Assunto - Estória de mais um filho do último CEM do CTIG Coronel Henrique Gonçalves Vaz
(...) Consegui autorização para publicar a 'estória' do meu irmão José Pedro, que
se encontra no Brasil como Administrador de uma Empresa Portuguesa (é engenheiro
mecânico de formação), sobre um dos diversos episódios que viveu na Guiné, nos
anos de 1973/74, aquando das visitas que fazia à família, já que se encontrava
na Escola Naval, em Lisboa a estudar. Enviou-ma hoje do Brasil. Podem
Publicar. (...)
2. História no Ultramar com José Pedro Gonçalves Vaz [, na foto acima, aos 17 anos, na ilha de Bubaque, Bijagós]
Bissau-Cufar-Cadique
Data: Dezembro de 1973
Sempre tive algum receio de voar, para não dizer medo (que fica muito mal para quem hoje viaja tanto de avião como eu), mas nos meus 17 anos eu queria muito era experimentar o helicóptero.
Estava eu na Guiné a passar umas férias de Natal, em 1973, com os meus pais, quando soube que o meu pai, que era na altura, o Chefe do Estado-Maior do CTIG, coronel Henrique Gonçalves Vaz, ia visitar uns aquartelamentos no Sul da Guiné. Julgo que era Cufar e Cadique ! O plano de visitas dessa semana ao “mato” do meu pai, era esse. O que me lembro melhor é que soube que iria de helicóptero, oh que maravilha!…
Passei essa semana a pedir ao meu pai que me levasse nessa saída. Para que se perceba, eu apesar de ter apenas 17 anos, era já um jovem cadete da Escola Naval, como tal seria “normal” ir-me habituando ao Teatro de Operações da Guiné, no entanto não era esse o meu pensamento, o que eu queria era “ter acção” de helicóptero!
Depois de muito insistir, ele lá concordou em me levar. No dia D, pelo mês de Dezembro de 1973 (nas minhas férias de Natal), entregou-me, logo ao início da manhã, um camuflado (e uma G3) e disse:
- Veste-o, e prepara-te bem já que vais ver o que te espera logo que saíres da Escola Naval!
Eu, todo contente, lá o vesti. O tamanho, era de um tipo muito mais pequeno do que eu! Ficava com metade das pernas e dos braços “descamuflados”! Tenho pena de não ter fotografias dessa minha experiência marcial. Depois das habituais recomendações, que incluíam o uso da G3 em caso de ataque e a responsabilidade do grupo, lá nos dirigimos para o local de embarque.
Último CEM do CTIG, nesta fotografia ainda major Henrique Gonçalves Vaz, não no rio Cumbijã na Guiné, mas no rio Chiloango, em Cabinda (1964 ) com apoio dos Fuzileiros. Como era de sua “tradição”, visitava todos os aquartelamentos, para onde realizava operações como oficial do Estado-Maior. Cadique não foi esquecido, como muitos outros aquartelamentos no Teatro de operações da Guiné, nos anos de 1973 e de 1974.
Oh… grande desilusão! Afinal, por qualquer razão logística de que não me lembro (talvez a necessidade do helicóptero nesse dia para evacuar feridos nalguma zona do TO), a viagem não ia ser realizada de helicóptero mas sim por outros meios de transporte. Não me lembro bem até chegar ao rio Cumbijã, mas o que era costume (informações de ex-combatentes) era ter ido de avião até Cufar (que fica entre Catió e Bedanda) e depois, e disso lembro-me muito bem, fomos de sintex até Cadique, na outra margem do Cumbijã.
Chegados ao rio tivemos direito a um pequeno briefing para iniciarmos a parte mais crítica, visitar Cadique pelo rio Cumbijã. O medo e a adrenalina estavam em níveis crescentes, e finalmente recebi instruções e lá me instalei com o restante pessoal, deitado no fundo da embarcação com a G3 apoiada na borda a apontar para a minha margem. Saímos do porto grande no rio Cumbijã em direcção ao aquartelamento de Cadique seguindo rio abaixo até que chegámos ao nosso destino, no lado oposto do rio relativamente ao ponto de partida.
Nesse percurso lembro-me muito bem da tensão na viagem, sempre à espera de sentir uma saraivada de balas disparadas de alguma das margens com o tarrafo bastante alto, mas eu estava bem “mentalizado” para uma reacção imediata da nossa parte. Hoje penso que tivemos muita sorte em não termos sido atacados. Naquela altura, terei ficado um pouco desiludido já que, nessa idade, somos todos um pouco loucos.
Do que lembro hoje, a viagem decorreu sem qualquer incidente, com uma duração que me pareceu um eternidade, mas não foi, já que cada barco sintex tinha um valente motor de 50 cavalos, com uma velocidade de cerca de 18 nós e o percurso não teria mais que meia dúzia de km. A “escolta” do CEM/CTIG, não ultrapassaria dois sintex com uma dúzia de militares bem equipados e com sentido de missão.
Chegámos, finalmente, a Cadique e tive mais uma desilusão, o nosso destino não passava de um aquartelamento cercado de arame farpado com meia dúzia de “tabancas” em redor. O Comandante, o Tenente-coronel Sousa Teles (1) teve um meeting com o meu pai, do qual recordo apenas a discussão sobre o número de rádios e outros equipamentos que o Comando do CTIG poderia disponibilizar para esse aquartelamento. A minha impressão actual é que a visita do meu pai, o CEM/CTIG, coronel Henrique Vaz, teria também o objetivo de expressar um apoio aos militares que ali combatiam em condições adversas já que, pelo que sei hoje, Cadique era frequentemente fustigada por ataques do PAIGC. Depois de tratarem dos “negócios” militares, convidou-nos então a dar uma volta de jeep pelo exterior do quartel.
Recorte de uma imagem do mapa da Guiné (escala 1/ 500 mil), onde é possível ver a localização do campo de aviação em Cufar, bem como o itinerário entre o porto novo de Cufar e Cadique.
Mais uma surpresa, naquele fim de mundo havia uma estrada asfaltada [, Cadique-Jemberém], no meio de uma selva cerrada, que, não acredito, levasse a lugar algum!
Ao fim de algum tempo (pouco…), encontrámos duas mulheres negras que caminhavam na nossa direcção. O Comandante parou o jeep e iniciou uma conversa com as mulheres numa linguagem para mim completamente estranha. Subiu uns pontos na minha consideração, pois falava perfeitamente o dialecto local… Impressionante! Depois de se despedir das mulheres, virou-se para o meu pai e disse:
- Meu coronel os “turras” estão aqui perto pelo que, sem escolta (só íamos os três, mas eu levava a minha G3…), não é aconselhável ir mais além. O meu pai concordou com o oficial conhecedor da “realidade” local e voltámos para trás.
Cadique, em 2008, integrado na área do Parque Nacional de Cantanhez. (Fotografia gentilmente cedida para este artigo pelo ex-combatente Eduardo Campos, membro da nossa Tabanca Grande, ex-)
Do regresso, nada me lembro, não me impressionou comparado com o que tinha acabado de viver naquele local recôndito, bonito mas perigoso.
Nunca me esqueci de duas coisas desta estória, e que foram importantes na minha vida: (i) o dilema que o meu falecido pai, coronel Henrique Gonçalves Vaz, deve ter tido para me autorizar a ir com ele; (ii) e o profissionalismo daquele Comandante do mato.
Um ano após este episódio cheguei à conclusão que a minha vocação não era a carreira militar e mudei de ramo.
Curitiba [, Brasil,] 30 de Janeiro de 2012
José Pedro Beleza Gonçalves Vaz
(filho do último CEM do CTIG na Guiné)
Fotos: © Luís Gonçalves Vaz (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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Nota do editor:
Último poste da série > 6 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9004: Estórias avulsas (117): Posto avançado ou vala comum? (Carlos Filipe)