qualquer de personalidade.

Recusei a fuga cá e lá, embora me fosse prometido que melhor seria a minha vidinha na Suécia do que o caminhar nas picadas da Guiné.
Mas nunca tive em pouca conta aqueles que lutaram contra a guerra porque lutavam contra o regime que decidira a guerra em vez da conversa.
Em pouca conta sempre tive os que fugiram, pura e simplesmente, por vezes apesar de concordarem com regime.

Porém falar de mim, aqui, só vale na medida em que o eu que sou, não é mais do que o eu que sou nos outros e que os outros, cada um que teve que embarcar de má ou de boa vontade, são em mim.

Somos um povo, diz-se, e diz-se porque temos uma cultura, um conjunto de valores assumidos como bons e maus que divergem do colectivo para o individual com diferenças de um para outro, é certo, mas ligeiras diferenças.
Temos uma história. E temos histórias dentro dessa história, nem todas bem contadas, evidentemente, mas assumidas assim e por isso tornadas património.

Bem sei que muitos desses valores são universais, ou quase, e por isso nos aproximando de outros povos e de outros deuses, como o desejo de felicidade individual, dito assim sem esmiuçar caminhos.
E esses irmãos que daqui saíram para guerrear, navegaram e espingardaram justamente em nome desse património colectivo que é Portugal, concordando ou não com a partida e com o fogo das armas no lugar da paz da palavra.
Somos todos, portanto, ex-combatentes, sem termos que espremer muito o texto na busca de funduras maiores na alma de cada um.

Outra pergunta que colocas é o de saber "o que é que os ex-combatentes querem, devem querer ou será justo que o País lhes dê?", naturalmente porque ouves e lês, que é quase a mesma coisa, ouves e lês sobre protestos contra governantes e governos por falta de consideração por quem assumiu sacrifícios, correu o risco supremo da própria vida, passou por fomes e sedes, viu morrer amigos, e agora se vêm quase escondidos, como se o tal país que somos, o tal povo que somos porque éramos e não podemos ter deixado de ser, parece que se envergonha deles.

É justa a pergunta porque, verdadeiramente, ou descemos ao conhecimento de caso a caso, o que é difícil e inconclusivo, ou olhamos a floresta e nela nada vemos de diferente do que é dado a outros que não malharam com os costados em África naquela ocasião e naquele propósito.

Voltámos, na aldeia os vizinhos fizeram festa, integrámo-nos aos poucos na chamada normalidade, tivemos empregos, construímos famílias, fizemos filhos que cresceram e nem sabem do pai que foi à guerra, envelhecemos em pobreza ou abundância como acontece a todos os outros, queixamo-nos de reumático como os outros, temos manias que podem ser ou não trazidas da guerra.

Acredito que há muita gente que esteve na guerra e que sofre, uns por restos de memórias e de pancadas físicas, outros por coisas comezinhas do dia a dia.
Casos que conheço, faltas de braços, de pernas e de outras coisas, o País paga-lhes o que pode pagar, pouco, como sabemos mas não diferente dos que se inutilizaram na fábrica ou no campo.

Homenagens? Quem as quer fora do quadro das individuais ou quase, que são prestadas pelos mais próximos, a Câmara Municipal, a Junta de Freguesia, o clube do bairro.
Ou aquelas que nos prestamos nós entre iguais, entre nós, no convívio, na conversa, nas memórias, no amor que afirmamos por aquela gente sofredora, ainda que saibamos que nem todo o amor é puro.

Uma questão que perpassa quase apenas como sugestão mas sempre bem presente no teu belíssimo escrito é a da liberdade que se perdia e se ganhava.

O PAIGC lutava pela liberdade do seu povo.
Lutava?

Acho que sim, nos poemas que circulavam na cabeça de Amílcar Cabral.

E nós perguntamos legitimamente e sem o mínimo cheiro de colonialismo se a têm ou, sejamos ousados, se a teriam mesmo que com Amílcar vivo.

E a liberdade porque lutava eu e tu, provavelmente, e muitos portugueses, cada um à sua maneira, onde está?

E que liberdade esperamos nós como povo no caminho global das lutas pelo poder do capital financeiro?

Como diz o poeta "caminhante, não há caminho, andando se faz-se o caminho", ou então que "não interessa chegar, interessa é o caminhar".

Dizes tu que Álvaro Barreto é um brilhante estudioso da realidade social portuguesa e não serei eu a negar-te razão.
Contudo, também não deixarei de dizer-te que lhe conheço algumas... ia a dizer sacanices, mas talvez seja exagerado, preferindo dizer então, algumas parvoíces.
E depois há o dito popular "de boas intenções está o inferno cheio".

Envio este texto acabado de escrever e, por isso, provavelmente com erros e palavras erradas. Mas acho que deve marchar mesmo assim, porque fruto do verbo desencadeado no teu.

Abraços
José Brás
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6785: Lugares de Passagem, a minha próxima ficção (José Brás)

(**) Vd. poste de 29 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6805: Controvérsias (99): O que é que o País pode dar aos ex-combatentes? (António J. Pereira da Costa)

Guiné 63/74 - P6808: Notas de leitura (138): Os Tempos de Guerra De Abrantes à Guiné, de Manuel Batista Traquina (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
O Manuel Traquina prima por ser despretensioso, presta no seu livro uma justa homenagem aos condutores e mecânicos.
Confesso que estava a ler e dei conta da tremenda injustiça que foi não ter dado o justo relevo aos condutores e mecânicos que tanto me ajudaram no Cuor e na região de Bambadinca.
O que seriamos nós sem aquelas máquinas a rugir pela picada fora?

Um abraço do
Mário


Memórias de um tempo de guerra, algures entre Bula e Buba

Beja Santos

Chama-se Manuel Batista Traquina, faz parte da nossa agremiação e vazou em livro as suas memórias e considerações colaterais sobre a guerra que experimentou entre 1968 e 1970. O produto final toca pela simplicidade e desafectação: “Os Tempo de Guerra, De Abrantes à Guiné”, por Manuel Batista Traquina, Edição Palha de Abrantes, 2009.

No essencial, temos aqui o registo da CCaç 2382. O seu comandante, Carlos Nery Sousa Gomes de Araújo sente orgulho em recordar no prefácio um comentário de Carlos Fabião quando este assumiu o comando o COP4, assim se referindo à CCaç 2382: “A melhor companhia do Sul da Guiné”. Foi uma companhia afortunada, só dois dos que tinham embarcado em Maio de 1968 é que morreram.

Manuel Traquina era o responsável pela manutenção do parque de viaturas. Mas o seu registo tem um espectro muito amplo: reúne as suas reminiscências desde que assentou praça nas Caldas da Rainha, a sua passagem pela Escola Prática de Serviço e Material, depois Elvas, mais adiante Beirolas, e depois Abrantes, já com a CCaç 2382; o prato substância, claro está, serão os acontecimentos que ele viveu no teatro de operações, sobretudo de Bula a Buba.

Escreveu em jornais a sua experiência, tece considerações sobre a legitimidade da guerra, não esqueceu as viagens do fim-de-semana (sempre com a gasolina partilhada pelos companheiros de viagem), vai observando a composição social e não foge aos comentários. Por exemplo, em Beirolas, no Depósito Geral de Material de Guerra: “Neste aquartelamento depressa me apercebi que ali se encontravam filhos de gente importante, bastante influentes para que os filhos ali passassem o serviço militar, sem o risco e o inconveniente da guerra colonial. Havia mesmo aqueles que entravam e saíam trajando civilmente e que à porta do quartel deixavam estacionados Ferraris e outros carros idênticos, que deixavam transparecer a vida abastada dos seus proprietários”.

Dentro das suas memórias, insere os documentos da história da unidade, não se coíbe do seu mister de cronista. Em 1 de Maio de 1968 embarcam no Niassa. As memórias ganham a partir daqui mais vivacidade: as referências ao infortunado Ramiro Duarte; a evocação da companhia como uma família de 160 pessoas; o colorido e a lufa-lufa de Bissau; um apanhado sobre a guerra da Guiné; a morte do Flora da Silva, um manjaco corajoso, cuja vida se perdeu perto de Bula; a descrição da Mampatá; o ataque a Contabane em 22 de Junho, que reduziu a tabanca a cinzas; as vicissitudes do furriel Pinho, o zelador das Transmissões; vicissitudes das colunas entre Buba e Aldeia Formosa; o sapateiro de Nhala, que não se sabe muito bem se era ou não agente duplo; história de “Os Maiorais”, como era conhecida a CCaç 2381; lembranças de crianças, como aquele pequeno Mamadu, que resolveu ir à caça das rolas com a Mauser e surpreendeu os guerrilheiros que se preparavam para um ataque a Mampatá; a vida operacional em Buba.

Buba está no coração das suas memórias, histórias de lavadeiras, quezílias entre militares, brincadeiras de mau gosto, a chegada do correio, os jogos de futebol, as letras de fado adaptadas às circunstâncias da guerra, as dores dos sinistrados, a nova estrada entre Buba e a Aldeia Formosa que se revelou não servir para nada, as pescarias no rio Grande de Buba, a homenagem aos condutores e aos mecânicos.

Manuel Traquina procura associar o leitor à compreensão do território: os rios, a existência de prisioneiros de guerra, como se chegou ao desenho do distintivo da CCaç 2382, a acção de Spínola, por exemplo. Mas também os condimentos do quotidiano: como tomar duche com a água escassa ou a cerveja pluriusos (bebida cujas garrafas eram utilizadas como aparelhos de alarme, as garrafas batiam no arame farpado e anunciavam aos sentinelas a presença do inimigo).

É um caderno de alguém que se comprazeu a ser útil, a fazer amizades e que ainda hoje se orgulha do dever cumprido. Escreve sem rancores, junta serenamente as suas notas de observação, confunde-se com a crónica dos acontecimentos da CCaç 2382. Não arma em herói nem em vítima. É um testemunho que os historiadores não poderão ignorar. Até pela sinceridade.
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6802: Notas de leitura (137): Invenção e Construção da Guiné-Bissau, de António Duarte Silva (3) (Mário Beja Santos)

Vd. poste de 30 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4441: Bibliografia de uma guerra (48) "Os Tempos de Guerra - De Abrantes à Guiné", de autoria de Manuel Batista Traquina