MEMÓRIAS QUE O TEMPO NÃO CONSEGUE APAGAR (3)
Sou Transferido para o Batalhão de Engenharia 447
Um certo dia sem que eu esperasse sou chamado à presença do nosso Comandante de Batalhão, o já falecido Ten Cor António de Vaz Antunes e este pergunta-me se eu tinha alguém influente que tivesse feito com que eu fosse chamado para Bissau. Fiquei surpreendido com a notícia, respondi-lhe que não, que desconhecia por completo a razão, e perante a pergunta que me fez se eu estava interessado em ir eu respondi-lhe que sim, apercebi-me pelas suas palavras que se eu não quisesse ir ele resolveria o problema de outra forma, mas para quem estava ali quase há um ano e de ter passado por momentos complicados ir para Bissau era um prémio caído dos céus. Bem me enganei.
E assim foi, passados uns dias conseguiram-me um lugar numa avioneta civil que nos visitava de longe a longe, que ao mesmo tempo me proporcionou o meu batismo de voo, que começou da pior forma possível, comigo iam mais três ou quatro passageiros, entramos para o interior da avioneta e quando o piloto tenta colocar o motor em marcha este não arranca. Depois de varias tentativas e já quando não víamos qualquer esperança de levantarmos voo, alguém com autoridade, penso que o oficial de dia, se lembrou com a anuência do piloto de chamar o 1.º Cabo Mecânico do nosso Pelotão Auto, o Piedade, se não estou confundido no nome, foi este nosso camarada que resolveu o problema, mas para quem voava a primeira vez, eu confesso que fui a viagem toda meio arrepiado, a olhar para as matas e a pensar para comigo quando é que o motor se vai lembrar de parar e nós vamos esmagarmo-nos lá em baixo. Felizmente tudo correu bem e lá me apresento eu no BENG.
Já no BENG petiscando na companhia dos camaradas Flamínio, à esquerda, e Barrelas à direita.
Aqui já com a nova ferramenta de trabalho
Só eu sei quantas vezes me arrependi, primeiro quando descubro a razão da minha presença ali no BENG mas já era tarde para voltar a trás, nada a fazer nestes casos, segue-se em frente e enfrentam-se as adversidades com o maior rigor possível; segundo quando venho a saber que no principio do ano o Alf Mil Paiva e Pona Comandante do Pelotão-Auto procede à troca dos condutores, os que estiveram no primeiro ano no quartel ocupam o lugar dos que tinha calcorreado as picadas, não tiveram estes também tarefa fácil, já que acionaram algumas minas e tiveram envolvidos em emboscadas na perigosa zona de Lamel entre eles os nossos camaradas Simão, que saiu ileso duma violenta emboscada em que lhe passou uma roquetada perfurante por baixo do banco da Berliet que este conduzia, o Vieira e o Rui da Eira, mais conhecido por (Espite) entre outros, que no primeiro ano foi o condutor do nosso Comandante de Batalhão e no segundo acabou por vir evacuado na sequência do rebentamento de uma mina que teve a infelicidade de acionar.
Logo nos primeiros dias na Engenharia sou informado que se está a formar uma brigada para abrir uma nova picada para Guidaje, e que por falta de manobradores desta arma foram às várias Unidades buscar elementos para completar essa brigada, então como eu era o único condutor dos elementos rebuscados, foi-me distribuída uma motoniveladora que para quem conhece trabalhos de terraplanagem, é só uma das mais trabalhosas. Depois de um pequeno estágio onde ainda passei uns dias em Tite, mais uns trabalhos para adaptação nos arredores de Bissau e ficamos prontos a partir.
Embarcamos toda a maquinaria numa LDG, como mostra a foto, e com a proteção de um navio patrulha que com umas varredelas do tarrafo e matas junto às margens nos foi acompanhando, subimos o Cacheu e lá chegamos a Binta sem problemas de maior.
A viagem na LDG de Bissau a Binta subindo o Cacheu
Eu com a máquina em plena atividade
As máquinas eram normalmente duas de cada tipo, para que trabalhássemos alternadamente, ou seja um dia de trabalho alternado com um dia para manutenção da máquina e o merecido descanso, só que a outra niveladora que tinha sido a um manobrador pertencente à Engenharia, passados uns dias, para meu azar, teve uma avaria na caixa de velocidades, ao tempo que surgiu um problema numa perna, um pouco abaixo do joelho, ao dito manobrador, e lá vai o nosso amigo Varandas, de seu nome, evacuado para Bissau.
Nunca mais lá voltou como era de esperar, então o serviço que estava programado para dois manobradores passou inteiramente para mim, é que mesmo já passados, naquela altura mais de seis meses da luta travada ali entre Binta e Guidaje, o nome impunha respeito, mesmo a quem por lá não tinha passado.
Iniciamos os trabalhos, adianto que o traçado da nova picada raramente coincidia com a picada antiga, passamos razoavelmente afastados dos restos das viaturas que ali na zona de Genicó tinham sido destruídas pela nossa FA, lá estavam vários destroços espalhados por uma vasta área, procurando seguir o mais reto possível, lá fomos progredindo em direção à tristemente célebre bolanha do Cufeu. Para quem por lá passou naquela época hoje é muito fácil certificar o que aqui descrevo através do Google, pois nota-se perfeitamente a linha da nova picada que ali construímos.
A parte que me tocava no desenvolver dos trabalhos era deveras árdua, todo o trabalho era feito no interior duma enorme nuvem de poeira levantada pelos camiões, que de um lado circulavam carregados de saibro e pelo outro vazios, num vaivém continuo desde que começávamos logo pela manhã até à meia tarde sensivelmente, ainda com a agravante de até meio do percurso mais ou menos, termos que levar e trazer as máquinas para o destacamento, quando terminávamos as tarefas e nos banhávamos para tentarmos comer alguma coisa, o que era de todo impossível porque o organismo já não respondia, a qualidade da alimentação também não ajudava e a salvação eram umas cervejolas bem frescas. Daí resultou que ainda hoje o fígado se ressente desses maus tratos, foi já na parte final que as máquinas passaram a ficar no local de trabalho devidamente protegidas, todos os dias era feita a picagem do trajeto, assim como da zona de trabalho. Foram no decurso dos trabalhos detectadas e levantadas enumeras minas mercê da perícia de um ex-Fur Mil que fazia parte do Pelotão de Sapadores que também foi constituído com elementos de várias Unidades.
Além destes eramos protegidos por duas Companhias que garantiam a segurança para que pudéssemos realizar os trabalhos, mas das muitas minas que foram desativadas ouve uma anticarro que não foi detectada e que viria a ser acionada por mim, como adiante explicarei.
A primeira operação que eu fazia ao chegar à frente de trabalho era limpar a chamada caixa para que os camiões começassem a vazar os montes de saibro, depois vinha para trás e procedia ao seu nivelamento. Fiz este trabalho durante bastante tempo, mas cheguei a uma altura que derivado ao cansaço, tive que recorrer à compreensão e boa vontade do Comandante da Brigada, o ex-Alf Mil Ferreira, se não estou em erro com o nome, e este acedeu a que eu fosse alternadamente para poder ter algum tempo de descanso.
Quando eu não estava, era um camarada e quem chamávamos Faísca, natural do Algarve, que com um D4 fazia o que lhe era possível, facilitando-me um pouco a tarefa. Com esta alternância calhei a não estar presente quando houve uma emboscada à coluna, mas desnecessário será dizer que no dia em que lá estava. Esforçava-me ao máximo para conseguir levar a contenda a bom termo.
E é assim nesta azáfama que recebemos a noticia do 25 de Abril, continuamos a trabalhar como se nada se tivesse passado, e por ironia do destino, no dia 1 de Maio sensivelmente por volta das nove da manhã, precisamente à entrada da celebre bolanha do Cufeu onde a nova picada se sobrepôs com a antiga, no sentido de Binta Guidaje onde o terreno fazia um pequeno declive, ao proceder à rotina habitual da limpeza da caixa na frente de trabalho, passo a primeira vez, sempre com algum receio, passo uma segunda já mais descontraído, e à terceira passagem explode debaixo da roda do meio do lado esquerdo um valente caixote de trotil, que no dizer dos entendidos tinha ficado ali desde o conflito do ano anterior e a época das chuvas tinha-se encarregado de tapar com uma vasta camada de areia.
O estado em que ficou a máquina depois do rebentamento da mina
O Bulldozer D6
É a robustez da máquina e a lamina que ia perpendicular a esta que evitam que a mesma tombe. O estrado onde eu de pé vou a manobrar, fabricado em chapa xadrez de razoável espessura impede que os estilhaços me atinjam mas fica bastante abaulado, eu recebo um violento choque que se tivesse ali perecido. Não tinha chegado a aperceber-me de nada, tal foi a violência da explosão, mas passados uns segundos reagi, com a ajuda do bom amigo e camarada Barrelas, Sapador que fazia parte do pelotão ali destacado de apoio à construção da picada, que é o primeiro elemento a chegar junto a mim, que me agarra e pergunta insistentemente como é que eu estou. Por incrível que pareça apenas fiquei com um ligeiro ferimento na testa e claro com o corpo todo dorido e completamente todo coberto com pó negro e terra, como só poderão imaginar aqueles camaradas que viveram situações semelhantes.
Passados os primeiros momentos verifico que me consigo movimentar, sou de imediato transportado para a enfermaria de Binta, mas não há necessidade de ir para Bissau, passo duas semanas a recuperar, talvez as únicas em que estive em verdadeiro descanso. E passados esses dias, como não havia niveladora operacional, ainda dei uma ajuda aos outros camaradas manobrando um D6 na saibreira, até que foi dada por terminada a missão.
Em Binta com os camaradas Luz o do meio e o Barrelas em primeiro plano.
Em Binta, junto à jibóia que ali se deixou agarrar, com camaradas da 1.ª C.ª do 4512 e da Brigada de Engenharia
Na saibreira junto à bolanha do Cufeu com alguns dos camaradas que comigo participaram na construção da nova picada, nunca mais tive contacto com qualquer deles e os nomes já não consigo recordar.
Em Binta no banquete do dia de Páscoa de 1974
Em Binta, aliás como nos outros destacamentos, fui sempre bem recebido como o provam estas imagens onde estou com camaradas do Pelotão Auto da 1.ª C.ª do meu Batalhão em que oficiais sargentos e praças partilhavam das mesmas patuscadas. Reconhecem-se à esquerda, sem camisa, o ex-Alf Mil Morais e à direita, fardado, o ex-Alf Mil Oliveira.
Passados uns dias procedesse ao embarque novamente numa LDG de toda a maquinaria e chega-se à conclusão que desta vez não cabem todas, não cheguei a perceber porquê. O certo é que em Binta ficou a aguardar embarque precisamente a motoniveladora do manobrador que há muito estava em Bissau. Por decisão do Ex-Alf Ml Ferreira, ficava o Cruz até que a máquina fosse recolhida. Por muito que me custasse, compreendi eu era o único que manobrava aquela ferramenta.
Os dias foram-se passando e eu preocupado: - O meu Batalhão qualquer dia faz as malas e eu, o que é que faço à máquina? Então socorri-me dos bons serviços do 1.º Cabo Mecânico da 1.ª C.ª sediada lá em Binta, o nosso camarada e amigo Neto, oriundo de Portalegre se não estou enganado, e ele abriu a caixa de velocidades da máquina e conseguiu que esta funcionasse, coisa que os mecânicos da Engenharia, integrados na Brigada, acho que nem tentaram. Não estava a cem por cento mas para já resolvia o problema.
Primeiro experimentei-a na reparação das zonas envolventes das tabancas, pelos trabalhos prestados angariei algumas cicés que eram prata fina comparado com o que comíamos às refeições, uma pequena galinha bem barrada com gindungo fazia a refeição de meia dúzia de amigos com uma boa quantidade de bazucas para constantemente refrescar a boca, tal era o picante bem conhecido de todos nós que passamos por aquelas bandas.
Depois houve que pedir autorização ao comandante da 1.ª C.ª para me deixar ir para Farim, obtida essa autorização desloquei-me para lá e o primeiro passo já estava dado.
A raspagem do campo de bola de Farim o edifício à direita era o nosso dormitório
Aqui estou junto à maquina em que viajei de Binta a Farim e daí a Bissau.
Entretanto o comandante do Batalhão já era outro, este não me conhecia, mas sempre aproveitou a máquina para dar umas raspadelas nos campos de futebol e depois com muito jeito lá consegui autorização para viajar para Bissau e entregar a dita máquina no BENG.
O conflito tinha terminado e não havia que ter receio. Estaríamos nos meados de Julho mais ou menos e uma bela manhã atravesso o Geba na nova jangada e ai vou eu a caminho de Bissau; encontrei pelo caminho dois grupos de militares do PAIGC, abrandei fiz-lhe um gesto de cortesia o qual eles retribuíram e prossegui até ao meu destino, senti um enorme alívio quando entrei com a máquina e me dirigi ao oficial de dia e lhes fiz a entrega da máquina. Nunca mais vi ou tive contacto com o alferes que me deixou em Binta com tal fardo, mas quem sabe se um dia ainda vou ter o privilégio de trocar umas palavras com ele.
Apresento-me de novo na minha Unidade, em Farim, e como estava bastante folgado, tinha trabalhado pouco durante a comissão e não deveria haver por lá camaradas disponíveis, entregam-me a viatura que servia de ambulância e toca de viajar para Bissau para transportar as senhoras dos oficiais e sargentos que residiam em Farim e que se despunham a ir às compras à capital.
Depois ainda voltei às Berliet, fiz uma última coluna a Cuntima onde assisti à entrega do quartel ao PAIGC e pouco depois preparamo-nos para a partida, talvez pelos bons serviços prestados no primeiro ano de comissão, no dia em que saímos de Farim para Bissau fui premiado com três viagens consecutivas, e na última de regresso para deixar a viatura junto ao rio onde estavam alguns militares da Unidade que nos rendeu, cruzei-me com as últimas viaturas já muito próximo de Mansabá. Foi o então comandante da CCS na altura Ten. Almeida Ferreira que voltou para trás e me levou no seu jeep para Bissau. Fui portanto o último condutor da Companhia a terminar funções, na verdade a fava tinha que calhar a alguém, mas logo eu que tinha sido um privilegiado, enfim para tudo é preciso ter sorte e reconheço que apesar de tudo por que passei, outros houve que tiveram muito menos sorte do que eu.
Peço-vos desculpa se me alonguei demasiado, mas os camaradas publicarão aquilo que entenderem ser de maior relevância para ajudar a completar a história da guerra em que participamos, e em que alguns episódios nos marcaram de tal forma, que jamais os esqueceremos até ao fim dos nossos dias.
Acrescento que todas as fotos são do meu espólio, noutra ocasião posso enviar-vos mais se tal for conveniente.
Envio um forte abraço a todos os ex camaradas
Joaquim Cruz
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Nota de CV:
(*) Vd. postes da série de:
15 DE AGOSTO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10267: Tabanca Grande (354): Joaquim Cruz, ex-Soldado Condutor-Auto da CCS/BCAÇ 4512 (Farim, 1972/74)
e
3 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10321: Memórias de Joaquim Cruz (2): Chegada à Guiné, deslocação para Farim e os dias trágicos vividos em Guidaje