1. Em mensagem do dia 15 de Janeiro de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), mandou-nos uma excelente história para a sua série "Outras Memórias da Minha Guerra".
Outras memórias da minha guerra
20 - Amores e Desamores
Quando entrei no Destacamento do Quartel de Santarém (Escola
Prática de Cavalaria), faltavam menos de 15 minutos para o limite
máximo de entrada. Num dos bancos de jardim, instalados ali na
frente, já havia escrito a alguns amigos, manifestando o meu estado
de espírito, carregadinho de incertezas.
Ainda hoje me custa aceitar que eu tenha merecido 7 punições
durante as primeiras 5 semanas de recruta. Aliás, só à 5.ª semana
consegui licença para ir a casa. Lembrei-me
então de pedir ao
CMDT de Esquadrão para me deixar participar nos Fiéis Defuntos,
alegando o facto de ser órfão e, como irmão mais velho, querer
acompanhar a família nessa dolorosa função.
Foi durante esse período de fins-de-semana
cortados que tive a
oportunidade de conhecer e conviver mais de perto com o Diogo
Carvalho que, por opção, também não ia a casa.
Inicialmente pareceu-me
evidente o seu temperamento emotivo e
revoltado quase com tudo o que o rodeava. Depois, após vários
dias de convívio restrito, constatei que se tratava de um indivíduo
maduro, já bastante espremido pela vida e pelos seus azares.
- Então,
também voltaste a não ir de fim-de-semana?
– perguntei.
- Não,
nem tenho interesse em ir. Já há uns meses que decidi
afastar-me
da terra.
Perguntei:
- Estás
chateado ou magoado com algo muito importante?
- Não
gosto de falar disso, mas tens razão.
Após uns momentos de silêncio, abeirou-se
um pouco mais,
olhou-me
frontalmente, de forma a falar só para mim.
- Ofereci-me
como voluntário para a tropa para fugir de lá. Ainda
pensei em emigrar, mas ponderei as consequências e optei por
antecipar o serviço militar. Depois, se há-de
ver o que virá.
Contou coisas que muito o marcaram, tais como a morte da mãe,
que ainda era jovem, a do avô pouco tempo depois e, ainda, mais
tarde, o comportamento do pai, que engravidou uma jovem casada,
que trabalhava lá em casa.
Enfim, o Diogo, apesar da sua juventude, já acumulara um sem
número de acontecimentos pessoais que o tornaram,
precocemente, num homem maduro.
Porém, o que mais mexeu com ele foi o desfecho de uma paixoneta
por uma vizinha rica.
Viviam da lavoura. Tanto o pai, Laurindo Carvalho, como o avô
paterno, Augusto Carvalho, destacavam-se
na criação do gado
arouquês, o que lhes trazia fonte de rendimento suficiente para
pagar as rendas aos senhorios Morgados e ainda desfrutarem de
algumas possibilidades na boa criação do Diogo, o único
descendente.
Desde menino que o Diogo se destacava entre os seus amigos.
Tinha bom aspecto, era inteligente, muito educado e irradiava
alegria permanente. Por isso, entre o grupo da JOC (Juventude
Operária Católica), ele era o mais admirado.
As miúdas também lhe dedicavam muita simpatia. Porém, em
criança, já ele parecia mais focado na Guidinha dos Morgados, a
bisneta do Comendador Afonso e sobrinha do Padre Benjamim
Morgado. Embora desfasassem quase um ano de idade (ele era
mais velho), frequentavam a mesma classe, vinham da escola
primária quase sempre juntos, acompanhados pela criada Manuela,
porque os Morgados a mandavam ir buscar a miúda.
Este relacionamento era normal, uma vez que viviam na mesma
zona da aldeia: ela no Casal dos Morgados e ele, logo mais abaixo,
perto da Casa do Feitor, na casa do Senhor Augusto. Além disso,
há muitos anos que a família do Diogo estava ligada aos Morgados
não só por questões de boa vizinhança mas também por boas
relações pessoais e interesses laborais. O Diogo era querido pelos
Morgados, especialmente pelos pais da Guidinha.
Durante o tempo da escola primária, havia um relacionamento
quase fraternal. Quando a criada Manuela os ia buscar, procurava
passar perto do seu namorado, Alcino, que trabalhava na Casa do
Brandão.
Por vezes, ela ficava com ele e deixava o Diogo e a Guidinha irem
para a beira do Rio Arda. Num dia de calor, a Manuela ficou aflita
ao vê-los
nus, a aprender a nadar. Todavia, como não os podia
acusar dessa ousadia, teve que os tolerar mais vezes.
Noutras vezes, já eles andavam na 4.ª Classe, a Manuela
encontrou-os
a brincar aos beliscões e apalpadelas.
A Guidinha não queria estudar. Gostava muito da família, da
natureza e daquele ambiente rural. Por outro lado, temia muito
afastar-se
dali. Os pais não se preocupavam muito com isso, até
porque, ali, não era tradição a continuação dos estudos por parte
das mulheres. Além disso, como herdeira de um elevado
património, não sentia necessidade de se sacrificar por qualquer
outra valorização profissional.
Ele, o Diogo, enquanto pôde, estudou no Colégio dos Carvalhos.
Nesse período, os contactos com a Guidinha resumiam-se
às
actividades de fim-de-semana,
ligadas à igreja.
O relacionamento de amizade manteve-se
bastante próximo.
Logo que faleceu o avô Augusto, o Diogo teve que ir para casa. O
pai que já havia entrado em depressão com a falta da jovem
mulher, inesperadamente falecida por doença cancerosa, sentia,
agora, grandes dificuldades em aguentar o habitual trabalho agrário.
Com menos de 17 anos, o Diogo era, então, um jovem
sobrecarregado de trabalho nas lides da terra e do gado, obrigado a
ajudar o sustento da família, bem como os seus compromissos.
Nesta fase, o jovem Diogo era merecedor dos maiores elogios e de
simpatia generalizada.
Em pouco tempo, o Diogo fez-se
homem. Além disso, ele era
solicitado, frequentemente, para colaborar nas responsabilidades
das actividades da JOC.
Foi nessa altura que, após as cerimónias do Corpo de Deus, os
dois, quando regressavam a casa, se viram junto ao Rio Arda, nos
mesmos locais onde desfrutaram de grandes momentos de alegria
e de pura convivência.
Recordaram aqueles tempos, riram-se
de situações inesperadas e
brincaram com alusões ao aspecto físico de cada um. Sentados na
berma do rio, descalçaram-se
para usufruírem da frescura das
águas límpidas, naquele dia de grande calor. De repente, estavam
no rio a lançar água um ao outro, como faziam nos tempos de
crianças. Passaram para a outra margem, acessível só pelo lado do
rio, e foram secar as roupas molhadas.
Ao tirar a folgada blusa branca, a Guidinha expôs um bom par de
mamas, devidamente sustentadas por um apertado soutien, de cor
carnal. Por sinal, era também a cor da calcinha sedosa que cobria o
encontro de duas coxas, bem torneadas e bastante atractivas.
Quando o Diogo, de costas, “ameaçou” tirar as calças, já ela se
estendia sobre as ervas tenras do pequeno verdeiro. Olhou-a
e
estremeceu. Foi um momento ímpar. De repente sentiu que toda a
pureza daquele relacionamento se esfumara e que outro o
amedrontava. Agora via ali disponível a mulher que desejava,
aquela formosa rapariga de olhos negros e cabelos lisos e retintos.
Deitados ao sol, quase nus, aproximaram-se
e encostaram-se.
Beijaram-se
sem experiência, agarraram-se
com volúpia e
murmuraram algumas palavras de amor. A Guidinha, entusiasmada,
expôs-se
abertamente, entregou-se
e desejou tudo do Diogo. Ele
procurou satisfazê-la
pudicamente com beijos e algumas
massagens, sem que tivesse que a desflorar. Assaltaram-lhe
os
pensamentos que já há muito tempo o vinham condicionando: a
diferença social abismal que os separava. Aliás, sabia que se a
desflorasse seria considerado e condenado como um oportunista
sem perdão. Ele estava convencido de que ela o amaria mais com
estas reservas inibidoras, imbuídas do maior respeito. Assim lho
deu a entender:
- Guidinha,
és a única rapariga que quero. Vamos ter calma. Somos
menores, temos que esperar mais algum tempo e pensar melhor no
nosso futuro.
Porém, ela parecia insaciável e esperava uma satisfação maior. E
respondeu:
- Se
me queres, temos a oportunidade de nos amarmos totalmente.
Não vou aguentar ficar à espera. Nada receies. Ninguém nos vai
chatear. Eu é que sei da minha vida.
Ela agarrou-o
e prendeu-o
em cima de si. De pernas abertas, já
sem cuequinha, soltou-lhe
o pénis e puxou-o
para junto da vagina,
entre um basto e negro púbis. Quase instintivamente, ele moveu-se
cautelosamente, de forma a não a penetrar, mas roçar,
continuamente, o clítoris e os lábios vaginais. Rapidamente, ela,
ofegante, exultava de satisfação e soltava gritinhos de prazer.
Apesar do seu relacionamento, desde crianças, o Diogo e a
Guidinha nunca foram apontados como presumíveis namorados.
Eram vistos como vizinhos, muito amigos e de famílias bem
distintas. Ninguém, ou quase, pensaria ser possível que eles
viessem a assumir um namoro oficial.
Porém, ele ficou bastante preocupado com o encontro recente e,
agora, não sabia o que fazer. Não tinha dúvidas quanto ao amor da
Guidinha, mas sentia-se
apreensivo quanto ao desfecho desta
relação que lhe veio avolumar um mar de pressões.
Uns dias depois, a Guidinha, a pretexto de visitar o Feitor, entrou
em casa do Senhor Augusto e procurou o Diogo. Entrou à vontade,
como era seu hábito desde criança. Logo que pôde agarrou-se
a ele
e beijaram-se.
Sentiram aproximação de alguém e esconderam-se
no quarto. Enquanto ele, atento, escutava o ruído dos movimentos
que se afastavam, ela abriu a blusa e deixou cair a saia. Ele
voltou-se
e, meio surpreendido, não sabia que dizer nem o que
fazer. Sentada na cama,puxou-o
pela cintura, desapertou-lhe
as
calças e as cuecas e puxou-as
para baixo num movimento brusco.
Com o pénis na frente dos olhos, contemplou-o
enquanto dizia:
- Sempre
que te imaginava nu, via-te
tal como eras; sem pelos e
com a aquela pillinha.
Acariciouo
e agarrou-o,
ao mesmo tempo que murmurava:
- Jesus,
como cresceu! Tens que o meter no meu pipi. Ele anda
zangado, porque ainda não o fizeste.
Ele sentou-se
ao seu lado e enquanto lhe acariciava os cabelos,
dizia:
- Calma
Guidinha, por favor, tem calma. Não podemos cair nessa
tentação. Bem gostaria mas, por agora, não posso, nem quero, ser
responsável por isso.
Ela agarrou-o
com força e puxou-o
para trás, por forma a ficarem
deitados sobre a cama e murmurou-lhe:
- És
um tolo. Será que tens outra e me estás a evitar?
Ele abraçou-a,
acariciou-a
e beijou-a.
De seguida, perguntou-lhe:
- Já
imaginaste
o que diriam os teus pais quando soubessem deste
tipo de relacionamento?
- Os
meus pais gostam de ti e vais ver que não haverá problemas. O
que eles querem é que eu seja feliz.
Em silêncio, aproveitaram o momento e continuaram a usufruir dos
impulsos desta paixão. Valeu o autocontrolo
do Diogo que
conseguiu de novo evitar o desfloramento.
Aquele Verão sequeiro obrigou a um trabalho extraordinário. Todos
andavam mais ocupados nas regas e nas pastagens contínuas.
Apesar disso, o Diogo achou um pouco estranho deixar de ver a
Guidinha. Ainda passou por perto do Casal dos Morgados, mas não
se apercebeu de nada. Ainda pensou que estivesse a gozar férias
mas já lá iam cerca de 2 meses sem que a tivesse visto.
Chegaram as festas da S.ª da Mó, que se realizam a 7 e 8 de
Setembro. Ali se juntam as famílias e muitos emigrantes. No parque
das merendas existem muitas mesas de pedra que são usadas para
as abundantes comezainas. O Diogo passou o tempo a olhar para a
mesa onde, normalmente, se via a família dos Morgados. Logo
após a procissão, viu a criada Manuela dirigir-se
para lá. Porém, as
pessoas que a seguiram eram seus familiares e amigos. Quando se
apercebeu de que os Morgados não viriam, foi-se
aproximando. A
Manuela quando o viu, convidou-o
para comer alguma coisa. Ele
reagiu dizendo:
- Vim
à missa e à procissão e tenho que ir já para baixo, porque
estamos com muito trabalho.
Ela logo respondeu:
- Eu
não. Os patrões nem vieram à Sra. da Mó. Devem andar pelo
estrangeiro ou estão no Porto, na casa do Padre Benjamim. Nem
sei o que vai acontecer agora.
- Mas,
porquê? Perguntou o Diogo.
- Não
digas nada a ninguém mas, houve lá discussão, por causa da
menina Guidinha. Querem que ela vá estudar para junto do Pe.
Benjamim e ela não quer ir.
E continuou:
- Tenho
pena dela. Andava tão contente. Lá em casa, parecia que
estava tudo bem e de repente, tudo mudou. Saíram de cá ainda
antes do mês de Julho começar.
Passou o Verão, passou o S. Miguel e chegou o Fiéis Defuntos
sem
que a Guidinha aparecesse. No Cemitério, ao passar junto do
Jazigo dos Morgados, o Diogo achou estranho que os pais da
Guidinha o tivessem evitado e se concentrassem tanto na foto do
Comendador.
De regresso a casa, o Diogo, que já andava a matutar há tanto
tempo, pareceu ter encontrado a justificação. Então imaginou que
ela, na ânsia de evoluir a sua relação amorosa, inocentemente e na
mais pura das intenções, terá sondado a opinião da sua mãe, sobre
uma hipotética atracção por si. Sim, de certeza que foi isso. E
continuou a imaginar: os pais discutiram o assunto e optaram por a
afastar de imediato dali, levando-a
para perto do Padre Benjamim.
Agora que tudo lhe parecia claro, uma dúvida lhe assaltava: Se
ela
continuasse a apostar nele, já teria deixado algum recado ou teria
enviado alguma carta. Todavia, acalentava a esperança de que isso
ainda iria acontecer.
Passaram as festas de Natal, sem que se tivesse visto mais a
Guidinha. Sem ela, silencioso e pouco iluminado, o Casal dos
Morgados parecia abandonado. Foi na noite de Reis, quando
recebeu um grupo que cantava as Janeiras, que ouviu um dos
elementos do grupo dizer:
- Estivemos
no Casal dos Morgados, mas eles não estavam. Disseram-nos
que agora estão mais tempo lá pelo Porto. Parece
que a miúda foi para o convento do tio.
Entre as pessoas que costumavam trabalhar lá em casa, havia a
Carolina, a mulher do Francisco Queirós, que tinha emigrado para a
França. Mal casaram, ele seguiu com a ambição de obter melhores
condições de trabalho e a promessa de a chamar para junto de si.
Menos de um ano depois, em Agosto, o Francisco veio de férias.
Queria levar a mulher mas ela disse-lhe
que era melhor aguentar
mais algum tempo.
A Carolina engravidou. Tudo levava a crer que tinha sido durante a
vinda do marido, nas férias de Agosto. Foi trabalhando lá em casa
dos Carvalhos mas, em Março, teve um robusto menino,
alegadamente com cerca de sete meses de gestação. Tudo normal,
tudo na paz do Senhor. Poucos tempos depois do parto, a Carolina
trazia a criança lá para casa, enquanto trabalhava. A avó do Diogo,
que já acusava sintomas de Alzheimer, gostava de cuidar da
criança. Numa das vezes que o Diogo pegou no miúdo, mexeu-lhe
no cabelo e verificou que, por coincidência, ele tinha uma pequena
mancha rosada igualzinha à sua e à do seu pai. Só depois disso é
que se apercebeu de alguma intimidade na relação de seu pai com
a Carolina. Sempre pensou que isso não passava de um certo
carinho paternal.
O Diogo enfrentou o pai, que não assumiu o caso, e confessou que
não podia lá continuar. Ainda bem que em breve iria para a tropa.
******
Em 1967 embarquei como a minha Companhia para a Guiné.
Em princípios de Janeiro de 1968, quando regressei às aulas de
condução, interrompidas pelo chumbo de Abril anterior, encontrei lá,
na Escola de Condução, em Bissau, o Diogo, que fora buscar a
carta. Tinha terminado a comissão e regressaria uns dias depois.
Falou-me
que tivera muita sorte durante a missão da PSICO em
apoio aos nativos e que conseguira tempo e disponibilidade para
estudar. Tencionava dedicar-se
exclusivamente aos estudos,
aproveitando as facilidades que tinham sido criadas para os
ex-combatentes,
proporcionando-lhes
exames, sempre que os
requeressem.
Durante a nossa conversa, acabamos por falar de novo na sua
paixoneta. Perguntei:
- Então,
já esqueceste a tua vizinha rica?
- Quase.
Olha, endureci de tal maneira que agora receio não
conseguir voltar a apaixonar-me.
Fiquei marcado por esta não me
ter comunicado qualquer justificação.
E continuou:
- Soube
que ela está num convento. Imagina, aquela gaja tão
quente e tão rica, feita freira!
- E
o teu velhote?
- Recebi
uma carta dele há pouco tempo. Diz que quer que eu vá
para lá, que precisa de mim, que está muito só e, até, que a
Carolina foi para França, etc., etc.
- E
não vais? Perguntei.
- Devo
ir, mas estou decidido a fugir de lá. Quero ver a minha avó,
que já não conhece as pessoas, mas o objectivo é ir para Coimbra.
Durante vários anos, passei por Arouca, em direcção a Covelo de
Paivó, onde fiz muitas pescarias à truta. A paisagem é maravilhosa
e as poucas pessoas que lá vivem são adoráveis. Muitas das vezes,
não chegava a pescar. Sempre que encontrava alguém disposto a
conversar, perdia-me
fascinado a ouvir aquela gente. Falava-se
mais do antigamente, da abundância, da fuga das pessoas após o
encerramento das Minas de Regoufe e da actual ausência de
jovens. Havia gente que não conhecia o mar.
Mas o que mais adorava ver, além daquelas águas límpidas do Rio
Paivó, afluente do Rio Paiva, serpenteando entre pedras
arredondadas pela sua erosão, era a chegada dos cabritos, ao fim
da tarde. Vinham da montanha em rebanho e entravam pelo lado
norte, enchendo a rua principal da povoação, “alcatroada” de
excrementos secos. Ao cruzarem as pequenas ruelas com os
cancelos abertos, iam entrando nas casas de seus donos. Nenhum
se enganava e os últimos cabritos chegavam à última casa lá ao
fundo, no altinho, por um caminho empedrado há séculos, que nos
leva a Regoufe.
Todos os dias, a tarefa se repete. Dois pastores
acompanham o rebanho, de forma alternada e democrática.
No regresso, perdíamo-nos
a petiscar nas adegas abertas, na baixa
de Arouca. A carne arouquesa é excelente e o presunto também.
Todavia, nunca perdia o salpicão de vinhad’alho
nem o bucho,
acompanhados do tinto da região.
Nunca encontrei o Diogo. Mas, recentemente tive essa agradável
surpresa. Um cliente meu, da Beira Alta, sportinguista ferrenho,
contactou-me
para lhe fazer um favor: arranjar dois bilhetes para
poder assistir ao Arouca-Sporting, que se realizava no Domingo
seguinte e que não conseguira através da net.
Andavam numa azáfama, lá na sede do FC Arouca, quando entrei e
disse o que desejava. Senti então um toque no ombro, vindo trás:
- Por
aqui, Silva?
Voltei-me,
olhei: era o Diogo. Reagi logo:
- É
verdade. Tanta vez passei por aqui e sempre a procurar
encontrar-te
e hoje, sem o contar, apareceste. Como me
conheceste?
- É
fácil porque tens uma voz inconfundível. Mas, pelo aspecto,
estás já um bocado gasto, desculpa lá. Vamos tomar qualquer
coisa.
- Por
acaso era para voltar para trás. Mas, já que te encontrei,
podemos ir à baixa petiscar. Conheço ali umas tasquinhas que são
uma maravilha.
Armado em cicerone, encaminhei-o
para a “tasca da viúva”.
Mal entrámos, ouvimos:
- O
Senhor Doutor Juiz está cá hoje?
O Diogo respondeu:
- Só
vim tirar bilhete para ver o jogo. Não se fala noutra coisa: o
nosso Arouca a jogar com o Sporting! Olhe, arranje aí qualquer
coisa para petiscarmos.
- Então,
Silva, que fizeste nestes anos todos?
Falei-lhe
resumidamente destes 40 anos de vida, desde a presença
civil em Angola, de 70 a 74, casamento, filhos, canoagem, até aos
nossos dias. Seguidamente:
- Agora
fala tu, até porque sinto muita curiosidade.
O Diogo explanou também a sua vida, começando pela sua
licenciatura, obtida em Coimbra e a carreira na magistratura. Casou
em Vila Real e vive no Porto. Tem duas filhas, ambas casadas, uma
delas a viver em Matosinhos e a outra em Aveiro. Passa muito do
seu tempo junto delas e dos 5 netos que já tem.
A determinada altura, sem que o tivesse perguntado, diz-me:
- Lembraste
daquela história da minha paixão? A miúda sempre
seguiu para freira. Chegou a directora de Colégio. Recentemente,
quando faleceu o tio Padre Benjamim, houve um funeral especial,
que teve muito impacto aqui na região. Por curiosidade, quis ver a
Guidinha durante o velório.
Contou o que sentiu enquanto não a viu. Imaginava-a
ainda uma
morenaça boazona, encoberta pelas vestes sagradas. De repente,
pôs-se
a pensar: e se encetar conversa com ela? Que tipo de
conversa teremos? E se ela confessar que não teve culpa do seu
afastamento? Gostaria de lhe perguntar se ainda está virgem. Se
nunca mais se agarrou a outro homem e como conseguiu resistir a
isso tudo. Enfim, chegou a pensar que lhe daria imenso prazer
fodê-la,
mesmo com aquelas vestes.
Abeirou-se
do velório, olhou o morto de longe e esperou ver a
Guidinha no meio daquelas velhas feiosas, a rezarem a seu lado.
Ficou decepcionado por não a ver.
Não se apercebeu que a
Guidinha era uma delas.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 20 de agosto de 2015
Guiné 63/74 - P15023: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (20): História de paz com (muita) guerra atrás