quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15408: Manuscrito(s) (Luís Graça) (70): O Alzheimer da história



Lisboa > Torre de Belém, 500 anos de história > Novembro de 2015


Foto: © Luís Graça  (2015). Todos os direitos reservados. 



O Alzheimer da história

por Luís Graça


Davam longos passeios,
ao domingo,
de jardim em jardim,
ao longo do rio,
os lisboetas.
A pé.


Tinham trocado,
na feitoria de Arguim,
os seus cavalos brancos,
puros lusitanos,
com os seus belos arreios,
por escravos negros,
da Guiné.


E no seu encalce,
os turistas,
com as suas superzooms digitais,
subiam as sete colinas,
os voyeuristas,
para melhor ver as vistas
e os vitrais das catedrais.


Grande era o mundo.
e Portugal,
tão pequenino e caleidoscópico,
ali ao fundo.


Já não passavam mais
nem caravelas nem naus
ao largo do Bugio.
Perderam-se, por má sorte das armas,
as joias da coroa,
Goa, Damão e Dio.


Junto às ruínas do palácio dos Estaus,
um manjaco do Canchungo
varria o lixo da história.
E era feliz,
duplamente feliz:
feliz  por ter um emprego,
com cama, mesa e roupa lavada,
da União das Freguesias da Mouraria e da Judiaria;
e feliz por não ter memória:
- Teixeira Pinto ?...
- Sim, o capitão diabo!
… Não, nunca ouvira falar.


Coitados dos povos
que sofrem da doença do Alzheimer da história!
Mas pode ser que tenhas mais sorte,
meu irmão,
na próxima reencarnação,
na girândola da vida e da morte.


Em novembro era verão,
ainda davam longos passeios pelo rio,
os lisboetas,
sortudos,
levando pela mão
os seus loucos, os seus cegos,
os seus mudos, os seus surdos,
os seus anões e os seus poetas.


Lisboa, 25 de novembro de 2015


______________

Guiné 63/74 - P15407: Convívios (720): XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha, Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 (José Manuel Matos Dinis / Manuel Resende)


Foto nº 1 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 >   Os Magníficos, posando para a posteridade...


Foto nº 2 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 >  Rancho melhorado, o vaguemestre esmerou-se mais uma vez...



Foto nº 3 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 >  "Já não queremos outra vida...nem outra tabanca", pensam (mas dizem,..) os nossos dois grã-tabanqueiros António Martins de Matos (à esquerda) e Hélder Sousa (à direita)


Foto nº 4 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 > O patriarca António Santos (ficam-lhe bem as barbas brancas bíblicas!) e um dos seus filhos




Foto nº 5 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 > O veteraníssimo Mário Fitas e a sua sempre jovem Helena



Foto nº 6 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 > Outro "jovem casal", que não perde um convívio tabancal, o Carlos Alberto Cruz e a esposa Irene.



Foto nº 7 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 >  É sempre bom vê-los de volta e com bom apetite: o régulo Jorge Rosales e o Jorge Canhão.




Foto nº 8 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 > Da direita para a esquerda, Veríssimo Ferreira, Manuel Resende (o fotógrafo de serviço), Armindo Pires e o Augusto Silva Santos (que esteve em Jolmete, tal como o Manuel Resende)... Todos os quatro são membros da nossa Tabanca Grande,



Foto nº 9 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 > José Louro e Luís Moreira, "habitués" da tabanca...



Foto nº 10 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 >  Merece um prémio de lealdade e assiduidade este casal,  o António Fernando Marques e Gina.


Foto nº 11 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 >  À esquerda, o Jorge Pinto, um homem de Fulacunda,e  à direita o Orlando Pinela.


Foto nº 12 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 >  Da esquerda para a direita,  o sobrinho (João Martins), o João Sacôto (tio) e o padrinho (do "minino" Zé Manel), o nosso Manuel Joaquim...


Foto nº 13 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 > Da esquerda para a para direita, Manuel Macias, Armando Pires e Miguel Rocha


Foto nº 14 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 > Jorge Pinto e António Cardoso ("pira" na Tabanca da Linha).. Em segundo plano, o Giselda Pessoa em conversa com a Helena Fitas...


Foto nº 15 > XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos, Cascais, 19 de novembro de 2015 > O Zé Manel Dinis, à esquerda, não precisa de apresentações... À sua direita,  o Joaquim Nunes Sequeira e o Manuel Joaquim, Ao centro, o António Gomes Veloso (outro "pira").

Fotos (e legendas): © Manuel Resende (2015). Todos os direitos reservados. [Seleção, edição e legendagem complementar: LG]



XXII Convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Oitavos – Cascais em 19/11/2015

por José Dinis e Manuel Resende


Hoje, dia lindo e magnífico com o sol a iluminar o restaurante, os camaradas estiveram para o bronze enquanto se tiravam algumas recordações para a posteridade. De repente, provindo de uma galáxia qualquer de gente magnífica, um Mercedes descapotável trouxe dois dos mais requisitados da tabanca, que viriam a revelar grande afinco no trabalho da faca e do garfo.

Quando o pessoal abancou às mesas, nem a magnífica paisagem envolvente disfarçou o mau estar geral: porra mais estilhaços de marisco com bianda.

Como cogumelos surgiram os contestatários da ementa que,  não contentes com essa profissão de fé, aventaram outras alternativas do agrado de cada um. Foram tantas que não se chegou a um acordo, salvo quando alguém disse que o melhor será comermos o secretário. Logo outro acrescentou, terá que ser de chanfana, que de tão engelhado que ele está, aquelas peles devem ser demasiado rijas para os nossos dentinhos.

Não sobrou nada.

No acto participaram os magníficos a seguir mencionados:

António Cardoso
António Fernando Marques e Gina
António Gomes Veloso
António Maria Silva
António Martins de Matos
António Santos e Júnior
Armando Pires
Arménio Conceição e esposa
Augusto Silva Santos
Carlos Alberto Cruz e esposa Irene
Carlos António Rodrigues
Carlos Carronha Rodrigues
Carlos Santa
Diniz Souza e Faro
Francisco A Palma
Francisco Mendes de Almeida
Hélder Valério Sousa
João José Alves Martins
João Luís Calado Lopes
João Sacôto
Joaquim Grilo
Joaquim Nunes Sequeira
Jorge Canhão
Jorge Costa
Jorge Pinto
Jorge Rosales
José António Chaves
José Carioca
José de Jesus
José Manuel Matos Dinis
José Miguel Louro
José Rodrigues
José Rosales
Luís Moreira
Luís Paulino
Manuel Joaquim
Manuel Macias
Manuel Resende
Mário Fitas e esposa Helena
Miguel Pessoa e esposa Giselda
Miguel Rocha
Orlando Pinela
Veríssimo Ferreira


Um bocadinho atrasado, pelas 19 horas, telefonou o magnífico José Felício a perguntar se ainda havia algo para dar ao dente. Depois de informado que não, e que todos já tinham recolhido aos lares, e que nem para amostra sobrou alguma coisinha, o nosso camarada mostrou-se bastante infelício por não se ter lembrado atempadamente.

A idade não perdoa !!!

Para terminar esta minha magnífica reportagem, quero dizer que as minhas fotografias ganham aos pontos em relação às daquela senhora muito desembaraçada que lá caiu de paraquedas, e lembro que as minhas são de acesso gratuito.

Por último, gostei muito de ver o Sr. Comandante, que exibe uma nova fisionomia pré-atlética.

José Dinis/Manuel Resende

PS: (desculpas ao PCP e BE) não se aceitam reclamações sobre a reportagem.

Para saber mais:

A Magnífica Tabanca da Linha, página do Facebook, grupo fechado;

Manuel Resende > Photos > Picasa > Tabanca da Linha XXI Convívio

Guiné 63/74 - P15406: (Ex)citações (302): O conjunto João Paulo, em 1968, em Susana... No fim do concerto apanhámos com umas valentes morteiradas (Domingos Santos, ex-fur mil, CCAÇ 1684, Susana e Varela, 1967/69)


Foto nº 1 A


Fopto nº 1


Foto nº 2

Guiné > Região do Cacheu > CCAÇ 1684 (Susana e Varela,m 1967/69) > O Conjunto Académico João Paulo, em Susana, em atuação (foto nº 1) e com os oficiais e sargentos da companhia.


Fotos: © Domingos Santos (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


1. Mensagem do [Manuel] Domingos Santos [, ex-fur mil, 
CCAÇ 1684 / BCAÇ 1912, Susana e Varela, 1967/69]:


Data: 23 de novembro de 2015 às 21:22
Assunto: Envio de fotos do conjunto João Paulo


Um abração,  camarigo amigo.

Aqui mando duas fotos que guardo do conjunto João Paulo,  em actuação em 1968 em Susana... Na segunda vê-se os elementos do conjunto com os oficiais e sargentos da CCAÇ 1684.

Guardo também  alguns discos que me ofereceram nesse tempo.

Guardo também na memória  que, no fim de nos divertirmo-nos com as suas canções, caiu em cima de nós umas fortes morteiradas, como que a dizerem que queríamos mais música.

Um abração
Domingos Santos
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terça-feira, 24 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15405: Expedição Porto-Dakar, integrada na 2ª edição do Dakar Desert Challenge: Coruche, Marrakech, Bissau, Dakar: 26 de dezembro de 2013- 9 de janeiro de 2014 (Abílio Machado, ex-alf mil, CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72) - Parte I

1. Mensagem,  de 31 de agosto de 2015,  do Abílio Machado 

[o nosso "Bilocas" de Bambadinca, grande amigo dos velhinhos da CCAÇ 12, eu, o Tony Levezinho, o Humberto Reis, o Gabriel Gonçalves, entre outros; ex-alf mil, contabilidade e administração, CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/72; e também um dos fundadores do grupo musical Toque de Caixa; vive na Maia; publicou recentemente o Diário dos Caminhos de Santiago, Porto, 2013]

Caro Luis :

Em anexo, segue o texto digital da expedição à Guiné (e não só).

Datando o evento : 26 de Dezembro 2013 a 9 de Janeiro 2014, passando por Portugal, Espanha, Marrocos, Sahara Ocidental, Mauritânia, Guiné-Bissau, Gâmbia e Senegal.

Enviarei depois algumas fotos que possam "engalanar" o texto.

Grande abraço
Bilocas


PS - A passagem pela Guiné foi - não o escondo - um dos motivos maiores que me trouxeram a esta expedição [, do Dakar Desert Challenge]. E a aventura, que sempre me estimula.  A oportunidade de rever amigos e voltar a um território onde, por força da guerra,  gastei dois anos da minha juventude, tornavam esta jornada mais que aliciante.


Abílio Machado, foto atual
2. Porto-Dakar - Parte I

por  Abílio Machado  

[, integrado na 2ª edição do Dakar Desert Challenge: Coruche, Marrakech, Bissau, Dakar: 26 de dezembro de 2013- 9 de janeiro de 2014 ] (*)


Fotos (e legendas): © Hugo Costa (2006). Todos os direitos reservados.  Como o Abílio Machado não nos mandou as fotos a tempo, usamos as da Expedição Porto-Bissau, realizada em abril de 2006, por Xico Allen e A. Marques Lopes. [Edição e legendagem complementar: L.G.].


A expectativa era alta, largos os horizontes, imensa a vontade de partir e rasgar o desconhecido… O jeep, um Land-Rover robusto e fogoso, artilhado e armado para todos os Bojadores, quase intimidava o neófito que mal adivinhava as aventuras que o esperavam. Não fora a carga humanitária que o trotamontes carregava - o que lhe dava um ar quase humano - e o secreto desejo de retornar a um país onde gastara dois dos seus jovens anos, o pobre estreante destas descobertas teria arrepiado caminho na sua decisão.

Partimos … a chuva molhava uma noite, escura como breu, que exigia ao condutor do Land todos os sentidos alerta. Assim melhor sentíamos as ânsias e o temor dos velhos marinheiros de antanho que nos revelaram o mundo.

Revigorados por três horas de sono em Coruche (*) - era o prenúncio das vigílias que nos esperavam - rumamos a Tarifa, porta aberta para Tânger e o exótico de Marrocos.

Porto-Bissau... 6 de Abril de 2016...Dia 2, Marrocos,
Marraquexe: gare ferroviária.
Foto: © Hugo Costa (2006)legenda
Nada nos tolhia o entusiasmo, mesmo os dois furos com que o primeiro dia nos recebeu. Se mal despertos íamos, foi-se-nos o sono : nunca pensei que fossem tão pesados os pneus de um jeep. Esgotamos na primeira etapa a nossa dotação de furos: nem os mais pedregosos tracks do deserto fizeram a mais pequena mossa aos neumáticos do "cavalinho". ("Cavalinho" era o nome com que eu afagava o Land nos apertos das areias ou dos trilhos mais rugosos).

Ainda tonto das novidades, de tudo querer ver e saber, de tudo apreender (o que é um “erg”, oued é djelabha, xocram…), vês-te no turbilhão da Praça Jemaa el Fna, mendigos, serpentes, Marraquexe recebe-te com um chá de menta que te aquieta a alma. A alma perde-se-te nos labirintos da medina, entre tapetes, especiarias, babuchas, fezs, ferragens e frutos secos.
um rio?,

Agadir é já ali, ali é já o dia seguinte, o ”cavalinho” afeito às distâncias nem arfava, arfávamos nós de fome. Num descampado à face da estrada entrava pela janela um aroma conhecido : peixe grelhado. Mesmo a calhar.

Sondamos o peixe e o menu : sardinhas assadas sobre pão marroquino e cebola crua. Tudo sobre um rectângulo de papel, pratos não havia, talheres também não, nem intérprete. O preço apelativo : 5 sardinhas,  1 euro. Será que entendi bem? Não será ao invés, 1 sardinha cinco euros?

Porto-Bissau... 7 de Abril de 2016...Dia 3, Marrocos:
 a caminho de Tânger...o Atlas ao fundo
Foto: © Hugo Costa (2006).
Abancamos. Gordas, grávidas, pediam-nos que as comêssemos. Comemos. O ar de satisfação que os marroquinos exibiam estendeu-se à mesa dos portugueses.  As sardinhas estavam - se o usasse - de se tirar o chapéu, um regalo! Arrematamos com um queijo de Serpa e bolos artesanais. E tangerinas de Marraquexe. Um manjar de Califa.

Não houve refeição que melhor nos soubesse : quase grávidos, sonolentos fomo-nos aos jeeps.

O vale-oásis, mais te fascina que surpreende, sabes que o deserto tem seus segredos, mal esperas e um oásis abre-se para ti ao virar da duna, não há coisa que mais deleite tuaregs e camelos.


Adicionar Porto-Bissau... 8 de Abril de 2016...Dia 4,
Sara Ocidental: 
a caminho de Tantan - Roc Chico, a 73 km
de Tarfaya 
Foto: © Hugo Costa (2006).legenda
Este foi lugar aprazível - fácil é imaginá-lo - para os ocupantes de Fort Bou Jerif que lhe fica sobranceiro, os soldados da Legião Estrangeira [Francesa] que o ocuparam durante anos, não nós que nele pernoitamos uma noite, uma noite limpa, estrelada e de estrelas tão brilhantes que as julgávamos ao alcance da mão.

O deleite dos olhos trouxe-nos o sacrifício do corpo : o briefing do dia sinalizava a passagem na Praia Branca e advertia para a hora da praia-mar, de olhar o oásis, esquecemos o detalhe, enchia a maré quando desembocamos na praia, paisagem de sonho, areia branca mas perigosa, como certas mulheres, fofas mas movediças, ao fim da praia contamos cinco horas para fazer 87 kms, coisa - amigos - ao alcance de um bom maratonista, digo-vos eu.

Atascamos, desatascamos, ajudamos, partilhamos, suamos, cervejamos, mais fácil é escrevê-lo que sofrê-lo.

A praia termina na foz do Oued Aoerora, subimo-lo e como nós, deslumbrados pela beleza, cáfilas de camelos que, na pouca água do rio, matavam sedes de semanas.

Porto-Bissau... 9 de abril de 2016...Dia 5, Roc Chico a 
Nouakchott,  capital da Mauritânia... Um dos maiores 
comboios do mundo  Foto: © Hugo Costa (2006)
Fotos com os pastores, até que alguém grita, ala que se faz tarde!, chegaremos a Smara de noite. Arrancamos, pressurosos… Sustém a marcha, "cavalinho", a noite vem, eu sei, mas deixa que uma outra vez deleite os olhos ao pôr do sol. Há muitos, sabemos, e de vários cambiantes, mas morrer sem um pôr de sol no deserto é morrer cego, cego não morrerei, eu vi o sol pondo-se sobre o deserto de Smara.

Smara é já no Sahara Ocidental, cidade rodeada de quartéis, tantos são que se julga a cidade ela mesma aquartelada, militares nas ruas, desarmados mas visíveis, como visíveis são algumas mudanças : não nas mulheres, que trajam o tradicional, mas nos homens, como se nos dissessem, sou do Sahara Ocidental, como ocidental visto.
AdicionarPorto-Bissau... 9 de abril de 2016...Dia 5, Roc Chico
 a 
Nouakchott,  capital da Mauritânia... O comboio...
Foto: © Hugo Costa (2006)
 legenda

Muda o deserto também, uns taludes de terra acompanham os trilhos que fazemos, muros contra a Frente Polisário, dizem-nos, lemos que este é território em disputa, o povo sarauhi reclama autonomia.

Autónomo, não, não falo do Alberto João!, autónomo foi o nosso jantar. Porquê? - dirão. Vejamos : num lado se compra a carne, noutro se cozinha. Assim mesmo : vai-se ao talho e compra-se 1 kg de bifes e costeletas; vai-se ao restaurante a grelhar e comer. Duas operações, autónomas como as nossas autonomias, mas baratas : 1 kg de carne, 10 euros.

Para os ecónomos, aí vai : 5 sardinhas 1 €, 1 kg de carne 10 €, tagine de borrego 5 €, 1 kg de tangerinas 40 cents, 1 djelabha 15 €, 3 gorros 60 cents, carpete de lã 60 €, a mesma de seda 125 €, 2 punhais 7 €, a dormida foi em quarto duplo Hotel Amine, Smara, com banho privativo e cilindro prestes a rebentar 25 €, para compra e venda de acções direi que 10 dirhans 1 €, 350 oughias cotam-se a 1 €, o franco cfa está cotado a 0,650 do €, cotação de Wall Street acabadinha de abrir, 14 h na Euronext.

Montamos a tenda. Era dia de acampamento, era noite, o dia já se fora e com ele as primeiras miragens : são como as bruxas : no me creo en brujas, mas que las hay, las hay, direi em português : sei que não existem, mas que as vi, vi.

Lagos, largos de água, ao longe, que o deserto, uns metros à frente, esconde.

O deserto dá, o deserto o tira, o deserto é todo ele uma miragem, vasta, bela, um horizonte infindo de fantasia e ilusões.

No brinde da meia-noite desejámo-nos fantasia e sonhos, também saúde e acções, das boas …Hoje é a passagem de ano : 2014 entra pé ante pé, surpreende-nos no deserto, belo mas inóspito e frio, um cozido de bacalhau com grão e batatas aquece-nos o corpo, à alma aquece-a um bagaço odoroso, perfumo o café, repito, nem assim a noite será mais quente, pior será a manhã, negativos os graus, no lavar da loiça caem-nos os dedos, de tão frias logo cairão as mãos. Retorno à infância, não retenho da minha vida momentos de tanto frio, o velho professor esperava que as mãos nos aquecessem para iniciar os trabalhos.

Passamos o trópico de Câncer, um tronco de madeira, artisticamente esculpido, assinala o ponto. Um dia passarei, sou Capricórnio - passaremos - o outro, não nos negue a vida vontade para tal feito. Alguém faz anos na caravana.

Porto-Bissau... 9 de abril de 2016...Dia 5, Roc Chico
 a Nouakchott, capital da Mauritânia... Sarauís...
Foto: © Hugo Costa (2006)
r legenda
Hoje direi das acácias a cada dia mais magras e ressecas, da ave bip-bip (sem coiote), das beduínas tendas, nómadas, dos cães selvagens, das mariolas, dos pneus e montes de terra, balizas-guias no deserto, dos bebedouros, das duas ovelhas perdidas e seus anhos de um dia, como se dissessem vamos ali ter um filho e já vimos e na volta se vissem abandonadas da família, da vasta planura do deserto sarauhi, infindo, uma colina, vaidosa, exibe-se no horizonte, de uma penugem verde que cobre o deserto, não me dás de comer hoje?, dou o que tenho, também o céu não me dá água, come essa ervinha tenra, chamar a isto erva, vê-se bem que nunca foste à Europa, não posso ir, não tenho pernas como tu, o aventureiro não vê só miragens, também ouve as conversas que têm as ovelhas e o deserto, é do sol que abrasa e lhe coze o cérebro, das conversas das mulheres sarauhis quando se encontram - um beijo na face direita, dois na face esquerda - , ou dos homens - dois beijos em cada face, a mão posta sobre o coração do amigo -, ouve, mas nada entende, também aqui Deus confundiu as línguas, outro dia direi de outras coisas mais, longo vai já o dia. Dito está.

Um almoço no deserto. Lembro o filme de Bertolucci, “Um chã no deserto”. Se de italianos falamos, em italiano comemos : spaghetti alla bolognese.

Resgatamos do Land mesas e cadeiras, fogão e panela, talheres e guardanapos, o deserto não nos verá comer à mão, isto não são sardinhas marroquinas.

Abeiramo-nos de uma acácia-abrigo, alguém, os animais comendo ou os homens rasgando, abriu uma entrada para o interior da acácia, junto dela é visível a estada de animais e humanos, um bebedouro perto indica-a como poiso de descanso e alimento. Comemos, bem. Fruimos, melhor. Não reservará a vida muitos momentos iguais, gozemo-los. Gozamos.

Em Dakhla [, Villa Cisneros, no período colonail espanhol,] estás em casa, tens o mar e o vento, o surf, o wind, o kite, a cidade recebe-te na ponta de uma península estreita que, afoita, rasga as entranhas do mar adentro, 40 kms de terra que a noite te esconde, adivinhas o mar de um e outro lado, em Dakhla, capital do Sahara Ocidental, podes ser dakhliano, no ocidente estás. Tanto mar, peixe tem, vamos ao peixe, que a fome aperta.

O Samarcanda - nome mítico para outros povos - desdobra-nos um menu variado, não lhe damos atenção, sabemos ao que vamos : um misto de peixes vários, sobre o qual repousam duas pequenas lagostas dissecadas. Como tuaregs esfomeados, lançamo-nos aos bichos, trucidamo-los, na travessa restam umas tristes folhas de alface, um pitéu para as ovelhas, o que a uns abunda a outros falta, é assim o mundo, mas bem não está…

Aos curiosos ou especuladores : 4 refeições 170 dirhans. Abençoamos o Samarcanda e prometemos retornar. Cumprido foi.

Como as miragens, afirmo sem receio de contradita que as terras de ninguém existem, e, sendo embora de ninguém, é certo que lá vive gente, vive e prospera.

Venham comigo. Mas sem pressas. Vamos passar uma fronteira e as fronteiras fizeram-se para que o people espere, canse, desista e não passe além…

Ou caia de sono, morra de fome ou de tédio… Para isso os estados têm um tirano a seu mando : a burocracia. Despótica, autoritária, inexorável, definitiva… Irónico,  o bicho homem : quanto mais pobre é, mais predador se torna.

É assim nas fronteiras de África. E nas fronteiras de todos os países onde à pobreza juntas o atraso, o subdesenvolvimento, o analfabetismo…

Se a isto acrescentares uma pitada de religião, tens o panorama que as notícias diariamente te dão do mundo : radicalismos políticos, fanatismos religiosos…
- Maintenant, on va prier!

Eram duas da tarde. Os funcionários da alfândega, na fronteira da Mauritânia, não intervalam para comer mas para rezar, e entre abluções - passam água pelas mãos, pela cara, pelas orelhas, pelos braços, pelos pés, entre os dedos dos pés, também no mindinho - e orações, passou meia hora, a fila engrossou e estendeu-se, o ajudante prepara aos senhores da douane um chá de menta no fim da reza. Sem pressas.
Porto-Bissau... 9 de abril de 2016...Dia 5, Roc Chico a Nouakchott,
capital da Mauritânia... Foto: © Hugo Costa (2006)

Vamos, é a nossa vez.

Passamos a fronteira. O que temos à frente é um terreno escalavrado, pedras salientes, agressivas, até o mais corpulento jeep tem de pisar com cuidado não vá criar calos nos pneus : é a terra de ninguém, zona-tampão, espaço com 4 kms de largura imposto pela ONU, para que os vizinhos desavindos, Marrocos e Mauritânia, só se vejam ao longe, assim as mulheres de um e outro lado não se puxam os cabelos nem os homens as armas. O Land pisa lento, cauteloso, olha pensativo as carcaças ferrugentas, carros esventrados, pneus velhos, capots abertos, enfim, corpos mortos a cada lado do estradão, o nome é um favor meu!

Mas há vida aqui : junto à parte marroquina, carros novos, usados, marcas francesas a maior parte, não sei, não quero saber, recuso-me a saber o que fazem os seus donos, sentados, alheados, esperando o quê em terra de ninguém…

Vendem, compram, cambiam, traficam - diz-me o jeep, vai por mim que já sou velho nestas andanças, aqui é a 2ª vez que passo.

Ao Land não o contrario, é ele que nos leva, se lhe dá uma birra ainda nos deixa em terra, mas não é birrento o cavalinho, um trabalhar suave que deixaria dormir não fosse o acidentado dos tracks, a suspensão poupa-nos o rabo a cada solavanco…

Passamos a via férrea - aqui prestamos a nossa homenagem - do comboio mais longo e mais lento do mundo : carruagens que podem estender-se por 3 kms, 45 minutos de lentidão a passa…a…a…ar. Num mundo cada vez mais apressado, o comboio da Mauritânia - transporta minério do interior para o porto de Nouadhibou - ensina-nos a virtude da espera e obriga-nos à reflexão do que persegue o homem com tal sofreguidão…

Pelo deserto da Mauritânia, uma voz, como surgida do mais fundo da terra, embalava os ares, um
chamado de acasalamento, camelos e ovelhas levantavam os narizes, não era ainda o tempo de procriar :

Vem viver a vida, amor
Que o tempo que passou
Não volta, não.
Sonhos que o tempo apagou
Mas para nós ficou
Esta canção.

O condutor do Land espantava o sono e, romântico mas não trôpego, lembrava os primeiros amores. Fugiam camelos e pastores, as ovelhas protegiam as crias…

O Land, solidário, parou…
- Algum problema?
- No. Han visto uns amigos atras, un Toyota parado…
- No, nada - disse o cavalinho.

O Land não quer saber de Toyotas, e se os vê, com risco nosso, ignora-os.

Tem sido assim desde o início, a cada passo rosna, é um deles que nos passa, ri-se-lhe o motor quando os deixa para trás.
- Podemos seguir con vosotros…
- Claro, vamonos… diz o condutor do Land, mirando a espanhola.

Eram catalães, um catalão e uma catalã.

O dia bafeja-nos com um trilho ameno e uma passagem pela praia.

Ao longe, aldeias de pescadores e, poisados no mar, cansados da faina, os mesmos barcos que cruzavam o mar da Póvoa e a minha infância : a vela latina enfunava ao vento. E pelicanos, cansados também.

O mar convidava a um banho azul, tão azul era a água.


Mapa dp Parque Nacionao do Banco de Arguim (**)... Imagem do domínio público.

Fonte: Cortesia de Wikimedia Commons



Mas algo nos intimidava : a Maité - o marido, Tomás - não era Eva, nem nós Adão, o decoro exigia calções que nenhum de nós tinha. Caberia ao Tomás a decisão.
- En calzoncillos, amigos…
- Em cuecas, pois seja…

Todos trazíamos cuecas, felizmente. A Maité acompanhou-nos no gesto, os homens tiraram as calças, pois ela tiraria a camisa…

Exibido o músculo e encolhida a barriga, fomo-nos ao banho, entramos mar adentro, água
convidativa, cálida… Como lembrar que estamos em Janeiro? Demos umas braçadas a espantar a preguiça.

Alá, lá onde mora, olhando a praia, três machos em cuecas, uma mulher em soutien :
- Então, não querem lá ver… Estes pensam estar no paraíso terreal…

E era, amigos, palavra de Alá! era o paraíso terreal, estivemos no Éden naquela tarde… A praia - 50 kms - integrava um parque natural, o Banc d’Arguin, e foram garças, pelicanos, gaivotas, barcos, pescadores, até uma praga de gafanhotos, esvoaçavam à nossa frente, faziam negaças, brincavam com o cavalinho.

Era noite, à chegada a Nouakchott, a capital mauritana.

 (Continua)

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Notas do editor:

(*) 28 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12214: Ser solidário (153): Expedição solidária Dakar Desert Challenge arranca de Coruche, em 26/12/2013, e apoia a AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau. Inscrições até 31 do corrente.

(**) "Arguim é uma ilha na Baía de Arguim, Mauritânia, costa ocidental de África. Com apenas 12 km² de área, a ilha é alongada, medindo cerca de 6 km de comprido por 2 km de largura média. Está situada a 12 km da costa, dela separada por canais arenosos repletos de recifes e de bancos de areia que se movem com as correntes.

"A ilha faz parte do Arquipélago do Golfo de Arguim e está incluída no Parque Nacional do Banco de Arguim, uma vasta zona dedicada à protecção da natureza, classificada pela UNESCO como património mundial graças à sua importância como local de invernada de aves aquáticas.

"Nela localizou-se a primeira feitoria portuguesa na costa ocidental africana, a partir do qual os portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, porgoma-arábica, ouro e escravos, que traziam para a Europa.

"A ilha foi sucessivamente ocupada por portugueses [de 1445 a 1633], holandeses, ingleses, prussianos e franceses, até ser abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso a navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e extensos recifes que a rodeiam. Na actualidade a ilha encontra-se quase deserta, com excepção da pequena povoação de Agadir, na sua costa oriental, habitada por cerca de uma centena de pescadores-recolectores da etnia Imraguen." (Fonte: Wikipedia)

Guiné 63/74 - P15404: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (30): Abril de 1974

1. Em mensagem do dia 21 de Novembro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

30 - Abril de 1974

Das minhas memórias: Os patrulhamentos

Desde o início da construção da estrada Aldeia Formosa-Buba, em Outubro de 1973, até quase ao final de Maio de 1974, é recorrente na HU do BCAÇ 4513, o seguinte registo: “Forças do Batalhão e de reforço continuam a dar segurança aos trabalhos de Engenharia, assim como a executar patrulhamentos para as regiões de fronteira e contra-penetrações nos tradicionais corredores de passagem IN”. A maioria desses patrulhamentos, para as regiões frequentemente vigiadas, não me deixaram grandes memórias. Eram as rotinas. Mas os que fiz por caminhos nunca antes calcorreados, para regiões que me eram indicadas no mapa da sala de operações, pelo contrário, deixavam-me quase sempre memórias indeléveis. Por isso, ainda hoje, sou capaz de os descrever sem necessidade de recorrer a notas escritas. Mesmo que não acontecesse nada de grave, e eu tive quase sempre a sorte de não me acontecer nada, (faço por esquecer o que penámos enquanto Companhia de intervenção nos chãos massacrados de Cumbijã, Nhacobá e arredores), às vezes bastava uma pequena descoberta, deparar-me com um sítio estranho ou uma paisagem desconcertante, e não esquecia mais.

Certo dia, o Comandante de Companhia indicou-me no mapa uma zona e um rio. Acautelara a contratação de um guia e avisou-me que o único caminho era a corta-mato. Apenas iria o meu grupo de combate. Saímos cedo pela picada para Buba mas pouco andámos e o guia flectiu à direita. Embrenhámo-nos na mata que, logo ali, se apresentava como intransponível. Mas isso ao princípio não me perturbou nada, pois já tinha passado por muitas matas assim. Pensava eu. O guia, de catana em punho ia abrindo caminho, mas chegou-se a um ponto em que o pelotão teve de parar porque a abertura de passagem não era ao ritmo dos nossos passos. Pior, foi quando vimos o guia pôr-se de joelhos e começar a gatinhar à medida que abria um túnel no matagal. Mas seria que não houvesse uma passagem mais aberta, que ao menos caminhássemos de pé? Olhei à esquerda e à direita, hesitei, mas pensando bem, o guia conhecia a zona e não seria por gosto, certamente, que ia ali de gatas. Fiquei preocupado. A passagem que ia fazendo rente ao chão era estreita, muitos galhos e paus secos, arbustos densos. Pessoal! Atenção às patilhas de segurança, atenção às cavilhas das granadas à cintura, armas no chão ao longo do corpo, um de cada vez! Que caraças!... Mais que uma vez tive de parar e esticar-me para trás a agarrar o quico, afastar ramos por causa dos olhos. Apetecia-me parar tudo, voltar atrás, mas o guia já ia lá à frente, perdi-o de vista. Queria dizer-lhe que por ali não seguíamos mais, tinha que haver uma alternativa ou regressávamos. Mas tinha que avançar se lhe queria falar, e ele sempre distanciando-se... Mas depois apercebi-me que os da frente se adiantavam muito e calculei que estavam a entrar em mata aberta. Tranquilizei-me. Era melhor não dizer nada ao guia. De qualquer modo já não devia faltar muito... Mas faltava. Transpirávamos por todos os lados mas, pelo menos, caminhávamos de pé. Chegámos à orla da mata exaustos, cheios de fome e de mau humor.

Quando olhei em frente, para um mar de luz, vi uma savana amarela e, a cerca de cem metros ou pouco mais, um cordão infindável e cerrado de árvores de copa redonda até ao chão. Era o rio, não havia dúvidas. O que me deixou desconcertado foi a semelhança incrível com o cenário que se me deparou ao sair de uma mata, tão longe dali, quando patrulhava uma região para os lados do Cumbijã. Apenas com a diferença, lá, do ar intensamente salgado, e com bolanhas outrora cultivadas próximas da savana e das lalas. Aqui era só savana rasa, atravessada pelo rio paralelo à orla da mata, e o ar era limpo. Tudo tão plano que pouco se vislumbrava para além das árvores do rio. Perguntei ao guia se estávamos no sítio certo e ele acenou-me com a cabeça e disse um “sim”, lacónico.
- Então vamos lá espreitar o rio - disse-lhe eu. Respondeu-me qualquer coisa do género:
- Eu não dá mais passo. Lá, - e apontava para além do rio -, tudo turra.

Disse aos furriéis para instalarem o pessoal na orla e fui sozinho direito ao rio, tal como fizera muito tempo antes, no cenário de salitre referido atrás. Estava entusiasmado com aquele belo trecho da natureza, e muito curioso com a visão para lá do rio. Deixei a arma e o cinturão no capim e subi aos ramos fortes que vinham até ao chão, árvores estranhas e espinhosas. De ramo em ramo e já por cima da água lá no fundo escuro, percebi que o leito não teria mais de três metros de largura e apenas se adivinhava pelos reflexos, na penumbra da galeria de árvores. Nem dava para entender se tinha movimento ou estava estagnado. De onde estava já dava para perceber que do outro lado a savana continuava mas, aqui, formando um triângulo comprido entre a mata densa, esgueirando-se à direita, ao fundo, e perdendo-se de vista.

O silêncio era total. Quedei-me uns momentos a observar através da folhagem essas matas à minha frente, com a luz a ofuscar-me a visão, e decidi avançar para descer do outro lado no tapete de capim baixo e seco. Queria ir espreitar as matas que delimitavam a savana, tentar encontrar vestígios que denunciassem passagens ou permanências, enfim, o costume. Aparentemente, tudo parecia virgem desse lado do rio. Mas não consegui avançar mais. Já tinha os braços cheios de arranhões e receei cair por ali abaixo e rasgar o corpo naqueles espinhos. Fazer o caminho inverso também não foi fácil e só me senti seguro quando pus os pés no chão.

Regressei ao grupo e, depois de descansar e comer qualquer coisa, voltámos a Nhala a corta-mato. Pareceu-me mais fácil esta caminhada, mas já era quase noite quando se nos atravessou à frente a picada que vinha de Buba. Iniciámos o percurso pela picada num ponto que me pareceu mais longínquo de Nhala do que aquele em que saíramos para iniciar de manhã o corta-mato. Isto fazia alguma diferença, devido ao adiantado da hora.

Já com o Sol no ocaso e pára na picada o grupo todo. Lá de trás passam palavra que um homem se estava a sentir mal. Vou ver e está o maqueiro a tratar um soldado deitado no chão, imóvel mas de olhos abertos. Já não recordo bem, mas parece-me que tinha sido acometido de um ataque epiléptico. Disse ao radiotelegrafista para contactar com Nhala para virem com um Unimog buscar o doente. Não atendeu ninguém. Mandei fazer uma padiola (maca) com um dólmen e dois paus e recomeçámos o caminho já com a noite fechada. Disse para se ir insistindo no contacto com Nhala, já não muito longe mas, talvez por ser hora do jantar, não respondiam. Entretanto já se via o clarão da iluminação do aquartelamento e punha-se-me a questão: como iremos entrar se a sentinela mais próxima não entender a situação? Saberá que há um grupo de combate no mato? Pensava também: E o capitão e os outros, mais os das transmissões, esqueceram-se todos de nós? Estava furioso e indignado e o caso não era para menos.

Antes que os projectores do arame farpado nos batessem de chapa e precipitassem a sentinela mais próxima, quase no canto da tabanca do lado da picada, mandei parar todos antes da curva próxima e avancei sozinho, cheio de cautelas. Com a luz a encandear-me e virado para onde julgava estar o posto, berrei alto chamando a sentinela. Uma vez, duas vezes sem obter resposta. Perdi a paciência. Desertaram todos, ou quê? Dei um tiro para o ar e aproximei-me mais, anunciando o meu nome bem alto, tentando sobrepor-me ao ruído do gerador eléctrico.
Quase de imediato ouço do outro lado:
- Estou a vê-lo, meu alferes. Podem entrar.
- Não, não! - Respondi-lhe - Vais imediatamente avisar as sentinelas mais próximas e de seguida dizer ao furriel enfermeiro que trazemos um doente.

Fomos entrando, exaustos e esfomeados, mas sem grande vontade de encarar os outros. Já todos tinham jantado no aquartelamento e cada um estava na sua vida. Custava a acreditar. Eu cheguei com umas trombas que deviam meter medo e respeito. Não recordo se cheguei a jantar e se o soldado doente ficou estabilizado. Acho que ignorei toda a gente, menos o capitão, a quem expus a minha incompreensão pela falta de resposta do posto de rádio e por todos se terem esquecido que havia um grupo no mato. Mas já não tenho a mínima lembrança do que me respondeu. Também não me recordo de uma situação parecida nem antes nem depois.

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Muito mais fácil e sem tensões, foi um patrulhamento que fizemos em bigrupo, iniciado pela estrada nova em direcção a Buba em viaturas, depois calcorreando um trilho da guerrilha e regressando pela picada Buba-Nhala. Com o meu grupo, o 4.º, saiu o 3.º grupo do alferes Barros. Como tudo correu bem e, no final deste patrulhamento rotineiro, (ou contra-penetração?), podíamos dizer que fora um belo passeio. Refiro isto como pretexto para deixar aqui mais algumas fotografias, até porque não tenho muitos registos fotográficos de saídas em bigrupo.

Foto 1: O 3.º e o 4.º Grupos de combate da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 transportados em viaturas pela estrada Buba-Nhala, iniciam depois um patrulhamento apeado comandados pelo Alf. Mil. Tibério Barros e por mim, respectivamente. 

Foto 2: As viaturas regressam a Nhala. Os grupos prosseguem até se embrenharem na mata, lá mais à frente, para interceptarem o carreiro da guerrilha que cruza aquela zona. Repare-se que a estrada continua por alcatroar, tal como noutros troços, por falta de alcatrão. 

Foto 3: O meu grupo de combate aguarda que se ganhem distâncias para poder avançar. À frente vai o 3.º grupo. Em primeiro plano, de costas, o soldado Frade de Coimbra. Creio que era o único casado do grupo. 

Foto 4: Ainda na estrada, imagem agora colhida da frente da coluna, vendo-se os homens do 3.º grupo de combate. 

Foto 5: Pessoal do 3.ºgrupo, trilhando o carreiro da guerrilha. 

Foto 6: O meu grupo de combate, quase sem baixas, a gozar o merecido descanso. Nesta imagem faltam os dois furriéis. 

Foto 7: O 3.º grupo de combate também a descansar. O Alferes Barros é o do lenço azul e à sua esquerda a olhar para o fotógrafo, o Furriel Félix. 

Foto 8: Regresso a Nhala pela velha e saudosa picada. Na imagem, o pessoal do 3.º grupo. 

Foto 9: Tirada do mesmo ponto da anterior, a fotografia mostra o homem da bazuca do 3.º grupo e, em segundo plano e à direita, o Furriel Pastor do meu grupo. 

Foto 10: Ainda do mesmo ponto de vista, em primeiro plano o Radiotelegrafista Bento seguido do 1.º Cabo Maqueiro Baptista Custódio, ambos do meu grupo.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15376: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (29): De 08 a 16 de Abril de 1974

Guiné 63/74 - P15403: Parabéns a você (991): Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742 (Guiné, 1967/69) e António (Tony) Levezinho, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)


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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15396: Parabéns a você (990): José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp do BART 6523 (Guiné, 1973/74)

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15402: Memórias de Gabú (José Saúde) (56): Futebol em Gabu, um entretenimento saudável (José Saúde)



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

Camaradas,

Tenho andado às voltas com a minha última obra. Fui buscar o tema do futebol que a malta praticava nos aquartelamentos na Guiné. É óbvio que aproveitei o tema e falo da obra que será lançada ao público no dia 27 de novembro de 2015, sexta-feira, 20h30, na Biblioteca Municipal José Saramago, em Beja. Os artistas da foto são: em cima Santos, Dias, "Maia" e Fonseca em baixo Zé Saúde e Rui. 

Futebol em Gabu, um entretenimento saudável
Uma equipa de Nova Lamego

Corre-me nas veias o gosto pelo futebol. Lembro-me dos tempos de menino e moço jogar num dos largos da minha aldeia com uma bola que me sussurrava, metaforicamente falando, uma inspiração divinal e que me remetia para um mundo de sonhos.

Uma bola de trapos, uma bexiga de porco, regateada entre a miudagem numa matança recente de um suíno criado na pocilga do quintal de um vizinho, ou no matadouro comunitário da freguesia, bem como uma moderna bola de borracha comprada na mais recente feira anual do mês de setembro, eram símbolos que me acicatavam a mente.

Recordo essas manhãs diabólicas no Largo do Ferreira, em Aldeia Nova de São Bento, onde os chutos no esférico deixavam antever semânticas crenças de crianças que se entregavam desmesuradamente ao jogo da bola.

Cresci, e vivi, com o futebol sempre aos meus pés. Aliás, o meu percurso desportivo marcou, inevitavelmente, uma carreira que conheceu o seu auge quando aos 16 anos ingressei no Sporting Clube de Portugal onde tive como primeiro treinador o saudoso Zé Travassos, o “Zé da Europa” como ficou eternizado. Seguiu-se uma passagem por Alvalade com as cores verdes e brancas a marcarem um indiscutível período de profundas sensações. 

Neste contexto, assumo que a Guiné não passou ao lado de uma virtualidade que, para mim, antes já se tinha assumido como vulgar. Refresco a componente saudade e revejo uma foto de rapaziada que comigo se divertia em finais de tarde com a temática futeboleira lá para as bandas de Gabu.

Os camaradas recordar-se-ão, certamente, desses célebres momentos de puro convívio. Afastando o conceito de guerra, e entre arames farpados, abrigos e de valas que rodeavam o aquartelamento onde, a espaços, a artilharia pesada sinalizava a sua presença, a malta divertia-se a jogar futebol, sendo os golos a afirmação para uma sobremesa apetitosa.

Construíam-se equipas, normalmente formadas com os mais dotados, e a malta gozava à brava com uma vitória alcançada. O simbolismo da derrota era apenas desportiva e ocasional. No terreno, onde as batalhas tinham lugar, as coisas piavam mais fino.

Trago à ilustração da narrativa uma equipa arranjada, ocasionalmente, que se dispôs a travar um duelo com outros camaradas da minha companhia. A malta da “ferrugem”, recordo, era danada. Lembro-me a luta que os rapazes davam aos furriéis. Tinha uns “putos” bons de bola e os desafios eram sempre renhidos.

Camaradas, sendo o fenómeno futebolístico a minha área, permitam-me, com a devida vénia e respeito, aqui expor uma franja dos meus conteúdos descritivos como homem da escrita - jornalista e escritor - sobre a temática futebol.

Creio que a nível nacional não haverá este amiudado debitar de narrações como este vosso camarada o tem feito. Fui pioneiro na explanação do futebol sul alentejano em livro, deixando conteúdos reais sobre a evolução futebolística na AF Beja ao longo do Séc. XX.

“GLÓRIAS DO PASSADO”, volumes I e II, sintetizam marcos históricos que nos remetem a um passado onde a nossa razão existencial nos transporta a inolvidáveis momentos.

Agora, este velho combatente em território da Guiné, 1973/1974, um ranger carimbado com o destino que a vida militar lhe impôs, desafiou as calendas do passado, percorreu travessas, quiçá impensáveis, girou entre armazéns de histórias que ficariam por contar uma vez que essas biografias estavam hermeticamente contidas em gavetas onde o caruncho já corrompia, e eis uma obra, mais uma, onde se conta a história dos clubes da Associação de Futebol de Beja, em 90 Anos de Memórias e Relatos.

Um míssil lançado de uma posição avançada do IN que fez estremecer corpos de gentes jovens, deu-me renovadas ganas e remeteu-me para um desvendar constante do vício do jogo da bola. Em 1888 os irmãos Pinto Bastos, Guilherme, Eduardo e Frederico, estudantes num colégio em Liverpool, Inglaterra, trouxeram para Portugal a primeira bola e com ela o futebol.

Em 1906, um grupo de estudantes bejenses que frequentavam escolas em Lisboa, designadamente o Colégio Militar e a Escola Académica, trouxeram para Beja o gosto pelo jogo precisamente nas férias de Natal desse ano.

Formaram-se então grupos, mais tarde os clubes, e em 30 de março de 1925 fundou-se a Associação de Futebol de Beja. E foi neste contexto, e à beira de uma imprevisibilidade que o adensado mato impunha ao combatente, que este guerreiro ousou desafiar as trincheiras inimigas, ultrapassar capins que escondiam o terror do medo e dissecar a realidade futebolística bejense desde os seus primórdios até ao momento presente.

É a luta tenaz deste vosso camarada que, não obstante as suas limitações físicas – AVC ocorrido na madrugado do dia 27 de julho de 2006 -, jamais se quedou pelo infortúnio, continuando a debitar descrições para as gerações vindouras apreciarem. 

Desde cenas contadas com a minha comissão militar por terras da Guiné até ao alforge de recordações que enchem de prazer uma vida que já vai longa, são eternos resquícios de um passado que jamais voltará. 



Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: