quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7299: O Nosso Livro de Visitas (103): A Tabanca Grande não é para todos? (Eduardo G. Silva / José Marcelino Martins)

1. Um dos nossos Camaradas, visitante do blogue, com o nome de Eduardo G. Silva, deixou no passado dia 16 de Novembro de 2010, a seguinte mensagem:

Assunto: Tabanca Grande não é para todos?
Há já alguns meses, escrevi algumas linhas onde me identifiquei e pedi um contacto, o do "Zé Bigodes", camarada da CCAV 3420, cujo nome verdadeiro não conhecia.
Sei agora que se chama António José Fernandes Ogando.
Espero que tudo esteja bem com ele, assim como para os restantes camaradas.
Resposta não tive até hoje!
A Tabanca não atende desconhecidos?
Eduardo G. Silva
E-mail: eddygsilva@gmail.com

2. Ao tomar conhecimento o nosso Camarada José Marcelino Martins, (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), mais uma vez entrou em acção em 17 de Novembro e prestou mais uma das suas preciosas ajudas, através do seguinte esclarecimento ao nosso camarada: Assunto: Tabanca Grande não é para todos? Boa noite, Eduardo Silva

«Caiu-me» na caixa do correio a sua mensagem, reencaminhada pelo Luís Graça. Como poderá constatar pelo cabeçalho do blogue, há apenas quatro elementos a «alimentar» este local de encontro e, alguns deles ainda estão na vida profissional activa, o que lhe deixa pouco tempo livre, que é preciso retirar ao descanso que, começamos a achar necessário.

Existem alguns «voluntários», onde me incluo, que vão colaborando na medida do possível.

Não temos os contactos, como é natural, de todos os camaradas que connosco cumpriram a sua missão na Guiné. Conseguimos alguns elementos nos documentos que se encontram em arquivos oficiais mas, para tal, teremos que nos deslocar aos locais onde se encontram, mas não contêm as moradas.

Terei muito prazer em tentar ajudá-lo, em nome da Tabanca que, permita-me, é de todos, por ser aberta. Quando digo todos, refiro-me a Internos e Externos, já que nem todos estivemos na Guiné, mas que podem pertencer à mesma com a «categoria de amigos».

Pelo teor do seu e-mail, apercebo-me de que pretende obter o contacto do António José Fernandes Ogando, que pertenceu a CCAV 3420, que esteve na Guiné entre 1971 e 1973.

No nosso blogue, à esquerda, está uma listagem que refere os temas que vão sendo tratados neste espaço.

Sobre a
CCAV 3420 existem alguns textos e, numa pesquisa efectuada nos mesmos, localizei um contacto para a realização de um encontro em 2006, tendo como telefone de contacto 917 768 721.

Da nossa tertúlia faz parte um camarada que pertenceu à CCAV 3420, para quem endereço em BCC o presente e-mail, para que o mesmo, se souber do paradeiro do nosso camarada Zé Bigodes, não deixe de dar noticias dele ou, pelo menos, dar-lhe conhecimento deste seu desejo de contacto.

Espero ter ido de encontro ao seu desejo.

Com amizade
José Marcelino Martins
Fur Mil Trms da CCAÇ 5

3. Atento a tudo o que passa no blogue e sempre pronto a judar no que lhe é possível, o nosso Camarada José Câmara, enviou ao josé Martins a seguinte mensagem, que logo este último reenviou ao Eduardo Silva:
"Pesquizando na net encontrei estes dados que podem muito bem ser de quem o Eduardo procura.
António J Fernandes Ogando
Santarém - São Nicolau 2000-464
CASÉVEL STR 243 441 301
Não custa tentar.
Boa sorte!
José Câmara
4. Comentário de L.G.:

O camarada da CCAV 3420, que faz parte da nossa Tabanca Grande, é o José Afonso, que vive no concelho do Fundão. Foi num poste dele que encontrámos o nome do António José Fernandes Ogando (de alcunha, na tropa, o Bigodes), autor de dois poemas, dedicados ao seu antigo comandante, o Cap Cav Salgueiro Maia (1944-1992). O Eduardo Silva, ou qualquer outro camarada desta sub-unidade, que mostrou a sua valentia em terras da Guiné, será bem vindo, caso deseje integrar a nossa Tabanca Grande. Obrigado ao Zé Martins, nosso colaborador especial, o nosso especialista dos perdidos & achados, por mais uma vez ter dado a cara. Como ele muito bem sublinhou, a Tabanca Grande é, de facto, para todos, para todos aqueles, camaradas ou simples amigos, que têm uma special relationship, uma relação especial com a Guiné de ontem (1961/74) e de hoje...
__________
Nota de M.R.: Vd. último poste desta série em:

3 de Novembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7217: O Nosso Livro de Visitas (102): Parabéns pelo vosso fantástico projecto (Maria João Rocha)


Guiné 63/74 - P7298: Cartas, aos netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J.L. Mendes Gomes) (6): Funchal, 1964: As minas e armadilhas de Cúpido




Região Autónoma da Madeira > Julho de 2008 > O Pico do Areeiro no seu esplendor...Foto de Augusto Pinto Soares (Porto)

Foto: Cortesia de Augusto Pinto Soares (2010). Todos os direitos reservados




1. Continuação da série Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (*). Autor: Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Como, Cachil e Catió) nos anos de 1964/66. 




Oficial e cavalheiro (7):  Golpe traiçoeiro de Cupido


A esplanada do Café Apolo, à tardinha, frente à entrada da Sé, voltada sobre a rua que desce até ao mar, abrigada do sol da tarde e perfumada pelas frondosas copas de árvores tropicais, com aromáticos sumos de maracujá a refrescar as mesas, podia muito bem ser um dos mais bonitos recantos do paraíso.Ali, a força sedutora das bonitas e devotas raparigas do Funchal atingia o seu máximo, quer ao saírem do átrio da catedral, mesmo em frente, quer ao descerem aquela rampinha edénica.


Naquela tarde, tudo aconteceu, súbito. Era a força do destino ou fosse lá o que fosse, como que a cumprir-se, diante de mim. Uns olhos vivos e doces, iluminando o rosto moreno e bem formoso, de uma das duas moças da mesa, além, cravaram-se em mim, inflamados por um sorriso tão intenso quanto discreto.


Senti-me tomado por uma autêntica visão. Como se estivesse a encontrar alguém que há tanto procurava… Fiquei totalmente aprisionado. Levantaram-se e caminharam as duas para os lados da Fernão Ornelas.


Leve como uma andorinha, alta, esguia e graciosa como uma garça, de cabelos pretos a escorrer, compridos e sedosos, sobre os ombros, ao longo de um pescoço bem dimensionado para a estatura de um corpo elegante, desapareceu na esquina da Sé, dirigindo-me, natural, um último sorriso faiscante e aturado, de simpatia.


O meu coração batia no peito, desenfreado, como nunca.Num instante, o pensamento percorreu, vertiginoso, todos os escaninhos da minha alma.


Tudo, em mim, gritava que aquela poderia ser a tal estrela…a que faltava ao sonho inebriante que eu estava a viver na Ilha da Madeira, sem contar.


Aturdido, levantei-me e fui no seu encalço. O tempo que demorei foi o bastante para que ambas viessem, já, no seu Fiat 600, cor de café com leite, lentamente, da Fernão Ornelas para a Avenida que vai dar à do Infante.


E, agora, quem será ela?…Como a encontrar?… Tirei a matrícula. O Funchal era pequeno e os automóveis não eram muitos. No dia seguinte, a divisão policial do trânsito estava a dar-me a morada do dono. Rua Engº Oudinot… Tudo batia certo. O telefone fez o resto.


Tão certa como eu, já estava à espera do meu telefonema. A voz bem feminina condizia com o olhar e toda a minha visão de sonho…Não havia tempo a perder. Naquele dia, às 5 da tarde, ao fim da Fernão Ornelas sobre a ribeira, frente ao mercado.




Oficial e cavalheiro (8): O Encontro Fatal


Pus o fato de ver a Deus, o único, cinzento, feito com todo o esmero pelo tio Zé Maria, logo a seguir à saída do seminário, óculos escuros e uma rica gravata encarnada, discreta, sobre camisa azul, impecável. Tomei a Fernão Ornelas, junto à Sé e fui andando, ansioso, até ao ponto combinado.


Muita gente ia e vinha nos passeios, dos dois lados ou estava parada, diante das montras abundantes das lojas de comércio, com as últimas novidades, vindas do continente ou das Ilhas Canárias, ali ao pé; as vendedoras de flores e as bordadeiras do costume, aqui e ali, enfeitavam, viçosas, o ambiente, sempre festivo.


Um belo dia de sol e ameno fazia jus de envolver aquele momento das duas vidas que se iriam encontrar. O mesmo rosto gracioso de ontem ali vinha, saliente, no meio do cortejo de pessoas que passavam a ponte da ribeira, tapada por uma colcha ridente de verdura e sempre florida.


Uma figura de vestido preto, a envolver um corpo perfeito, de linhas harmoniosas, em passos leves sobre sapatos de salto alto, encaminha-se, lenta mas decidida, para mim, como se já nos conhecêssemos, há muito.


O sorriso era terno e transparente. Todo voltado para mim, numa entrega total, sem artifícios. Os nossos olhos, discretamente, percorrem-se um ao outro, como que a tomar posse do que, havia muito, lhes pertencia, sem se conhecerem.


Agora, tinha-a, ali, ao meu pé. Era a confirmação de tudo o que no dia anterior se desvendara, em encontro súbito. Rosto oval vestido de pele sedosa e ligeiramente morena; cabelo, naturalmente escuro dava-lhe laivos de indiana; olhos muito bem emoldurados por sobrancelhas negras, bem desenhadas, espreitavam, vivos, ao meio de uma cortina de leves sobrancelhas, levantadas em arco de amêndoa; o sorriso reluzia em flor desabrochada, a exalar um perfume de simpatia abundante; o tronco era robusto e bem dimensionado, sem perder o charme feminino; um ventre totalmente maternal e atraente; umas pernas altas e bem torneadas; a voz, doce e quente como os seus braços.


Era uma flor tão bela como as orquídeas da Madeira que se me oferecia, como eu a ela, sem reservas e confiante, como prenda da minha vida, vivida até ali, em corrida esforçada e triunfal.


Tomámos o cortejo anónimo da Fenão Ornelas e viemos, em êxtase, sem falar, até ao centro do Funchal. Fomos sentar-nos na mesma esplanada do café Apolo. Todo o mundo em redor se apagou. Só nós é que contávamos, absorvidos, em fascínio de sonho.


As perguntas saíam de vez em quando, mas eram desnecessárias. O olhar falava por nós. O tempo voou… A noite veio mais depressa do que queríamos.
- Luís, tenho de ir para casa.
- É pena, respondi…


De novo, pela Fernão Ornelas, agora vestida de noite, luminosa. Nunca fora tão curta, nos seus 500 metros bem medidos…
- Amanhã, aqui, à mesma hora.


Um sorriso quente e largo de lua cheia e um aperto de mão bem apertado selou aquele primeiro compromisso.


(Continua)


[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
____________


Nota de L.G.:



10 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7256: Cartas, aos netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J.L. Mendes Gomes) (5): A masmorra do BII 19 e a boémia do Funchal

Guiné 63/74 - P7297: Notas de leitura (172): África A Vitória Traída, de Luz Cunha, Kaúlza de Arriaga, Bethencourt Rodrigues e Silvino Silvério Marques (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Novembro de 2010:

Queridos amigos,
Foi bom reler este depoimento do último governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné. O mais importante, parece-me, é o não dito, permitindo toda a ambiguidade de deixar o leitor à mercê da pura arbitrariedade de procurar ver nas entrelinhas. Referir que um plano de Defesa Nacional iria introduzir modificações de vulto no conceito de manobra e não mencionar os seus impactos é, penso eu, falsear a chamada retórica da objectividade, em que o prestigioso militar se estriba.
Não há ninguém que queira escrever sobre o recuo estratégico que estava em marcha na Guiné, naquele segundo trimestre de 1974?

Um abraço do
Mário


A vitória traída: o depoimento do Gen. Bethencourt Rodrigues

Beja Santos

O livro “África, vitória traída” (Editorial Intervenção, 1977), de autoria dos generais Luz Cunha, Kaúlza de Arriaga, Bethencourt Rodrigues e Silvino Silvério Marques, provocou algum furor na época. Viviam-se as sequelas das descolonização, a litigância para encontrar responsáveis pelo que tinha acontecido no termo do Império Colonial continuava a revelar-se como fenómeno político de duração. Já nessa altura os campos argumentavam com argumentos extremados, entre a direita radical e as várias vozes da esquerda, deixando no silêncio um vasto centro.

O que se diz na contracapa esclarece a intenção dos autores: “A vitória era possível. Em Angola estava à vista. A estratégia soviética, porém, atacou em Lisboa. E aqui ganhou o que estava a perder em África”. Os quatro generais (mais propriamente, três deles) procuram relatar os acontecimentos africanos como de uma possível normalidade, até com sucessos no terreno diplomático, na melhoria das condições de vida nos espaços afectados pela guerrilha, a situação de Portugal continental era de franco crescimento e com níveis apreciáveis na melhoria das condições de vida. Creio ser inútil voltar-se a pôr estes argumentos em cima da mesa e rebatê-los, não um a um, mas a partir do envolvimento internacional que se revelou irreversível no tocante à emancipação dos povos. A linguagem sofismada e a manipulação dos dados continua a fazer escola, como aqui já foi analisado, a propósito de um livro pretensamente rigoroso “Em nome da Pátria”, de Brandão Ferreira.

O que é verdadeiramente importante para o nosso blogue é registar como é que o último governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné avaliava a situação, ao nível do primeiro trimestre de 1974. Começando pela situação político-económico-social, Bethencourt Rodrigues destaca: o V Congresso do Povo, o universo escolar (61 000 alunos com 2200 professores) o incremente nas infra-estruturas da saúde e os problemas postos à população pelo abastecimento de arroz e o preço do pão. Embora as relações com o Senegal e a República da Guiné fossem praticamente inexistentes, o afluxo de cidadãos dos países vizinhos aos postos sanitários das localidades de fronteira não parava de crescer (em 1973, foram dadas mais de 60 000 consultas a tais elementos).

Quanto ao PAIGC, o general escreve: “O PAIGC demonstrava uma certa capacidade de comando e de organização. Esta capacidade de comando revelava-se, por exemplo, no adequado balanceamento de meios para a concretização de esforços sobre sucessivos sectores da fronteira e teve evidente expressão na coordenação de uma vintena de flagelações executadas em 20 de Janeiro de 1974”. Refere-se às facilidade oferecidas ao PAIGC pelos países vizinhos, à sua elevada capacidade de manobra podendo usar os cerca de 700 quilómetros de fronteira. Descrevendo o terreno, o general lembra as regiões com densidade de vegetação, apropriadas para o refúgio de guerrilheiros e onde o PAIGC instalou hospitais, escolas, lojas comunitárias e os seus órgãos primários de administração. Ir até este dispositivo inimigo exigia operações de certa envergadura. Mas nem de perto nem de longe o somatório destas zonas de refúgio atingia os dois terços da Guiné que o PAIGC reivindicava como superfície da “área libertada”. Após descrever a actividade militar do PAIGC no segundo semestre de 1973, o autor fala sobre o esforço do inimigo no canto nordeste (região de Canquelifá) e no sul (em especial Jemberém, Gadamael e Bedanda, onde provocou estragos avultados). No nosso dispositivo militar traduzia-se na existência de 225 guarnições militares, sendo 72 ocupadas exclusivamente por tropas do Exército e Armada, 82 por topas do Exército e Armada e unidades de milícias, e 71 só por unidades de milícias. O material de que dispunham as tropas portuguesas era, em alguns casos, qualitativamente inferior ao empregado pelo inimigo. E escreve: “Os meios aéreos também não eram os mais adequados ao tipo de apoio que se pretendia e que se carecia, sobretudo depois do aparecimento dos foguetes Strella”.

Em jeito de conclusão, o antigo Comandante-Chefe da Guiné refere uma vida na região condicionada pela guerra de guerrilhas mas dotada de uma relativa normalidade.

Olhando para o que se passava com o PAIGC, escreve: “O inimigo evoluíra progressiva e significativamente no seu conceito geral de manobra e no seu potencial militar, tanto humano como material, neste dispondo até de superioridade em algumas armas”.

A capacidade de iniciativa do comando das Forças Armadas Portuguesas estava fortemente condicionado. O traço enigmático do seu depoimento fica para o final destas conclusões: “A guerra estava militarmente ganha? Evidentemente que não. A guerra, na Guiné, «estava perdida no campo militar», como se tem afirmado com alguma frequência? Estávamos, na Guiné, «à beira de um desonroso colapso militar», como também se declarou? A situação na Guiné, no 1.º trimestre de 1974, concedia base àquela primeira afirmação ou apontava irremediavelmente para a segunda? Estas «notas», no rigor da sua objectividade, poderão ser, julga-se, elemento de informação útil para quem procure obter resposta a estas questões. Certo é que as guerras sempre foram e continuarão a ser lutas de vontades… e não só das vontades dos combatentes”.

Ou seja, o general não se compromete. O leitor que se entenda com o V Congresso do Povo, o asfaltamento das estradas, o apoio sanitário, o facto de que o PAIGC não controlava dois terços do território nacional e de que a capacidade de manobra do PAIGC aumentava de dia para dia. Claro que a situação militar era grave, tão grave que nesta linguagem praticamente asséptica, o general passa por cão por vinha vindimada: “Era uma situação extremamente exigente para os Comandos e também extremamente exigente e muito dura para as tropas, a requerer em curto prazo a adopção de medidas de âmbito local e no plano da Defesa Nacional, umas em planeamento ou já planeadas e outras em vias de execução”. É lastimável que o distinto general não tenha concretizado quais as medidas do plano de Defesa Nacional, já que elas estavam relacionadas com o pedido de demissão de Spínola que de modo algum aceitara ver abandonadas povoações e quartéis, indefensáveis a prazo com os novos armamentos do PAIGC. E não menos lastimável a que as pessoas que conhecem estes planos não escrevam e revelem que tipos de teatros de operações iríamos ter na Guiné, caso não tenha acontecido o 25 de Abril.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. último poste de 15 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7284: Notas de leitura (170): Fuzileiros – Factos e Feitos na Guerra de África, Crónica dos Feitos da Guiné, de Luís Sanches de Baêna (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 15 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7286: Notas de leitura (171): A Malta das Trincheiras, de André Brun (Arménio Estorninho)

Guiné 63774 - P7296: Blogpoesia (87): As consoantes e vogais do nosso livro de estilo (Luís Graça)



Aviso à navegação: Amigos e camaradas, camarigos: Nunca levem a sério os poetas... que são uns fingidores (garante o Fernando Pessoa). Neste acaso, este blogpoema é uma pura diversão. Não tem código postal. Leia-se: não há recados para ninguém. Espero, em todo o caso, que consigam lê-lo e cheguem ao fim... Não quero outra recompensa, senão o reforço da nossa camarigagem, como dirá o Jaquim... Darei por bem gasto o meu tempo, se o conseguir... (LG).




Contra o ponto (.) a vírgula (,)
Contra o ponto de exclamação (!) as reticências (…)
CONTRA OS TíTULOS DE CAIXA ALTA,
o ponto de interrogação (?)


Ou então abram alas, camaradas,
parênteses,
curvos (   )
ou rectos [  ],
e parem só aos sinais de proibição.
E ao Não!,  digam Não!...
E aqui carreguem nos sinais de interjeição:
Ai! ei! ii! oi! ui!
Que, com a vida sem pica, 
a gente fica
sem palavras nem (lo)comoção!

Ao sinal verde, toca a arrancar 
e a marchar
contra os OOO da arrogância,
os UUU da flatulência,
e os RRR do arroto,
mais os ÇÇÇ da doença, 
e, pior, os acen(t)os da demência.
Cuidado, ao final das escadas,
com o cano de esgoto.

War is over, baby,
bela bajuda de mama firme,
tira o chapéu de abas largas 
e atira flores aos que morreram,
em terra, no ar e no mar:
não os deixes morrer duas vezes,
agora de abandono
e de olvido.

Cuidado, camarigo,
trânsfuga,
refractário,
desertor,
prisioneiro,
inimigo,
comissário,
capelão,
comandante,
detractor,
miliciano,
agente duplo,
escriturário, 
artilheiro,
melec,
grumete,
xico,
cadete,
capitão,
crente ou ateu,
tanto faz,
e até tu, Maria Turra,
que no fim da picada,
podes ser cuspido, zás!, 
pela força centrífuga
do silvo da cobra cuspideira
que se mordeu
a si própria.

Quanto ao macaréu,
já não é o que era,
garantiram-me no Xime...
Deixaram assorear o Geba Estreito,
que crime!,
os administradores das águas fluviais
e braços de mar
e canais de irrigação 
da liberdade criativa.
Dizer que o trabalho é bom p'ró preto
não é politicamente correcto.
Corta.
Nem vocês já não se afoitam, pessoal,
de peito feito,
aberto,
contra os jagudis imperiais
do Corubal
que comeram as últimas letras do alfabeto.

Há que pôr os pontos nos ii,
no semáforo intermitente,
arrumar as botas,
brunir os colarinhos,
pensar na vida,
e no povo que está tolo, 
e abrir aspas
entre as falas em crioulo.
Enquanto o corpo está quente.

Até o  barqueiro, coitado,
perdeu o k da kanoa,
varada no tarrafo do Mato Cao.
Sem o til,
que o levaram p’ra Lisboa.

Há agora um fantasma de um quarteleiro
à procura das estrias, frias,
do morteiro...
Triste  samurai,
aquele que não encontra o fio da espada.
E, ai!
do pobre (a)tirador,
aquele que se mata a (a)tirar
o acento circunflexo da bala na câmara.

Encontrei um djubi,
numa escola do mato,
exercitando o seu estilo caligráfico,
em caderno de duas linhas,
de acordo com a norma do acordo
ortográfico.

Resta o  humorista,
o velhaco,
que é sempre o último a perder
os quatros humores,
já no  fundo da pista
onde acabam todas as peugadas:
Sangue, pouco e fraco,
fleuma, de mal a pior,
bílis amarela, q.b.,
e bílis negra, às carradas.
Que o último a morrer,
nem sempre é o que morre melhor.


Que o que faz bem ao braço,
faz mal ao baço.
E não há coração que aguente
a pressão hiperbárica
do pulmão.
O fígado, esse, mesmo de aço 
e de inox,
é um passador crivado
de balas etilicamente correctas.

Não sei o que é que faz mais urticária,
ao tabanqueiro viril,
se a  inveja do pobre em hidratos de carbono
ou a pesporrência do rico em sais minerais.
Resta a gramática da guerra de mil
e troca o passo,
e os seus heróis,
todos diferentes,
todos iguais.

Quanto à vida, baby,
no fundo,  é tudo tretas:
Sangue, suor e lágrimas...
é quando se tem 20 anos,
força nas canetas,
e muito esperma 
para dar e vender.
Agora já se não usam palavras com trema.
Nem eu sei o que farei
com  este poema.

De qualquer modo,
quando eu morrer
por falta de imaginação,
quero que  seja numa cama fofa,
de consoantes e vogais.
Sem travessão.
E mais: 
dispenso a notícia nos jornais.


 Luís Graça

Fonte: Excerto do "Livro de estilo do  membro (viril) da Tabanca Grande
quando  anda em guerras de baixa intensidade (de que Deus nos livre!)" (em preparação)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7295: (Ex)citações (109): Alguns considerandos muito intimistas (José Belo)

1. Mensagem de José Belo (*), ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente Cap Inf Ref, a viver na Suécia, com data de 16 de Novembro de 2010:

Caros Camaradas e Amigos.
(Alguns considerandos muito intimistas sobre um" certo temperamento" que, aparentemente, tem vindo a surgir em algumas das nossas intervenções dos últimos tempos).

A maioria de nós já faz parte desta Tabanca Grande há alguns bons anos. Julgamos conhecermo-nos, pelos contactos sucessivos e quase diários com o blogue. Todos temos o que se pode considerar "umas boas idades", de muitas (boas e más) experiências feitas. A diferentes profissöes, diferentes níveis literários, diferentes áreas geográficas (com as suas pequenas, mas importantes, tradições culturais e de relacionamentos), diferentes, interesses, diferentes ideias políticas ou religiosas, diferentes situações familiares, e, (näo menos importantes nas nossas idades) diferentes situações de saúde... somam-se os nossos "temperamentos" adquiridos nas (quer se queira ou näo) difíceis experiências de uma guerra que tivemos que enfrentar, precisamente, nos nossos anos formativos.

Para quem, como eu, vive tão afastado do "centro geográfico" da nossa Tabanca, torna-se talvez mais fácil sentir que é com demasiada rapidez, facilidade e agressividade, que alguns reagem às opiniões, ou ideias, expressas por outros, sejam elas em postes, ou nos comentários aos mesmos. Aparentemente, a nossa maldição tradicional na dificuldade em aceitar que outros pensem de modo diferente. Por tudo e por nada, recorre-se a bandeiras agressivas, a patriotismos (por certo profundos e sentidos pela maioria de nós) mas que, francamente, não necessitam de ser atirados para a frente numa... guerra santa, mal um de nós tem a infelicidade de dizer alguma "bacorada"!

O nosso querido Portugal tem já uma longa História de patriotas exaltados que continuamente procuram ocupar palcos ecoantes, em vez dos diálogos abrangentes... hoje mais necessários que nunca. Talvez por ler este blogue à distância de toda uma Europa, em temperaturas abaixo dos trinta graus negativos, a mais de mil e quinhentos quilómetros ao norte de Estocolmo, e num verdadeiramente extremo... "Trás-Os-Montes", (onde se anda normalmente dentro de um círculo de 500 quilómetros sem se encontrar uma pessoa ou uma casa), me aperceba melhor como o "rastilho" da paciência de alguns está a tornar-se bastante curto. Ao acompanhar as notícias que vão chegando de Portugal, ou as que por esta Europa rica se referem a nós, compreende-se que os que aí vivem estejam preocupados enervados, irritados, mesmo que para alguns isso seja ainda a um nível menos consciente. Haverá desta situação tão séria, e subjacente a tudo, um reflexo no tal "curto rastilho"? Talvez. Ou... se me desculparem o meu "assuecamento"... serão unicamente reacções resultantes de temperamentos de "Primas Donas em Terceiras Idades avancadas"?

No Natal que täo rapidamente se aproxima... paz na terra aos ...

Um grande abraco amigo do
J.Belo.
Estocolmo/16 Nov/2010.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7176: (In)citações (20): Os verdadeiros filhos da Guiné (Cherno Baldé / José Belo)

Vd. último poste da série de 10 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7253: (Ex)citações (108): Transferência de soberania com dignidade ou rendição sem honra nem glória ? Quando se olha para trás, é que se enxerga tudo... (José Gonçalves)

Guiné 63/74 - P7294: Carta aberta a... (5): Professores António de Oliveria Salazar e Marcello Caetano (António Graça de Abreu)


República Popular da China > 2009 > O nosso camarada mais "sínico (mas não "cínico"...) da Tabanca Grande, cruzando o famoso Rio Yangtsé, na província de Sichuan, o maior rio da Ásia com os seus cerca de 6400 km de comprimento...


Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu junto ao obus 14.... Antes estivera em Teixeira Pinto. Terminará a sua comissão em Cufar, no sul, nas vésperas do 25 de Abril de 1974.

A 8 de Abrild e 1974, em Cufar, escreve no seu diário: "De Lisboa a minha mulher continua a dizer-me coisas de espantar. Ao fim deste tempo todo, por exemplo: 'Não contas senão o superficial, a tua vivência aí chega a mim só pela rama'. Como é possível?!... Em vinte e um meses e meio fui três vezes a Portugal,  da Guiné escrevi-lhe trezentas e quarenta e sete (347, tenho tudo numerado!) cartas e aerogramas, desdobrei-me na narrativa, na descrição minuciosa do meu quotidiano e desta guerra, desde os muitos pormenores aparentemente insignificantes aos contextos maiores em que vivo. 'Não contas senão o superficial'. Como é possível ?!..." (in Diário da Guiné..., 2007, p. 211).



Fotos: © António Graça de Abreu (2009). Todos os direitos reservados.


1. Texto que o António Graça Abreu me mandou, com pedido de publicação, em 21 de Maio de 2009... Entretanto, ele seguiu para uma longa visita à China (e à família da sua mulher, que é médica), regressou,  passou-se o verão e, contrariamente ao que eu tinha prometido, a famosa carta aberta aos Senhores Professores António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano não foi metida no correio nem chegou aos seus destinários...

Nunca saberia como pedir desculpa ao António, pessoa e escritor, além de camarada, que eu muito prezo, por este lapso (monumental)... Mas, por outro lado, ele tem todo o direito de estar zangado comigo. Por muito que já tenha incorporado, nestes anos todos,  alguns dos valores, atitudes e comportamentos típicos da milenar cultura chinesa (por ex., dizer de maneira impassível e elegantérrima o quão está zangado comigo), ele também tem uma boa costela nortenha... Na melhor altura sai bordoada. E antes que isso aconteça, eu faço o meu jogo de cintura... E venho aqui, humildemente, em público,  pedir aos deuses para aplacarem  a sua ira...

Uma coisa eu sei: o António (não) é homem de (res)sentimentos...

Por fim mas não menos importante, quem verdadeiramente deve estar zangado comigo é o nosso caro leitor a quem foi negada a possibilidade, neste ano e meio, de ler e fruir este documento de belo recorte literário e de mordaz ironia, sob a forma de carta aberta aos dois políticos que formataram este país e este povo, durante mais de meio século... Não é um documento panfletário, é uma reflexão relativamente serena sobre oportunidades perdidas por e para todos nós...

Mas é também uma carta de confiança no futuro (que bem precisamos dela, nos tempos que correm), de confiança em Portugal, e nos portugueses, de confiança e de ORGULHO na geração, a nossa,  que soube fazer a guerra e a paz: "Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes".

Finalmente,  a carta vai chegar ao seu destino (*)... LG


2. Carta aberta aos Profs. António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano


Introdução


António Graça de Abreu, ex-alferes miliciano na Guiné-Portuguesa, humilde cidadão que teve a ventura de nascer no ano de 1947, durante a longa jornada autocrática de V. Exª., Sr. Presidente do Conselho Dr. António de Oliveira Salazar, e depois de viver extremadamente os últimos anos da ditadura mole e pouco iluminada de V. Exª., Sr. Prof. Marcello Alves Caetano, também Presidente do Conselho, confessa, do fundo das circunvoluções do seu desgastado coração, que anda há um ror de anos com vontade de vos escrever.

A primeira dificuldade, para além da minha inabilidade e ausência de qualidades para me dirigir a tão excelsas e ilustres figuras da nossa História Contemporânea, tem a ver com o embaraço de enviar esta carta para o espaço adequado. Qual o lugar onde hoje se encontram, Excelentíssimos Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano? No fofo azul do Céu, nas agruras amarelas de uma passagem prolongada pelo Purgatório, nos calores vermelhos do Inferno?

Como não sei qual foi o destino que para vós Deus escolheu (dependente por certo de tudo quanto executaram ou mandaram fazer na vossa breve/longa vida terrena), envio esta carta para o blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, na certeza de que terá um molho bem cheio de leitores, gente de excelente qualidade, e que V. Exªs., onde quer que estejam, a irão ler.

Este blogue do Luís Graça na Internet  -- coisa que não existia no tempo de vossas vidas-- é um imenso sucesso de comunicação. São testemunhos de ex-combatentes da guerra na antiga Guiné Portuguesa, trocas de opiniões, entendimentos, desentendimentos, desabafos, uma espécie de terapia colectiva, muitos anos após o regresso dessas paragens quentes e amargas que nos marcaram a todos.

A segunda dificuldade, ao escrever esta carta, prende-se com o modo de vos tratar. “Excelências, Senhores Presidentes do Conselho, Prof. Dr. Salazar, Prof. Dr. Marcello Caetano”? Todas estas denominações vos pertencem, associadas à importância e dignidade dos cargos que, em ditadura, ocuparam ao longo de tantos anos.

Ora, há uns três meses atrás, o António Lobo Antunes, ex-oficial miliciano médico em Angola, 1971/1973, na crónica que assina na revista Visão, escreveu um texto algo zangado com Deus que, no início de 2009, lhe levou dois dos seus melhores amigos. E António Lobo Antunes resolveu tratar Deus por tu. Ele é um pouco, ou muito despassarado, mas enfim…

Eu também tenho as minhas guinadas e manias, mas pairo baixo, a razoável distância do autor de Os Cus de Judas. E os Profs. Salazar e Marcello também não são deuses.

Não me levem a mal por, em bicos de pés no alto do meu banquinho de escritor pequeno e medíocre, (mas com quinze livros publicados), desejar tratar-vos igualmente por tu, com todo o respeito. Mas acho que não sou capaz.


A História

O nosso Portugal é uma das nações mais antigas da Europa. Fechados neste rectângulo, de costas voltadas para Espanha, tínhamos o oceano diante de nós. E, a partir do século XV, antes de quase todos os outros povos, embarcámos na ousadia e na loucura de navegar o mar. Áfricas, Américas, Índia, China, Japão, Austrália, nada do que eram então os grandes mares e as imensas terras desconhecidas parece ter escapado às quilhas das naus, ao calcorrear português, ao entendimento, nem sempre esclarecido, das gentes da pequena pátria lusitana. Demos “novos mundos ao mundo”, é verdade. E fixámo-nos em muitos desses lugares. Fomos ficando. Em meados do século XX ainda estávamos em Macau e Timor, na Índia, em Moçambique e Angola, nas ilhas de S. Tomé e Cabo Verde, na Guiné.

Depois de descobrirmos mais de meio mundo, face à pequenez do Portugal europeu, alimentámos naus e naus carregadas de mitos e sonhos. O bom do padre António Vieira (1608-1697) acreditava ainda num impossível Quinto Império lusitano espalhado pelo mundo e falava de nós como os que “têm a terra portuguesa para nascer e toda a terra para morrer”.

No século XIX construímos a ideia irrealista de um mapa “cor-de-rosa” a unir, sob domínio português, as terras de Angola e Moçambique. Na I Guerra Mundial (1914-1918) enviámos forças expedicionárias para França, para a Flandres, entre outras razões, para mostrar que tínhamos força (não tínhamos!..) e que outras potências europeias seriam mal sucedidas se algo fizessem para se assenhorearem das nossas colónias. Tivemos quinze mil mortos, (corrijam-me se estou enganado!),  bons filhos da terra portuguesa, nessa guerra estúpida e inútil. Como quase todas.

Em 1953, escrevia o general Norton de Matos, em choque aberto com V. Exª., Dr. Salazar, e que mais tarde haveria de se candidatar a Presidente da República pela chamada Oposição: “Que a vossa principal tarefa seja o engrandecimento da Pátria, dignificando-a (…). Não deixais que ninguém toque no território nacional. Conservar intactos os territórios de Aquém e Além-Mar é o vosso principal dever.” (in Norton de Matos, A Nação Una, Lisboa, Ed. Paulino Ferreira e Filhos, 1953).

Tudo isto V. Exª. conhecia, Dr. Salazar e, na linha do pensamento tradicional português e até do de alguns dos vossos opositores, Portugal afirmava-se “uno e indivisível”, estender-se-ia do Minho a Timor, eram “muitas raças, uma só nação”. Uma utopia, um sonho lindo e perigoso, inevitavelmente condenado pelos ventos e avanços da História.

A partir dos anos sessenta do século XX, quase todas as colónias das nações europeias em África transformaram-se em países independentes. Sabemos hoje que muitas dessas independências foram prematuras e constatamos como muitos dos pobres povos dessas terras, libertos do nada meigo jugo colonial, têm sido tratados pelos seus governantes africanos e chefes associados ao tribalismo, à incompetência, à corrupção, ao esmagamento dos mais elementares direitos humanos.

No que a Portugal diz respeito, naquele fatídico ano de 1961, perdíamos a Índia e logo de seguida iniciava-se a luta armada em Angola, com o massacre pela UPA (União dos Povos de Angola) de milhares de portugueses inocentes. O ódio racial era real e antigo, ao contrário do que a propaganda do regime de V. Exª., Dr. Salazar, queria esconder. A tese das “muitas raças, uma só nação” continuava a ser enganosa e iria provocar imensos sofrimentos ao povo português e aos povos de Angola, Guiné e Moçambique.

A Guerra

“Orgulhosamente sós” embarcámos aos milhares, de armas na mão para lutar contra o “terrorismo” em Angola. Em 1963, com o eclodir dos conflitos armados na Guiné e em Moçambique, novos espaços de guerra se abriram para os portugueses. Os chamados Movimentos de Libertação organizavam-se, contavam com poderosos auxílios externos (União Soviética, China, etc.) e Portugal fez um esforço tremendo para combater, com algum êxito, esses guerrilheiros que acreditavam lutar por um futuro melhor para a Pátria deles e queriam pôr fim a quatro séculos de mau colonialismo. O sangue, a dor, a morte passaram a fazer parte do quotidiano de Angola, Guiné e Moçambique.

Sempre na senda de um “passado glorioso”, da exaltação da nossa História, e também por razões económicas -- Angola era, é, talvez o país mais rico de África – V. Exª, Dr. Salazar, insistia na “defesa da Pátria”, e V. Exa., Dr. Marcello Caetano, excelente professor na Faculdade de Direito de Lisboa, não discordava uma linha da política ultramarina seguida por Salazar.

Em 1968, eu não era nada de especial, tinha vinte gloriosos anos, vivera já durante um ano em Hamburgo, na Alemanha e, na Faculdade de Letras de Lisboa, fazia parte da Direcção da Pró-Associação de Estudantes e do Grupo de Poesia e Canção da Faculdade. Muitas vezes eram da nossa responsabilidade as primeiras partes dos espectáculos semi-clandestinos do Zeca Afonso, do Adriano, do Fanhais, do Zé Jorge Letria. Eu dizia poemas do Pessoa, da Sophia, do António Gedeão. Deste último, ainda sei de cor a Lágrima de Preta. Ignoro se V. Exas, Salazar e Marcello, são muito dados a estas coisas da poesia, mas aí vai:

Encontrei uma preta que estava a chorar
Pedi-lhe uma lágrima para analisar,
Recolhi a lágrima com todo o cuidado
Num tubo de ensaio bem esterilizado.
Mandei vir as bases, os ácidos, os sais,
As drogas usadas em casos que tais.
Nem sinais de negro, nem vestígios de ódio,
Água, quase tudo, e cloreto de sódio.


Podem pois adivinhar de que lado político eu me situava. A PIDE já me tinha debaixo de olho e o meu processo na PIDE (podem consultar, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PIDE/DGS, procº. 9175 C7 NT 7555) é muito interessante e equivale às medalhas que, por bem, não ganhei na Guiné Portuguesa.

Os tempos tinham mudado, em finais dos anos sessenta do século passado cada vez mais pessoas e muita juventude, sobretudo a que frequentava as universidades, começava a contestar a vossa autoridade e a justiça das guerras em África.

E o vosso erro foi não terem entendido, para bem de Portugal e dos povos africanos, que a era gloriosa da Pátria portuguesa espalhada pelos quatros cantos do mundo pertencia a uma História de que nos podemos e devemos orgulhar, mas era apenas isso, o passado.

V. Exª., António de Oliveira Salazar e depois, a partir de 1969, V. Exª., Marcello Caetano, descartavam as hipóteses de negociações com os movimentos de libertação. E os conflitos não tinham solução. Não conseguíamos vencer os guerrilheiros em luta, nem éramos vencidos por eles.

O povo português, os povos africanos sofriam barbaridades. Em nome de quê, porquê, para quê? Vocês estavam a adiar o inadiável, o inevitável.

Em 1968, V. Exº., Dr. Salazar nomeia o então brigadeiro António de Spínola para governador e comandante-em-chefe das tropas na Guiné. Spínola, que fora tenente-coronel em Angola, apercebe-se da impossibilidade de se ganhar militarmente a guerra. A questão era política, sempre foi política e ao lançar a estratégia política de Uma Guiné Melhor António de Spínola pretende transformar o “inimigo em nosso amigo”. Consegue alguns resultados e o PAIGC treme. Spínola começa progressivamente a alicerçar a ideia de uma muito maior autonomia para os territórios ultramarinos, uma espécie de federação lusófona, e inicia estranhas negociações com o “inimigo” que, em 1970, se viriam a saldar pelo cruel e cobarde assassínio de três majores portugueses por guerrilheiros do PAIGC.

V. Exª., Dr. Salazar, tinha caído da cadeira de lona no forte de Santo António do Estoril, batido com a cabeça no chão e incapacitado, ainda sem acreditar, terminava o seu longo consulado ditatorial ao leme dos destinos tortos de Portugal.

V. Exª., Dr. Marcello Caetano, era um homem mais aberto e moderno. Mas não acabou com a ditadura, nem com a polícia política, nem com a asfixia da sociedade portuguesa. No que às guerras de África dizia respeito, foi muito mais “continuidade” do que “evolução”. Portugal permanecia num doloroso beco sem saída.

Até que em 1973, de início por razões reivindicativas e corporativistas que tinham a ver com promoções na carreira, um grupo de capitães, oficiais do quadro permanente, todos marcados pela inutilidade, irracionalidade e impossível solução das guerras de África, decide avançar para um golpe militar e depor o regime que governara Portugal a partir de 1926.

V. Exª., Dr. Salazar, desde 1970, dormia o definitivo sono dos injustos na sua campa térrea de Santa Comba Dão. E V. Exª., Dr. Marcello, foi exilado para o Brasil. As guerras de África iam acabar porque o problema tinha solução, era, sempre foi político.

O que veio a seguir já não é da vossa responsabilidade, sois apenas culpados por ter protelado, adiado até ao impossível, uma necessária solução política para os conflitos em África.

A descolonização, como sabem, foi um inenarrável desastre, as tragédias da guerra civil em Angola, os conflitos em Moçambique, os massacres em Timor, o fuzilamento de centenas de militares e civis africanos na Guiné, homens que tinham combatido ao nosso lado ou apoiado as tropas portuguesas, enfim todo um rosário de mágoas, dor e morte que não terminou com a independência desses territórios. Como foi possível, pós independência, que quase todos os mais destacados e heróicos comandantes da guerrilha do PAIGC também tenham sido mortos em lutas intestinas entre eles? Como é possível que hoje, ano de 2009, quase metade das mulheres da Guiné-Bissau estejam ainda sujeitas à excisão do clitóris, uma prática bárbara, atentatória dos mais elementares direitos da mulher, direitos humanos? Como é possível que hoje, 2009, em Bissau não exista uma única livraria?

Mas não foi para me debruçar sobre estes temas que vos escrevi. Vamos falar de nós.

Combatentes

A minha mulher é chinesa [, foto à esquerda], criada na Xangai comunista, República Popular da China, onde nasceu em 1961. Há dois anos atrás, quando resolvi ir buscar o meu diário de guerra na Guiné, mais uns aerogramas da época [, foto à direita], e comecei a passá-los ao computador prevendo uma possível publicação em livro, a minha mulher zangou-se comigo. Via-me sofrer ao reescrever os textos, constatava como aquele diário ainda bulia comigo, houve dias em que, na escrita, algumas lágrimas me rolavam pela face, e ela não gostava. Fala bem português, está em Portugal há 24 anos e disse-me mais ou menos o seguinte:

“Então que prazer estúpido tens em mexer nesses papéis, tu afinal pertenceste a um exército colonial que andou a matar os pobres dos pretos. Não é melhor tentar esquecer tudo isso e dedicar o teu labor a trabalhos mais saudáveis”?!...

Em Julho de 2008 tentei e consegui convencê-la a ir comigo a Fátima, ao segundo encontro dos camaradas da CCaç 4740, com quem estive em Cufar, sul da Guiné, durante dez meses. Fomos à missa (o que raramente acontece!) com muitos dos homens da companhia 4740 e ao almoço com eles e famílias. E a minha mulher entendeu por fim o que une estes antigos militares da Guiné. Compreendeu, em palavras simples, como somos amigos, entendeu a alegria que temos em nos reencontrar, em recordar, em nos sentirmos irmãos.

[ À esquerda, capa do livro do nosso camarada António Graça de Abreu, Diário da Guiné: Lama, Dangue e Água Pura.  Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007.... Em cima, à direita, um original aerograma, escrito em linhas concêntricas, reproduzido no livro].


É isto, senhores Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano, que vos quero dizer, dar-vos a conhecer a evolução das nossas vidas. A guerra marcou-nos a todos, mas somos hoje companheiros fraternos, camaradas de armas recordando um duro passado comum, em terras que não eram as nossas, mas que continuam a exercer sobre nós todos os fascínios. Fomos obrigados a fazer uma guerra, é verdade, mas a grande maioria de nós também sabia fazer a paz, quase todos tiveram a humanidade e a dignidade de sair de cabeça levantada dessa guerra.

Centenas de milhares de homens passaram pelas guerras de África. Quase nove mil combatentes, no melhor dos seus vinte anos, lá perderam a vida. “Malhas que o império tece”, ou melhor, malhas cerzidas por uma política cega, de que vocês os dois foram os principais fautores.

Os meus heróis são os soldados portugueses que tombaram para sempre numa guerra injusta tendo por horizonte as bolanhas, o tarrafo e o verde e vermelho da bandeira portuguesa, os meus heróis são esses guerrilheiros anónimos do PAIGC que caíram no seu campo de luta.

A Guiné

O velho Confúcio, nascido na China antiga no ano de 551 a.C., disse mais ou menos o seguinte: “Se conheces, actua como homem que conhece, se não conheces, reconhece que não conheces. Isso é conhecer”.

Como, apesar dos meus 62 anos, conheço ainda tão pouco, devo confessar-vos, Drs. Salazar e Marcello, que neste blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné tenho aprendido muito sobre o que aconteceu nos onze anos de guerra na Guiné e sobre esta essência tão obtusa de sermos portugueses.

Os testemunhos dos homens que viveram o conflito é sempre e naturalmente plural. Os nossos dois anos de Guiné tiveram cenários e tempos diferentes, as terras fulas de Bafatá e Nova Lamego (Gabú), o chão manjaco, com o Cacheu e Teixeira Pinto (Canchungo), Mansoa e o Morés, no sul, as terras do Tombali e do Cantanhez. Diversos espaços de luta, de excelente, extraordinária camaradagem e também de sofrimento. Ora, a Guiné dos anos 1964, 1967, 1970, 1972 ou 1974 não corresponde exactamente a um mesmo enquadramento logístico e estratégico. A guerra prolongou-se por onze anos. Depois, hoje escrevemos de memória, trinta e tal, quarenta e tal anos transcorridos. E a memória esquece, distorce, obscurece, exalta o entendimento.

Mesmo assim, muitos dos testemunhos dos ex-combatentes neste blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné assumem-se como marcos fundamentais das nossas vidas, imprescindíveis para entender quem fomos e somos.

Recomendo-vos vivamente a leitura do blogue, Profs. Salazar e Marcello.

Transparece, no entanto, em alguns dos textos publicados no blogue, reflexo também de falsas ideias feitas em estratos da sociedade portuguesa, uma constante ideológica de assumir culpas, de lançar culpas para o parceiro do lado, de subestimar as forças militares portuguesas e, lógico, de sobrevalorizar o poder dos guerrilheiros do PAIGC. Política, má política.

Fomos obrigados a combater contra povos pobres que acreditavam lutar por um futuro mais risonho para as suas pátrias. Não fomos militarmente derrotados. Porque, quase sempre fomos bravos, “forte gente” com “fracos reis”, como diria o nosso Camões.

Mas, V. Exª., Dr. Marcello Caetano, com algum fundamento, estava assustado com o que acontecia na Guiné, a partir de Abril de 1973, com os mísseis Strela e com a debandada de Guileje. Em Lisboa, com censura nos jornais, sem liberdade de imprensa, corriam extravagantes boatos. Dizia-se de boca bem aberta, mas à boca calada, que os aquartelamentos portugueses no sul da terra guineense caíam uns após outros. Contava-se que um quartel, a 30 quilómetros de Bissau, havia sido tomado pelo PAIGC, com centenas de mortos. Em Junho de 1973, à noite, às escondidas, em muros da cidade de Coimbra, alguém escrevia : “se tem o seu filho na Guiné, considere-o morto.”

Em V. Exª., Dr. Marcello Caetano, a preocupação crescia. Em Junho de 1973, mandava chamar o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Costa Gomes, recentemente regressado da Guiné e perguntava-lhe:

--A Guiné é defensável e deve ser defendida?
(…) A resposta do General Costa Gomes foi categórica:

-- No estado actual, a Guiné é defensável e deve ser defendida.”

(in Marcello Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1974, pag.180.)


A menos de um ano do 25 de Abril, Costa Gomes considerava a Guiné “defensável”, o que era verdade em termos militares. Sim, mas à custa de tantos sacrifícios!… Quanto ao “deve ser defendida” era a perpetuação da tese política da defesa cega das terras africanas do império.

A Guiné-Bissau tornou-se um país independente a 23 de Setembro de 1974 e logo depois Costa Gomes chegou a Presidente da República portuguesa. As malhas rotas que o império tece.

Conclusão

António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano, Excelências

Espero que tenham lido com atenção esta minha despretensiosa carta. É apenas um desabafo do coração, mas espero que, graças ao fantástico e extra-terreno blogue do Luís Graça, tenha chegado ao vosso mundo.

Nós hoje, somos ainda uns duzentos mil ex-combatentes da Guiné. Sexagenários e septuagenários, jamais esquecemos esses cada vez mais distantes dois anos das nossas vidas. Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes.

Com vinte e poucos anos, quase todos nós demos o melhor de nós próprios (às vezes a própria vida) numa guerra que não desejámos. Mas temos orgulho na nossa bandeira e nesse estranhíssimo sortilégio de se nascer português.

Homens, ex-militares da Guiné, somos hoje duzentos mil irmãos.

Saúda-vos, com pouca amizade, o

António Graça de Abreu
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Nota de L.G.:

(*) Poste anterior desta nova série > 25 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7034: Carta aberta a... (1): Camarada (de armas) António Lobo Antunes (António Graça de Abreu)