1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Janeiro de 2011:
Queridos amigos,
Prestes a findar a Operação Tangomau, abraço os camaradas da CCaç 12 com quem tive o privilégio de conviver.
Fui aos Nhabijões, informo quem lá habitou ou calcorreou aqueles lugares e viu nascer o reordenamento que há grandes mudanças, felizmente sente-se ali um viver com mais qualidade que no Bambadincazinho, por exemplo.
Peço desculpa pelo material dos Nhabijões não ser o mais elucidativo, já eram 5 horas, lutava contra o tempo e queria assistir ao pôr-do-sol no Bairro Joli. Mas às vezes a intenção é tudo.
Um abraço do
Mário
Operação Tangomau (15)
Beja Santos
Destes Nhabijões de sangue, suor e lágrimas
1. As instruções que o Tangomau dá a Lânsana Sori são muito simples: lá em baixo no Bambadincazinho viramos à esquerda como se fôssemos para Amedalai, muito antes inflectimos para os Nhabijões, vamos só visitar o Nhabijão Mandinga. Irei recordar gente que sofreu, inopinadamente. A motocicleta lança-se no chão alcatroado, alguns quilómetros à frente avistam-se os ciclistas da região com quem se esteve a confraternizar, concretamente Sadjo Seidi, Califo Djau e Zé Finete. Novos abraços, responde-se às perguntas sobre esta presença inusitada, para eles é insólito que o Tangomau visite os Nhabijões, mesmo sendo certo e sabido que toda este território foi calcorreado até às bolanhas de Samba Silate. Como abreviadamente se conta.
Desde Missirá que se sabia que os guerrilheiros de Madina e Belel também utilizavam a cambança do Geba nestes pontos, não era só a região de Mero, em frente a Finete. Por duas vezes se tinham destruído canoas na orla do Cuor, uma vez na orla dos Nhabijões. Aqui também chegavam civis e militares afectos ao PAIGC, vindos do Buruntoni e locais afins. Os povos guineenses estavam divididos mas não se denunciavam, sobretudo quando vinham desarmados e disfarçados percorriam o quartel de Bambadinca, iam às compras e obtinham informações.
Depois veio o reordenamento dos Nhabijões, por ali o Tangomau andou com o pelotão ou deixava secções para a chamada protecção das populações, a partir de Novembro de 1969. Foi um reordenamento de vulto, dos maiores que se fizeram na Guiné: seis grandes tabancas foram construídas de raiz, com saneamento básico, escola, mesquita. À margem desse reordenamento, impunha-se policiar Samba Silate, era provavelmente a grande tabanca antes da guerra, depois deu-se a diáspora, uma parte importante foi para a guerrilha, outra derramou-se por territórios beafadas, Bambadinca e Bambadincazinho, Badora e Cossé.
Policiava-se a partir dos Nhabijões à procura de canoas e subia-se até a Amedalai. Esta era a lembrança que o Tangomau retivera, depois de regressado, em 1970. Refizera a vida e adestrara as emoções para ficar longe desse passado recente. Mas em [13 de Janeiro de] 1971 alguém lhe trouxe uma notícia infausta: houve uma mina nos Nhabijões, matou o soldado condutor Soares e feriu alguns mais, até com gravidade. Ora o soldado Soares, por força das actividades de recoveiro exercidas pelo Tangomau e sua tropa, levava-o e trazia-o por itinerários como Madina Bonco, Galomaro, Bafatá, Ponte de Udunduma, Madina Xaquili, coisas assim. Dava para conversar, cedo se apurou que o Soares era temperado, curioso e de trato irrepreensível.
Quando foi derrubado pela notícia da sua morte, o Tangomau fixou-se para todo o sempre nas leituras do condutor Soares, eram obras simples como A Peregrinação contada às crianças, romances de Júlio Dinis, sínteses da Eneida e da Odisseia. Sobre este formidável sinistro está tudo dito e redito no blogue, não se levam flores, leva-se a memória até esse caminho que mudou a vida de pessoas.
2. No passado, saia-se de Bambadinca e por caminhos sinuosos, qualquer coisa como 3 quilómetros entrava no Nhabijão Mandinga, daí passava-se para o Nhabijão Mancanha, inflectia-se à esquerda para Nhibajão Bulobate, daqui para o Imbume, depois o Bedinca e finalmente o Cau, curiosamente quem olha para o mapa, serpenteiam a rica bolanha de Samba Silate até à orla do Geba estreito.
Agora a viagem é diferente, ampliou-se o velho trilho antes de Amedalai, perto do rio Udunduma, é uma linha recta flanqueada por cajus e cabaceiras. Não é bonito nem feio, o que importa é a hora do dia, o sombreado cor de ouro, as pessoas que vão e vêm, sempre a acenar e sorridentes. E súbito, o Tangomau volta 40 anos atrás, ali está uma casa do seu tempo, muito provavelmente são as chapas ali colocadas no tempo em que o governador assistiu à inauguração. Percorrem-se vielas e travessas, sim, confirma-se que há metamorfoses mas há muitos sinais do passado. É nisto que se juntam populares, o Tangomau dá explicações, um ajuntamento ruidoso persegue-o entre o mundo de ontem e o que se construiu depois.
3. Em 1969, vimos plantar este arvoredo, estas são as casas desse tempo e quando não são guardam a lógica do reordenamento. O fundamental é que os guias perceberam que a visita incide sobre a memória do lugar, primeiro, e já se questionou onde fica a velha estrada, é importante ir ao local exacto onde se deu a deflagração e onde gente companheira experimentou um grande sofrimento.
Vão-se fazendo perguntas, há ali construções novas, cooperativas, unidades de saúde, infra-estruturas suportadas por ONG e até por missões. É o caso desta imagem, ali há muita actividade, ensina-se empreendedorismo, desenvolvimento rural, ensina-se artesanato e algo mais. Que bom apontar-se para o futuro, para o trabalho e para o desenvolvimento humano. Tira fotografia!
4. Deste local, junto à estrada, vamos a pé, em comitiva, vamos mudar de rumo, à procura da velha estrada, onde tudo aconteceu. Sim, há boas diferenças, Lânsana Sori no regresso percorrerá esta estrada até chegarmos, por portas e travessas, ao antigo quartel.
Os Nhabijões cresceram, são o subúrbio do Bambadincazinho, mas aqui há agricultura florescente e já foi dito que a pesca traz bons alimentos. E dois quilómetros à frente, alguém exclama em voz alta: “Aqui foi mina, rebentou aqui e rebentou quando veio atrás!”. Alguém se acocora e aponta, o Tangomau, como é uso e costume, brada: “Não te mexas, o pessoal da CCaç 12 vai recordar esses momentos de aflição”. Terá sido este o local onde deixou de viver um jovem que sonhava com a família e que lia adaptações de João de Barros e António Sérgio. E o Tangomau curvou-se respeitosamente perante essa memória.
5. Aqui, segundo a descrição de quem guia o Tangomau, o Unimog terá recuado, alguém mostra a pedra chamuscada, fez-se clareira com a nova explosão, não interessa exactamente o que aconteceu, está tudo registado e é até muito provável que não tenha sido exactamente assim. O que comove o Tangomau é o afã dos seus acompanhantes, a sua expressão, imitam sons das explosões, é genuína aquela procura de reproduzir os pontos exactos onde o drama aconteceu. Alguém aponta para esse local onde a viatura voltou a explodir.
Nova imagem, se não foi exactamente assim o Luís Graça que reponha a verdade, pode ser que se esteja a descrever tudo ao contrário, não sei veio aqui com intuitos de cronista, é tudo lembrança, o Tangomau até ultimamente se tem encontrado com o
Marques, que tanto penou com este acidente. Coisa estranha, o Tangomau lembra os camaradas de quarto, um tal Francisco Magalhães Moreira, que vive em Santo Tirso, um tal Abel Rodrigues, que vive em Miranda do Douro, lembra operações, colunas, fainas um pouco mais banais, perigos em comum. E capta imagem, lembrando todos, como se dessa explosão tivesse resultado mais estima.
6. Olha, diz um dos guias, aqui ficou tudo chamuscado, um meu pai contou-me que havia uma grande cratera, tapou-se, agora o mato esconde tudo. Alguém mais repara que aqui já o Unimog era um destroço, corpos à deriva, gritos de espanto e de pavor.
É nisto que o Tangomau se lembrou de um poema de Sebastião da Gama intitulado Cristo, e de forma avulsa, ajuntou alguns versos para recordar o soldado condutor Soares: “Ó meu Jesus heróico, / meu Capitão, afasta / com Tua mão direita, / afasta a Morte, afasta-a, / que ainda não a mereço (…) Era de tarde. O Vento / dava nas ervas, punha-as / de rastros, humilhadas. / Jesus passou. / -: Ergui-me.”.
Desculpa lá, ó Soares, desculpe lá ó Marques, foi o que me veio à cabeça, talvez não tenha jeito nenhum, mas é o que eu queria dar em preito à malta da CCaç 12. [Sobre uma segunda mina, duas horas depois da que matou o Soares, leia-se o poema de L.G. > Blogpoesia >
À uma e meia da tarde, na estrada de Nhabijões-Bambadinca]
7. A visita está concluída, depois desta homenagem singela. Caminha-se para o lusco-fusco, Lânsana promete um passeio de regresso com algumas surpresas. Tira-se a última fotografia dentro do Nhabijão Mandinga, pena foi não ter havido oportunidade para andar dentro da bolanha e fazer de Samba Silate o árduo caminho até Amedalai.
Felizmente que as viagens se recomeçam, para tanto basta que a curiosidade coexista com a vontade de regressar a esta terra bem-amada. Aí o José Saramago tem toda a razão: o que se vê de dia, com chuva, não é o que se vê noutro dia, ensolarado; e o que se vê em Março não é o que se vê em Setembro, e por aí adiante. Acresce que o Tangomau teve o privilégio de conhecer esta natureza em todos os segundos do dia, com chuva torrencial, com o pó a esquentar os pulmões, com o céu de chumbo dos tornados, as noites esbraseadas no auge da época seca. E à saída do Nhabijão, ele diz para si, sem que ninguém oiça: até breve, prometo voltar.
8. Sabe-se lá quando voltará o Tangomau ao Bairro Joli. A motocicleta vai à desfilada e é nisto que se apanha a última luz do dia. É que grande dia este 28 de Novembro de 2010! Primeiro a confraternização, aquela beleza, aquela ternura do Tangomau poder abraçar os seus bravos. E depois os Nhabijões.
Durante décadas, ninguém quis, nas artes plásticas, registar as nossas condições de guerra. Foi nesse contexto de indiferença que um dia um grande pintor,
Manuel Botelho, se atirou à captação das guerras. Recorreu e recorre frequentemente às coisas do blogue. Hoje é o último dia em Bambadinca. Saudemos em primeiro lugar o pôr-do-sol, aquele momento derradeiro que o Tangomau nunca esqueceu. E depois mostre-se a imagem que o Manuel Botelho gravou da grande tragédia dos Nhabijões.
Entretanto, hoje é jantar de despedida, a visita bem importunou esta família do Bairro Joli, amanhã, está prometido, Fodé e Calilo Dahaba aparecerão pelas 8 da manhã. Iremos no carro de combate para a última jornada do Tangomau, em Bissau.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 19 de Janeiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7640: Notas de leitura (191): Intervenção Rural Integrada, a experiência do norte da Guiné-Bissau, de Mamadu Jao (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 15 de Janeiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7618: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (14): Aquele domingo de festa no Bambadincazinho