1. O nosso Camarada António Martins de Matos (ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74, hoje Ten Gen Pilav Res), enviou-nos hoje, dia 16 de Dezembro, a seguinte mensagem:
Camaradas,
Aproveito para desejar a todos os camarigos um bom Natal.
Será que a cúpula do PAIGC queria ganhar a guerra?"
Isto de escrever para o blogue tem que se lhe diga, aos poucos vamos criando os nossos hábitos e raízes, por outro lado os camarigos também nos vão catalogando conforme as nossas ideias e a nossa maneira de escrever, bom, mau, rambo, realista, esquerdista, salazarista, desbocado...Pela minha parte tenho feito os possíveis por me manter fiel ao que vivi na Guiné, contando factos e tentando justificar as minhas opiniões com coerência e sem grandes floreados ou divagações.
O que não impede de por vezes me caírem em cima, não pelo cerne da questão mas por pequenas ninharias, se disser que “quatro é igual a dois mais dois”, alguém refila, que não senhor, que a minha visão está deturpada, a verdade verdadeira é que “quatro é igual a cinco menos um”. Feitios.
Mas tenho que reconhecer que às vezes também é bom dizer umas m... sair das baias do dia-a-dia, entrar no disparate, gritar umas inconveniências, partir a louça, que a vida são dois dias e de tristezas já está o mundo cheio.
E para defender este meu ponto de vista, já lá dizia um português dos imortais que “mais vale experimentá-lo que julgá-lo”, não vos estou a dar nenhuma novidade, mesmo que nunca tenham lido o Camões já todos certamente “o experimentaram”.
Até porque tudo isto também é importante para a satisfação do nosso ego, anda por aí um alemão a ver se nos cala (o Alzheimer), qualquer dia já nem nos lembramos de como se atam os sapatos.
Tinha que dar esta introdução, um pouco longa, porque hoje resolvi pôr em cheque a minha pequenina reputação e avançar para o desconhecido... nada de factos devidamente comprovados... só suposições, bocarras de fazer tremer as paredes, só teorias disparatadas e ideias malucas.
Nesta ordem de ideias o tema que hoje proponho vai-vos dar cabo da cabeça, é um desafio ao pessoal da Tabanca, os mais nervosos que fiquem a ver a telenovela.
Dos que quiserem afrontar a coisa depois que ninguém se corte, que aqui não há pegas de cernelha, todos entram de caras, os comentadores de serviço, os ideólogos e pensadores, os estrategas, passando igualmente pelos historiadores, pelos rambos, pelos normais e anormais, os que sabem tudo e os que só sabem que nada sabem, enfim, os que passaram por terras da Guiné e que ainda gostam de pensar com as suas cabeças.
Se já estão bem instalados frente ao computador, limpem os óculos, apaguem o cigarro antes que engulam a cinza, ponham a mulher, filhos e eventuais netos com destino e preparem-se para o embate.
E a pergunta que faço é a seguinte:
Será que os políticos do PAIGC queriam ganhar a guerra?
OK, já estou a ver a vossa cara de espanto, semblante carregado e testa enrugada, surpresos, “o gajo passou-se”, “foram os cortes do Sócrates”, “ o FMI”, “ o Sporting que só lhe dá desgostos”... e por aí fora.
Tenham calma, não me julguem antes que as minhas ideias possam ser passadas ao papel e devidamente lidas e interpretadas pelas vossas mentes iluminadas.
Deixem-me explicar as minhas teorias, se no fim chegarem à conclusão que me fartei de dizer asneiras, atirem-me com um cartão vermelho directo, cartões amarelos já não me causam mossa, passei a vida a coleccioná-los.
Estão prontos? Cá vai:
O PAIGC, Partido para a Independência da Guiné e Cabo Verde tinha duas correntes de funcionamento, os guinéus a vergar a mola, de bolanha em bolanha, umas vezes emboscando, outras vezes emboscados, vida difícil…
A outra corrente, os cabo-verdianos a angariar apoios, Nova Iorque, Estocolmo, Moscovo, até foram a Roma visitar o Papa... vida difícil...
E todos eles sabiam (uns e outros) que no final, quando os portugueses se cansassem da guerra e abandonassem a Guiné, uma “outra guerra” iria começar, a luta interna pelo poder e pelas suas mordomias (parece que passados estes 36 anos ainda não acabou)!!!
Os guerrilheiros do mato, essencialmente balantas, manjacos e mandingas estariam mais que desejosos de ver o fim da guerra, eram sempre os mesmos, a fonte de recrutamento era bem escassa.
O dia-a-dia do PAIGC sempre foi incerto, por um lado conseguiam saber dos movimentos da nossa tropa quando esta saía dos quartéis, podendo assim avaliar as forças em presença e, num jogo de gato e rato, calcular se podiam ou não enfrentar-nos.
Por outro lado nunca conseguiam adivinhar para onde se dirigiam os aviões G-91 que todos os dias descolavam de Bissalanca a fim de largar uma série de bombas numa das chamadas “zonas libertadas”.
Ao contrário do normalmente apregoado, os guerrilheiros do PAIGC não podiam ser muito populares junto das populações.
Os comissários políticos iam falando de uma Guiné livre mas, para além de retórica, nada mais ofereciam, antes pelo contrário, “roubavam-lhes” os parcos víveres e levavam à força os jovens em idade de combater.
Do lado do opressor, o nosso, entre outros apoios respondíamos às suas questões através dos “Congressos do Povo”, dávamo-lhes armas para se defenderem e assistência médica H-24, por sinal bem superior à que tinham (e ainda hoje têm) os habitantes de Trás-os-Montes.
Sim, que eu deixei algumas vezes de almoçar para ir buscar uma parturiente ou um doente a Susana ou Cacine ou Buruntuma.
Que fique “clarinho clarinho” como costumam dizer os militares, a “Guiné Libertada” não passava de uma utopia, o pessoal do PAIGC tanto morria no meio da bolanha e em combate contra as tropas portuguesas como a descansar nas ditas “zonas libertadas” do Morés, Caboiana ou Cantanhês, só eram “libertadas” enquanto os portugueses não fizessem intenção de lá ir.
Como exemplo do que acabo de afirmar, o Cantanhês, dizia o PAIGC ser uma área totalmente controlada e onde até planeavam declarar a independência.
Quando em finais de 1972 Spínola resolveu reocupar aquele território e lá estabelecer 3 novos quartéis (Cafine, Cadique e Caboxanque), logo se acabou essa coisa de “zona libertada”, a população fugiu mas logo voltou, até gostou da mudança, os guerrilheiros é que tiveram que atravessar o rio Cacine em passo de corrida.
Igualmente em Setembro de 1973, quando o PAIGC declarou a independência supostamente nas terras libertadas de Medina do Bué, os intervenientes estavam num outro local, bem escondido e ao abrigo de um eventual ataque aéreo.
Certamente estariam para lá da fronteira, não podiam arriscar ser detectados e pôr em perigo a vida dos seus convidados, até porque já tinham tido essa má experiência.
No ano anterior e durante a visita de uma delegação da ONU, tinham passado as passas do Algarve para se safar da enrascada, com os pára-quedistas no seu encalço.
Por outro lado e ao contrário do que normalmente consta, o PAIGC não era bem recebido no Leste da Guiné, já que os fulas nutriam uma maior simpatia pelos portugueses.
No Bué e por mais que procurássemos naquelas terras desérticas nada encontrámos que pudesse indicar a preparação de uma cerimónia.
Comparando as fotos tiradas na altura com as de tempos anteriores tudo continuava igual, sem o mais pequeno vestígio de qualquer movimentação.
Não contentes com as fotos, os nossos amigos Páras ainda tinham ido ao local, dar uma mirada, não enxergaram nem vivalma, tudo continuava como havíamos deixado.
Na eventualidade de ainda aparecer alguém por aquelas paragens, acabámos por lá deixar uma prenda, uma daquelas louças típicas das Caldas (não é gozo, é a mais pura das verdades, há fotos a comprovar).
Não sei se os camarigos sabem mas nós dispúnhamos de cobertura fotográfica de toda a Guiné, renovando-a periodicamente e assim descobrindo as diferenças existentes entre fotos tiradas no mesmo local mas em tempo diferente, trilhos, tabancas, machambas, cambanças...
Este reconhecimento fotográfico era maioritariamente feito pelo avião Dakota e posteriormente interpretado por uma equipa especializada da Base.
Os voos do Dakota até acabaram por ficar registados em filme, conforme aparece na série “ A Guerra” do jornalista Joaquim Furtado, na área do Morés vê-se de súbito a população da dita “área libertada” a refugiar-se por causa da aviação.
E por entre a folhagem das árvores lá se vê passar o pachorrento Dakota, nada de agressivo, tão só a fazer umas fotos.
Todo este palavreado para chegarmos à conclusão de que a Força Aérea seria a principal causa do desconforto do PAIGC.
Para se furtarem aos G-91, Heli-canhão, T-6 e até por vezes o DO-27 com foguetes nas asas (ideia bem parva de um qualquer iluminado), só para lá das fronteiras é que podiam garantir o estar em segurança e sem receio de serem bombardeados.
Passo seguinte, se a FAP era o calcanhar de Aquiles, como a neutralizar?
Lá chegamos aos STRELAs e aos MIGs.
Dos STRELAs já aqui se falou inúmeras vezes, asseguraram os comissários políticos à população que nunca mais seriam bombardeados e, no entanto, nunca e em tão curto espaço de tempo tantas bombas caíram sobre as suas cabeças.
Algumas dessas equipas de mísseis fora mesmo pulverizadas pois, ao dispararem da orla da mata, acabaram por permitir o referenciar das suas posições.
Constou-nos igualmente que algumas das equipas dos STRELAs acabaram por ser averbadas pela própria população, descontentes com as promessas entretanto feitas e não cumpridas.
Com os MIGs foi uma outra história, agora é que ia ser... ia do verbo ir... nunca ninguém os viu e nunca nada aconteceu!!!
E pronto, não conseguiram descortinar mais nada, soluções esgotadas.
É neste ponto que chegamos ao vértice da questão.
Então não havia outras maneiras de tentar aniquilar a FAP?
Deixem-me por momentos envergar a camisola do PAIGC e planear medidas contra os Tugas:
MEDIDA 1
Todos os dias e sempre à mesma hora (19:00), um autocarro Mercedes tipo TP21 saía da Base de Bissalanca em direcção a Bissau, transportando os pilotos que quisessem ir jantar ao Pelicano ou Solar do Dez, ou às ostras...
Quantos pilotos seguiam no autocarro?
Umas vezes 8, ou 13, ou 17, dependia da qualidade do jantar na base, carne ainda a coisa aguentava, se fosse peixe dava um autocarro cheio.
E todos os dias à mesma hora (21:00) o autocarro regressava à Bissalanca.
O local para um possível encontro, a estrada entre a Base da Bissalanca e o quartel mais próximo, uma recta de uns bons dois quilómetros de completa escuridão, tabancas de um lado e do outro.
Agora imaginem 3 guerrilheiros devidamente fardados de paisanos e uma bazuca, um deles a ver se o autocarro vinha cheio, caso contrário adiava-se a coisa para o dia seguinte, outro a municiar e outro a apontar e disparar.
E no fim até podiam deixar a bazuca de prenda e ir comemorar o resto da noite ali ao Pilão, era bem perto.
Já perceberam porque razão comprei uma moto?
MEDIDA 2
Eu e a maioria dos pilotos de G-91 morávamos em Bissau.
Por vezes acontecia que, já noite cerrada, alguém me batia à porta.
Abria-a com a mesma ligeireza com que abro a porta da Pensão Montanha quando vou ao cozido da Dona Preciosa.
Uma das vezes apareceu-me um jovem africano a pedir dinheiro para livros de francês, disse ele “quando vocês forem embora o francês passa a ser mais importante que o inglês”, o rapazito até sabia de política internacional.
Imaginem, se em vez do estudante aparecesse o...
MEDIDA 3
Que raio de ideia quererem MIGs, isso era material demasiado caro.
Receita bem mais económica, uma avioneta das mais vulgares, daquelas que não custavam mais que o Mercedes do delegado do PAIGC em Nova Iorque, um piloto (dos mercenários do Nigéria/Biafra, não eram caros), um voluntário para fazer de ajudante e uma caixa de granadas.
Descolagem ao entardecer, de Ziguinchor ou de Boké, navegação calma e suave com o apoio das luzes dos quartéis dos tugas, evitar a Base Aérea que tem antiaéreas, chegada a Bissau já de noite, largada da carga uma a uma, alvos preferenciais, os depósitos de combustível da SACOR, o CG, o Palácio, o Solar do Dez... o granel na cidade.
E se não tivessem granadas, podiam largar tijolos que o efeito seria muito semelhante, os voos da TAP para Lisboa esgotavam-se nos meses seguintes.
Sem me querer alargar mais, qualquer destas três medidas podia acabar rapidamente com a guerra.
Tudo o que acabo de dizer tem um denominador comum que dá pelo nome de “Terrorismo Urbano”, utilizado no Vietname, Argélia, Cuba, País Basco... enfim, em todos os locais onde a vontade da população em correr com o opressor é grande.
Por que razão nunca aconteceu na Guiné?
Alguém sabe?
Será que os guinéus em Bissau se sentiam bem com os portugueses ou, pelo contrário, queriam ver-nos pelas costas?
E as populações do mato?
E a população de uma tabanca da qual já não me lembro o nome, onde fui buscar um jovem a quem os curandeiros da aldeia já nada sabiam o que fazer para o salvar, e que, duas semanas depois, tive o privilégio de voltar a devolver à tabanca, fresco que nem uma alface e já sem o apêndice.
Alguém acredita que aquela população nos queria ver pelas costas?
E havendo tantos cabo-verdianos no PAIGC por que razão não havia terrorismo em Cabo Verde? E nos Bijagós?
Vão-me responder que era por serem ilhas? Bah, que falta de imaginação!!!
Então os pensamentos e vontades do PAIGC eram alimentados pelo povo local ou tinha a ver com coisa importada?
Terá sido por isso que já depois do 25 de Abril e nas cerimónias de entrega de vários quartéis, grande parte dos guerrilheiros só falava francês?
E todos estes nossos camarigos que nos dias de hoje vão à Guiné e são recebidos de sorrisos abertos, será que ainda não perceberam que eles sempre gostaram de nós?
Estas e outras questões seriam interessantes para conversar com os nossos amigos, os antigos membros do PAIGC.
Perguntas que provavelmente ficariam sem respostas pois que, passados todos estes anos e apesar de um franco diálogo (dizem), continuamos sem conseguir saber como foram os acontecimentos vistos do seu lado.
Como resultado da democracia por lá instalada, os nossos amigos afectos ao PAIGC leram todos pela mesma cartilha, a versão oficial diz que para eles só houve vitórias sobre vitórias, esquecendo algo importante, que as derrotas também podem ajudar a unir um povo.
E se alguém duvida destes comportamentos, basta ler as últimas páginas do livro do Cor Calheiros “a Última Missão”, contêm um depoimento do Comandante Manuel dos Santos, “Manecas”, Comissário Político da Zona Norte.
Neste texto e a propósito da operação dos Comandos Africanos a Cumbamori, afirma que o que é relatado pelos nossos militares, o armamento e os paióis destruídos, as baixas sofridas, tudo isso não passou de pura fantasia e que a operação Ametista Real em nada os afectou.
Nós reconhecemos termos tido inúmeras baixas, eles zero, nicles, null, népia...
Enfim, opiniões!
Em resumo, andámos nós e eles (os militares) a peneirar anos e anos pelos buracos da Guiné enquanto que nós e eles (os políticos) andaram a sofrer as agruras da guerra pelas salas de conferência dos Hotéis de 5 estrelas.
O 25 de Abril acabou por mudar as variáveis.
Para os militares (os portugueses e os balantas, manjacos e mandingas) significou o fim dos combates, nós fartos, rodávamos a tropa de dois em dois anos, eles bem pior, eram sempre os mesmos.
Para os políticos foi o fim de muita coisa.
Do nosso lado uns partiram para um exílio dourado, enquanto outros regressaram de um exílio dourado.
Para os nossos políticos o trabalho seguinte foi fácil, independência para todos já, quer queiram quer não queiram.
E foi o que se viu, até os que não queriam ser independentes (S. Tomé) tiveram que se chegar à frente.
Aos políticos do PAIGC a transição foi bem mais difícil.
A partir desse dia tiveram que regressar à Guiné, deixaram o papel de “Executivos” e passaram verdadeiramente a arriscar a vida, tentando passar por entre as gotas da chuva, sobreviver aos vários “ajustes de contas”, aos golpes e contragolpes, até só sobrarem os “Eleitos”.
Passada essa fase má (já passou?) o democrata Nino Vieira lá acabou por correr com os políticos cabo-verdianos do PAIGC e, de golpe em golpe, a Guiné lá se tem conseguido transformar em país charneira para o tráfico de droga.
E os políticos que sobreviveram a tudo isto, devem andar a pensar:
“Estávamos tão bem sem termos que ganhar a guerra...”
Um abraço,
António Martins de Matos
Ten Pilav da BA12
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
1 de Dezembro de 2010 >
Guiné 63/74 – P7366: FAP (56): MIGs, MIRAGEs e miragens (António Martins de Matos)