sábado, 25 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13800: Bom ou mau tempo na bolanha (72): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (12) (Tony Borié)

Septuagésimo primeiro episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.




Relato do décimo segundo dia de viagem

Foi dos dias mais pacatos, céu azul, bom tempo, só vendo paisagem e sem qualquer sobressalto, o clima polar, a latitude 66° 33’, tinha ficado lá no norte.

No hotel pertencente à tal rede, na cidade Wasilla, que por acaso é a cidade onde vive uma personagem bastante popular, a senhora Sarah Palin, que já foi governadora do estado do Alaska, cuja foto correu mundo. Muitas senhoras a copiaram, com uns óculos de estilo e uma cara simpática, que até o Partido Republicano a nomeou para concorrer às eleições para vice-presidente dos USA. Aqui, continuavam a gostar de nós, pois além de nos fazerem sempre um preço de amigos, serviram-nos um pequeno almoço que era quase um jantar.



Rumo ao sul, já a manhã ia um pouco alta, a cidade de Anchorage, era já ali, parámos na entrada junto da placa que dava as boas-vindas à cidade, tirámos fotos, fomos ver o “Ship Creek”, que é um rio do Alasca que brota das “Montanhas Chugach” em Cook Inlet, ali no porto de Anchorage, na foz do Ship Creek, que deu o seu nome "Knik Anchorage", à cidade de Anchorage que foi crescendo nas suas proximidades, já por lá havia alguns pescadores, todavia disseram-nos que o salmão ainda não tinha subido.


A cidade de Anchorage mostrava bem a presença russa, no centro-sul do Alasca, no século dezanove, quando em 1867 o secretário de estado William Seward intermediou um acordo para a compra do Alasca, ao endividado Império Russo por US$ 7,2 milhões, algo como dois centavos de dólar por acre. O negócio foi muito criticado por políticos e pela população em geral, como a "loucura de Seward", pois ia comprar a "caixa gelada de Seward" e "Walrussia". Todavia em 1888 foi descoberto ouro no “Turnagain Arm”, na região da enseada de “Cook”.


Em 1912, o Alasca tornou-se um território dos USA e Anchorage, ao contrário de todas as outras cidades grandes no Alasca ao sul da Faixa de Brooks, não era nem pesqueira nem um campo de mineração. A área de dezenas de quilómetros de Anchorage é estéril de minerais metálicos economicamente importantes e, não havia, naquele tempo, frota de pesca operando fora de Anchorage.

Foi estabelecida em 1914 como um porto de construção de caminhos-de-ferro para o “Alaska Railroad’, que foi construído entre 1915 e 1923, sendo na área de “Ship Creek Landing” onde se localizava o quartel principal dos caminhos-de-ferro, que rapidamente se tornou uma cidade de tendas. Depois disso, a cidade sofreu uma grande transformação com o desenvolvimento do caminho de ferro, com a chegada de bases militares e, mais tarde, com o tráfrgo no Aeroporto Internacional Ted Stevens, sendo a cidade de Anchorage, incorporada no ano de 1920.

Em 1964, ano em que chegámos à província da Guiné, com aquela farda amarela, servindo a “Muito Digna e Orgulhosa Pátria Amada”, como me dizia o professor Silvério, nos anos cinquenta, no segundo andar da escola fria do Adro, em Águeda, aquela cidade foi atingida pelo Terramoto de “Good Friday” (Semana Santa), ou “Grande Terremoto do Alasca”, com uma magnitude de 9.2, que matou 115 pessoas e provocou um prejuízo de 1.8 bilhões de dólares. O terramoto durou cerca de 5 minutos, e as construções que não cederam nos primeiros tremores, ruíram com os movimentos incessantes. Foi o segundo maior sismo da história mundial e a reconstrução dominou a cidade em meados dos anos 60.

Continuámos visitando a cidade, mas nunca parando, pois com uma caravana atrelada ao Jeep, dentro da cidade era difícil o estacionamento e, pelas informações que tínhamos, existe por aqui algum crime, talvez não seja verdadeiramente crime, é a falta de ocupação dos naturais, por tal motivo não era muito recomendável estacionar, pelo menos nas áreas circundantes da cidade, pois podia-se ver grupos de pessoas, em especial na área da foz do “Ship Creek”, sem qualquer ocupação, dando a entender que viviam por ali, talvez na esperança de alguma oportunidade para enriquecer o seu miserável património.

Mas deixemos esses pormenores, o que os nossos companheiros devem querer saber é o que os nossos olhos viram, em outras palavras, viajar connosco e isso é o que vamos fazer.
Sempre rumo ao sul, seguindo na estrada número 1, o tempo estava bom, o céu azul, com um cenário que podia ser pintado, pois as montanhas de “Chugach” estavam de um lado e a linha do caminho de ferro, quase sobre a água da baía de “Turnagain Arm”, do outro.


Umas horas depois éramos passageiros de um barco que navegava por um pequeno lago, onde uma simpática rapariga, com feições de esquimó, nos explicava alguns pormenores do “Portage Glacier”, que é uma massa de gelo, compactada e cristalizada, que desce da montanha, caindo sobre o lago, na área de “Chugach National Forest”, entre montanhas. A neve que o compõe anda por lá há milhares de anos, tem aproximadamente 14 milhas, (23 quilómetros) de comprimento e está conectado a mais cinco “glacieres”, que se escondem também por entre montanhas.


Quando erguíamos os olhos, avistávamos neve e gelo. À nossa frente a paisagem era de floresta, com árvores verdes a circundarem a estrada que passava por muitos ribeiros e lagos. Agora era rumo ao sul, entrando na província do Kenai, onde existe uma área em que se viaja por mais de 100 milhas sem estações de serviço, mas a estrada é de alcatrão, em muito bom estado.


Continuando sempre na estrada número 1, chamada também “Sterling Highway”, podemos avistar, do outro lado do “Cook Inlet”, onde a baía já é bastante larga, algumas montanhas cobertas de neve com o cume a fumegar, sinal de que são vulcões adormecidos.


Saindo da estrada, aqui e ali, para apreciar a paisagem, passando por algumas pontes, muitas são mesmo obras de arte, vendo pequenas embarcações descarregando e limpando peixe. "Águias de colarinho branco”, aproximavam-se enquanto se limpava o peixe.


Assim, fomos seguindo até à cidade Homer onde, antes de procurar um parque de campismo, vendo um cenário de mar e montanha, logo à saída de Cook Inlet, em Kachemak Bay, existe um complexo de 7 vivendas, casas em madeira de troncos, com dois andares, simples, com todas as facilidades incluídas, a parte de trás tem um pequena área coberta, com cadeiras, onde se pode presenciar um cenário de mar e montanha mais lindo e completo, que em toda a nossa vida, que já é um pouco longa, vimos. São alugadas ao dia ou à semana e, como já eram quase onze horas da noite, embora ainda fosse dia, por curiosidade, perguntámos qual o preço do seu aluguer, a pessoa responsável, uma senhora, sorrindo, com aquele sorriso gaiato de esquimó, nos disse que ainda tinha uma vaga, dado ao adiantado da hora nos fazia um preço especial, para aquela noite, que era maior do que uma normal família, talvez com dois filhos, podia gastar para viver razoavelmente durante duas ou três semanas.

Dormimos próximo, num parque de campismo do estado, cozinhando a nossa refeição, ocupando um espaço com uma vista privilegiada, quase igual à das casas, em troncos em madeira, por apenas $10.00, que colocámos num apropriado envelope, oferecendo de ajuda, para a manutenção do parque.

Neste dia, esquecendo o miserável dia anterior, pois por aqui, já é “sul do Alaska”, percorremos apenas 297 milhas, num cenário de floresta, montanhas, glaciares, lagos, alguns ribeiros, mar, zonas piscatórias, alguns animais e aves selvagens, o céu quase sempre azul, com o preço da gasolina variando entre $4.22 e $4.37 o galão, que são aproximadamente 4 litros.

Tony Borie, Agosto de 2014
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13754: Bom ou mau tempo na bolanha (70): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (11) (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P13799: A propósito de paludismo... e da arte de bem guerrear (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Migueis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), com data de 23 de Outubro de 2014:


Meus caros:
Para matar saudades, estou a anexar o meu contributo para o tema em epígrafe.

Um abraço tão grande e forte como a estima e a consideração que me mereceis.
Mário Migueis


A PROPÓSITO DE PALUDISMO
por Mário Migueis da Silva 

[, membro da Tabanca Grande, desde 16/4/2009: recorde-se o seu BI:  (i) Furriel Miliciano
com a especialidade de Reconhecimento e Informação, esteve na CCS/QG (Bissau),  em em diligência na CCS/BART 2917 (Bambadinca, Novembro 70-Janeiro 71),  CCaç 2701 e CCaç 3890 / Saltinho (Março 71 a Outubro 72)]

Tendo decidido que, a partir de agora, vou fazer um pequeno esforço para tentar ultrapassar tão rapidamente quanto possível as mil e uma entradas da feraz caneta do nosso distinto tabanqueiro Mário Beja Santos, nem sempre beneficiária dos meus encómios, mas nem por isso desmerecedora – ela, a caneta – da minha vénia a tanto engenho e farto saber, vou, desde já, aproveitar o ensejo do tema apresentado pelo nosso não menos estimado Rui Vieira Coelho - que, por sinal, foi médico em Galomaro, sede dos dois últimos batalhões em que estive em diligência – para partilhar uma pequena amostra do que foi a minha luta incessante contra o famigerado paludismo, ainda hoje responsável por milhões de baixas neste “mundo do Senhor”.

O encontro de apresentação, ou seja, a primeira manifestação do dito deu-se, por alturas de Março de 1971, em Bissau, onde me encontrava em formação na Repartição de Informações do Comando-Chefe, onde estava colocado. Começou com uns arrepios e, daí a nada, estava com uma temperatura diabólica, o que me levou a uma consulta médica na Amura, à qual se seguiu uma outra na enfermaria do QG, que era a minha unidade, em virtude de os meus camaradas de quarto no “Palácio das Confusões” terem ficado alarmados com a evolução – para pior – do meu estado de saúde. Mas, não havia razões para tanto susto: com a terapêutica da ordem, decorridos cerca de oito dias, pouco mais que pele e osso, e agarradinho às paredes ou a um ombro amigo para não me estatelar no chão, tal era a fraqueza das minhas pobres canetas, lá consegui chegar ao Clube Militar de Sargentos, que, providencialmente, era ali mesmo ao pé, para uma primeira refeição após o já inesperado ressurgimento.

A umas bolachinhas com Fanta natural, seguiram-se umas sandes com umas coca-colas e, finalmente, uns camarões de fazer queimar a beiça, acompanhados de umas cervejas fresquinhas e retemperadoras. Tinha, assim, levado de vencida este nosso primeiro embate, e o que achei de mais curioso, em termos de sintomatologia, foi, de permeio com as terríveis dores de cabeça, corpo dolorido, febre altíssima, falta de apetite, vómitos e mal-estar geral, a sensação de que cada fio do meu cabelo estava implantado numa chaga.

Dito isto, passemos, desde já, à quarta ou quinta experiência, que não haveria papel que chegasse nem paciência que vos sobrasse para tanto relato, se eu me perdesse agora, por aqui, a contar tudo, tim-tim por tim-tim.

Estava eu no Saltinho, e tinha terminado há muito pouco tempo o período de sobreposição das duas companhias de caçadores minhas anfitriãs: a “2701”, dos “velhinhos” do capitão Carlos Clemente, e a “3490”, do capitão miliciano Dário Lourenço, com quem eu ficara, de castigo – mentira!...

Ao entardecer de mais um dia de muito sol e boa disposição, fui tomar o meu habitual banho numa das piscinas naturais do Corubal, a pouco mais de cinquenta metros do arame da nossa posição militar. Lá de cima da rocha mais alta, que eu não fazia aquilo por menos, mergulho como uma bala nas águas mornas e suaves do pacato rio, e, emergindo com a potência de mais que muitos cavalos-vapor, dou meia dúzia de braçadas até à margem. É aí que, acto imediato, e embora fizesse ainda bastante calor, sinto aqueles arrepios – sempre eles! – que me fizeram encolher, apanhar a toalha e regressar “a casa”, a rogar pragas à minha pouca sorte: não havia dúvidas nenhumas, aí estava o paludismo, uma vez mais!...


Uma bela imagem do Rio Corubal, no Saltinho. 

Foto retirada da página Encore de L'audace do nosso camarada Paulo Santiago, com a devida vénia


Já a bater o dente, fui directo ao Henrique Custódio, furriel (miliciano) enfermeiro, a quem não dei hipóteses de paninhos quentes:
- Dá-me já uma dessas injecções de cavalo, que esta merda não vai com comprimidos nem afins!....

Não passara ainda meia hora, deitava eu contas à minha triste sina de paciente dos pântanos compulsivo, quando chegam, em passo de corrida, dois elementos da população de Madina Bucô, a darem conta de que, nas imediações da sua tabanca, a cerca de oito quilómetros de distância do Saltinho, tinham sido detectados “turras” – eh, pá!... -, em preparativos para um ataque pela calada da noite.

Em resposta – pois claro! -, prepara-se para avançar o pelotão de intervenção, que, com os seus homens já instalados em três “burrinhos”, aguarda a ordem de “siiiiga!...”. É quando o furriel enfermeiro, que estava sentado ao lado do Elói, outro furriel miliciano de elevado gabarito, salta do pequeno camião e se dirige a mim, perguntando-me com um espanto de espantar:
- Como é, não vens connosco, meu sacana?!...
- Sacana?!... Sacana és tu, meu malandro do caraças!... Então, acabaste de me dar a puta da injecção para o paludismo e queres que vá convosco prá rambóia?!... Desta vez, ides ter que passar sem mim.



Guiné> Zona leste > Setor L5 (Galomaro) > CART 3490 > Saltinho, 1972, época das chuvas

Foto: © Mário Migueis (2009). Todos os direitos reservados


E, assim foi. Daquela feita, consideradas as condições de periclitante saúde, não fui, armado em rambo, para a coboiada. E, afinal, até nem fui preciso para nada, porque, felizmente, não houve ataque nenhum aos nossos amigos fulas e o Henrique Custódio, de quem já me tornara um bom amigo, pôde, na madrugada do dia seguinte, regressar são e salvo, para poder acompanhar convenientemente os efeitos do “soro cavalar” administrado.

Mas, entretanto… Entretanto, pouco faltaria para a meia-noite no quartel do Saltinho – e penso que em Madina Bucô também -, estava eu no gabinete do comandante da companhia, que funcionava simultaneamente como sala de informações. Só, sentado à secretária, cabeça caída sobre o tampo alagado com os suores de gelo que me faziam tremer de frio e morrer de calor, aguardava a morte.

Assim, com a febre a atacar-me impiedosamente, fui surpreendido por aqueles estampidos secos, que nada tinham de familiares. “Devo estar com alucinações!”, pensei. Só que, ao primeiro estalo, seguiu-se, segundos depois, uma surda explosão que me pareceu bastante mais distante. Mas, não pestanejei sequer, até porque estava com os olhos bem colados às pálpebras, coitaditas, mais mortas que vivas. Já ao terceiro – alto lá!, que, pelos vistos, a coisa era para durar - soergui ligeiramente a cabeça e passei a mão direita pela testa ensopada e pegajosa. E ia a coisa já no quarto ou quinto – palavra de honra que não contei! -, quando tive a percepção de que cessara o ruído – tom, tom, tom - do enorme gerador, acomodado no outro lado da parada.

Com um esforço pouco menos que titânico, consigo levantar duas ou três pestanas da vista melhor colocada e reparo que a lâmpada do tecto se extinguira e que a grande ventoinha de estimação dava os últimos suspiros. É, então, que me atrevo, aos tropeços e às apalpadelas, a fazer os dois metros que me separam da porta, para espreitar, a tentar perceber o que se passa. Não foi preciso muito tempo para isso, pois a explicação estava ali, diante dos meus olhos vermelhos e cansados: dos lados de Aldeia Formosa, a meio caminho dos dez quilómetros em linha recta que separavam os dois aquartelamentos - por aí -, partiam, em direcção a norte, projecteis tracejantes – luminosos, pois, - com uma trajectória curva de longo alcance, tendo eu estimado que os impactos se estariam a verificar a cerca de 20 quilómetros de distância a norte da zona de lançamento.

Comigo de novo todo encolhido, cabeça em fogo sobre o tampo da secretária, eis que irrompem na escuridão da sala, mansa e quieta, a pobrezita, que não fazia mal a ninguém, três ou quatro tigres de Mampa…, quer-se dizer, três ou quatro tigres da Malásia, que, de lanterna em punho, se vêm colocar desrespeitosamente de costas para mim. Aos saltos de nervosismo, ganas, enfim, de entrar em acção, “dá cá a lanterna, passa-me essa merda”, apontam o foco de luz para a tela plastificada que cobre completamente toda a parede de cinco por três.
 - É dali, é dali!..., - exclama o alferes Rainha, que substituía o capitão Dário, ausente em Bissau ou coisa assim.
- É mais abaixo, Rainha! – agora, o alferes Armandino, com a sua voz roufenha e aparentemente mais calma, apontando para o número 44, envolto por um circulo a vermelhão, na carta de tiro do morteiro de maior alcance de que dispúnhamos na unidade.
- Não, não, Armandino, o tiro sai mais a sul! – insiste o Rainha, brandindo a lanterna, impaciente.
- Tás enganado, Rainha, mas pronto, faz lá como tu quiseres – concede, por fim, o Armandino, a ajeitar o quico e a puxar o cinto das calças para cima, preparando-se já para sair com os restantes invasores, rumo ao espaldão do “10.7”.
- Amanda-se prós dois, pronto!... Fogo pró trinta e pró quarenta e quatro!... - resolve o Rainha, que, para além de mais velho, tem todo o aspecto e os tiques de ser o mais belicoso.


Guiné> Zona leste > Setor L5 (Galomaro) > CART 3490 > Saltinho, s/d. c. 1971/72... O Miguéis (, aqui conhecido por Silva,) sentado no "tigre" qye encimava o monumentos aos mortos da CCAÇ 2406 (Olossato e Saltinho, 1968/70), companhia do meu tempo e que era conhecida como os "tigres do Saltinho" (fizemos operações juntos) (LG)

Foto: © Mário Migueis (2009). Todos os direitos reservados [Edição: LG]

Não aguentei mais tanta impetuosidade, tanta vontade de fazer ronco:
- Fogo o caralho!... – resmunguei com quanta força me permitia a debilidade da minha carcaça em brasa. “Ó, cum caraças!”, só não se atiraram ao chão, porque começaram a tropeçar uns nos outros, em direcção à porta por onde antes entraram de rompante e dispostos a pôr tudo a ferro e fogo.

A áspera caralhada, assim disparada do escuro, à falsa fé sem ninguém contar, tivera o efeito de uma granada que nos cai aos pés. O Armandino foi o primeiro a reagir e, apanhando a lanterna ainda acesa que o Rainha deixara cair com o susto, vira-a para mim e consegue titubear:
- Ai é você?!...
- Pôrra, Migueis, que susto do caraças!... Você não está a ouvir os rebentamentos?!... – esganiça o Rainha, mais magro e descorado ainda do que em tempos de paz.
- É claro que estou, mas isso não é nada connosco!...
- Mas deve ser com o quartel de Buba, ou coisa assim!... – justificava-se e tentava impor-se o comandante em exercício, perante o saber de experiência feita do furriel de informações.
- Qual Buba, qual quê!... Alguém pediu fogo de apoio?!... – perguntei, agora com a cabeça fora da carapaça, e a procurar levantar-me da cadeira, onde estava literalmente colado.
- P´ra já, não, mas…
- Ai, não?... Então, deixem-se estar mas é quietos, senão os gajos viram-se p´ra cá e ainda nos rebentam com a puta da ponte!

Estava escrito que ainda não era daquela que os indómitos periquitos haviam de fazer o gosto ao dedo, e eu, logo que me recompus, e na sequência da mensagem que o SIM oportunamente fizera seguir para o Comando-Chefe, elaborei o relatório de informações respectivo, onde, nos “Ensinamentos Colhidos”, que, normalmente, ultimavam o texto, omiti, por incúria, o que de mais importante se extraíra de tão alvoroçada experiência: “O paludismo pode funcionar como agente dissuasor do gasto excessivo de munições, que tantos sacrifícios custam ao erário do nosso depauperado povo”.

Dias mais tarde, chegar-nos-iam notícias recortadas provenientes da República da Guiné, dando conta de que o PAIGC tinha recebido recentemente alguns carros de combate (tanques) da União Soviética, os quais haviam chegado a Conakry por via marítima e depois seguido para Kandiafara, principal base logística do IN, onde se mantinham. Os carros de combate – referiam ainda as mesmas fontes - tinham sido, entretanto, testados junto à linha de fronteira, para os lados do Saltinho, ou seja, acrescentei eu, tinham utilizado abusivamente a nossa carreira de tiro, sabedores que eram, porventura, de que eu, o maior da cantareira, estava a braços com as febres dos pauis.

In “A Arte de Bem Guerrear”, autoria cá do rapaz, a publicar brevemente

Esposende, 22/10/2014

Um abraço muito amigo,
Mário Migueis

Guiné 63/74 - P13798: Caderno de Poesias "Poilão" (Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino, Bissau, Dezembro de 1973) (Albano de Matos) (9): o 'making of' do livrinho (Parte II)

Capa



B. O CADERNO DE POESIAS «POILÃO» (*) (Continuação)

por Albano Mendes de Matos


[ Albano Mendes de Matos, ten cor art ref, que esteve no GA 7 e QG/CTIG, Bissau, 1972/74, como tenente, e foi o "último soldado do império"; é natural de Castelo Branco, vive no Fundão; é poeta, romancista e antropólogo] [, foto à direita, como 2º srgt].


Procurei o Valdemar Rocha (Unidade de Transmissões), Armando Lopes (GA 7), Joaquim Lopes (QG-CTIG) e o Carlos Ramos, que logo concordaram com a ideia e os dois primeiros entregaram-me poemas. O Valdemar entregou-me, também, poemas do Jales de Oliveira.

Planeei «POILÃO». Sem jeito para desenho, rascunhei, a esferográfica, o esboço de um poilão (árvore típica da Guiné) estilizado, que tenho, porque quase todos os rascunhos foram perdidos quando vinham, da Guiné, num caixote que foi arrombado no cais de Santa Apolónia e pilhadas algumas coisas. Os poemas de «POILÃO» salvaram-se porque os touxe numa pasta.

De 2 comissões em Angola, trouxe muitos apontamentos e fotos que me serviram para publicar o caderno de contos «O Jangadeiro», o livro «Meninos da Mucanda» e diversas publicações em jornais e revistas, além de um livro «Por Angola – Etnografia e Guerra», que está a ser teminado.

 


Esboço, feito a esferográfica, para capa de «POILÃO» e paginação, de Albano Mendes de Matos.


Uma noite, ao sair de um café, com Valdemar Rocha, onde nos encontrámos para falar do «POILÃO», encontrei o Aguinaldo de Almeida, caboverdiano, funcionário do BNU e dirigente do Clube Desportivo e Cultural do Pessoal do BNU, que conhecia da UDIB, União Desportiva Internacional de Bissau.

É aqui que entra o Aguinaldo, nas aventuras de «POILÃO» Contei-lhe que estava a organizar o caderno, com poemas de militares, e que seria interessante incluir alguns guineenses e caboverdianos. Achou a ideia interessante. Como eu não conhecia pessoalmente os «poetas» locais, pedi ao Aguinaldo para falar com alguns e pedir-lhes originais, se tivessem interesse em colaborar. Depois, o Aguinaldo apresentou-me alguns no Clube Desportivo e Cultural do BNU. E assim surgiram os poemas.

Foi numa ida para o Clube do BNU que vi o Pascoal D’Artagnan, filho de um italiano e de uma mulher Balanta, subgrupo mansoanca daquela etnia, que só conhecia de nome. Pareceu-me muito tímido.

Entreguei os originais ao Aguinaldo para ler, que devolveu. Escrevi um prefácio, para «POILÃO», cujo original também se perdeu no Cais de Santa Apolónia.

Num econtro com o Aguinaldo e o Valdemar Rocha, eu propus que não fosse incluído o meu prefácio em «POILÃO», e que o Aguinaldo devia de fazer uma introdução, como aconteceu. Eu dactilografei o caderno em «stencil», dei o papel, imprimi e agrafei a capa, com a ajuda de colegas militares. O Grupo Desportivo e Cultural do BNU ofereceu a capa para «POILÃO».

Um alferes miliciano da Unidade de Tarnsmissões desenhou a capa para «POILÃO» a pedido de Valdemar Rocha.

O segundo caderno seria um trabalho meu, com o título de «BATUQUE», já preparado, que foi publicado mais tarde em edição artesanal restrita [Oeiras. 1987]. O terceiro seria com poemas de Pascoal D’Artagnan.

Eu propus o seguinte;

- Que seria o Grupo Desportivo e Cultural do Banco Nacional Ultramarino a publicar «POILÃO».  O dinheiro obtido com a venda de «POILÃO» seria doado à Leprosaria da Cumura.

«POILÃO» foi apresentado após distribuição de prémios de uns Jogos Florais, na Associação Comercial da Guiné, organizados pelo Grupo Desportivo e Cultural do Pessoal do Banco Nacional Ultramarino, e posto à venda sem preço. Os preços oscilaram entre 20$00 e 100$00. Cerca de 300 exemplares foram vendidos num dia e 400 exemplares, uma segunda edição, também num só dia.

Não foram publicados mais cadernos de poesias, porque eu vim de férias, aconteceu a revolta das Caldas da Rainha ], 16 de Março,] e, a seguir, o 25 de Abril. Estava tudo em ebulição.

Agostinho de Azevedo, chefe de redacção de «Voz da Guiné», refere a publicação de «POILÃO» no jornal de 28-02-1974.






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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de outubro de  DE 2014 > Guiné 63/74 - P13796: Caderno de Poesias "Poilão" (Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino, Bissau, Dezembro de 1973) (Albano de Matos) (8): Respondo a algumas perguntas: (i) o poeta Pascoal D' Artagnan, que era filho de mãe balanta e pai italiano; e (ii) o 'making of' do livrinho (Parte I)

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13797: Nova tentativa para a construção de um Monumentos aos Combatentes, em Odivelas (José Marcelino Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2014:

Boa noite
Nova tentativa para a construção de um Monumentos aos Combatentes, em Odivelas.
O texto já foi enviado à Junta de Freguesia e à Liga dos Combatentes, sem resposta até ao momento.
Que ao menos sirva de incentivo a outras autarquias.
Abraço
Zé Martins


Guiné 63/74 - P13796: Caderno de Poesias "Poilão" (Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino, Bissau, Dezembro de 1973) (Albano de Matos) (8): Respondo a algumas perguntas: (i) o poeta Pascoal D' Artagnan, que era filho de mãe balanta e pai italiano; e (ii) o 'making of' do livrinho (Parte I)




Elemento gráfico da capa do documento policopiado do Caderno de Poesias "Poilão", Edição limitada a cerca de 700 exemplares, policopiados, distribuídos em fevereiro de 1974, em Bissau. A editada é de  dezembro de 1973, por iniciativa do Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino (O GDC dos Empregados do BNU, grupo esse cuja história remonta à I República: foi criado em 1924,

Com o 25 de abril de 1974, esta coleção não teve continuidade: estava prevista publicação de um 2º caderno («Batuque», com poemas do Albano de Matos; será editado mais tarde, em Oeiras, 1987, com o título "Batuque - Poemas Africanos", ) e de um 3º, dedicado ao Pascoal D'Artagnan.



A. RESPONDENDO À PERGUNTAS DO EDITOR

[ Albano Mendes de Matos, ten cor art ref, que esteve no GA 7 e QG/CTIG, Bissau, 1972/74, como tenente, e foi o "último soldado do império"; é natural de Castelo Branco, vive no Fundão; é poeta, romancista e antropólogo] [, foto à esquerda, Bissau, c. 1973].

Mensagem de 29 de setembro último:

Caro Luís: Enviei mensagem pela sapo.mail, mas não tenho indicação de que tivesse seguido. (...). Vão, também, em anexos: respostas ás perguntas, que pude dar (com os anos passados, há coisas que falham), um registo de como surge «POILÃO», já repetido, e «BATUQUE», o meu caderno de poesias que seria o nº 2. O nº 3 seria do Pascoal D'Artagnan.. Grande abraço.

Em primeiro lugar, vou responder a algumas perguntas relacionadas com  o «POILÃO». (*)

1 – O editor foi, por minha proposta, depois de o caderno estar já alinhavado, o Grupo Desportivo e Cultural do Banco Nacional Ultramarino, que ofereceu a capa.

Foi coordenador o Albano Mendes de Matos em conjugação com o Aguinaldo de Almeida.

2  – Nem todos os poemas eram inéditos. Foram pedidos, pelo menos, 3 poemas a cada autor. Foram solicitados pessoalmente por Albano Mendes de Matos, aos militares, e por Aguinaldo de Almeida, alguns com a presença de Albano Mendes de Matos, aos guineenses e caboverdianos.

3- O Valdemar Rocha entregou, também, os poemas de Jales de Oliveira. Conheci o guineense Baticã Ferreira, médico, na Sociedade da Língua Portuguesa, que lhe publicou uma colectânea de poesia, e incluí um poema seu em «POILÃO»

4 – Só me encontrei uma vez com Pascoal D’Artagnan, junto da sede do Grupo Desportivo e Cultural do BNU, na companhia de Aguinaldo de Almeida. Pareceu-me muito tímido. Falámos sobre a publicação de um caderno com poemas do Pascoal D’Artagnan.

5 – Segundo informação do Aguinaldo, o Pascoal D’Artagnan trabalhava nas oficinas navais da Marinha, nas proximidades do cais «Pindjiguiti» e da alfândega. Foi também o Aguinaldo que me informou de que o D’Artagnan era simpatizante do PAIGC, bem como alguns guineenses com os quais contactei. 

6  – Pascoal D’Artagnan era euro-africano, filho de pai italiano e de mãe Balanta. Nada sei das viagens do Pascoal [no interior da Guiné].  Pode afirmar-se que foi o único poeta da sua geração. Na antologia de poetas da Guiné, «Mantenhas para quem luta! – A nova poesia da Guiné-Bissau», publicada em 1977, não consta o Pascoal D’Artagnan.

7 – Não sei onde estudou Pascoal D’Artagnan.

8 – Jogos Florais da UDIB - 1972:  1º Prémio «Solidão», de Valdemar Rocha, pag. 26 de «POILÃO»; 3º Prémio «Mãos», de Pascoal D’Artagnan, pag 9 de «POILÃO». Desconhece-se a a composição e identificação do júri. (**)


B. O CADERNO DE POESIAS «POILÃO» (**)

por Albano Mendes de Matos


Colocado no GA 7 - CTIG, em Dezembro de 1972, em comissão militar, fui em diligência para a 4ª Repartição do QG-CTIG, a fim de organizar Companhias de Milícias, com guineenses voluntários, que tivessem feito o serviço militar, para defesa das aldeias. Como o chefe de contabilidade do Conselho Administrativo do QG-CTIG terminara a comissão sem ser substituído, fui indicado para o substituir, em Maio de 1973.

De vez em quando, especialmente nos dias festivos, o pessoal do CA (oficiais, sargentos e praças, reunia-se nas respectivas instalações para umas brincadeiras, como festivais da canção, arremedos de teatro, etc, com material da Secção Foto-Cine que estava ao lado.

Soube, pelo jornal «Voz da Guiné», que na Guiné havia pessoas a escreverem poesia, devido a Jogos Florais que a UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau) organizara, nos finais de 1972.

Creio que na noite de Natal de 1973, propus fazermos uma sessão de poesia em que cada militar faria poesias para ler ou recitar ou ler poesias de poetas, porque lera no jornal «Voz da Guiné» um escrito em que o chefe da redacção, alferes miliciano, Agostinho de Azevedo, que, depois, foi director do 
«Correio da Manhã, falava de poesia.








Foi nesta altura que imaginei fazer os Cadernos de Poesia «POILÃO» apenas com colaboradores militares, com três ou mais poemas de cada colaborador, e respondi ao chefe de redacção do jornal «Voz da Guiné», com um escrito, só publicado em 02-02-1974.







O poema «Vida», de Joaquim Lopes, escrito para uma sessão no CA-QG-CTIG, incluído no artigo de «Voz da Guiné»:



VIDA


Vida,
Tu nasces nas raízes que consomes
Dás origem a crises e fomes,
Tu és um dom de que se fala,
Dás pobreza a muita alma,
Tu és a desgraça e a sorte
De muitos que te pedem a morte,
Tú és o princípio e o fim do mundo,
Quantos não pensam em ti a fundo.
Vida,
Tu és o tempo no espaço,
De muito viver de cansaço,
Tu és a perfeição dos imperfeitos,
Dominas a paz pelos direitos,
Tu és a força dos seres
Aos quais impões deveres,
Tu és tudo na existência,
Tens poder e resistência.
Vida,
Tu és o signo da verdade
De ricos a viver em felicidade,
Tu és uma paz de alma,
De comodistas a viver na calma,
Tu és a morte obscura
De egoista a pedir luxúria,
Tú és o despertar louco
De ricos a viver por pouco.

(Continua)

_________________

Notas do editor:

(*) Vd., poste de 27 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13657: Caderno de Poesias "Poilão" (Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino, Bissau, Dezembro de 1973) (Albano de Matos) (3): "Mãos", "Balantão" e "Cachimbêro", três poemas do poeta maior desta antologia, natural de Farim, Pascoal d' Artagnan [Aurigema] (1938-1991), pp. 9/11

Comentário de LG:

(...) Talvez o Albano de Matos nos possa dar mais informações sobre o "making of" desta coltãnea de poesia, "Poilão"...

Por exemplo, quem foi, na realidade, o "editor literário", o coordenador ? Foi o Albano de Matos ou o Aguinaldo Ferreira ? Ou foram ambos ?

Como foram obtidos os originais ? Houve um contacto pessoal com os autores ? Todos os poemas eram inéditos ?

O Albano terá conhecido pessoalmente o Pascoal d'Artagnan, presumo, que trabalhava nas "oficinas navais", em Bissau... Pertenciam à Marinha ?

Ele já seria, em 1973, simpatizante ou mesmo militante do PAIGC ? Qual a sua origem étnica ? Balanta, manjaco, papel, mandinga ?

Sabemos apenas que nasceu em Farim.. Mas viajou pelo país: Catió, Safim, Ilha das Galinhas... O que é que ele faz na Ilha das Galinhas, em 1967 ?

Pelo que eu li dele, ainda muito pouco, parece-me um poeta com fôlego, e na linha da tradição oral africana... com influência talvez do angolano Viriato da Cruz...

Ele deveria ser um autodidata... não ? (...)



Guiné 63/74 - P13795: (In)citações (70): África meteu-se-nos debaixo da pele (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 23 de Outubro de 2014:

Carlos e Luis
Aqui vai mais um apontamento para publicar se tiver qualidade e interesse.
A foto não é grande coisa se tiverem melhor agradeço.

Um abraço para vocês e para toda a Tabanca Grande
Juvenal Amado


ÁFRICA METEU-SE-NOS DEBAIXO DA PELE

Pôr-do-sol no Rio Geba
Com a devida vénia a mundo do FRED

África é assunto infelizmente quase sempre por más razões. Para nós ex-combatentes é a nossa juventude, os nossos verdes anos, as recordações da nossa passagem à idade adulta, das nossas aventuras, das nossas partidas e dos nossos regressos. Quer obrigados ou por vontade própria, a verdade é que hoje a quase esmagadora maioria de nós celebra o ter lá estado e ter passado por aquela prova de fogo. Ninguém ficou incólume à terra vermelha.

O continente africano tem estado mais uma vez nas primeiras páginas, talvez pelo risco que causa aos países ocidentais, que de repente descobriram a gravidade do Ébola. Doença que mata nove em cada dez infectados e que é bem mais grave, pois acaba-se por descobrir que há bastante tempo atrás, esta misteriosa doença matava aldeias inteiras no Congo, onde se morria silenciosamente, escondendo os mortos e possibilitando e aumentando o contágio antes de se tornar notícia. Tornou-se mediática quando ficou comprovado que a doença embarcava com quem viajava para Espanha, Estados Unidos, Alemanha etc e, que não havia barreiras alfandegárias para ela. Depois apareceram os contágios de quem não tinha estado nos territórios afectados e as autoridades sanitárias apressaram-se a deitar as culpas para cima dos profissionais de saúde, dizendo que eles não tinham cumprido os protocolos. Enfim, cheira-me a desculpa de mau pagador ou sacudir a água do capote.

Mas esta crise tem também alguma utilidade, pois esta doença menosprezada na sua importância tendo por base a pouca mortalidade em comparação com a malária e outras pragas, encheu de medo desta vez o Ocidente e já se fala numa vacina a fazer em passo acelerado. Já com a SIDA aconteceu o mesmo mais ao menos, quando se pensava que ela só atacava os homossexuais e que a doença era um castigo de Deus para quem se dedicasse a esses comportamentos. Depois veio a verdade nua e crua de que ela atingia qualquer um com comportamento de risco, que é transversal a todas classes e credos. E também muita gente foi infectada por agulhas e transfusões de sangue.

Mas África com todas a suas misérias e belezas, meteu-se-nos debaixo da pele, ou melhor, debaixo da nossa pele também somos africanos?

Penso que é o continente onde o sofrimento do seu povo mais nos afecta, porque as notícias de lá sempre acompanham desgraças, fome, guerra, doenças e doí-nos todo aquele sofrimento.

Talvez haja relação com o facto dos primeiros homens lá terem nascido e todos nós sermos dali descendentes, o que faz de nós “pretos de pele clara” se assim se pode dizer sem ser considerado heresia como em tempos idos, pois por estranho que pareça, há menos de 100 anos um indivíduo preto não era considerado humano em muitas regiões das nossas “civilizadas sociedades”. Até aos anos 60 do Século XX, os cidadãos de cor em muitos estados do Sul dos Estados Unidos, não podiam frequentar as mesmas escolas, as mesmas igrejas, os mesmos cafés e, à cautela, não lhes era conveniente frequentar as zonas urbanas onde viviam brancos. Muitos pagaram com a vida o atrevimento de passarem em zonas dos brancos ou simplesmente por divertimento, como na agora celebre saga em filme ou em livro, que apaixona os nossos adolescentes chamada Os Jogos da Fome, onde se faz apologia à violência gratuita e irracional.

Com uma riqueza imensa, bem cedo aquele continente africano passou pelas mais difíceis privações. Os povos da costa Ocidental, a dois passos da América Latina, foram considerados mercadoria sem custos, sem responsabilidades e sem contas a prestar, tornando florescente a actividade dos navios negreiros.

Os escravos foram levados do golfo da Guiné e de Angola para as plantações do Brasil e para toda a América Latina, onde não havia índios para escravizar em quantidade suficiente, havia pretos fortes e guerreiros, que alucinados pelo que lhes tinha acontecido, não conseguiram reagir a tempo para escapar à desgraça que sobre eles caía.

Floresceu o comércio de escravos com entrepostos de onde eram embarcados e outros onde eram distribuídos, como no caso de Cuba e arredores, onde o domínio espanhol e a pirataria vária, faziam o negócio florescer com a recpeção e venda de escravos para toda a América Central e do Norte. Quando se começou a combater a escravatura, Cuba foi usada de uma forma muito ardilosa para rodear a proibição e os estados do Sul da América esclavagista, continuarem a receber escravos.

A dada altura foram criadas leis que proibiam a importação de novos escravos da costa africana, assim eles eram levados clandestinamente para Cuba e lá eram vendidos como filhos de escravos, pois a lei permitia que os senhores das plantações fossem donos dos escravos e da sua descendência. Dizem as más línguas, que as leis anti escravatura foram implementadas pelos ingleses como forma de estrangular as economias que vivam da sua prática. Não custa nada acreditar, pois ao mesmo tempo asfixiavam os estados do Sul segregacionista, com uma economia toda assente no trabalho escravo, deitavam o olho gordo para as colónias de onde eram embarcados os negros. No caso português isso durou até à entrada de Portugal na 1.ª Guerra Mundial pois os planos encaminhavam-se para o acordo secreto entre ingleses e alemães para dividirem entre si as nossas colónias. Com amigos destes quem é que precisava de inimigos?

Como se vê, em nome do humanismo e bons costumes, eternizava-se a condição dos que, mesmo nascidos homens livres, uma vez feitos escravos, transmitiam o seu estado às gerações vindouras. Mas os sofrimentos dos africanos não ficaram por aí.

À escravatura de exportação sucede-se a da colonização e aí os africanos passaram a ser escravos na sua terra. Mais tarde, quando finalmente se ilegalizou a escravatura, ela passou a “encapotada” e adquiriu o título de “contratados”.

Os “contratados” eram serviçais ilusoriamente livres, mas que dependiam do patrão para comer, dormir, da ferramenta com trabalhavam, que nunca estava paga, com o agravante de os prejuízos serem-lhe descontados a eles, que nunca tinham lucros.

A titulo de exemplo, em Angola em 1960 havia uma zona onde empresas algodoeiras que mantinham os negros num estado próximo da escravidão, (35 mil famílias) proibidos de transpor o perímetro, eram os trabalhadores obrigados a cultivar o algodão e a vende-lo ao preço da fome. A empresa limitava-se a fornecer as sementes, não lhes pagava salários, nem prestava qualquer apoio técnico, nem fertilizantes, nem pesticidas, nem compensações em caso de cataclismos, que eram normais em forma de secas ou cheias. Depois de um dia de trabalho duro, os agricultores viam-se obrigados a fazer vários quilómetros até pequenos pedaços de terra, para assim cultivarem os próprios alimentos, porque a empresa cercava as aldeias com plantações, sem deixar um palmo de terra que fosse para outra coisa que não fosse algodão. Na terra onde nasceram no meio de tanta riqueza, não eram donos de nada nem da esteira onde dormiam.

Mas vieram as guerras de libertação.

As potências coloniais foram obrigadas a reconhecer as independências à custa de muito sangue e sofrimento, mas o problema não ficou ai resolvido, porque aos movimentos libertadores sucederam-se golpes de estado, na maioria das vezes apoiados pelas antigas potência colonizadoras. Na maioria dos casos saiu a mão de obra qualificada branca e entraram mercenários e consultores militares. Aos governos corruptos, são os seus ditadores recebidos ou tolerados pelas nações ocidentais, que continuam assim a explorar as riquezas do continente semeando a escravatura, a tragédia, a miséria e as guerras. As fabulosas fortunas depositadas em instituições europeias e também dos USA nas suas contas (até há pouco tempo credíveis), tem como contra partida o fluxo de armamento, chegando ao inimaginável de só em Angola, com dez milhões de habitantes, chegou a haver uma mina antipessoal por cada angolano.

Aos maus governos sucedem-se as más guerrilhas e, a uns ditadores, sucedem outros ditadores, mas o trafico de madeira, marfim, diamantes, ouro, petróleo, colton, prata, cobre, etc nunca pára. Na Bélgica, na Inglaterra, na Holanda e nos USA, limpa-se o sangue de milhares de homens, mulheres e crianças, e convertem-se as pedras, em bruto, em gifts, que enchem as lojas mais chiques das capitais de todo o Mundo. É negócio sujo mas lucrativo, e as autoridades, hipocritamente, fecham os olhos ao que se passa no terreno, chegando os diamantes a serem exportados por países como a Libéria, que não são produtores e onde eles entram ilegalmente, para saírem de lá legais para o mercado europeu. Rodeia-se assim o adjectivo horroroso de “diamantes de sangue”.

África é um continente riquíssimo que vive permanentemente da caridade alimentar e medicamentosa, quando é detentora da maior área para produção agrícola disponível em estado virgem no Mundo.
Como é possível que não haja um fim para este estado de coisas?
Ninguém me tira da cabeça que seriam muito mais felizes se nunca por lá tivessem visto um branco, e nunca tinham dado pela sua falta. África não transforma praticamente nada do que lá é extraído, mas também não fabrica armas que aparecem como por milagre.

O povo vive em cidades super povoadas, para onde fugiram à guerra, na mais profunda das misérias humanas, sem água potável, sem saneamento básico, a que só as elites têm acesso.

Para o bem e para o mal, hoje África está nas mãos dos africanos, resta saber se eles saberão sacudir as últimas grilhetas e libertar finalmente o seu próprio povo.

Atrevo-me a transcrever o que José Saramago publica a dada altura num dos seus cadernos de Lanzarote - Diário V:  
“Tentei expressar neles a angustia, o medo e também a esperança de um povo vivendo sobre ocupação, primeiro resignado e submisso, depois, pouco a pouco organizando a resistência até à batalha final e ao recomeço da vida paga com mil mortes. Coloquei no futuro esse povo de um pais não nomeado - Imagem de quantos viveram e vivem sob o domínio e o vexame de outro mais poderoso -, pensando por ventura que estaria descrevendo os últimos sofrimentos da humanidade que enfim ia principiar a lenta aprendizagem da felicidade e da alegria, sabendo embora que nada de nós ficará debaixo da sombra que vamos projectando no chão que pisamos.
Nem os sofrimentos acabaram nem a felicidade começou. E, a estas horas, frase por frase, palavra por palavra, quantos povos no mundo, aqui e em toda a parte, não leriam hoje estas páginas como o livro da sua dor e da sua imortal esperança”.

Um abraço para todos
Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13733: (In)citações (69): Amigos das ONGD Ajuda Amiga e Tabanca Pequena, é importante abrir poços, mas se a água não for "Iagu Sabi", a população abandona-os (Cherno Baldé, Bissau)

Guiné 63/74 - P13794: Inquérito online: resultados finais (n=145): (i) o paludismo é doença que não se esquece; (ii) um em cada dois tê-lo-á apanhado; e (iii) um em cada três diz que tomava sempre ou quase sempre, todas as semanas, o comprimidinho, Pirimetamina, 25 mg, LM


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel > CCAÇ 2592/  CCAÇ 14  (Bolama, Contuboel, Aldeia Formosa, Cuntima, 1969/71) > Junho ou Julho de 1969 > O António Bartolomeu, fur mil, "recuperando de um ataque de paludismo, foi do caraças" (*)... Estivemos juntos, nessa altura, na formação das nossas companhias (ele, da CCAÇ 14, eu, da CCAÇ 12). Depois cada foi à sua sorte... (LG)

Foto: © António Bartolomeu (2007). Todos os direitos reservados.


A. Resultados finais da nossa sondagem sobre o paludismo (n=145) (**)

1. Não me lembro se tive paludismo > 3 (2%)

2. Não me lembro do medicamento para o paludismo > 9 (6%)

3. Sim, tive paludismo > 69 (47%)

4. Não, nunca tive paludismo > 30 (20%)

5. Não, nunca tomava o medicamento > 3 (2%)

6. Sim, tomava sempre (ou quase sempre) > 48 (33%)

7. Sim, tomava, mas só às vezes > 28 (19%)

8. Tomava o medicamento e tive o paludismo > 55 (37%)

9. Tomava o medicamento e nunca tive o paludismo > 22 (15%)

10. Nunca tomei o medicamento nem nunca tive paludismo > 11 (7%)

Votos apurados: 145
Encerramento: 23 out 2014,  21h45


Guiné  > Região de Tombali > Cantanhez > Cafal Balanta > O "resort" do Manuel Maia,  o poeta  que irá cantar, em sextilhas, tanto  o "seu" Portugal como a "sua" Guiné). (O Manuel Oliveira Maia é  autor de: (i) História de Portugal em Sextilhas, 2009; e (ii)  "Guiné que aprendemos a amar", 2013)

Foto: © Manuel Maia (2009). Todos os direitos reservados.

2.  Manuel Maia (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, 1972/4) andou por muito sítio palúdico ( Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine)  mas foi um dos 20% que nunca terá apanhado o  paludismo...

Recorde.-se, a propósito, as suas  quadras alusivas ao paludismo de que se livrou (***)

Do paludismo nem cheiro,
"capei" mosquitas da zona,
já o mosquito era porreiro,
não me deu cabo da mona...

Malária ou paludismo,
foi maleita que não tive,
por ter um bom organismo,
sempre o "plasmodium" contive...

À custa duns "largos jarros"
e pastilhas LM [, Laboratório Militar,],
cerveja, whisky e cigarros,
paludismo não se teme...

Milhões de vezes picado
nos "resorts" conhecidos,
avisei-os por recado
- Se me infectais estais perdidos !!!

No Cantanhez foi a sorte,
a livrar-me do descambo,
que à mosquitada deu morte,
herói AB [, Almeida Bruno],  nosso Rambo...

Como Caio, o "mata sete",
ganhara fama por lá...
mosquitos do jet set
não picavam nos de cá...

Assim graças ao acordo,
e a uns copos bem regados,
as picadas que recordo,
não trouxeram mais cuidados...

Por outro lado também,
proibida era a doença,
por lá médico "cá tem",
e só na guerra se pensa...

Maleita é mais na cidade
com hospital logo à mão,
mosquito é da urbanidade,
que lhe dá mais atenção...

Sobre a doença hei dito,
acreditem que é verdade,
a relação com mosquito,
quase digo que é saudade...

Manuel Maia


3.  Mais  alguns postes, antigos,  publicados sobre a experiência do paludismo (e a sua prevenção e tratamento) no TO da Guiné (lista meramente exemplificativa; há muitos mais...)

15 de maio 2013 > Guiné 63/74 - P11573: Em Mansoa, nem mezinha má nem picada de mosquito boa... Ou as nossas doenças em tempo de guerra (1): Um mosquiteiro barato para um pira (Magalhães Ribeiro)

(...) O velhinho e meu grande amigo Furriel Ranger Marques, com a sua calma e longa experiência de vinte e muitos meses, deu-me, então, uma lição sobre “Como dormir sem zumbidos nem picadas dos mosquitos na Guiné”, assim:

1º) Não se faz mal às osguinhas e salamandras que deslizam ali no tecto — estavam lá três de vários tamanhos —, apesar do seu aspecto repelente elas são nossas amigas, e ajudam-nos a eliminar os mosquitos que, à noite, abundam e atacam muito mais, comendo-os; (...)


12 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11556: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (3): Era do caraças o paludismo

(...) E lá fui eu a tremer até ao Xitole, a bordo o de uma viatura... de Cavalaria, a autometralhadora Daimler do Vacas de Carvalho, comandante do Pel Rec Daimler... Esse mesmo, o da fotografia, espero que não tenha sido nesse dia mesmo que eu fiquei doente; julgo que na altura lhe agradeci a boleia, mas se o não fiz, devido ao estado febril em que eu me encontrava, ainda vou a tempo, trinta e seis anos depois:
- Obrigado, meu alferes! Foi a melhor boleia, a mais oportuna, a mais rápida, que eu apanhei na puta da vida! Mesmo à justa!... (...)


(...) Esta doença não demorou a entrar na [CCAÇ]  816 ou não começássemos logo a ser atacados pelo agente causador (o Anopheles) mal pusemos os pés na Guiné.  Pele branquinha e sangue fresco, bom pasto para aqueles sanguessugas. 

Os 13 primeiros dias em Brá (trampolim para o mato) foram dormidos sem mosquiteiros. Foi um tal atacar! O pessoal passava a vida a “tocar harpa”, como dizia o meu amigo Furriel Baião (já falecido) ao apontar um camarada a coçar-se desesperadamente com as unhas das mãos, logo ao limiar do dia. Afinal aprendemos todos a tocar harpa (uns mais desesperados que outros). A picada do mosquito, em alguns quase não se via sinais da dita, noutros era cada verdugo (!). (...)
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Guiné 63/74 - P13793: Notas de leitura (644): "O Mundo em AZERT - cadernos de um repórter”, por Cáceres Monteiro, edições O Jornal e Círculo de Leitores, 1984 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2014:

Queridos amigos,
É quase certo e seguro que esta reportagem datada não é um acontecimento histórico nem traz elementos novos.
Em termos gráficos, o álbum do jornalista é de uma grande beleza, tem um grafismo muito apurado.
Cáceres Monteiro viaja pela Guiné acompanhado de um gigante da fotografia, Eduardo Gageiro, ele capturou imagens que lhe vieram averbar a celebridade que já tinha, recebeu mais prémios internacionais.

Um abraço do
Mário


O mundo em AZERT: 
Cáceres Monteiro na Guiné, depois do golpe de Nino Vieira

Beja Santos

“O Mundo em AZERT”, por Cáceres Monteiro, edições O Jornal e Círculo de Leitores, 1984, é um álbum soberbo onde participaram para além do repórter Carlos Cáceres Monteiro, então chefe de redação-adjunto de O Jornal, três dos melhores repórteres fotográficos portugueses: Carlos Gil, Eduardo Gageiro e Joaquim Lobo. Cáceres Monteiro justifica assim este livro: “A melhor sensação que um jornalista pode ter é sentir que está a viver, par a par, com a história do seu tempo. Em algumas ocasiões, foi viva a sensação de que era uma testemunha privilegiada da história do nosso planeta. As reportagens que se incluem neste livro foram feitas no Sudeste Asiático, Vietname e Camboja; na América Central, em El Salvador e na Guatemala; em África, onde fui observador atento das turbulentas independências de Angola e do Zimbabué e diz a reportagem do golpe de Estado da Guiné-Bissau e onde tentei entender Moçambique e o seu líder Samora Machel; estive também no Irão, no auge dos fuzilamentos ordenados por Khomeini”.

Cáceres Monteiro acompanha a deslocação do Presidente Eanes até ao Saltinho e descreve a movimentação: “As escavadoras rompem já a floresta para resgarem a nova estrada, num assomo de progresso inusitado. E, quilómetros além, num sítio de cataratas do rio Corubal, atravessado por uma ponte metálica onde persistem inscritos os números mecanográficos e as naturalidades dos soldados da guerra colonial, pode vir a nascer uma grande barragem, com projeto português.
Saltinho, África, mesmo África. Gente saída das cubatas ancestrais vêm saudar o Presidente Eanes – e o nome de Nino Vieira aparece quase apagado nas manifestações cerimoniais dos manifestantes. Foi Eanes que eles vieram ver. Numa nota surreal, uma turma de futebol equipada às riscas azuis e brancas, tal e qual como o Porto, perfila-se na primeira linha da multidão. Futebol Clube de Tombali saúda o presidente Eanes”.

Não sem um assomo de malícia, o repórter aponta a miragem de alguma fartura que acompanhou a visita de Eanes à Guiné-Bissau: “No dia em que Ramalho Eanes chegou à Guiné-Bissau, onde normalmente não se vende qualquer produto importado, passou a haver de tudo: cerveja, água tónica em lata, uísque, gim. Comida. A Guiné-Bissau gastava os últimos dólares da linha de crédito. Depois disso seria a rutura financeira”. Chega Eanes e abre o supermercado, põe à venda Ovomaltine e Nestlé. Se no termo do consulado de Luís Cabral a rutura financeira era um facto, não desapareceu com Nino Vieira o fantasma da bancarrota. Nino Vieira pede uma ajuda de milhões e ameaça que se Portugal não lhe desse resposta o país voltar-se-ia para os vizinhos francófonos.

Estamos em 1982, Eanes é o primeiro Chefe de Estado a visitar a Guiné-Bissau depois do golpe de Nino, Luís Cabral já foi libertado. Cáceres Monteiro orienta o olhar para esse golpe em que, segundo alguns, foi antecipado quando Nino Vieira soube que estava projetado o seu assassinato pelas forças fiéis de Luís Cabral. Em 14 de novembro, o golpe iniciou-se junto à Embaixada portuguesa, com um disparo de rajadas, era o sinal de aviso para as movimentações militares. As tropas fiéis a Nino não encontraram praticamente resistência. As causas próximas do golpe também radicaram na discussão da nova Constituição, nela se previa uma concentração de poderes nas mãos de Luís Cabral, Constituição humilhante para guineenses comparativamente com a Constituição de Cabo Verde. O poder mudou de mãos e logo choveram as acusações de ostentação de privilégios por parte dos comissários do Governo, sempre a viajar para o estrangeiro e a deslocar-se na Guiné em rutilantes Volvos.

O repórter conta como Vasco Cabral escapou por pouco durante o golpe de Estado, foi ferido, fingiu-se morto e conseguiu escapar. Retrata Nino Vieira como um romântico, uma espécie de pequeno Che Guevara da África Equatorial, porém sem preparação ideológica. Cedo Nino Vieira enreda-se em negócios com Valentim Loureiro e Ferreira Torres. Nino aproveitou bem o descontentamento gerado pelas carências sentidas durante o consolado de Luís Cabral, coligou-se com militares, com Vítor Saúde Maria, Freire Monteiro e Iafai Camará, formam um Conselho da Revolução. As novas autoridades guineenses quiseram imediatamente atribuir a Luís Cabral crimes nefandos, abriram-se valas onde estavam enterrados ex-comandos guineenses e adversários do PAIGC. Na altura, um amigo de Nino, J. Turpin comentou que “Isto foi pior do que o colonialismo português”. Pedro Pires, então primeiro-ministro de Cabo Verde, desdramatizou, atribuiu esses acontecimentos a todos os responsáveis políticos, era impensável que alguém os ignorasse.

Um aspeto curioso é que o novo Conselho da Revolução destituiu Luís Cabral, dissolveu a Assembleia Nacional Popular mas reconduziu praticamente todos os membros do Governo anterior. Alguém comentou: “A lógica deste golpe é analógica”. E a reportagem de Cáceres Monteiro termina assim: “Quando chegámos ao aeroporto de Bissau, logo um guineense de rádio em punho nos veio dizer, cheio de júbilo, que Portugal tinha derrotado a Irlanda do Norte e nas ruas de Bissau, para além de todos os outros vestígios, não faltam as máquinas de registo do Totobola. A imprensa portuguesa é aqui mais conhecida e lida do que em muitos pontos do território nacional…”.

A capa deste álbum é um primor de Rochinha Diogo. As duas fotografias pertencem ao genial Eduardo Gageiro, a mãe com o seu bebé é uma das fotos internacionalmente mais premiadas do fotógrafo, mas é realmente muito impressiva a fotografia dos velhos guerreiros, trata-se de um instantâneo sublime.


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Nota do editor

Último poste da série de 20 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13768: Notas de leitura (643): General Spínola ao Diário de Lisboa, em 9 de setembro de 1972: Não há que temer a autodeterminação (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P13792: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (33): Um bagabaga que serviu de altar num casamento

 
1. Mensagem do nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 17 de Outubro de 2014:

Carlos, amigos e camaradas,
O artigo do José Saúde(1) despoletou-me a curiosidade e fez-me recuar no tempo, às minhas experiências vividas na Mata dos Madeiros, naquele longínquo ano de 1971.
Naquela Mata vivi situações reais que mais parecem contos de fadas. Esta é uma delas.

Com votos de muita saúde, um abraço transatlântico.
José Câmara


MEMÓRIAS E HISTÓRIAS MINHAS

33 - Um bagabaga que serviu de altar num casamento

O José Saúde no seu fino artigo “As arquitetónicas fortalezas das formigas na Guiné” transporta-nos mais uma vez à importância que os bagabagas tiveram nas nossas vidas enquanto militares na Guiné. Diz-nos que felizmente não foi necessário usá-los como defesa, mas como comentou o Hélder Valério, para além da guerra havia uma componente a que não era indiferente, a fauna e a flora da província. Tal como a ele, estou certo que muitos de nós ainda temos na retina muito do belo que a Guiné tinha.

Pelo seu tamanho e estrutura os bagabaga eram um ex-libris da natureza guineense. Na Mata dos Madeiros havia muitos que foram utilizados por nós, militares da CCaç 3327, de várias maneiras, sobretudo de apoio noturno nas emboscadas que montávamos. Mas há um que foi especial na história da Companhia: serviu de testemunha a um casamento, se preferirem, foi o altar possível de uma cerimónia em que a noiva se encontrava a muitas centenas de quilómetros.

Recuando no tempo, no meu Poste 6084(2) faço referência ao casamento do Fur Mil Fernando Pedro Ramos da Silva no dia de Páscoa de 1971, que se encontrava em patrulhamento algures na Mata dos Madeiros. Também é verdade que não tinha nenhuma foto para ilustrar a cerimónia simples que lhe dedicámos no nosso acampamento da Mata dos Madeiros antes de ele regressar ao patrulhamento. E assim continua. Quando escrevi aquele artigo também estava bem longe de saber que o Fernando Silva nos tinha deixado muito cedo na vida.

Depois de ler o artigo do José Saúde, o Fur Mil João Cruz chamou-me para me alertar para uma foto que me cedera em tempos sobre o casamento do Fernando Silva. Na história que um dia será escrita sobre a guerra da Guiné certamente que os bagabagas terão um destaque importante nas componentes militar e paisagística. Hoje podemos acrescentar que pelo menos um também o foi na formação de uma família, a do casal Fernando e Celeste Silva.

O bababaga que serviu de altar a um casamento. Na Mata dos Madeiros, o Fur Mil Fernando Silva bebe do seu cantil no momento em que a noiva, a Celeste, estaria na cerimónia religiosa do seu casamento, numa igreja algures no Portugal Continental. São testemunhas, a partir da esquerda: os Fur. Mils. Joaquim Augusto Fermento (Minas e Armadilhas), Carlos Alberto R. P. Costa (Operações Especiais) e na frente o João Alberto Pinto Cruz (At. Inf.)

Foto (Cortesia de João Cruz, FMil. CCaç3327)
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Nota do editor

(1) Vd. poste de 12 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13723: Memórias de Gabú (José Saúde) (42): Baga-bagas, castelos de liberdade e de defesa

(2) Vd poste de 31 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6084: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (16): Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros

Último poste da série de 29 de Abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11503: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (32): Bassarel, um paraíso no chão manjaco