Guiné, 1969 – Emboscada a um comboio naval - Parte I
Afundamento do batelão “Guadiana” por EEA–Engenho Explosivo Aquático (Post reformulado a partir de outro já publicado em 15 de Julho de 2010)
Considerações gerais
O 2TEN FZE RN João António Lopes da Silva Leite do 10.º CFORN e o STEN FZ RN Carlos Alberto Gil Nascimento e Silva do 11.º CFORN, depois de concluírem os respectivos cursos foram ambos mobilizados para a Guiné, o primeiro integrado no Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º 10 (1967) e o segundo na Companhia de Fuzileiros n.º 6 (1968).
Em Maio de 1969, viriam ambos a protagonizar, um episódio marcante da complexa actividade da Marinha ao longo dos doze anos de guerra, o primeiro como comandante operacional de uma “task unit” activada na sequência da organização de um comboio logístico, integrando LDM e embarcações comerciais e, o segundo, como comandante operacional de uma outra LDM, também com batelões mas que, numa parte comum do percurso, se juntava àquela task unit.
A organização e planeamento dos comboios de abastecimento logístico estavam atribuídos pelo Comando de Defesa Marítima da Guiné à Esquadrilha de Lanchas que, de acordo com as exigências operacionais, disponibilidade de meios navais e o tão criterioso como indispensável apoio da tabela de marés, procedia à escolha do período e datas em que se efectuavam os comboios - RCU.
A necessidade de manutenção de uma logística de apoio a populações e unidades militares, tornava alguns dos percursos não só frequentes mas de periodicidade obrigatória, quer para norte quer para sul daquele território, situação também decorrente do normal escoamento de produtos agrícolas essenciais à economia do território.
Entre os mais carismáticos, cabe destacar Farim, no norte, cerca de 85 milhas a montante da foz do rio Cacheu e Bedanda ou Gadamael, no sul, ambas a uma distância próxima de 20 milhas da foz nos rios Cumbijã e Cacine (rio do Porto de Gadamael) respectivamente.
As distâncias totais percorridas a partir de Bissau – normais pontos de partida e chegada destes comboios - dependiam dos percursos parciais efectuados e dos navios e embarcações presentes. Havia ainda a considerar, de acordo com as unidades navais utilizadas, rotas alternativas às barras convencionais dos rios.
Estavam nesse caso o Canal de Melo, na travessia do rio Cumbijã para o rio Cacine, a passagem do rio Tombali para o rio Cumbijã, via rio Cobade ou a ida para o Cacheu navegando pelo interior do baixo dos Macacões, este só acessível a LDM. Claro que esta possível utilização, válida igualmente para os percursos inversos, permitia encurtamentos de caminho e reduções de tempo notáveis.
Enquanto a uma LFG de escolta estava vedada a possibilidade de efectuar atalhos por causa dos 2.20 m de calado daquela unidade naval e as LFP -Lanchas de Fiscalização Pequenas, ainda que com limitações, efectuassem diversos percursos com alguns shortcuts, as LDM - Lanchas de Desembarque Médias efectuavam verdadeiros milagres no encurtamento de traçados, quase bastando haver alguma altura de água para passarem e muita, mesmo muita, experiência do "patrão".
Afinal, com a maré na enchente, um encalhe resolvia-se quase sempre por si próprio, em fundos lodosos sem cristas rochosas. Bastava arriscar primeiro e esperar depois, raciocínio obviamente limitado para as unidades com quilha.
Para comandar estes RCU eram habitualmente nomeados oficiais subalternos dos Destacamentos ou Companhias de Fuzileiros, dos Quadros Permanentes ou da Reserva Naval, reforçados por esquadras ou grupos de combate daquelas unidades e com o armamento adequado à missão, por forma a aumentar a segurança dos comboios, garantindo um destino seguro às guarnições, populações e bens por eles transportados.
Se algumas das embarcações ou batelões comerciais dispunham de motor, outras não tinham propulsão própria, sendo por isso rebocadas por aqueles que tivessem condições para o fazer. Navegação com velocidades diferentes, cabos de reboque partidos e avarias frequentes, era um panorama comum que gerava confusão e granel, obrigando o comandante do comboio, com as LDM disponíveis, a um enquadramento atento e disciplinado.
Esta estratégia era sobretudo importante a partir do ponto de confluência de todas as unidades, normalmente situado no início das bacias hidrográficas dos rios onde se situavam os locais a aportar. Aí se reviam os derradeiros pormenores da navegação a efectuar, procedimentos de comunicações e a abordagem de eventuais zonas de risco de ataques ou emboscadas do inimigo.
A missão
Pela "Ordmove" 132/69 o Comando de Defesa Marítima da Guiné ordenou à LDM 302 que, a partir de 16 de Maio de 1969 pelas 16:30, sob o comando operacional do STEN FZ RN Carlos Alberto Gil Nascimento e Silva, largasse de Bissau com o objectivo de escoltar as embarcações motor «Portugal» que rebocava o batelão «Angola» levando carga geral, o Pelotão de Morteiros 2115 e respectivas bagagens com destino a Vila Catió. A guarnição da LDM e o motor «Portugal» foram reforçados com elementos da CF 10.
O comboio (RCU) escalou Bolama no mesmo dia da largada e completou o percurso no rio Cobade no dia seguinte de manhã, entre o rio Tombali e a foz do rio Cagopere que dá acesso ao porto de Catió, esta parte do trajecto feita com apoio aéreo. Durante a permanência naquele porto foi montada segurança pelas FT (Forças Terrestres) locais. No regresso, a LDM 302 e as embarcações civis confluíram para a foz do rio Cagopere no dia 21 pelas 10:00 passando a estar integradas no RCU 9/69.
As embarcações comerciais motoras «Portugal» e «Angola»
Quase simultaneamente, pelo "Ordmove" 136/69 – RCU 9/69 o Comando de Defesa Marítima da Guiné ordenou a activação da TU 5 com a nomeação do 2TEN FZE RN João António Lopes da Silva Leite para comandar aquela task unit a partir do dia 20 de Maio de 1969, pelas 00:00. Foi constituída pelas LDM 105 e LDM 313, com o fim de escoltar as embarcações motor «Rio Tua» rebocando um batelão, motor «Vencedor», motor «Gouveia 17» rebocando os batelões «Guadiana» e «Lima» com destino a Bedanda e Cacine.
Houve ainda que transportar 12 toneladas de produtos de reabastecimento, enviados para Cufar pelo CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné) na LDM 105 e ainda um veículo "GMC" do exército para Gadamael na LDM 313.
O batelão «Guadiana» que viria a ser afundado mais tarde.
Tal como previsto, a partir do dia 21, pelas 10:30, foi integrada no comboio a LDM 302 com a embarcação com motor «Portugal» rebocando o batelão «Angola», sendo este grupo (RCU) a integrar comandado pelo STEN FZ RN Carlos Alberto Gil Nascimento e Silva.
Com início e regresso a Bissau, estavam definidos os movimentos previstos com respectivas escalas e horários de chegada/largada, tendo em atenção as marés: Bissau, Bolama, ponto TT (confluência dos rios Tombali e Cobade), foz rio Cagopere, ponto CC (confluência dos rios Cobade e Cumbijã), Impungueda, Bedanda, Impungueda, ponto CC, ponto TT, Bolama e Bissau.
No dia 23 pela manhã a LDM 313 deixou o comboio no ponto CC, rumando a Cacine e Gadamael pelo Canal de Melo, com as embarcações motor «Vencedor», motor «Gouveia 17» rebocando os batelões «Lima» e «Guadiana».
O batelão motor «Gouveia 17» que rebocava os batelões «Lima» e «Guadiana»
O movimento efectuado para o aquartelamento de Cabedú com os batelões «Lima» e «Gouveia» permitiu ganhar um dia ao movimento destas embarcações, escoltadas pela LDM 313 para Cacine.
A descarga em Cacine não foi concluída mas, a necessidade do rigoroso cumprimento do planeamento imposto pelos horários das marés, obrigava a algumas decisões incompatíveis com atrasos nas cargas e descarga dos locais aportados, por problemas de estiva alheios ao comando operacional do comboio.
A progressão para montante do rio Cumbijã a partir dos ponto CC fez-se sem problemas e as descargas em Cufar e Bedanda fizeram-se dentro dos horários e com normalidade.
Regresso, rebentamento de um EEA (Engenho Explosivo Aquático) e o ataque IN
No regresso, o percurso descendente do rio fez-se com as LDM 105 e LDM 302 com as embarcações motor “Portugal” rebocando o batelão “Angola” e motor “Rio Tua” com outro batelão.
Dia 27 pelas 11:00, juntaram-se a estas unidades, no ponto CC, as provenientes do regresso de Cacine. A LDM 313 trazia de Gadamael para Bissau uma viatura GMC e destruiu uma canoa abandonada na foz do rio Meldabom. Cerca das 13:00 do dia 27 de Maio de 1969, e com apoio duma parelha de aviões Harvard T6, iniciou-se o percurso do rio Cobade.
Os batelões motores «Rio Rua» e «Vencedor»
O comboio navegava em coluna, com as unidades navais e embarcações pela seguinte ordem na formatura: «Gouveia 17» rebocando os batelões «Lima» e «Guadiana», LDM 313, motor «Portugal» com o batelão «Angola» de braço dado, LDM 105, motor «Rio Tua» de braço dado com um batelão, LDM 302 e finalmente o motor «Vencedor».
Foi adoptada esta formatura para o motor «Gouveia 17» estabelecer a velocidade do comboio, uma vez que era a embarcação motora com menor velocidade de progressão. Pouco tempo depois, pelas 14:30, o IN (inimigo) viria a revelar-se.
Cerca de meia milha após o desembarcadouro do Cachil, foi avistado pelo pessoal da escolta, fornecida pela CF10 que se encontrava a bordo do «Gouveia 17», um fio que atravessava da margem do lado do Cachil para o meio do rio. Por analogia com casos anteriores, este pessoal mandou parar imediatamente o «Gouveia 17», o que foi tentado pelo patrão desta embarcação metendo máquinas a ré.
Como consequência desta manobra necessariamente brusca e devido ao normal seguimento por inércia, os dois batelões rebocados aproximaram-se do «Gouveia 17», tendo o primeiro reboque, o batelão «Lima», colidido com a popa do «Gouveia 17», enquanto que o outro que o seguia, o batelão «Guadiana», devido ao comprimento do cabo de reboque, ultrapassou por estibordo o «Gouveia 17», e no final do comprimento do cabo, rodopiou ficando aproado em sentido contrário ao da marcha invadindo, com a parte de ré, o local onde o fio tinha sido avistado.
Pormenor do porto interior de Bedanda
Nesse exacto momento, verificou-se uma forte explosão à popa do batelão «Guadiana». Simultaneamente, o inimigo, emboscado em ambas as margens desencadeou violento ataque com armamento ligeiro e morteiro, sem consequências pessoais.
Por sua vez, o engenho explosivo aquático que havia deflagrado à popa do batelão «Guadiana» causou 5 mortos e dez feridos, confirmados pelo sargento enfermeiro - 2Sarg H Cotovio que, seguindo na LDM 105 e após a explosão, passou imediatamente para bordo daquela embarcação. Foram rapidamente assistidos no local por aquele profissional de saúde com a colaboração de um colega - 2Sarg H Mesuras - embarcado na LDM 302. Ambos, debaixo de fogo e no meio de grande confusão por parte de passageiros civis, mantiveram a presença de espírito suficiente para desempenharem as suas funções.
Entretanto, o comandante operacional informou o apoio aéreo do sucedido e, dentro das possibilidades, solicitou cobertura mais cerrada na zona, a fim de ganhar tempo e conseguir a segurança necessária para proceder a uma busca junto ao batelão sinistrado, prevendo a eventualidade de virem a ser encontrados mais mortos ou feridos. Foi informado da impossibilidade de satisfação do pedido por um dos aviões T6.
Calado o IN por acção do fogo efectuado pelas LDM e pelo pessoal de reforço da CF 10 pertencente às escoltas das embarcações civis, reiniciou-se imediatamente a marcha, tendo sido ordenado à LDM 105 que passasse um cabo ao motor «Gouveia 17» dado continuar com os dois batelões a reboque.
Desde o momento do rebentamento junto à popa do «Guadiana» tinham passado uns escassos dez minutos e a embarcação afundava-se rapidamente. Urgia sair da zona da ocorrência e encalhá-lo em local mais seguro, o que veio a suceder próximo da foz do rio Ganjola.
Um comboio no rio Cumbijã, na foz do rio Macobum, na zona de Cafine
Pelas 14:45, quando o comboio navegava já próximo daquele local, o 2TEN FZE RN Silva Leite, por intermédio da FAP, pediu evacuação para dez feridos a partir de Catió. Entretanto contactou igualmente as FT de Catió pedindo ao aquartelamento local a presença de transporte e médico no porto exterior, a fim de prestar assistência aos feridos e recolher os mortos que seguiam a bordo da LDM 313 para aquela localidade.
Nesta altura, o comboio reiniciou a descida do rio Cobade até à confluência com rio Tombali, depois do comandante operacional ter confirmado a presença do apoio aéreo na zona, tendo atingido aquele ponto TT pelas 16:00.
De acordo com o Comando de Defesa Marítima da Guiné (CDMG), foi dada ordem à LDM 303 para permanecer em Catió até ordem em contrário, às embarcações civis para prosseguirem independentemente para Bissau e às LDM 105 e LDM 302 para seguirem para Bolama, onde ficaram a aguardar novas instruções.
Como resultado do acontecimento e das condições de mau tempo verificadas na altura, extraviou-se diverso material fixo que se fez constar nas relações de ocorrências de cada unidade.
Um avião Harvard T6 sobrevoando o rio Cumbijã, próximo de um comboio
Foram consumidas na resposta à emboscada 2200 munições de 20 mm, 2100 de 7.62 mm, 8 granadas ofensivas, 30 munições de ALG (dilagramas), 4 de LGF (lança-granadas foguete) e 10 rockets.
O comandante operacional, por intermédio de um militar do exército responsável pelo carregamento, foi informado de que a carga era composta por 17 bidons de gasolina, cerca de 2000 detonadores e caixas de whisky velho. O transporte deste material terá agravado substancialmente as consequências da explosão.
Observou-se ainda a presença de inúmeros passageiros civis sem qualquer identificação que, por serem familiares de militares ou por lhes interessar visitar as famílias fora da localidade a que pertenciam, pediam aos patrões das embarcações civis para lhes facilitarem transporte para pontos de paragem do comboio de conhecimento antecipado.
Depois da chegada àquela cidade, no dia 28 pelas 18:00, foi dissolvida a task unit, regressando o 2TEN FZE RN Silva Leite a Bissau, de avião.
(continua)
Fontes: Pesquisa e compilação de texto a partir do relatório do 2TEN FZE RN José António Lopes da Silva Leite, núcleo 236-A do Arquivo de Marinha; fotos do Arquivo de Marinha; imagens do autor do blogue efectuadas a partir de extractos da carta da Guiné (cortesia IICT);
mls
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Nota do editor
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