1. Em mensagem do dia 22 de Dezembro de 2011 o nosso camarada Carlos Rios (ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66), enviou-nos um extenso trabalho a que chamou "Fragmentos Genuínos" que começamos hoje a publicar, integrado na sua série Fragmentos da minha passagem pela tropa.
FRAGMENTOS GENUÍNOS - 1
O Singular acto de escrever nunca pode ser um esforço solitário e, sempre que possível, para mim um incipiente e ineficiente transmissor de factos e actos praticados, ou que me chegaram ao conhecimento verbalmente ou através de escritos, rocambolescos alguns, pungentes outros e ainda demonstrativos de verdadeiras iniquidades praticados por alguém e agora passados à prosa e dos quais com a devida vénia aos seus autores bem como textos e fotografias que me tornam extremamente grato ao Arquivo Histórico Ultramarino e outra instituições, ouso transcrever.
Há muitas pessoas que embora ausentes fisicamente aqui permanecem no meu sub-consciente estruturando e moldando a minha maneira de ser e pensar e a quem devo agradecer por ter conseguido reunir a energia, vontade e capacidade para levar a bom termo a tarefa a que me propus. Existem como é óbvio inúmeras e variadas formas de homenagear a intervenção e omnipresença dessas pessoas, pelo que imaginei mostrar-lhe o meu agradecimento e gratidão tão só pelo facto de existirem no meu Universo.
No topo da lista esta é claro a minha grande mulher, Fernanda, uma ribatejana dos sete costados (teimosa, resmungona, exigente, obstinada), mas a companheira de eleição para qualquer homem e que me mantém atento e concentrado em todos os aspectos realmente importantes da vida.
O meu filho, a minha nora, disponível e amiga que me presentearam com as maiores riquezas que um homem pode sonhar, as minhas adoráveis netas. E ainda os meus caros camaradas e amigos que tiveram que ao longo dos anos sofrer e participar numa horrenda guerra, prestando a mais sentida homenagem aos mortos e feridos daquele malfadado teatro de horrores, não esquecendo de daqui mandar um abraço de solidariedade aos sofredores de traumas e stress pós traumático com um desejo de incentivo nas suas vidas.
Também aos amigos da área da literatura e cultura pelos conselhos e apoio que me souberam transmitir.
A todos o muito obrigado!
As recordações dos momentos de rigidez, maus tratos e prepotências que eram coisa corrente, e marcaram primordialmente o período de cumprimento do serviço militar na metrópole, porquanto do que se tratava era de preparar, “homens para defender a pátria” no entender e dizer dos “instrutores”; elementos esses de que vim a fazer parte; fui colocado como monitor em Tavira na CISMI; (durante a recruta em Santarém morreu afogado no Tejo um camarada de outro pelotão), fazem aumentar o sentimento de desânimo e tristeza que alastra na despedida e adeus aos entes familiares e à terra que agora fazemos de bordo do Niassa a caminho da barra e no meu caso, começando já a sentir uma profunda nostalgia ao avistar no horizonte os locais da minha vivência; Caxias, Paço de Arcos etc…
No cais da Rocha do Conde de Óbidos
A partida era um momento tormentoso e tão emotivo que muitos sucumbiam em transes dramáticos. Para quantos não era um adeus definitivo aos melhores de todos nós, os jovens.
Quase todo o pessoal se encontrava na amurada do lado direito do barco e empoleirada em tudo quanto era sitio para um emotivo doloroso e incerto adeus. É indescritível o ambiente de ansiedade e inconformismo que quase se tornava palpável no ar. Não suportei a angústia que se instalou em mim e fui postar-me sorumbático e silencioso no Bar e remoer recordações.
Já em pleno oceano sentado no exterior na área da popa do navio espraiando o olhar pelo horizonte rememorei o período de tempo que passei na bonita agradável e acolhedora cidade de Tavira, onde para além de ter tirado a especialidade, me mantive como monitor do CISMI, o que me ocupou de Abril de 1964 até Junho de 1965, de tal maneira que já comentávamos eu e os meus companheiros que não iríamos para as colónias. Sonhos de jovens incipientes e desconhecedores dos mecanismos da instituição para onde tínhamos sido arrancados do seio das famílias. A população era afável e hospitaleira, principalmente em relação aos que se mantinham depois de terminados os obrigatórios cursos. O único senão encontrava-se nas degradadas e exíguas instalações do CISMI e na qualidade da alimentação. O problema era de tal ordem que espalhados por toda a cidade, haviam quartos alugados em casas particulares onde dormia e fazia a sua vida uma percentagem elevada de militares. Havia uma espécie de osmose entre um determinado estrato da população e os militares. Não me lembro durante este largo espaço de tempo de ter havido por parte dos comandos uma negativa aos pedidos de pernoita no exterior a qualquer militar. Creio que no pequeno quartel não haveria espaço minimamente decente para os cerca de seiscentos homens que ali chegaram a estar colocados.
A cidade vivia muito social e economicamente do meio militar
Paisagem da Cidade de Tavira
Havia uma notória falta de emprego e concomitantemente naquela época, entre parte da população a ilusória ideia de que os milicianos eram gente de posses, ideia que recolhi das prolongadas e agradáveis conversas que tive com a minha hospedeira e suas jovens auxiliares, dado que a senhora onde aluguei o quarto e passei a maior parte dos tempos livres, tinha um atelier de costura. Aqui passei bons e felizes dias que compensavam todas as agruras e passagens mais difíceis, no quartel. Poucas vezes me desloquei a casa, pudera; tinham que se pagar as viagens, o que se tornava assaz difícil depois de ter de pagar o aluguer do quarto. Num intervalo entre os dois cursos de que fui monitor e que coincidiu com a Páscoa (aproximadamente quinze dias), aqui me mantive, sendo tratado por todos como um filho e não só. Aqui, neste agradável ambiente externo alguns acontecimentos no quartel ajudaram, a que se fosse começando a moldar o cérebro deste jovem que julga hoje no ocaso da vida ser uma criatura que pretende ter como principal factor estruturante um profundo sentido de humanidade e solidariedade.
A minha pátria é o Mundo. A minha nacionalidade é a humanidade.
Uma das actividades de Tavira – As salinas
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 19 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9235: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (2): Miniautocarro civil detona mina anticarro em Encheia