Vista aérea do quartel de Mansabá
Foto: © Carlos Vinhal
1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Có, Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 1 de Novembro de 2014:
Meu caros camaradas e amigos,
Por razões várias, tenho prestado uma colaboração muito irregular a este blogue (mea culpa!) que, aliás, leio sempre com interesse e debato os “posts” aí publicados com os meus amigos e ex-camaradas de armas Mário Beja Santos e Raul Albino.
Junto vos envio uma descrição de um grande ataque a Mansabá, em 3 de Abril de 1969, poucas semanas depois da minha companhia se ter instalado naquela localidade, para participar na protecção aos trabalhos da construção da estrada Mansabá-K3-Farim.
Não disponho de qualquer fotografia de Mansabá no meu arquivo e muito menos do ataque em questão.
Com um abraço cordial e amigo
Francisco Henriques da Silva
Ex- alferes miliciano de infantaria, C. Caç. 2402 (Có, Mansabé e Olossato), 1968-1970
Ex- embaixador de Portugal em Bissau (1997-1999)
MEMÓRIAS DE MANSABÁ
34 - As amêndoas da Páscoa
A 3 de Abril de 1969, Quinta-feira Santa, pelas 11 da noite, dá-se o grande ataque ao quartel de Mansabá, em que o grupo de combatentes inimigos devia ser superior a 120 elementos, armado com canhões sem recuo, morteiros de 82mm, metralhadoras pesadas, para além do armamento ligeiro habitual (Kalashnikovs, “costureirinhas”, RPG-2 e RPG-7, morteiro de 60mm, etc).
(1)
A intensidade de fogo nos primeiros minutos, para além do efeito surpresa, impediu toda e qualquer reacção da nossa parte. Os rebentamentos incessantes faziam-se ouvir por todo o lado e percebia-se que tinham atingido a maioria das instalações militares.
No que me respeita, tinha acabado de fechar a luz, depois de passar os olhos, como era meu hábito, por um livro qualquer, porque no dia seguinte era dia de trabalho (ou seja, de protecção aos trabalhos em curso na estrada Mansabá-Farim), quando começou o fogachal. Encontrava-me num edifício constituído por um renque de pequenos apartamentos térreos, no enfiamento da pista de aviação, portanto num local completamente aberto e exposto ao fogo do inimigo, que estava, na prática, a fazer tiro de pontaria ao casario com, pelo menos, um ou dois canhões sem recuo e duas metralhadoras pesadas, para já não falar dos lança-rockets e das armas ligeiras que disparavam ininterruptamente. A cadência de fogo era, pois, de uma enorme violência. As coisas complicavam-se. As balas sibilavam em várias direcções. Os rebentamentos persistiam. Agarrei na G-3 e nas cartucheiras, vesti apenas a camisa do camuflado. Creio que uma bala terá trespassado a rede de mosquiteiro da janela indo alojar-se na parede. As coisas estavam a ficar feias. De xanatos e, em cuecas, corri para o quarto de banho, uma pequena dependência, nas traseiras, com uma parede de separação. Preparei-me para o pior, porque a violência do tiroteio e das explosões não abrandava. No quarto propriamente dito eu estaria demasiado exposto e o fogo vinha precisamente do fundo da pista, mesmo em frente. As balas de uma “pesada” iam quebrando as telhas do meu quarto mesmo por cima da minha cabeça. Um rebentamento muito próximo – fiquei momentaneamente surdo - dava-me a entender que uma canhoada ou morteirada devia ter destruído um dos apartamentos vizinhos. Se acaso os guerrilheiros tentassem entrar nas instalações, eu dispunha pelo menos da G-3 e de 5 carregadores para me defender. Tive a nítida sensação de que podiam tentá-lo. Não se atreveriam a tanto, ficava para a próxima... Quem sabe?
Quartel de Mansabá - 1-Quartos dos Oficiais; 2-Edifífo do Comando: 3-Messe dos Oficiais
Será que tive medo? Não, creio que não tive, ou seja, o medo emocionalmente paralisante e que inibe o raciocínio, a decisão e a acção, mas também não podia iludir o sentimento de espanto, bem como, a veemência inicial do ataque, que atingiu proporções inusitadas. Por outro lado, também não terei tido aquela sensação habitual da entrada em combate, aquele nó na garganta, a boca seca com um gosto amargo, aquela sensação indizível de que ia começar um jogo incerto, mas que de algum modo o podia controlar, pelo menos na parte que me tocava Aqui não, estava só, literalmente só. Valia apenas por mim. Era tudo.
Entretanto, o fogo inimigo abrandou, enquanto se encetava a resposta do nosso lado, tímida e lenta, primeiro na base de morteiro 81 e uns largos minutos depois com as peças de artilharia. O tempo de reacção da nossa parte foi demasiado arrastado, o que permitiu ao IN actuar com total à-vontade. Tendo o fogo do exterior abrandado, corri para um abrigo situado na extremidade da fiada de apartamentos. Ouvi uma mulher a chorar e também o que me parecia ser o choro de uma criança. Devia ser família de algum dos engenheiros civis. Passei em corrida. Trazer mulheres e crianças para a guerra!?! Francamente...
Bati à porta, energicamente e com alguma impaciência.
- Oh, minha senhora, saia daí. É melhor refugiar-se no abrigo. É mais seguro – gritei-lhe cá de fora, agachado junto a um pequeno muro de resguardo, que a bem dizer não protegia nada, porque choviam balas tracejantes por todos os lados que iam iluminando o céu estrelado.
Noutro apartamento ao lado, alguém acendeu uma luz. Crispado, já com os nervos à flor da pele, vociferei não sei muito bem para quem:
- Desligue lá essa m... imediatamente, senão ficamos aqui todos! Não vê que isso chama a atenção?
No final da fiada de casas, lá estava o abrigo. Entro e ponho logo os pés numa quantidade infinda de fezes humanas, os meus xanatos de quarto para nada serviram. Fiquei sujo quase até aos joelhos. Os nossos bravos soldados, jamais prevendo que pudessem ser alvo de um ataque, tinham transformado o abrigo em retrete colectiva!
Não estava ali viv’alma. Enfim, para que é serviam os abrigos? Boa pergunta. Uma metralhadora lá para o fundo da pista ainda estava activa. Disparei inutilmente três ou quatro tiros, naquela direcção, porém sem qualquer convicção. O certo é que não estava a fazer nada e, entretanto, o fogo tinha amainado consideravelmente, ouvindo-se apenas tiros isolados e uma ou outra rajada. Passei pelo quarto, vesti uns calções, corri então para a parada em direcção a um dos barracões onde estavam instalados os meus homens. De caminho, vi 3 ou 4 feridos, de outras unidades, um jazia numa poça de sangue a contorcer-se com dores, um outro coxeava e tinha um braço ensanguentado, mais longe perto do abrigo do morteiro 81 alguém jazia prostrado no solo, sem dar sinal de vida (Morto? Ferido? Sei lá...). Enfim, não parei. Havia gente a correr por todos os lados e ainda se respondia ao fogo.
Entro no barracão, onde estariam os meus homens e gente da minha companhia. Pergunto de chofre:
- Temos muitos mortos e feridos?
Não era um dos meus soldados, mas pertencia à C.Caç. Respondeu-me:
- Feridos há alguns, meu alferes. Mortos creio que não, mas nas outras companhias parece que morreu gente.
Os enfermeiros e maqueiros corriam de um lado para o outro. Alguns feridos pareciam necessitar de evacuação urgente, porque aparentavam ferimentos graves. Com grande parte dos edifícios atingidos (quase todos), foi um milagre não se terem verificado mais vítimas. Para tal bastaria uma canhoada em cheio numa das casernas. Procurei o nosso capitão. Estava de serviço, mas não o encontrei.
Num abrigo de pequenas dimensões, perto da messe de oficiais e da torre de transmissões, vi o comandante de batalhão, deitado numa cama a olhar para o tecto, com um ar inquieto.
- Há muitos feridos e mortos? – perguntou-me.
- Alguns, meu comandante, alguns, ainda não se sabe ao certo quantos.
- Então, têm de ser evacuados – concluiu
- A esta hora e nestas condições não creio que seja possível - repliquei.
- Você está todo enlameado – interrompeu ele, mudando de assunto e olhando para as minhas pernas.
- Não é bem lama, meu comandante. Como sabe, estamos na estação seca. É outra coisa. Com sua licença...
Dei meia volta. Creio que não se apercebeu, nem sequer pelo olfacto, do meu estado real de sujidade, nem, tão-pouco, das razões para tal.
Foto 1 > Mansabá > Alguns dos feridos esperando evacuação para Bissau
O capitão que encontrei um pouco mais tarde disse-me que o comandante de batalhão havia solicitado apoio aéreo, o que era uma asneira, pois a aviação já nada podia fazer àquela hora, uma vez que a “guerra” tinha, de facto, acabado, nem actuava em plena escuridão. Seguiu-se uma noite sem pregar olho a cuidar dos feridos, a contabilizar os homens, a verificar os estragos e à espera de ordens. A população civil da tabanca e os trabalhadores da obra tinham sido duramente atingidos, mais do que a própria tropa, e registavam-se vários mortos e feridos entre eles, para além de inúmeras moranças incendiadas.
Os comandos lá conferenciaram entre si e deram-me por missão, bem como a outros grupos de combate da minha companhia, de efectuar um reconhecimento, logo ao raiar do dia, pelos presumíveis locais de instalação do inimigo, designadamente pela pista de aviação e região circunvizinha. Verificámos dois ou três factos curiosos: antes do mais, era extremamente difícil, à primeira vista, determinar os ditos locais, uma vez que, contrariamente ao que era usual, não se viam invólucros pelo chão; em segundo lugar, os trilhos de aproximação tinham sido apagados com ramos de árvores, que nos impediam de determinar com algum grau de certeza os rodados das armas pesadas (muitas, como viemos a saber mais tarde, foram previamente desmontadas e transportadas a ombro por carregadores – técnica que era também utilizada, como se sabe, na guerra do Vietname) e as próprias pegadas do grupo inimigo; em terceiro lugar, as posições dos canhões sem recuo e dos lança-rockets só se conseguiam detectar pelas ervas queimadas ou pelos vestígios de pólvora no solo; finalmente, o terreno, vasculhado a pente fino, não estava minado, o que, felizmente, contrariava as nossas piores expectativas.
Na Sexta-feira Santa, pouco depois de terminado o nosso reconhecimento no terreno, desembarcado do helicóptero para se inteirar do que se havia passado e dar algum alento às tropas, lá estava o inefável “Caco” Baldé. Uma das alcunhas porque era conhecido, à época, António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe da Guiné. Baldé é um nome comum entre as etnias fula e mandinga e “caco” pelo facto de usar monóculo. Mostrou-se insatisfeito com o comportamento do comandante de batalhão.
Foto 3 > Mansabá > Um dos edifícios atingidos
Fotos: © Raul Albino
Uns dias mais tarde, por ordem do “hómi garandi da Bissau”, é lançada uma grande operação de retaliação na mata do Morés com pára-quedistas que, para além de terem infligido algumas baixas ao inimigo e de capturarem numeroso material de guerra, descobriram um mapa com a localização exacta das instalações militares e civis de Mansabá, com as medições em passos aferidos da localização das diferentes construções existentes e com indicação precisa das actividades que ali se desenvolviam. Ora, aí estava uma das explicações para a constante fuga de capinadores e de trabalhadores que, aliás, continuavam a circular, como sempre, sem quaisquer restrições, dentro do quartel. As deficiências da nossa
intelligence foram mais que notórias, sem falar, evidentemente, das patentes falhas da segurança, que carecem de adjectivação adicional e que, aliás, continuavam.
Depois disto, Spínola, incumbiu-nos de nova missão: o Olossato, do outro lado da mata do Morés, onde iríamos terminar a nossa comissão de serviço.
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Notas do editor:
(1) Vd. poste de 24 de Agosto de 2008 >
Guiné 63/74 - P3146: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (12): Ataque a Mansabá
Vd. último poste da série de 2 de Agosto de 2014 >
Guiné 63/74 - P13457: Memórias de Mansabá (33): No dia em que morri (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA)