O “AMOR” DE UM BODE
Sim, isso mesmo, o “amor” de um bode!
Como pretexto para vos cumprimentar, de ir ao vosso encontro, tenho-vos enviado alguns dos meus “postais”, como, por exemplo, “O Douro sob o meu olhar”, "Vila Flor em dia de noivado”, “Vila do Conde é um poema”, etc. Hoje, com o mesmo objectivo, por muito estranho que vos pareça, imbuído de espírito de Natal, tenho o gosto de levar até vós mais um dos meus “postais” alusivo ao “amor”, solidariedade, companheirismo, em que o protagonista é este ruminante. Esses sentimentos que, pelo que presenciei, não são exclusivos dos humanos.
Como reformado, e como transmontano que se preza, cultivo um pequeno quintal num terreno contíguo à minha residência. Entre as diversas culturas que ali granjeio, como não podia deixar de ser, fiel aos costumes de Trás-os-Montes, plantei uma centena de pés de couves de penca, cuja finalidade, para alguns deles, era acompanharem o bacalhau na noite de consoada.
Ali próximo existe um campo a pousio, cujo proprietário, para evitar que o mato ali crescesse, autorizou um vizinho, depois deste vedar todo o perímetro do terreno com uma rede de arame, a colocar ali cerca de duas dezenas de ovelhas e meia dúzia de cabras, entre as quais o dito bode, a figura principal do enredo desta história.
As ovelhinhas, mais pachorrentas, limitaram-se sempre à área circunscrita pela cerca, enquanto que as cabras, lideradas pelo imponente e chifrudo bode, amarfanhavam a dita cerca com as patas e, “upa”, saltavam para fora e todos os terrenos limítrofes eram deles, incluindo, para minha “desgraça”, o meu bem tratado quintal.
Na minha ausência, para meu desgosto, os assaltos à minha horta sucederam-se, não obstante eu ter avisado o proprietário dos bichos, a ponto de todos os pés de pencas terem sido dizimados e, portanto, “nicles”, não há, este ano, daquela horta, couves para a consoada. Com uma selectividade cirúrgica, porfiaram fazer desaparecer apenas as couves de penca até à última folha, até ao tutano, ignorando as nabiças e as couves galegas ali existentes, provavelmente por terem um trago mais amargo.
Perante este quadro, tão cioso da minha horta, escusado será dizer o “pó” que eu apanhei aos caprinos que já não os podia “enxergar” e entre as pragas que lhes roguei, a mais benévola, era que uma alcateia de lobos por ali passasse e os devorasse. Descarregava a minha ira, algumas vezes, quando os via aproximar do quintal, correndo-os à pedrada. Tal era a frequência das investidas, que até já tinha pesadelos de noite ao sonhar que as cabras me estavam a invadir a horta.
Recentemente, encontrando-me eu no mesmo quintal a proceder à sementeira de inverno, das favas e das ervilhas, constatei que uma das cabras, ao tentar transpor a rede da cerca, lutava para se desenvencilhar das malhas de arame que se lhe enlearam no pescoço e nos chifres. Quanto mais estrebuchava mais o garrote a apertava.
- Bem feito..., bem feito…, é para que te sirva de emenda para não vires cá para fora a abocanhar as couves dos outros - rejubilava eu em pensamento, enquanto a azougada cabra lutava cada vez com mais dificuldade, perante os berros desesperados do bode branco que a acompanhava e se movimentava inquieto de um lado para o outro, à sua volta, como a pedir ajuda para libertarem a companheira.
Como ninguém se aproximava, incluindo eu que estava ali próximo, o bode, continuando a berrar desatinadamente, correu pelo campo fora, para o extremo oposto, em direcção à residência do dono do terreno, deixando eu de o ver a partir do meio do percurso, por interposição de um bloco habitacional implantado junto ao terreno, facto que me intrigou e me fez ficar ainda mais atento àquela cena.
Ficou ali então a cabra sozinha a lutar com as malhas da rede, quase a sufocar, o que, não obstante a minha “raiva”, a minha indignação, pelo que já referi, com problemas de consciência, larguei a enxada e preparava-me para ir libertar o animal já prestes a abafar. Entretanto, volvidos alguns instantes, para minha surpresa, surgiu por detrás do referido prédio habitacional a esposa do proprietário do terreno em socorro da cabra, seguida do bode ainda a bramir como um desmamado.
Depois desta, muito a custo, a ter soltado das malhas da rede, ambos, a cabra e o bode, correram pelo campo fora como a festejarem a libertação.
Perante o que acabara de testemunhar, de tal modo o gesto do bode me tocou, embora revoltado por me terem rapinado as pencas do Natal, que não pude deixar de exclamar com esta “terna” expressão, aqui para nós que ninguém nos ouve, “…filho da puta do bode…”
Não quis, portanto, deixar de partilhar convosco esta linda história de “amor”, à parte a “ternura” da expressão com que terminei, e de, aproveitando o contexto, levar até vós, como ilustração da mesma história, a bonita melodia Love Story, nostálgica para os menos jovens. Precisamente, uma história de amor.
Se bem reparastes ao longo do texto, falei-vos de amor, solidariedade, companheirismo, couves, bacalhau e animais. Como sabeis, tudo isto integra a festa de Natal que se aproxima. Aceitai, portanto, esta história como um postal de Natal. Um postal diferente, especial, que, só por isso, e porque a mesma história foi o motivo de ir mais uma vez ao vosso encontro, a perda das minhas couves de penca não foi em vão. Bem pelo contrário, foi até compensadora.
E, já agora, para terminar, sabeis como vou resolver o problema das couves para não deixar o bacalhau da ceia na solidão? Se não houver uma boa alma de um de vós, os mais próximos, que se tenha enternecido com a pungente história das minhas couves e me dispense uma “tronchuda” para a ceia de Natal, O mercado espera-me.
Feliz Natal de 2014 para todos os meus companheiros ex-combatentes e familiares.
Manuel Sousa
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Nota do editor
Último poste da série de 18 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14048: Conto de Natal (19): Uma viagem a outros Natais (Francisco Baptista)