quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15179: Os nossos seres, saberes e lazeres (117): Un viaggio nel sud Italia (8): Roma, addio

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Foi um pouco como visitar Roma pelo canudo, e naquela dia, e com aquele estado de alma, até me apetecia mandar a viagem de regresso às malvas, tinha ali programa para quatro ou cinco dias, com muitas ruínas, várias basílicas, os esplendorosos museus do Vaticano, o passear-me pelas ruas, ir ao Panteão, às praças, tudo vagarosamente, e como dia bem passado no Museu Nacional de Arqueologia. As coisas são o que são, fica para a próxima, é uma blasfémia dizer adeus a Roma, ao Tibre, aos prodígios que saíram das mãos de Miguel Ângelo.

Um abraço do
Mário


Un viaggio nel sud Italia (8)

Beja Santos

Roma, addio



Há qualquer coisa nesta arquitetura magnificente que me faz querer que Roma aceitou apresentar-se sem complexos como uma arquitetura palaciana, um gigantesco teatro onde pudessem caber todos os vestígios imperiais, sem chocar a vista, isto a partir do momento em que se criou a Itália, depois do processo de unificação que teve Garibaldi como motriz. É tudo grandioso, a primeira imagem tirada de manhã cedo, saí da Via Palestro, onde me alberguei, dirigi-me à Piazza dei Cinquecento, bem perto de onde ao princípio da tarde apanharei um autocarro para um dos aeroportos de Roma, atraiu-me aquele ar maciço, aquela distinção oficial de grandiosidade, ainda com símbolos da era de Mussolini. A segunda imagem fascinou-me pela mesma dimensão de grandiosidade, um palácio destinado a burgueses abonados, é um edifício que podia caber numa encenação de ópera, aliás, dentro de minutos, vou passar pela ópera de Roma, isto é um pouco viajar à bolina, como se tivesse pegado num guia prático da cidade e escolhido meia-dúzia de itinerários na proximidade, é um retrato à la minuta, e não estou interessado em esfalfar-me, já reprimi a vontade de ir até ao Vaticano, vou ver uma coisinhas para uma despedida cordial.


Por incrível que pareça, o que me traz hoje aqui é agradecer uma gravação da ópera Aida, de Verdi, que me fez tanta companhia em Missirá, era a orquestra e o coro desta ópera, o maestro era um jovem a iniciar uma carreira triunfal, Zubin Mehta, acompanhou várias vezes os concertos dos três tenores. Esta a ouvir esta ópera quando caiu uma granada em cheio no teto do abrigo, ao levantar-me a mão atirou o braço do gira-discos de tal maneira que a agulha riscou toda aquela face. Nunca mais me esqueci. Este teatro não tem a projeção do Scala de Milão nem a popularidade da Arena de Verona nem a imagem de marca do La Fenice, de Veneza, mas é uma casa onde se podem ouvir vozes sublimes, uma orquestra e um coro de primeiríssima plana. E sigo caminho.


Prantei-me aqui em frente numa romagem de saudade, aí pelos anos 1990 vim aqui para um encontro ligado à edução do consumidor no Mediterrânio, à cautela andei à procura de um hotel baratucho, sei que se chamava Eureka e para tomar duche introduzia uma ficha, tinha água para cinco minutos. Era uma destas arcadas. Seguia pela avenida até ao fundo e estava no Altar da Pátria. Esta é a Piazza della Repubblica, também conhecida por Piazza Esedra, outrora estavam aqui as Termas de Diocleciano. Gosto destes palácios com pórticos harmoniosos e a fonte das Náiadas. Sigo caminho, não há tempo para grandes contemplações.



Já passei ao lado de Santa Maria dos Anjos e do Museu Nacional Romano, não me importaria de passar aqui uns dias, é um dos museus mais ricos do mundo em monumentos de arte grega, romana e cristã, paciência, hoje quero dar uma vista de olhos por uma basílica que nunca visitei, Santa Maria Maior, é enorme, tem uma fachada rica e um belíssimo campanário, o interior é deslumbrante, aqui tudo se mistura, tem na sua génese uma basílica paleocristã, daí as colunas atenienses, os mosaicos bizantinos, houve aditamentos de toda a ordem e o teto em caixotão é esplendoroso, tentei sete ou oito imagens, só esta é que satisfez.



À saída da basílica é me feita a proposta de um passeio de autocarro, duas horas, ida e volta, até ao centro histórico de Roma, guia em quatro línguas, qualquer coisa como 12 euros. É pegar ou largar, no regresso é ir pegar a bagagem no albergue e pespegar-me na paragem de autocarro e ir para o aeroporto. E lá vamos pelo trânsito caótico de Roma, passámos pelo Coliseu, andámos à volta dos Foros Imperiais, aqui estala a confusão, o guia fala a uma tal velocidade que eu já não sei se estou a ver o Fórum Trajano ou o Fórum de César ou o de Augusto, despachou-me as frases sobre o Coliseu inaugurado por Tito no ano 80, estava inteiramente recoberto de mármore e tinha lugares para 50 mil espectadores, o autocarro dá mais uma volta e estamos junto do Arco de Constantino. 15 minutos de paragem, não mais, se não os senhores passageiros esperam pelo próximo autocarro.



Naquele extremo do fórum romano, selecionei o Arco de Tito, edificado em honra das vitórias de Vespasiano e de Tito depois de terem submetido a Judeia, confesso que acho este monumento de proporções admiráveis. E vou a correr até um dos ícones, a Coluna de Trajano, é um trabalho admirável, pasma como os estragos do tempo não fizeram desaparecer toda esta beleza escultórica. Está na hora de eu regressar, veja ao fundo a Via del Corso, aqui em vésperas de Natal de 1985 comprei roupas para as minhas filhas, vindo de cinco meses em S. Paulo, a trabalhar para a FAO. Pudesse eu e punha-me ao caminho, ia lentamente a mirar tudo, é uma artéria fabulosa em palácios, igrejas, colunas, há a Fonte de Trevi, e depois regressava à Praça de Espanha, paciência, fica para a próxima, Roma é inesgotável, digo adeus mas sinto que posso vir amanhã, ou depois, este lugar toca-me profundamente, é bom passear a pé, ter tempo para amar Roma e apreciar os seus museus. É verdade que a viagem não acaba, deixo a Itália em suspenso. Vamos ver o que me reserva uma curta estadia em Antuérpia e um fim de semana em Bruxelas, a minha cidade cúmplice. Até breve.
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Nota do editor

Postes da série de:

12 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14995: Os nossos seres, saberes e lazeres (110): Un viaggio nel sud Italia (1): De Roma para Salerno (Mário Beja Santos)

19 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15019: Os nossos seres, saberes e lazeres (111): Un viaggio nel sud Italia (2): De Roma para Salerno (Mário Beja Santos)

26 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15040: Os nossos seres, saberes e lazeres (112): Un viaggio nel sud Italia (3): Ver Nápoles por um canudo (Mário Beja Santos)

1 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15063: Os nossos seres, saberes e lazeres (113): Un viaggio nel sud Italia (4): Ver Nápoles por um canudo (Mário Beja Santos)

9 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15093: Os nossos seres, saberes e lazeres (114): Un viaggio nel sud Italia (5): Em Tivoli, passeio alucinatório em Villa d’Este (Mário Beja Santos)

16 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15117: Os nossos seres, saberes e lazeres (115): Un viaggio nel sud Italia (6): Em Tivoli, Villa Adriana e Villa Gregoriana (Mário Beja Santos)
e
23 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15146: Os nossos seres, saberes e lazeres (116): Un viaggio nel sud Italia (7): Em terra de S. Francisco, Assis é inexcedível

Guiné 63/73 - P15178: O nosso querido mês de férias (11): vim duas vezes... e na segunda casei-me (Hélder Sousa); vim duas vezes... e na segunda já não regressei (António Murta)

Mais dois depoimentos sobre o tema "férias na metrópole" (*)

(i) Hélder Valério [ex-fur mil trms TSF, PicheBissau, 1970/72]

Caros camaradas

Em relação ao inquérito sobre as férias na metrópole (*), tenho a dizer que fiz a minha votação, e que vim duas vezes, a casa, a primeira em julho/agosto de 71 e a outra em março/abril de 72 durante a qual ocorreu o meu casamento.

Eram voos TAP directos Bissau-Lisboa e via Sal na volta. Não me recordo do valor correto mas tenho comigo, em mau estado, documentos da Agência de Viagens Costa em que é referido um valor de 2.190$20 relativo ao "fornecimento de passagens" entre BXO/LIS/BXO para os quais estou a entregar 1.000$00, ficando um saldo de 1.190$20.

No entanto, num outro documento é referido que "entreguei para crédito da conta “ o valor de 4.000$00”. Deste modo, como não tenho mais informação e não me lembro, não chego a nenhuma conclusão sobre o real valor das passagens. [Talvez 6190$20, acrescenta o editor]. (**)

Abraço.
Hélder Sousa


(ii) António Murta [ex-alf mil inf Minas e Armadilhas, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)]

Amigos e camaradas.

Fui dos que puderam vir duas vezes de férias. A primeira em novembro de 1973 após 9 meses de comissão e, a segunda, em agosto de 1974 (sem regresso),  numa altura em que estava nos limites da minha resistência.

Arrependi-me das duas vezes: na 1ª, embora me tivesse sabido bem rever os meus, não tinha contado com o engulho de um regresso sabendo ao que ia. Porque na ida inicial havia expetativa e curiosidade por África que, para mim, era uma paixão (e foi) mas nesse regresso sabia que ia para o inferno.

Ao aproximarmo-nos de Cabo Verde e ao sentir o começo dum suorzinho no corpo, que eu sabia ser para uma eternidade, apoderou-se de mim uma agonia como se o destino fosse o calvário ou o tal inferno. Quando se abriu a porta do avião (da TAP) em Bissau e eu ali mesmo em frente, senti um bafo quente e húmido tão violento no corpo e na alma como se tivesse sido atingido por uma luva de boxe. Não chorei por vergonha.

Da 2ª vez vim por já não aguentar o impasse no nosso destino e no da Guiné. Como já tinha a viagem paga há muito, pensei que vinha desopilar e depois voltava para juntar os tarecos e fazer as malas. Não voltei mais. Também ignoro, ainda hoje, se o meu Batalhão já regressou.

Já agora deixo um alerta ao camarada J. Cabral [que diz que veio duas vezes mas que lhe falta pagar metade da segunda viagem]. Por favor,  não pagues o resto da viagem porque eu já ta paguei e só agora é que me lembrei! É que, como não regressei e a TAP se recusou a restituir-me a metade da viagem, eu disse-lhes que não fazia mal porque ficava para saldar a conta do meu amigo J. Cabral.

E se a dívida era a uma agência de viagens? Não interessa porque eu, furioso, rasguei o bilhete e atirei-o para cima do balcão na sede da TAP... (**)

Um grande abraço a todos.
A. Murta

(**) Último poste da série > 29 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15173: O nosso querido mês de férias (10): Eu fui um dos que nunca teve férias...Razão: por ser o "eterno comandante interino"... No máximo, passei oito dias em Bissau a tratar de assuntos oficiais... e a descansar não ficar de todo "apanhado do clima"! (Manuel Vaz, ex-alf mil, CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67)

Guiné 63/74 - P15177: Fotos à procura de... uma legenda (62): O sol, diz o povo, nasce para todos, mas a lua só para quem merece... Ou ainda, noutra variante do nosso imaginário, quanto mais luz ao luar, mais lhe hão-de os lobisomens uivar...







Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados. 


1. Da janela do meu quarto, na madrugad do dia 28 de setembro, por volta das 4h20,  o firmamento celeste  apresentava o tão esperado acontecimento astronómico do ano,  a ocorrência de Super Lua em simultâneo com um Eclipse Total da Lua... 

Peguei na máquina e obtive estas imagens que quero partilhar com os nossos leitores... Já estava a meio o eclipse, eu devia ter-me levantado mais cedo... Não acordei, acordaram-me...

Dizem que os lobisomens é que uivam à lua cheia, mas também em luas negras, e provavelmente em noites de  eclipse... Quando eu era puto, acreditava em lobisomens... Se acreditava!... E até me diziam que tinha um tio-avô que era lobisomem...  Metiam-nos medo, aos putos, os safados dos graúdos, com essas histórias de lobisomens, bruxas, almas penadas e espíritos maus que cochichavam por detrás das paredes, portas e armários...  Havia amuletos, gestos, rezas e mezinhas para nos defendermos do mau olhado e dos encontros funestos com essa seres do mundo das trevas...

2. Alguns provérbios populares  sobre a lua, recolhidos da Net [, e onde estranhamente o lobisomem está ausente]:

A lua alumia mas não aquece.
A lua e o amor, quando não crescem, diminuem.
A lua é mentirosa: quando diz que desce, cresce; quando diz que cresce, desce.
A lua não fica cheia em um só dia.
Arco na lua, chuva na rua.

Círculo na lua, chuva na rua.
Lua, a de janeiro, e amor, o primeiro.
Lua à tardinha com seu anel, dá chuva à noite ou vento a granel. 
Lua cercada, terra molhada.
Lua cheia, a tudo clareia.
Lua cheia, não cortes pau nem veia.
Lua de outubro sete luas cobre, e se chove, nove.
Lua deitada, marinheiro em pé.
Lua manchada, bonança assegurada.
Lua nova, muita rama e pouca abóbora.
Lua nova setembrina, sete meses determina.
Lua nova trovejada, trinta dias é molhada.
Luar de janeiro não tem parceiro; mas lá vem o de agosto que lhe dá no rosto.

Não há Entrudo sem lua nova, nem Páscoa sem lua cheia.

O amor é como a lua, quando não cresce mingua.
O sol nasce para todos, a lua para quem merece.

Pelas luas se tiram as marés.
Quando a lua minguar, não deves começar.
Quando a lua minguar, não deves regar.
Quando a lua minguar, nada hás-de semear.
Quanto mais luz ao luar, mais lhe hão-de os cães ladrar.

Riqueza e fortuna, mudam com a lua.


3. De acordo com as lendas e crenças populares, um homem foi mordido por um lobo em noite de lua cheia. A partir daí, passou  a transformar-se em lobisomem em todas as noites  de lua cheia. Feio, forte e peludo, aparecia a assustar as pessoas em sítios ermos como colinas, encruzilhadas e cemitérios. Se  o lobisomem mordesse outra pessoa, a vítima transformava-se também em lobisomem...  

A lenda terá origem na mitologia grega... E do continente europeu, e por via da colonização, espalhar-se-ia por quase todo o mundo, ou pelo menos pelo novo mundo (Brasil, etc.).  Portugal sempre foi  fértil em lendas ligadas ao fantástico: mouras encantadas, fadas, bruxas, lobisomens... E de algumas terras, "terras do demo", e nomeadamente das Beiras e de Trás-os-Montes,  se dizia que as mulheres lá... eram homens e os homens lobisomens...

Coisas do nosso imaginário (popular...) , e que hoje só parecem fazer as delícias dos antropólogos ou etnólogos...  Se calhar o imaginário dos nossos filhos e netos, muito mais ligado à fição científica,  é capaz de ser muito mais pobre do que no nosso tempo de meninos e moços...

Estivemos entretanto na Guiné, onde havia os irãs e os espíritos que habitavam as florestas, mas não temos falado muito disso... Fizemos muitas operações e emboscadas à noite, mas nunca demos grande atenção à lua, à lua cheia, ao luar, e menos ainda aos eclipes da lua... Nessa época, eu não fazia poesia, ou tinha deixado de o fazer... Escrevia, mas não eram poemas  à lua... ´

Mas já que falamos da guerra, é bom recordar outro provérbio que diz que "os lobos não se comem" (ou "lobo não come lobo",  não pratica o canibalismo nem se dedica a lutas fratricidas(... Já o homem é o predador de si próprio. "O homem é o lobo do homem" (em latim, "homo homini lupus")... Coitado do lobo, feito medida do homem! ... LG
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Nota do editor:

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15176: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum (14): Uma "visita de solidariedade" à Escola Piloto do PAIGC, em Conacri, dos "amigos suecos" Göran Palm e Beril Malmström, em novembro de 1969... Aparentemente não há qualquer relação com o episódio de Sangonhá, em 6/1/1969


Guiné > Região de Tombali > Sangonhá [, ou Sanconha], a sul de Gadamael-Porto > s/d > Vista aérea do destacamento e da sua pista de aviação, na altura em que estava a chegar uma coluna militar [lado esquerdo]. Foto provavelmente tirada de uma aeronave DO 27, c. 1967/68.

Este destacamento, tal como o de Cacoca,  deverá ter sido abandonado pelas NT em meados  de 1968, na sequência de uma decisão do então brigadeiro Spínola, de maio/junho de 1968,  segundo o nosso grã-tabanqueiro António José Pereira da Costa.  Tratou-se de uma "retirada", ou de "retração do nosso dispostivo no terreno", por razões de optimização de defesa... Tal como aconteceu noutros pontos do território (de Mejo a Beli, de Ganturé à Ponta do Inglês)... o Pereira da Costa, na altura alf art QP da CART 1692 / BART 1914 (Cacine, Cameconde, Sangonhá e Cacoca, 1967/69) diz que Sangonhá era sede de companhia e Cacoca destacamento:

(...)  "Em 1968, Cacoca era um daqueles lugares onde parecia não haver guerra. Dependente da Companhia sediada em Sangonhá, era um destacamento de nível Gr Comb, resumindo-se a uma pequena tabanca com pouco mais de duzentos habitantes." (...)

O Mário Gaspar confirma que foi no início de julho de 1969. tendo a população sido levada para Gadamael. [O Mário Gaspar foi fur mil art  MA, CART 1659, Zorba, Gadamael e Ganturé, 1967/68, tendo terminado a sua comissão em outubro de 1968; conheceu bem Sangonhá].

Os acontecimentos referidos no poste P2574,  pelo nosso grã-tabanqueiro José Barros Rocha [, ex-al mil  da CART 2410, Os Dráculas (Gadamael, Junho de 1969 a Março de 1970)], ocorreram em 6 de janeiro de 1969, portanto meio ano depois do "abandono" de Sangonhá pelas NT.

Foto: Autor desconhecido. Álbum fotográfico Guiledje Virtual. Gentileza de: © Pepito/ AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados (Edição e legendagem: L.G.).


1.  No "Arquivo Amílcar Cabral", alojado no portal "Casa Comum",  há um documento, em português, datilografado, de 16 pp., datado de novembro de 1969, com uma intervenção, não assinada, mas que se presume seja do Amílcar Cabral ("Uma visita de solidariedade"), "por ocasião da visita da delegação da Suécia, constituída por Göran Palm e Bertil Malmstroem (sic), à Escola Piloto do PAIGC" em Conacri"...

Há também um resumo da intervenção,  oral,  dos suecos, não sabendo nós quem foi o intérprete: o Göran Palm (conhecido escritor e ativista político de esquerda, nascido em  Uppsala em 1931, Prémio Selma Lagerlöf em 1998) e o Bertil Malmstöm (jovem professor, ativista do Comité da África do Sul, de Uppsala) falam do que "viram" e "sentiram" na sua visita às "regiões libertadas"... Dizem que estiveram no sul e no leste... 

Em referência ao sul, fala-se de uma tabanca T... que não é identificada pelo autor do documento (que só pode ser o próprio Amílcar Cabral, pela qualidade e estilo da escrita)... Presume-se que ele, Amílcar Cabral,  não tenha querido identificar a tabanca por razões de segurança, já que o documento, com o logo do PAIGC, deveria ter um destino externo... 


Capa do relatório, de 16 pp., datilografadas,  com 
a "intervenção   proferida por ocasião  da visita 
da delegação da Suécia,   constituída por Göran 
Palm e Bertil Malmstroem [sic],  à Escola Piloto 
do PAIGC". 

O Amílcar Cabral é subtil (e sedutor...) quando fala da Suécia, dos amigos suecos, da história recente da Suécia e das contradições da sociedade sueca, que estava longe de ser, em 1969,  uma utópica sociedade sem classes... 

O Amílcar Cabral  trata estes dois suecos como velhos amigos ou conhecidos... O que eu não sei é a que título estavam lá eles, em novembro de 1969, em Conacri? Se era "uma delegação da Suécia",  estavam em representação de quem? Do governo sueco? Do partido social-democrata? De alguma associação de amizade?  A título pessoal? (***)

Nessa altura, e desde 14 de outubro de 1969, o Olof Palm (1927-1986) já era primeiro-ministro.

Outra questão: será que a "delegação sueca" terá feito algum documentário (em 8mm, por exemplo)? Por que razão Luís Cabral lhes chama "cineastas"? (*)

Repare-se na data do documento: novembro de 1969... A história de Sangonhá é de 6 de janeiro de 1969. Estes dois suecos estiveram 3 semanas entre o PAIGC, em outubro e novembro de 1969. Göran Palm dirá depois que foi recebido "principescamente" pelo PAIGC, entusiasmado com a perspetiva de vir a receber ajuda (com substancial expressão monetária...) por parte de um país da Europa ocidental, com o prestígio e o peso da Suécia. Para Amílcar Cabral, era muito importante diversificar os seus apoios internacionais, não ficando apenas dependente da Rússia, China, Cuba e outros países comunistas. Nessa altura, Göran Palm fez um relatório sobre as "necessidades humanitárias" do PAIGC. Não há referência a qualquer filme deste escritor e ativista, no livro de Tor Selltröm, "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau" (Uppsala: Nordiska Afrikainstitutet, 2008, tradução portuguesa)(**).

Os nossos leitores podem consultar e ler o supracitado documento do PAIGC, página a página,  aqui, no portal Casa Comum:

Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 04602.051
Título: Uma visita de solidariedade
Assunto: Intervenção proferida por ocasião da visita da delegação da Suécia, constituída por Göran Palm e Bertil Malmstroem, à Escola Piloto do PAIGC.
Data: Novembro de 1969
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral - Iva Cabral
Tipo Documental: Documentos



2. Há também, no Arquivo Amílcar Cabral, uma foto de grupo, a preto e branco, disponível aqui [em formato normal]

Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 05247.000.101
Título: Lilica Boal, Aristides Pereira, Domingos Brito e Hugo dos Reis Borges com uma delegação estrangeira
Assunto: Maria da Luz Boal (Lilica Boal), Aristides Pereira, Domingos Brito, Hugo dos Reis Borges com uma delegação estrangeira, em Conakry [visita da delegação da Suécia, constituída por Göran Palm e Bertil Malmstroem, à Escola Piloto do PAIGC].
Data: c. 1969
Observações: Cfr. Amílcar Cabral, documento 04602.051.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Fotografias


Legenda de LG:

da esquerda para a direita, na foto acima, temos: Göran Palm, Maria da Luz Boal (Lilica Boal),  Bertil Malmström, Aristides Pereira, Domingos Brito, Hugo dos Reis Borges.
Ao fundo, vê-se parte de um automóvel ligeiro de passageiros, um Volkswagen, provavelmente o célebre "carocha" do Amílcar Cabral.

Recorde-se que a Lilica Boal (Maria da Luz Boal) era a mulher do dr. Manuel Boal - outro natural de Angola, que saiu em 1961 para se juntar aos movimentos nacionalistas, A Lilica Boal nasceu em Tarrafal, Santiago, Cabo Verde.
Era ela, a Lilica Boal, quem dirigia a Escola Piloto do PAIGC em Conacri, sendo também ela a responsável pelos conteúdos nos manuais escolares (, publicados na Suécia). (**)

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(...) No seu livro “Crónica da Libertação”, Luís Cabral menciona o "Afrika Group" como aglutinador da solidariedade da sociedade civil sueca ao PAIGC, talvez referência sintética ao “Grupo de África” de Upsala e ao “Grupo de África” de Lund, que se distinguiram na sua ajuda e a enviar os seus mentores e intelectuais de visita às “áreas libertadas” … na República da Guiné-Conacri. E aquele corifeu escreve, na pag. 335: “Os cineastas Goran Palm e Bertil Malmstron apresentaram na Suécia o primeiro documentário cinematográfico sobre a nossa luta, como resultado de uma visita ao interior da Guiné”.

Esse documentário terá a ver com a peripécia de Sangonhá?


Dado que os cineastas eram o maior bem a preservar nessa temeridade que teve Sagonhá como "palco", o experiente e felino Nino Vieira (?) terá providenciado imediatamente a sua segurança. A primeira ameaça dos FIAT precedera mais de uma hora o lançamento das “bilhas” pela malta de Bissalanca.

Alguém já visionou esse documentário? Terá registado o aludido aparato bélico do PAIGC e os “destroços” da sua “conquista” de Sangonhá? (...) 

(**)  Sobre o papel e o estatuto do escritor Göran Palm,  no desenvolvimento das relações externas da Suécia com o PAIGC,  vd. (em especial pp. 74-76, 146, 163-164) SELLTRÖM, Tor - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Uppsala: Nordiska Afrikainstitutet, 2008. [Em português; tradução: Júlios Monteiros; revisão; António Lourenço e Dulce Aberg], 290 pp. [Disponível aqui, em formato pdf:  http://nai.diva-portal.org/smash/get/diva2:275247/FULLTEXT01.pdf

Guiné 63/74 - P15175: Convívios (711): Divagações e recordações de um dia de verão em Paços de Sousa (Francisco Baptista)

1. Em mensagem de 20 de Setembro de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos um texto que intitulou Divagações e recordações de um dia de verão em Paços de Sousa.


Divagações e recordações de um dia de verão em Paços de Sousa


Sobra-me o tempo, faltam-me as palavras, na minha cabeça semi-adormecida haverá prazeres e desgostos sem comédias, farsas ou dramas, e há esta música que me embala e me transporta num vaivém que com suavidade, leveza e beleza me cobre o corpo e o espírito como um lençol de linho macio.
Continuarei a viver como quem cumpre um calendário com dias bons e dias maus, os antigos romanos, com mais sabedoria do que eu, tinham os dias fastos e os dias nefastos que eu somente sei distinguir depois de os viver. A alegria de viver está no contraste dos dias e no realce que os melhores momentos vividos atingem. A felicidade contínua não existe na terra e eu confesso que tenho dificuldade em imaginá-la para além da morte. A nostalgia do nada, a melancolia sem razão, o olhar perdido no tempo que passa, a forma de viver pelas sensações mais primárias, que recebemos através dos sentidos, o frio, o calor, a música, o cheiro da terra , a chuva.

Foi desta forma que vivi dois anos na Guiné, bastante indiferente à razão, à dor e ao perigo, ao ódio, ao amor. Os nossos cientistas em antropologia dizem que o nosso antepassado, o homo sapiens nasceu em África. Na África voltei a ser um animal mais bípede do que sábio, e a viver segundo essas emoções primordiais.
Tudo me convidava a viver dessa forma, desde as razões e sem-razões, que se combatiam em mim, por lá ter ido parar, ao paraíso bíblico, dessa terra de bolanhas, florestas, rios e mares, que tinha o cheiro forte e quente do início do mundo quando os nossos antepassados, por serem negros ou não terem pecados, andavam nus, sem frio ou calor, sem vergonha ou pudor.

A acrescentar a tudo isso, a água não era recomendável, podia causar cólera, diarreias e outras doenças, mas arranjava-se cerveja e whisky por bom preço. Um camarada que esteve na Guiné, no meu tempo e não muito longe de mim, contou-me este ano, que o capitão da companhia dele mandava retirar umas pequenas barras de chocolate das rações de combate e as punha à venda no bar dos soldados. Conheci-o lá, sem saber dessa vigarice, por outras razões nunca gostei dele, sei que ainda hoje consegue congregar uma grande parte da companhia em almoços anuais.
Será que se arrependeu e agora anda a devolver os chocolates roubados? Será que os portugueses gostam de ladrões bem-falantes?

Sobre os capitães que comandaram as duas companhias onde estive, não me pronuncio, um já morreu há muitos anos e o outro penso que era um homem honesto. Ainda hoje tenho raiva a esses ladrões, sobretudo graduados de várias patentes, que roubaram tanto alimento essencial às dietas dos soldados. A somar aos trabalhos, sacrifícios e perigos que diariamente sofriam, ainda tinham que ser roubados por quem os devia proteger, do pão necessário e essencial à vida.

Com comandantes destes, qualquer guerra estaria perdida pois um soldado mal alimentado é um soldado desmotivado. Penso que depois do 25 de Abril de 1974, com o fim da guerra, muitos desses heróis, com o registo criminal limpo e com uma folha de serviços gloriosa, arranjaram bons lugares no aparelho do estado e nas autarquias para continuarem a fazer o que bem sabiam, roubar e enganar o povo.

Para que ninguém diga que eu entre queixumes, lamurias e acusações só uso o blogue para lavar a alma do lixo que vai acumulando entre rugas pronunciadas que já não consegue disfarçar, vou enviar algumas fotos dum dia alegre e memorável de sol radioso, que passei, já há quase dois meses com alguns camaradas da Guiné e de outras guerras, num ambiente bucólico, debaixo de uma ramada, com boa comida, bom vinho e boa música popular portuguesa, bem cantada e tocada por camaradas e amigos.

O convívio passou-se na casa da mãe do camarada Vitorino, uma senhora idosa mas alegre e jovial. Tenho encontrado bons camaradas e amigos na Tabanca Grande. Na Tabanca de Matosinhos, o tipo de contacto mais físico, já que almoçamos frequentemente juntos proporciona conversas mais privadas e pessoais entre todos e uma amizade mais personalizada. Foi pelo Vitorino e outros camaradas músicos, que encontrei ocasionalmente num convívio em casa de um amigo comum, que tive conhecimento da Tabanca Pequena ONGD e fui convidado a entrar para sócio e frequentar os almoços semanais.

O Vitorino quase não perde um dos almoços da Tabanca. Eu que nem sempre posso ir (tenho outros amigos para almoçar no mesmo dia) gosto sempre de o encontrar lá. Sou muito amigo dele e ele dá-me a honra de ser também meu. Sou um entre os muitos amigos que ele tem, pois é consensual entre todos os que o conhecem, que ele consegue distribuir a sua simpatia natural e a amizade, entre muitos e consegue estar sempre bem disposto mesmo quando a vida lhe corre menos bem. A casa situada em Paços de Sousa, perto de Penafiel, está isolada numa zona de pinhal com vinha e horta contíguas.

Depois do almoço houve uma grande sessão de música popular portuguesa cantada e tocada pelo Vitorino e 9 ou 10 amigos, uns camaradas da Guiné, outros só amigos.
Dentre os amigos que pertencem à Tabanca Grande estava o José Teixeira, o Xico Allen, o João Rebola, o Barbosa, o coronel Coutinho Lima. O José Teixeira que se sabe distinguir tanto na prosa como na poesia, como muitos sabem, que tem por cá muitos amigos e muitos amigos na Guiné. Amizades obtidas e consolidadas nas deslocações que tem feito lá regularmente.
O Xico Allen que mais do que todos tem feito deslocações à Guiné, por terra, por ar e por mar, um camarada popular conhecido em todas as tabancas de Portugal e da Guiné. A haver cônsul da Guiné no Porto devia ser escolhido entre estes dois camaradas pois conhecem bem as realidades e a história recente da Guiné e sabem estabelecer laços de amizade entre os dois países.
O João Rebola, esse alentejano dum raio, que penso que já regressou à Guiné depois do susto que passou em Bissorã quando o inimigo emboscado o deixou passar a correr na motoreta dele.
O coronel Coutinho e Lima, um camarada sempre bem disposto, que eu não conhecia pessoalmente, um comandante famoso, que sem autorização do general Spínola ordenou e comandou a retirada de Guileje, essa praça forte mais flagelada do que todos os quartéis da Guiné, para poupar a vida dos homens sob o seu comando e a da população. Sobre isso escreveu um livro, que eu vi oferecer aos dois irmãos da casa. Disse-nos ainda que estava a escrever outro sobre as outras duas comissões que fez também na Guiné. Comandante ficamos a aguardar e que os ares de Vila Fria te dêem saúde e te inspirem!

Havia outros que só pertencem à Tabanca de Matosinhos, o Jorge Cruz, o Luís, o Ferreira, o Júlio, o Manuel Galvão que fizeram tropa na Guiné em variados lugares e diferentes especialidades. Todos estes camaradas penso que todos ou quase todos, já voltaram em visita à Guiné.
Seriamos cerca de 23 entre diferentes amigos, tendo ainda faltado alguns que não puderam ir.
Dentre os músicos, lembro-me agora de um deles que canta tão bem como toca, o Arménio, que se safou das guerras por ser mais novo do que a maioria presente.

Graças ao Vitorino e à sua família, passámos um dia muito agradável, com boa comida, bom vinho e boa música. Um grande dia só possível porque o Vitorino é um homem que tem um grande coração e gosta de organizar estas festas alargadas em que se celebra a amizade. Na amizade vivem-se as virtudes mais nobres entre os homens; a confiança, o respeito, a honestidade, a lealdade, a tolerância, a solidariedade.

"Dos sentimentos humanos, o menos egoísta o mais puro e desinteressado é a amizade" 
Cícero

P.S.  
- Agradeço ao Vitorino e ao irmão Emílio, bem como às simpáticas cozinheiras (a comida estava óptima) as esposas deles e à esposa do Carlos Teixeira, pelo grande convívio que nos proporcionaram, sem esquecer a animação feita pelos músicos.
- Agradeço ao Chico Allen pelas muitas fotos que me remeteu e pela boleia que me deu e ao João Rebola pelas fotos que me enviou também.

A todos um abraço.
Francisco Baptista

O Xico Allen em acção

Quase pronto a ser servido


João Rebola, Cor Coutinho e Lima, José Teixeira e Francisco Baptista


Vitorino, o nosso anfitrião, dedilhando a viola

Emílio, irmão do nosso camarada Vitorino, durante um pezinho de dança

A Matriarca, senhora D. Eva Salgado, com uns bonitos 88 anos, feitos há dias, mãe de 9 filhos, entre os quais o Vitorino e o Emílio.

Para ouvir "Videira que dá uvas azuis e brancas" na interpretação dos Musikotas, clicar aqui



Centro de operações


Francisco Baptista, António Barbosa e Xico Allen

  António Barbosa ataca o tacho

Francisco Baptista e Coronel Coutinho e Lima

Fotos: © Xico Allen e João Rebola
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15142: Convívios (710): XVII Encontro do pessoal da CCAÇ 4544, levado a efeito no passado dia 13 de Setembro de 2015, em Alcobaça (António Agreira)

Guiné 63/74 - P15174: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (22): De 09 a 23 de Outubro de 1973

1. Em mensagem do dia 26 de Setembro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 22.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

22 - De 09 a 23 de Outubro de 1973

Das minhas memórias:

O mês de Outubro de 1973 iniciou-se com a melhoria do tempo e a perspectiva de diversificação da nossa actividade operacional, devido à abertura da nova estrada Aldeia Formosa – Buba. Isso deu-nos, naquela altura, algum ânimo, mesmo sabendo que essa construção implicaria um redobrar de esforços para todos. Mas era o efeito “novidade” que nos animava por certo, esperando que esta estrada não desse as amarguras sentidas na de Mampatá – Cumbijã, que fora traçada para entrar pelos terrenos do inimigo adentro.

Outubro ficaria ainda marcado pelo incontável número de colunas de A. Formosa a Buba com os inevitáveis patrulhamentos e picagens, seguidos da instalação nas matas o dia todo: foram os reabastecimentos do costume, foram os equipamentos e o pessoal da Engenharia, foi a deslocação para Buba do pessoal do BCAÇ 4516 e foram as várias que se fizeram para transportar a população para a festa do Ramadão e para a eleição do sucessor do Cherno Rachid. Se atendermos a que a picada estava muito danificada, nalguns pontos quase intransitável, dá para perceber o esforço exigido a quem fazia a protecção e a quem, de viatura, aos balanços e aos saltos, “navegava” naquele pesadelo. Os troços aproveitáveis da picada, menos sujeitos às correntes diluvianas, ficaram agora devastados pela passagem das máquinas pesadas e de lagarta da Engenharia.

Acrescia ainda a actividade dos patrulhamentos cada vez para mais longe. Como nota positiva, o facto de não termos sido incomodados pelo inimigo, mais preocupado em continuar a flagelar Cumbijã. “A actividade do IN continuou a ser fraca, sendo de salientar a flagelação a CUMBIJÃ, não só pelo grande número de granadas utilizadas, como pela precisão do seu fogo”. (da “Situação Geral” da H. U. do BCAÇ 4513, 01 a 31 Out73)


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

OUT73/09Pelas 1730 GR IN não estimado flagelou o Destacamento de CUMBIJÃ durante 45 minutos, com 100 granadas de CAN S/R e 5 granadas de MORT 82, sem consequências. As NT reagiram com fogo de ART e MORT. [Sublinhados meus a negrito]

- Esteve presente no Comando do Batalhão, a apresentar os seus cumprimentos de despedida, o CHERNO ALIU CHAM da REP SENEGAL, e que agradeceu todo o apoio prestado quando do falecimento do CHERNO RACHID e todo o apoio sanitário que se continua a ser dado em todos os pontos da fronteiriça da REP SENEGAL.~

- Chegaram a BUBA os Dest. ENG N.º 1 e 2 e a Brigada de Estudos e Construção de Estradas.

OUT73/10 – Realizou-se uma coluna de reabastecimento a BUBA a fim de transportar p/ A. FORMOSA os elementos do DEST ENG N.º 1, assim como algumas máquinas e materiais do mesmo.


Foto 1: Nhala, 1973 – Coluna de viaturas e máquinas da Engenharia rumo a Buba, numa pausa em Nhala. Se estavam a caminho de Buba estavam de saída: calculo que sejam as máquinas que construíram a estrada Mampatá-Nhacobá. Revelo-as só pelo aparato semelhante e sempre “festivo” que originavam e porque não tenho imagens da coluna com a Eng.ª N.º1 que por aqui passou rumo a A. Formosa. 


Foto 2: Nhala, 1973 – Saudosa, esta imagem de Nhala com a mata ao fundo ainda integral. Não faltaria muito tempo para que fosse dilacerada para fazer o troço que ligaria, lá muito por trás dela, à estrada nova A. Formosa – Buba. 

OUT73/11 – Forças da 2.ª CCAÇ/4513 durante a acção “OSÍRIS” executam patrulhamento na região do R. UUGUIUOL sem contacto. [relacionado com histórias marginais (3)].
- Forças da 3.ª CCAÇ/4516, accionaram na região de NHACOBÁ uma MAPESS (mina antipessoal) IN, sofrendo dois feridos graves.

[Em carta de 19-10-73 para a Metrópole refiro mais esta flagelação a Cumbijã (dia 9), e o caso do soldado do novo Batalhão (BCAÇ 4516) que ficou sem uma perna ao pisar uma mina entre Cumbijã e Nhacobá. Depois interrogo-me: seria este o soldado que veio a falecer por falta de evacuação atempada? Nunca soube. Mas era a informação que corria.

Outras notas dessa carta: Um pelotão de Buba teve (em 17-10-73) um contacto no mato sem baixas, mas parece que causaram mortos e feridos. Pela rádio pediram tiros de obus a Buba e durante toda a tarde ouviram-se aqui em Nhala tremendos rebentamentos das granadas a baterem a zona; Continuam a chegar as máquinas para a construção da nova estrada. Supõe-se que o PAIGC esteja ao corrente e comece a concentrar as suas forças na área. Pela nossa parte estamo-nos também a preparar].


Histórias marginais (3) – Inimigos poderosos: formigas e mosquitos... 


Foi mais um patrulhamento para a região do Rio Uuguiuol mas, desta vez, com o meu grupo a solo. Ia o grupo em passo lesto e com muito ânimo a atravessar uma zona de savana ensolarada, depois da longa e monótona mata. Pára o grupo e chego-me à frente para ver o que se passava, mas não foi preciso andar muito para ver os três ou quatro homens da frente aos saltos, cinturões e armas para o chão, calças para baixo, palavrões, de repente em cuecas e a esfregarem as pernas, esgares de dor, enfim, parecia uma macacada mas percebi logo que era sério: pisaram formigas. Tenho a ideia vaga de que eram as temíveis formigas vermelhas [1], mas também podiam ser as formigas pretas de grandes mandíbulas [2] que eu cheguei a ver, noutra ocasião, a irem agarradas aos pneus das viaturas que tinham pisado um largo carreiro delas na picada. A verdade é que a ignorância sobre a enorme diversidade animal, que se nos deparava no dia-a-dia, era quase total.

Depois de socorridos os homens, cheios de vermelhões e ainda a arrancar cabeças de formiga cravadas nas pernas, tentei no local avaliar a extensão da área coberta pelas formigas, em total desordem, e concluí que o resto do grupo não podia passar por ali. Tinha que encontrar uma zona em que as formigas ainda estivessem a passar de forma organizada, e tínhamos que sair dali rapidamente. A dez ou vinte metros do local do incidente elas continuavam a sua marcha ordeiramente, sempre no mesmo sentido e alheias ao que se passara lá à frente. Mas não era um carreiro de formigas, era uma torrente delas com, talvez, meio metro de largura. Um pequeno salto era o suficiente para ultrapassá-las. Se não as calcássemos. Para não correr riscos, cortámos duas estacas que eu cravei no solo, sinalizando as “margens” daquele caudal ameaçador e todos passámos sem problemas, com uma pequena corrida e um salto na primeira estaca, até os pés baterem para além da segunda estaca.

Pode parecer caricato um grupo de combate ser travado assim, por uma espécie que mal se vê nas ervas do chão, e caricato também tanto empenho na prevenção de novo incidente e, até, esta relevância que agora dou ao assunto. Mas quem passou por algo semelhante, não vai achar nada de brejeiro neste relato. Muito menos os meus soldados, que diziam que aquelas picadas eram piores que as das abelhas, e que saíram dali com marcas que não esqueceriam tão depressa, sem saberem, ainda, as consequências delas e, muito menos, o que os esperava ainda antes de acabar o dia.

Cumprida a missão do patrulhamento, no regresso já pelo fim da tarde, lá estavam as estacas mas nem sinal das formigas. Só que, como se não tivesse bastado, mais adiante e antes de penetrarmos na mata, durante uma pequena pausa para descanso, fomos atacados por mosquitos. Não daqueles mosquitos que em massa nos atacavam à noite na mata e nos deixavam ardor e comichão, mas cujo incómodo maior era o seu enervante zumbido. Estes eram mosquitos grandes [3] e com um aspecto que eu desconhecia ou de que nunca tinha dado conta: as suas longas pernas eram manchadas de preto e branco. Recordo que, o que primeiro me ocorreu foram as antigas bengalas dos cegos e nunca mais esqueci esta alusão. Tinham também uma fúria a atacar que me pareceu superior aos restantes mosquitos, indiferentes ao espanejar de camisas e quicos. 

Mas o pior era que a sua picada, logo aos primeiros instantes, deixava marcas nos mais sensíveis que inspirava apreensão e requeria cuidados imediatos. Recordo bem as costas de alguns com autênticos caroços tumefactos logo após a picada e, não muito mais tarde, viam-se erupções purulentas. Fiquei impressionado e preocupado mas não por mim, pois as picadelas que sofri, para além da dor e do incómodo, não provocaram efeito nenhum. Só muitos anos depois associei este mosquito à malária, lendo artigos sobre o assunto. A verdade é que recentemente, creio que em 2013 ou 2014, por duas vezes, identifiquei esse mosquito junto da minha casa.

Tudo isto se passou em curto espaço de tempo, pois urgia sair dali rapidamente para evitar consequências mais graves, e foi o que fizemos, em correria, alguns ainda em troco nu e a sacudirem-se mutuamente. Nos dias seguintes acompanhei os casos mais graves e verifiquei como era demorada a cicatrização daqueles autênticos furúnculos purulentos. Mas já estava habituado a que um ou outro não comparecesse à chamada por estar com paludismo. Por tudo isto e por muitas outras ocorrências, embora seja quase imune à picada dos mosquitos, ainda hoje, se descubro um único mosquito no quarto, só adormeço quando estou certo de o matei.

[1]Marabunta (Cheliomyrmex andicola): é uma formiga-correição que vive principalmente debaixo da terra nas selvas tropicais da América. (Outras fontes referem América e África), são de cor avermelhada, tamanho médio.

As suas mandíbulas são em forma de garra e armadas com grandes espinhos, semelhantes a dentes, que permitem que elas se prendam às suas presas durante o ataque. As suas picadas são extremamente dolorosas, irritantes e paralisantes. A dor que provocam assemelha-se com a da picada das "formigas de fogo".

São a única espécie que remove e consome carne de vertebrados, como lagartos, serpentes e pássaros, inclusive de animais de maior porte, bem como do homem. (Todos os dados parecem corresponder às formigas que referi. A recolha é da Wikipédia com a devida vénia).

[2]Formiga legionária: é uma formiga semelhante à marabunta mas capaz de matar até galinhas e outros animais maiores devido ao seu ferrão muito venenoso. Matam e comem qualquer coisa que encontrem pela frente. O que principalmente a distingue da marabunta, é que não constroem ninhos permanentes e estão quase sempre em movimento. (Julgava ser esta a formiga que refiro no texto, mas agora tenho dúvidas, pois não encontrei informação desta espécie com a cor negra. A recolha é do site “comotudofunciona” com a devida vénia). 
Nota: Em África, todos os que encontraram estas espécies pela frente, ainda assim, podem-se considerar sortudos, pois aí não existe a formiga-bala que, como o nome indica, a sua picada é semelhante ao impacto duma bala. E o pior vem depois: é frequente as suas vítimas, ao fim de um dia ou dois, apelarem para que lhes amputem o membro picado por já não suportarem mais a dor. Só existe na América do sul).

[3] - Anopheles, mosquito transmissor da malária: A doença é transmitida pela fêmea do mosquito do género Anopheles. No Brasil, o principal parasita que causa a malária é o Plasmodium vivax. Ele é menos perigoso do que o Plasmodium falciparum, por exemplo, o mais predominante na África. (Recolha do site “VEJA”).


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:


(...)

OUT73/11 – Forças da 3.ª CCAÇ/4516, accionaram na região de Nhacobá uma MAPESS (mina antipessoal) IN, sofrendo dois feridos graves. [Relacionado com a minha nota anterior, com data de 19-10-73].

(...)

OUT73/16 – O Cmdt do Batalhão deslocou-se a Nhala e Buba.
- Por determinação superior o BCAÇ 4516 passa a ser força de intervenção do Comando-Chefe. [Ficou apenas a 3.ª CCAÇ em Colibuia].

OUT73/17 – Pelas 1530 forças da 1.ª CCAÇ/4513 interceptaram em Xitole (2 E 7-17) grupo inimigo de 120 elementos armados, deslocando-se no sentido S-N. NT sem consequências, o IN com prováveis feridos e mortos. Capturado 1 granada de RPG-7.

(...)

OUT73/23 – Durante a picagem do itinerário MAMPATÁ-UANE foi detectada uma mina A/P IN por forças da CART 6250.
- Seguiu para BUBA, com destino a BISSAU a 1.ª CCAÇ 4516.


Das minhas memórias:


23 de Outubro de 1973 – (terça-feira) – Carreiro de Uane.

Estive com o meu grupo, mais uma vez, na protecção à coluna para Buba – e retorno -, junto ao “carreiro” de Uane. Este “carreiro” era um corredor de passagem e reabastecimento da guerrilha que se cruzava com a nossa picada, mais ou menos a meio caminho entre Nhala e Mampatá. Daí que, para a protecção às colunas, saísse um grupo de Nhala e outro de Mampatá fazendo a picagem até ao “carreiro” onde nos encontrávamos e trocávamos informações sobre alguma anormalidade. Depois cada grupo se afastava umas centenas de metros na direcção dos respectivos aquartelamentos e instalava-se na mata junto à picada onde se passava o dia quase todo, até ao regresso da coluna a A. Formosa. Uma vez ou outra, instalávamos na zona de Samba Sabali. Se não tivesse ordens em contrário, eu preferia ficar com o grupo quase em cima do “carreiro”, onde emboscava para evitar surpresas vindas dali.

Neste dia (23), já no “carreiro” há algum tempo, estranhei a demora do alferes de Mampatá (CART 6250). Instalei logo ali o grupo na mata e fiquei na picada a aguardar. Por fim lá apareceu ele ao fundo na curva, sozinho por também já ter instalado o seu pessoal, (os grupos quase nunca se chegavam a ver), e com uma pequena caixa de madeira na mão. (Foi nesta ocasião que me avisou de que em Mampatá um milícia me tinha procurado para me matar... Seria só da bebedeira? Um dia talvez conte). Vinha então o alferes com uma caixa na mão. Era uma mina antipessoal artesanal que ele tinha levado tempo a levantar. Ainda nos rimos da mina quando a examinei e vi que estava quase podre. Parecia inofensiva, mas nunca fiando!...

Julgo ter sido neste dia que, enquanto esperava, penetrei no “carreiro” numa certa extensão a tentar descodificar sinais que me dessem uma ideia do número de elementos que ali passaram e em que direcção porque, à chegada, tínhamos visto o óbvio, mesmo no ponto onde o “carreiro” cruzava a picada: tinham ali passado muitas botas e muito recentemente. Não recordo a direcção. Passei essa informação ao camarada de Mampatá e, mais tarde, ao meu comandante em Nhala.

Era sobre este “carreiro” mas a muitos quilómetros dali na direcção do Rio Corubal, que tínhamos em permanência um pequeno campo de minas. Mesmo a partir de Nhala a corta-mato, para se interceptar o “carreiro” no sítio minado, caminhavam-se várias horas, já não recordo ao certo, e sempre com um guia à frente porque, sem a sua ajuda, ainda que chegasse perto, podia nunca localizar o campo de minas. Bastava que fosse lá, por exemplo, após a época das chuvas para as levantar, quando elas haviam sido implantadas em plena época seca. Foi o que me aconteceu num dia complicado e que mais tarde relatarei.

Seguem-se algumas imagens de um dos inúmeros patrulhamentos até ao “carreiro” de Uane, com o objectivo de fazer a picagem e depois montar segurança para a passagem de uma coluna auto de A. Formosa a Buba e regresso. Podem parecer monótonas estas imagens da picada Nhala-Mampatá, mas muitos reconhecerão com saudade alguns destes trechos. Até já davam saudades naqueles tempos, quando a deixámos de usar para passar a utilizar a estrada nova...


Imagens da picada Nhala - Mampatá 



Foto 3: À saída de Nhala rumo ao “carreiro” de Uane. A seguir ao denso nevoeiro, viria o braseiro do costume. De calções, vai o Abel cheio de micose, mas não pôde ser dispensado.



Foto 4: O homem da bazuca. Lá à frente vai uma parte do grupo e a equipa da picagem.


Foto 5: Não fora o motivo da caminhada, e quanto prazer nos daria passar aqui nesta paz, sem receio do que estivesse para além daquela curva...



Foto 6: O homem dos dilagramas.


Foto 7: Passagem na zona do palmeiral. Caminhamos em silêncio total. Estamos a passar num dos pontos mais bonitos do percurso, mas também dos que requeriam maior vigilância. Agora já está seca a picada mas, ali junto às palmeiras, na época das chuvas passava-se com água pelos joelhos.



Foto 8: Estou junto ao “carreiro” de Uane no ponto em que ele cruza a nossa picada. É evidente o vestígio de uma passagem recente. 


Fotografia (slide) tirada da borda da picada. Nas minhas costas o “carreiro” corre para Norte, para os lados do Corubal.


Foto 9: O Fur. Mil. José Maria Pastor e o Fur. Mil. Domingos Oliveira nas imediações do “carreiro”. O resto do grupo está instalado na mata do lado direito.



Foto 10: Estamos de regresso após as passagens da coluna. À direita o que resta do que foi a tabanca e destacamento das NT, Samba-Sabali.



Foto 11: Quase a chegar a casa. À direita fica o aquartelamento de Nhala.

Foto 12: Nhala à vista. A tabanca, mais à esquerda quase não é visível.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

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