Caros Luís, Vinhal e Magalhães Ribeiro:
Recebam um grande abraço com o desejo de que estejam em forma. Abraço esse extensivo a outros co-editores e colaboradores deste insuperável Blogue.
Aqui vai mais uma página “arrancada” das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”, curiosamente uma das primeiras.
Manga de saúde para Vocês.
Rui Silva
Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.
Das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”
A PARTIDA (… e a viagem)
Fui mobilizado, como Furriel miliciano e com a Especialidade de Armas Pesadas, integrado na Companhia de Caçadores n.º 816, para servir o Exército no Ultramar, mais propriamente na colónia da Guiné, pedacinho de terra na Costa Ocidental de África, aonde portugueses de antanho destemidos e aventureiros levaram e implantaram o nome de Portugal.
Depois de algumas semanas em Santa Margarida, e após formação no BC 10 em Chaves, as Companhias de Caçadores, entretanto tornadas independentes (após dissolução do Batalhão), 816, 817 e 818 abalaram para a Guiné.
E foi assim que aos 21 de Maio de 1965 embarcámos no Niassa então aportado no cais de Alcântara em Lisboa.
O Niassa ia então fazer uma longa viagem, a viagem toda. Levava tropa até Timor, deixando alguma em Angola, Moçambique e julgo que em Cabo Verde e S. Tomé também.
Sairíamos em Bissau. A viagem mais curta no tempo, mas a mais temerária. A Guiné naquela altura era o pior sítio da guerra Colonial, ao que se dizia.
Nunca mais esqueço aqueles momentos da maior emoção que vivi no cais de Alcântara, naquela manhã de sol radioso e céu limpo e azul aquando do embarque da Companhia.
Eram avós, pais, irmãos, esposas, madrinhas de guerra, namoradas a despedirem-se daqueles que partiam, e partiam com o espectro de não se saber se voltavam. Lágrimas, longos abraços e beijos, tudo que um grande estado emocional podia despojar na hora de uma separação algo dramática.
Gente anónima ou curiosos, também por ali.
Era cerca do meio-dia, a hora pré-fixada para o embarque.
Esses momentos de rara emoção foram também, primeiro, do desfile de nós, militares, que antecedeu o embarque; depois, a subida na escarpada escada que ligava o chão do cais ao convés do barco, diante daquela multidão que nos acenava vibrante e incessantemente, e, depois, o Hino Nacional que, com ênfase, foi tocado pela Banda Militar, ao mesmo tempo que o barco se afastava lenta e progressivamente do cais e deixava para trás, a nossa terra, a nossa família, os nossos amigos… e muitas das legítimas ilusões.
Senti um arrepio.
Quadro só ali visto e sentido.
Não suportei que duas lágrimas se me aflorassem nos olhos.
Antes de ir para o meu camarote (?) (3-4 camas em beliche) olhei ainda lá em cima, do outro lado do Tejo, o Cristo-Rei que, de braços abertos, parecia querer abençoar-nos.
E a ponte sobre o Tejo já em fase adiantada de construção.
Foto reproduzida, com a devida vénia de “mlisboaantiga.web.siplesnet.pt”
Deparei então com as mais variadas das reações nos meus colegas naquela hora de desenlace: uns, impotentes, deixavam as lágrimas correrem livremente o seu curso; outros denotavam apenas uma expressão de tristeza, outros ainda, aparentando serem fortes, davam palmadas nas costas daqueles que exteriorizavam a sua amargura. Outros ainda continuavam a acenar… a acenar… a acenar até que o cenário da multidão no cais se diluiu com a distância.
Um bocado de todos tinha ali ficado.
Foram cinco dias de amena e agradável viagem, sempre num mar calmo. Um pequeno conjunto musical, julgo privativo do Niassa, e já com alguma veterania, com suave e tranquila música, na sala do bar, procurava também minimizar a ansiedade da tribo.
Uma foto muito especial no convés do Niassa, pois nela podem-se ver o Comandante da Companhia (Luís Riquito), Oficiais, Sargentos e Praças, todos da 816.
Estes dias serviram também para enfortalecer mais os laços de amizade e companheirismo reinantes entre a malta. Afinal éramos companheiros da desdita.
Em alegre confraternização, conversando, jogando às cartas - logo na primeira noite perdi 400 “paus” a jogar ao “abafa”, depois nas outras passei a ser um simples espectador.
O plafond pré-estabelecido tinha-se esgotado logo ali -, tirando fotografias por todo o barco, contando anedotas, falando das “madrinhas de guerra”, escrevendo (o primeiro contacto com os aerogramas) à família, ou àquela que poderia vir a entrar naquela, ou simplesmente contemplando a linha do horizonte, (quantas vezes!) delimitativa daquela imensa toalha de água que envolvia o barco – impressionava aquele cenário aparente de ser só nós e a água, no mundo -, assim se passou o tempo a bordo. Isto sem esquecer a bebedeira do Luís José (meu camarada também Furriel da 816) no dia em que ele arranjou muitos amigos ao abrir a mala e sacar do bom presunto e do bom chouriço que a sua mãe muito bem soubera aprontar.
Tudo em latas com pingue hermeticamente fechadas a solda de estanho. Era para uns tempos.
O que ele levava para uns tempos ficou-se praticamente por aquela noite.
Outra foto de militares da 816 no Niassa
Muitas vezes apoiado na amurada do navio olhava a linha do horizonte procurando respostas para as minhas interrogações. Como será? Como não será? Da Guiné só ouvi falar, - e de forma muito vaga - nos bancos da primária. Dizem que aquilo é de morrer com o calor. Que a água é péssima e provoca doenças. Cada um dava a sua dica, ou positiva ou negativa e conforme o seu estado d’alma.
Que trabalhos, que sacrifícios me esperavam?
Falou-se também que a estatística apontava em média para 2 mortos por Companhia em toda a comissão. Ora como uma Companhia tinha cerca de 160 homens…
Após cinco dias e cinco noites de ininterrupta e tranquila viagem, chegamos!
Começamos por vislumbrar ao longe a costa africana. O denso matagal num verde luxuriante a contrastar com o azul do céu totalmente limpo. Cada vez a terra mais nítida, mais próxima.
Já com o cenário da Guiné a ocupar-nos o campo visual, via-se algures no mato aqui e ali colunas de fumo. Era a guerra? Supostamente que sim. “Fazem aquilo para nos meter medo”, alguém disse.
E a pouco e pouco, Bissau se foi tornando nítida e próxima.
A marginal, orlada das típicas palmeiras, com todo o ar de belo e natural que tem as paragens africanas.
O barco ancorou um pouco ao largo (~1/2 milha) do cais, pois a profundidade da água, na altura, ali, era pouca para a envergadura do Niassa se aproximar mais.
Foi nas LDM,s (embarcação rudimentar, de linhas a direito e construída em chapa de ferro), que cobrimos aquela distância que separava o agora imobilizado Niassa do cais de Bissau.
E pronto, ali estávamos para o que desse e viesse. Tudo ainda era ilusão, tudo era esperança, tudo fervilhava no meu cérebro em inúmeras interrogações.
Ainda me recordo, - ficou-me na retina - quando peguei no meu saco de campanha e na minha mala (civil) de cartão e pus o primeiro pé na Guiné.
No convés do “Niassa” eu e o meu grande amigo e Furriel de Transmissões da 816, Luís José
Três Furriéis empoleirados no Niassa; os das pontas, da 816
Ao acabar de subir os poucos de degraus de pedra que separavam a linha da água do piso do cais, deparei com um Alferes conhecido do RI6 do Porto que assistia ao nosso desembarque. Logo “metralhei-o” com perguntas: Como é isto? Para onde vamos, sabe? etc., etc..
Compreensível e com muita paciência foi-me respondendo como sabia ou como não sabia.
Fomos então conduzidos em viaturas militares até ao quartel de Brá. Atravessámos a cidade a uma boa velocidade (parecia que a guerra era já ali) e ainda me recordo como casualmente fixei um café com uma esplanada arborizada, o qual viria a ser, também por casualidade, o “meu” café, sempre que vinha a Bissau: O Café Bento. O café onde eu comia uma sandes de tablete de chocolate a puxar a cerveja.
Quando pedi ao nativo empregado que me trouxesse um pão partido ao meio a tablete tal e uma cerveja ele olhou-me com cara de quem estaria a ser gozado. Convenci-o e ele atendeu-me. O café ficava cá em baixo, ao fundo da Avenida principal (avenida esta que começava lá em cima na Praça do Império onde estava o Palácio do Governador -na altura este era Arnaldo Schultz-), muito perto do ângulo com a marginal e do lado esquerdo para quem se voltava para o mar.
Já em Brá deram-me uma G3. A Companhia não tinha armas pesadas, só… serviço pesado… à nossa espera.
Palácio do Governador na Praça do Império em Bissau. Cá fora, sou eu, não é o Governador
(Segue-se: O REGRESSO - muita sorte!)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 5 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 – P9001: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (15): As “Piscinas” dos Furriéis da 816