1. O nosso camarada Eduardo Ferreira Campos, ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74, enviou-nos em 22 de Dezembro, a primeira da sua série de histórias que nos prometeu ir enviando nos próximas dias.
Camaradas,
Depois de ler com muita assiduidade as histórias que diariamente são publicadas no Blogue e tendo eu também algo para contar, sob a minha passagem pela Guiné, chegou a hora de compartilhar convosco algum do material guardado no “disco duro” da minha memória:
CCAÇ 4540 – 1972/74 – SOMOS UM CASO SÉRIO
PARTE 1
No dia 28 Agosto 1972, teve início no Regimento de Infantaria 15 (RI 15), em Tomar, a concentração do pessoal que constituiria a Companhia de Caçadores 4540. Na sua grande maioria, os militares eram oriundos do Norte do País, sendo de realçar a presença de alguns que vieram de França, para cumprirem o Serviço Militar.
Foi-nos concedido o gozo de uma licença de 2 semanas, após a qual o pessoal da Companhia, se foi apresentando novamente no RI 15, tendo-se procedido á Cerimónia de Bênção e Entrega do Guião à Companhia no dia 15SET1972, seguido de um desfile das tropas, na parada do Regimento.
Às 02h00 do dia 19 desse mesmo mês, a Companhia embarcou em autocarros, em Tomar, dirigindo-se para o aeroporto de Lisboa, onde o pessoal transitou para um avião dos TAM (cerca das 09h00), após o que levantamos voo rumo aos céus da África Ocidental.
Após quatro horas de voo bastante confortável, durante as quais imperou a boa disposição, já que a quase totalidade do pessoal realizava a sua primeira viagem aérea, aterramos no Aeroporto de Bissalanca. Procedeu-se então ao desembarque, perante um calor tórrido e sufocante, próprio das regiões equatoriais.
Terminadas as formalidades habituais destas rotinas, procedeu-se ao transporte dos militares e respectivas bagagens, numa coluna de viaturas com destino ao Cumeré onde ficamos instalados. No dia 22SET1972, de manhã, fomos chamados para uma formatura geral, a que se seguiu o desfile da Companhia recém-chegada, perante o Brigadeiro Silva Banazol que proferiu algumas palavras de boas-vindas. Nesse mesmo dia segui para Bissau, com destino ao Regimento de Transmissões, onde estive cerca de 15 dias a fazer o chamado IAO.
Terminado o IAO, houve lugar a nova formatura geral no dia 17OUT1972, desta vez frente ao General António Spínola, Governador e Comandante-Chefe das Força Armadas do CTIG. A 18OUT1972, a Companhia partiu do Cumeré com destino ao porto de Bissau, onde se procedeu ao nosso embarque na LDG BOMBARDA, rumando á terra “prometida”, Bigene.
E assim, lá fomos rio acima (Cacheu) desembarcando numa localidade chamada Ganturé, onde nos esperavam os camaradas da CART 3329, que iríamos substituir. Era notável a alegria com que nos receberam, tendo-nos em seguida transportado para Bigene (cerca de 6 ou 7 km), onde deparamos com vários dísticos e cartazes alusivos à chegada da nova Companhia de periquitos, espalhados pelas paredes e pela rua principal, cheios de humor e ironia.
Foto 1 – Bigene: Junto aos brasões das Companhias que por lá tinham passado
Foto 2 – Bigene: O descanso do “guerreiro” junto ao posto de rádio
Foto 3 – Bigene: Com um amigo de ocasião
Foto 4 – Bigene: De vez em quando dava para tomar banho
Bigene era bastante povoada, com gentes de várias etnias, predominando os Fulas e os Balantas, havendo ainda bastantes Mandingas. A população europeia, além dos militares e do administrador de Posto, era praticamente inexistente, havendo apenas 1 português que era proprietário de uma casa comercial. Haviam mais 3 casas comerciais, propriedades de 3 libaneses.
No posto sanitário de Bigene acontecia algo que eu considerava surpreendente, que era receber e tratar populares do Senegal, que atravessavam a fronteira para receberem tratamento médico. Ao mesmo tempo, esta gente aproveitava para comercializar os seus produtos no mercado local.
No dia seguinte, começou o treino operacional em conjunto com a CART 3329, cuja finalidade era adaptar e capacitar o pessoal em situações operacionais semelhantes às que iria encontrar nas suas futuras actividades dentro do sector atribuído à Companhia. É de salientar que ainda no período de treino operacional a 23OUT1972, se ter verificado o 1º contacto de fogo com o IN, mesmo junto ao marco fronteiriço que separava a Guiné/Senegal.
Só me apercebi que a palavra guerra fazia aqui todo o sentido, quando saí pela primeira vez para o mato e assisti à implantação de um campo de minas, e algumas armadilhas, na zona Samoge-Sambuía.O primeiro baptismo de fogo aconteceu a 24OUT1972, próximo de Nenecó, sem consequências. O PAIGC pelas informações que tínhamos, não tinha estruturas dentro do subsector de Bigene, nem se encontrava implantado no mesmo.
Partiam de bases situadas no Senegal, principalmente em Kumbamori, crê-se que utilizando as variantes do corredor de Sambuiá, para “cambar” o rio Cacheu, transportando material e mantimentos até ás margens do rio Cacheu, que procuravam atravessar em canoas e botes de borracha, para o interior do território, sendo, por vezes, surpreendidos pelos fuzileiros que se encontravam em Ganturé.
Terminado o período de sobreposição com a CART 3329, foi transferida por esta Companhia, para a nossa, toda a responsabilidade administrativa e operacional. No dia 15NOV1972, a CART 3329 terminou a sua comissão e despediu-se de Bigene.
Foi com muita emoção que os vimos partir, após um convívio comum de quase um mês, passado naquela localidade. Passou, desde então, a nossa Companhia a dar cumprimento às missões que lhe foram atribuídas, executando as directivas do COP 3. Uma semana depois recebemos a noticia que iríamos ser transferidos para Sul, sendo substituídos pela CCAÇ 3 e, de novo, lá fomos na LDG BOMBARDA.
Estávamos no dia 09DEZ1972, rio Cacheu abaixo, destino: Cadique/Cantanhez.
Foto 5 – A bordo da LDG “Bombarda”, com o João Pinto – Enfermeiro -, a caminho do Cantanhez
No dia 12DEZ1972, cerca das 08h00, avistamos pela primeira vez, terras do Cantanhez. Lugar onde parecia haver calma e paz, coisa que, ali, jamais encontraríamos.
Navegava-se lenta e demoradamente, connosco atentos a qualquer coisa suspeita, como se adivinhássemos a todo e qualquer momento o… imprevisto.
Posso afirmar que todo o pessoal, que até então tinha mantido um aparente estado de serenidade e bom equilíbrio psíquico, que evidentemente estava muito longe de existir na realidade, em cada um de nós, começava a exteriorizar-se através dos primeiros sintomas de medo, angústia e desespero, que se denotavam, nitidamente, nos nossos rostos. Tais sinais iam-se agravando, conforme se avançava no rio, e mais nos aproximávamos da zona que sabíamos de alto perigo.
A tomada de consciência desta crua realidade, que era “A EXISTÊNCIA IMINENTE DE PERIGO REAL DE MORTE”, despoletou em nós, instintivamente, a exigência da máxima vigilância a eventuais movimentos estranhos nas margens, que nos rodeavam, e a necessária manutenção do silêncio.
Chegados ao porto, onde se previa o desembarque, e mal a lancha alcançou terra firme, “A NOSSA TERRA PROMETIDA”, sem perda de tempo começaram a sair vários grupos de combate, para manter as seguranças, afastada e próxima, a fim de que o desembarque se fizesse sem grandes receios.
Logo que nos sentimos em terra do Cantanhez e nos familiarizamos com o lugar, onde iríamos “vegetar” durante quase uma dezena de longos e difíceis meses, tudo em nós se voltou a suavizar e a aparentar a habitual e perdida serenidade.
Finalizamos o desembarque sem percalços de maior, eram cerca de 09h00, (com o apoio da Força Aérea e dum bi-grupo da CCP 121), começando-se logo a trabalhar para instalarmos de imediato o pessoal, numa área que reunia as condições mais apropriadas á futura construção do aquartelamento.
Os primeiros dias da instalação do pessoal da Companhia foram penosos, em virtude de não existir nenhuma estrutura de que a tropa pudesse tirar partido, para implementar o seu futuro estacionamento.
Apenas existia uma mata exuberante, compacta e de difícil penetração, e algumas tabancas dispersas e ocupadas por população da área, predominando os velhos e as crianças. A pouco e pouco foi-se desbravando a mata e procedendo-se à colacação estratégica de todas as secções do Comando da Companhia e dos Grupos de Combate.
É de salientar o trabalho efectuado pela Força Aérea, Marinha, Pára-quedistas e outras forças, que dias antes do desembarque “limparam a zona” e acredito que só assim não tivemos problemas durante o desembarque, já que a região era considerada zona libertada pelo PAIGC.
A Companhia acabou por ter uma adaptação bastante boa e depressa se conformou com a sua sorte existencial “SITUAÇÃO DE TOTAL CARÊNCIA”. Todas estas operações tiveram o nome “GRANDE EMPRESA”, visando a recuperação do Cantanhez e, na hora do desembarque, compareceu o General Spínola, que acompanhou de perto o desenrolar das actividades no terreno.
Foto 6 – Cadique: Tratando da higiene das mãos
Foto 7 – Cadique: A mata começou a ser desbravada
Foto 8 – Cadique: A Bandeira já havia, vendo-se ao fundo os chalés “com ar condicionado”
Foto 9 – Cadique: Um abrigo também já havia
Foto 10 – Cadique: O que será feito destes jovens?
Após os primeiros dias de porfiado esforço, dispendido na montagem do estacionamento, começaram os nossos Grupos de Combate a tomar contacto com o terreno, acompanhados por Grupos da CCP 121. Foi de grande utilidade para os nossos militares a observação do modo como se comportavam, e da preparação com que a tropa especial pára-quedista foi dotada para este tipo de guerra. Muito se aprendeu realmente no convívio estabelecido, dentro e fora do aquartelamento, entre os militares de ambas as Companhias.
Os primeiros contactos com o IN foram obra da CCP 121, a qual nos transmitiu teoricamente os modos de actuação e as estratégias utilizadas pelo IN, e a sua estrutura de carácter militar, naquela zona operacional.
A situação sanitária era razoável, mesmo considerando as precárias as condições de higiene que se viveram nos primeiros tempos do baseamento da Companhia.
As condições climáticas eram as mais adversas. A situação logística foi muito precária nos primeiros meses de vida no Cantanhez. As nossas condições de adaptação foram melhorando, à medida que se foi desmatando a floresta, com a abertura de poços, a construção de um heliporto e de um cais.
À medida que o reordenamento foi evoluindo, começou Cadique a tornar-se uma povoação de fisionomia completamente diferente, permitindo assim beneficiar, em muitos aspectos, a população local e a tropa, nomeadamente, no que respeita a melhoria das instalações.
O agrupamento de Cadique ficava situado na península formada pelos rios Cumbijã e Cacine, no Sul da Guiné, o terreno é plano, dividindo-se em dois planos de carácter bem distintos: por um lado a bolanha e, por outro, a mata densamente arborizada.
A configuração do sector apresentava-se do seguinte modo: a Norte era delimitado pelo Rio Bixanque, que desagua no Cumbijã, a Sul pelo rio Macobum, a leste pela mata do Cantanhez até ao entroncamento de Jemberem, e, a Oeste, pelo rio Cumbijã.
Os dois mais importantes itinerários eram, na época, a via fluvial do Cumbijã e a via terrestre, que ia de Cadique a Jemberem (que quando lá chegamos era uma picada secundária), e, quando de lá saímos, era uma estrada principal e que ia entroncar na picada principal que vinha de Cabedu.
O principal aglomerado populacional era Cadique Nalú, existindo ainda, além dele, outro de menos importância que se chamava Cadique Imbitina (a cerca de 2,5 Km). Mais para Norte, existia um outro importante aglomerado populacional, Cadique Iala. O quartel acabou por se construído em Cadique Imbitina.
Na época, o principal recurso desta zona era, sem dúvida, o arroz em virtude das enormes bolanhas, que existiam ao longo de todo o rio Cumbijã. Outro recurso que não era explorado, era a pesca no rio Cumbijã, que me pareceu ser rico em variedades de peixe e de crustáceos.
A população civil era quase toda de etnia Balanta, encontrando-se também alguns (poucos) Nalus. Mostrou-se a princípio muito pouco receptiva à presença da tropa e bastante temerosa.
À data, não existia população europeia além dos militares, mas, segundo informações colhidas na zona, teria existido alguma antes do início das hostilidades, que se sentiu obrigada a abandonar a localidade em virtude do agravamento da instabilidade.
Nesta zona iríamos sofrer bastante. Parecia-nos mais um lugar paradisíaco do que um campo de batalha, mas, dias mais tarde, iríamos ter a oportunidade de ver e sentir a triste e fatal realidade.
O pior estava para vir: o inferno da construção da estrada Cadique/Jemberem.
Um abraço Amigo,
Eduardo Campos
1º Cabo Trms da CCAÇ 4540
Fotos: © Eduardo Campos (2009). Direitos reservados.
_____________
Notas de M.R.:
Este é o primeiro poste desta série "Estórias do Eduardo Campos".