domingo, 27 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11014: Efemérides (119): 23 de Janeiro de 1963 - O fim do princípio ou o Princípio do fim - 50 anos depois (José Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 24 de Janeiro de 2013:

Boa noite
A guerra nem começou em 1963, nem terminou em 1974.
Para mim, começou em 1446, com a primeira morte - a de Nuno Tristão - e ainda não terminou, porque nós ainda estamos vivos. Mesmo assim, em 1976 tombaram os últimos combatentes da Guiné com a morte "anunciada" já há algum tempo.
Anexo segue, muito resumidamente, um texto que tenta "lembrar" o que se passou ao longo dos séculos.
Entre 1963 e 1974, todos nós escrevemos sobre esse tempo.
Abraços
Zé Martins


23 de Janeiro de 1963 
O Fim do Princípio ou o Princípio do Fim 
50 anos depois

Na senda dos descobrimentos, as caravelas portuguesas foram tocando a “costa africana” deixando sinais da sua passagem, estabelecendo contactos com os povos do litoral, uma vez que eram descobridores e não conquistadores.

A Guiné, a actual Guiné-Bissau, foi “tocada” pelos portugueses no ano de 1446, quando a expedição comandada por Álvaro Fernandes chegou à enseada de Varela, a norte; João Infante, filho de Nuno Tristão, terá descoberto o Rio Grande, presumindo que se trate do Rio Geba; e, mais tarde, Nuno Tristão terá chegado ao Rio Nuno, hoje na Guiné Conacri, tendo encontrado a morte num combate com os nativos. É assim o primeiro português a tombar naquela terra, pelo menos conhecido.

© Imagem: Wikipédia

A primeira obra literária sobre as terras da Guiné, que à época se entendia como uma extensão maior do que a actual, é o manuscrito da Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, presumivelmente do ano de 1453.

Foi no ano de 1456 que Diogo Gomes e Cadamosto, comandando uma pequena frota de três caravelas, chegam à região do Cacheu, passando o rio S. Domingos. Rumando mais a sul, ao estuário do rio Geba, subiram o rio e, tendo atingido uma povoação de mandingas, os portugueses estabeleceram uma feitoria. É nessa região que obtêm a malagueta.

A importância da costa da Guiné tambem é reconhecida pelo papa Calisto III (pontificado de 1455 a 1458) que, em 13 de Março de 1456, publica a Bula Inter Caetara, confirmando a concessão à Ordem de Cristo de todos os poderes espirituais sobre as “ilhas, vilas, portos, terras e lugares adquiridos e a adquirir desde o Cabo Bojador e Cabo Não, decorrendo por toda a Guiné e por toda a plaga meridional até os Indos”. Em 26 de Dezembro de 1457 é feita a doação à Ordem de Cristo, pelo Infante D. Henrique, “da vintena dos direitos de escravos, ouro, pescarias, etc.”, resgatados na terra da Guiné, desde o Cabo Não.

Diogo Gomes e António da Noli, navegadores da Casa do Infante, quando regressam de uma viagem à Guiné, descobrem, em 4 de Maio de 1460, o arquipélago de Cabo Verde, terra que virá a ter forte influência sobre a Guiné que, de colónia, passou a colónia de colónia.

Dois anos depois, no ano de 1462, foi iniciado o povoamento da Ilha de Santiago, em Cabo Verde, com escravos negros provenientes da costa da Guiné, além de cativos mouros de Marrocos, e quatro anos volvidos, em 1466, é firmada a doação régia do “trato das partes da Guiné” aos habitantes da de Santiago, arquipélago de Cabo Verde, reservando apenas para a coroa o “trato de Arguim” e entrega das alçadas civil e criminal ao infante D. Fernando.

Caravela portuguesa Foto: © Carlos Vinhal

É no ano de 1469 (de acordo com João de Barros, in Ásia, Decada I) que foi firmado o contrato entre D. Afonso V e Fernão Gomes, sobre o comércio da Guiné: “Como El-Rei pelos negócios do Reino andava ocupado (…) arrendou (o negócio da Guiné) pelo tempo de cinco anos a Fernão Gomes, um cidadão honrado de Lisboa, por duzentos mil réis cada ano, com a condição de que em cada um desses anos fosse obrigado a descobrir pela costa adiante cem léguas(…)”. Findo o tempo do contrato, é emitida uma carta régia prorrogando, por mais um ano, o arrendamento do comércio da Guiné concedido a Fernão Gomes.

É fundada, em 1479, uma feitoria na zona de Cacheu e, em 1494, Bartolomeu Dias é nomeado recebedor do Armazém da Guiné, até 1497, que antes havia sido escudeiro real e Capitão de uma armada que foi à costa meridional de África.

A partir de 1526 começa o “assédio” à colónia da Guiné. Inicia-se com a frequência de navios ingleses na costa da Guiné e, em 1530, a tentativa dos ingleses se estabelecerem na região, que não obteve êxito, enquanto os franceses se instalam no Senegal e na costa da Mina.

Cabo Verde é elevada a diocese, incluindo a Guiné, em 1534 e, em 1526, André Feio é nomeado como primeiro corregedor de Cabo Verde e Guiné, e em 1552 é nomeado Manuel de Andrade como ouvidor-geral e capitão-mor de Cabo Verde, que, administrativamente, incluía o território da Guiné.

No ano de 1588 foi fundada na foz do rio Cacheu uma pequena povoação, que fortificaram, a que denominaram de Cacheu e, em 1641 o capitão-mor de Cacheu, Gonçalo Gamboa Aiala, decidiu fundar a povoação de Farim, no rio da mesmo nome, utilizando para o efeito gente de Geba de origem portuguesa. Da mesma forma procedeu ao fundar a povoação de Zinguichor. Em 1656 foi fundada a Companhia de Cacheu e Rios da Guiné, ratificada pelo governo português, no dia 9 de Junho desse ano.

A construção da Fortaleza de Bissau é iniciada em 1687 e a capitania reporta ao ano de 1692, mas só em 1696 é que é nomeado o primeiro capitão-mor da fortaleza. Por volta do ano de 1700 há uma tentativa francesa de ocupar algumas áreas de Bissau. Em 1708 a capitania é extinta e o forte arrasado, mas reconstruída em 1735.

Entretanto, em 1698, após ter havido uma tentativa dos mandingas de se apoderarem da feitoria de Farim, esta passou a dispor de uma pequena força militar.

Apesar de ter sido descoberta por volta do ano de 1460, só 1 de Abril de 1753 foi afirmada a soberania portuguesa sobre a ilha de Bolama. O então governador da praça de Bissau, coronel Francisco de Sotto Maior, efectuou o acto de posse, colocando na ilha um padrão com as armas portuguesas. Desde o século XV, Bolama era visitada por mercadores portugueses, mas não houve ocupação efectiva, nem mesmo após esse acto de posse.

No ano de 1766 é iniciada a construção da fortaleza de S. José de Bissau.

Em 25 de Maio de 1792, desembarca na ilha de Bolama uma expedição de três navios, com duzentos e setenta e cinco ingleses, chefiados por Filipe Beaver. Tentaram apossar-se da ilha, mas deram-se mal com o clima e também com os indígenas. Esta aventura mal sucedida terminaria, no ano seguinte com a retirada dos sobreviventes desta expedição, em 3 de Novembro de 1793.

Na assinatura de um tratado luso-britânico em 19 de Fevereiro de 1812, que se proíbe o tráfico negreiro na Guiné, Portugal acede vender à Inglaterra, dentro de um prazo de 50 anos, as povoações de Bissau e de Cacheu, caso a Inglaterra conseguisse que a Espanha devolvesse a praça de Olivença a Portugal.

Olivença – Castelo e Torre de Menagem © Imagem: Wikipédia

No ano de 1834, a Inglaterra decide considerar válida a posse de Bolama, ensaiada em 1792, reivindicou, junto do Governo português, o direito à soberania sobre aquele território. De imediato, Portugal repudiou tal pretensão. A questão arrastar-se-ia por alguns anos em que, além da polémica diplomática, se registaram alguns incidentes na Guiné, causados pela marinha inglesa. Foi nesse mesmo ano, que o regime liberal resolve alterar a designação de Colónias para Províncias Ultramarinas. Estes territórios ainda não tinham as suas fronteiras definidas, pois estas variavam com a sorte das armas.

A 31 de Dezembro de 1843, a guarnição militar da Guiné, contava com 7 oficiais e 149 soldados, dispersos por nove feitorias: Bissau, Bolama, Bolor, Cacheu, Ganjara, Geba, Fá, Farim e Zinchingor.

Nova revolta, no ano de 1846, em Farim por parte de naturais das etnias dos grumetes e manjacos, que foi dominada, pelos portugueses, sob o comando do governador Honório Pereira Barreto, natural de Cacheu e de raça negra, que desempenhou vários cargos antes de ascender a governador, com talento e dignidade, procurando desenvolver a instrução, a saúde e a agricultura. Nascido em 24 de Abril de 1813, viria a falecer a 26 de Abril de 1859.

Estátua de Honório Pereira Barreto. © http://coisasdaguine.blogspot.pt/2011/06/204honorio-pereira-barreto-e-porque-e.html

No ano de 1860, a Inglaterra proclamou a incorporação da ilha de Bolama na sua colónia da Serra Leoa, o que levou à tentativa imediata do Governador britânico da Serra Leoa de consumar a posse daquela território. O assunto só conheceria desenvolvimento em 1868, com a Inglaterra a aceitar uma arbitragem americana – tal como lhe era proposto por Portugal – e foi o Presidente dos Estados Unidos da América, Ulysses Grant, aceite pelas partes em litígio quem serviu de árbitro. A sentença, proferida em 21 de Abril de 1870, foi favorável a Portugal.

A região dos papeis e manjacos do Cacheu e do Churo, entre os rios Cacheu e Mansoa, sublevava-se de tempos a tempos. Os naturais do Cacheu assassinaram o governador, em 1871, facto que motivou o envio de uma força que os castigou severamente no recontro de Cacanda. Contudo, a intranquilidade continuou por mais algumas décadas.

Por Carta Régia de 18 de Março de 1879, a Guiné deixou de estar dependente do Governador de Cabo Verde. Como província autónoma, directamente dependentes de Lisboa, teve nos primeiros tempos uma existência administrativa muito apoiada na estrutura militar.

A Guiné conheceu sobressaltos guerreiros, sobretudo desde 1880, o que continuaria a acontecer, ininterruptamente, em ritmo quase anual, até à eclosão da Grande Guerra. O decisivo pacificador da Guiné Portuguesa foi o major Teixeira Pinto.


Ao longo dos mais de quatrocentos anos da Guiné, este território não tinha as fronteiras definidas, o que só veio a acontecer a 17 de Maio de 1886, negociado e assinado pelo ministro regenerador José Vicente Barbosa du Bocage.

Foi a partir de 1886, o ano a seguir ao fim da Conferência de Berlim, que alterou o direito de descoberta para o direito de ocupação dos territórios coloniais, que na Guiné, os vários governadores do território com a colaboração dos militares destacados e pertencentes ao Quadro do Exército Colonial, assim como com o auxilio de diversas canhoneiras e das suas guarnições, assim como a utilização de auxiliares, desenvolveram esforços no sentido de ocupar e apaziguar as populações. Convém notar que em 19 de Setembro de 1896, a guarnição militar da Guiné contava com 8 oficiais e 190 soldados, das tropas regulares, nas feitorias de Bolola, Buba, Cacheu, Cacine, Contabane, Geba, Farim, Sambel-Nhanta e S. Belchior.

Estas operações, que se iriam prolongar até ao inicio da Grande Guerra de 1914 – 1918, que iriam custar muitas vidas e gastos ao erário público, que originou a que, no dia 12 de Fevereiro de 1900 - José Bento Ferreira de Almeida (1847-1902), oficial de marinha e político português, antigo ministro da Marinha e Ultramar, discursa na Câmara de Deputados, em que defende a venda das colónias, à excepção de Angola e São Tomé e Príncipe, para com cujo produto se poder pagar a dívida externa e fomentar o desenvolvimento do país.

Companhia Expedicionária de Infantaria 13 © Foto: José Henriques de Mello (Bissau 1908)

Porém nem sempre as forças disponíveis na Guiné eram suficientes, pelo que em 19 de Março de 1908, desembarca na ponte cais de Bissau, uma força expedicionária da metrópole constituída por uma companhia do Regimento de Infantaria nº 13 (Vila Real), um Grupo de Artilharia e uma força de Engenharia.

A gestão dos assuntos ultramarinos estavam dependentes do então ministério da Marinha e Ultramar, mas a preocupação com as terras de além mar e dos seus recursos, levaram a que fosse constituído, em 23 de Agosto de 1911, o Ministério das Colónias, que se passou a ocupar dos assuntos respeitantes ao ultramar, incluindo os militares.

Terminada a Grande Guerra, foi criada em 10 de Janeiro de 1920 a Sociedade das Nações ou Liga das Nações, organização idealizada e concretizada pelos países aliados e vencedores do conflito mundial, em 28 de Junho de 1919. É assinado o Tratado de Versalles, por 44 estados, cuja primeira reunião teve lugar a 16 de Janeiro de 1920. Esta organização tinha, como principal função, evitar que novos conflitos com a gravidade do que terminava, acontecesse de novo.

Foi durante o ano de 1920 que foram criados, em Portugal, os Altos-comissários para as colónias africanas, para descentralização de poderes.

A 6 de Novembro de 1928 é publicado o Código do Trabalho, pelo Decreto-Lei nº 16.119, que se aplicaria aos indígenas nas colónias portuguesas de África.

Ao contrário das principais potências coloniais, o governo português decide não ratificar a Convenção número vinte e nove da OIT - Organização Internacional do Trabalho de 10 de Junho de 1930, relativa a questões de trabalho forçado ou “a contrato”, sobretudo no caso das “populações indígenas” dos territórios coloniais. A Convenção entraria em vigor em 1 de Maio de 1932.

Enquanto decorriam os trabalhos da OIT, é dado inicio, em 8 de Maio de 1930 na Sociedade de Geografia, ao II Congresso Colonial Nacional, tendo por objectivo a divulgação da “ideologia imperial”, o reforço da “capacidade civilizadora” de Portugal enquanto potência colonial, a discussão e, sobretudo, a consolidação do apoio ao projecto de Acto Colonial, proposto por Salazar, e que foi aprovado pelo Decreto nº 18.570 de 8 de Julho de 1930 (I Série).

Há uma nova reorganização do Exército, criando cinco regiões militares e dois comandos independentes na metrópole, pelas Leis n.º 1960 e 1961, de 1 de Setembro de 1937. O Decreto Lei número 28.401, de 31 de Dezembro de 1927, diploma que define, basicamente, a organização do exército até 1959, previa a possibilidade do envio de forças expedicionárias, para reforçar a composição das forças militares em operações nas colónias.

Foi no ano de 1941 que Bissau foi confirmada como capital da província da Guiné. Ali se tinha formado uma povoação comercial, provavelmente por volta de 1456, passando a feitoria em 1692. Foi, em 1859, elevada à categoria de vila e passou a cidade em 1914.

Casa dos Estudantes do Império - © www.dw.de/casa-dos-estudantes-do-imperio

Por iniciativa do governo de Salazar é fundada, no mês de Dezembro de 1943, em Lisboa, a Casa dos Estudantes do Império, destinada a ser utilizada pelo Estado Novo, quer como estrutura de enquadramento político-ideológico dos jovens vindos das colónias portuguesas para estudar na Universidade de Lisboa, quer como símbolo da “superioridade moral” e da “função civilizadora” da “presença portuguesa” em África, na Ásia e na Oceânia.

A 24 de Outubro de 1945 é criada a ONU – Organização das Nações Unidas, que assumirá as atribuições da Sociedade das Nações, aumentando o número de estados aderentes. Terá a sua primeira Assembleia Geral em 10 de Janeiro de 1946, em Londres, e em 1 de Fevereiro de 1946 o socialista norueguês Trygne Lie é eleito secretário-geral. A Sociedade das Nações é dissolvida em 18 de Abril de 1946.

O governo de Salazar apresenta em Nova Iorque o pedido de adesão de Portugal à Organização das Nações Unidas em 3 de Agosto de 1946. Esta solicitação é vetada pela União Soviética com o argumento de que o país continuava a ser um regime fascista e colonialista.

Com a publicação de Decreto-lei n.º 37.542 de 2 de Setembro de 1949, processa-se a passagem para a dependência do Ministério da Guerra (Ministério do Exército a partir de 1950) dos serviços militares do ultramar, incluindo as tropas nele constituídas ou eventualmente destacadas como reforço.

No mês de Dezembro de 1949, o governo português subscreve junto da ONU, organização internacional da qual estava excluído, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que tinha sido aprovada em Paris a 10 de Dezembro de 1948.

Alteração constitucional datada de 11 de Junho de 1951, com o desaparecimento da autonomia formal do Acto Colonial e a sua integração na Constituição Portuguesa de 1933. A revogação do Acto Colonial de 8 de Julho de 1930, no quadro da revisão constitucional, que passa a integrá-lo no seu texto, altera a designação “colónias” para “províncias ultramarinas”, em ordem a reforçar o carácter integrador da política colonial, e a 15 de Junho de 1951, o Ministério das Colónias passa a designar-se Ministério do Ultramar. Em Dezembro desse mesmo ano, aquando da revisão da Constituição, foi revogado o Acto Colonial de 1930, passando a integrar o texto constitucional.

Pelo Decreto 2066, datado de 27 de Maio de 1953, é promulgada a Lei Orgânica do Ultramar Português. Em 27 de Junho de 1953, de acordo com o diploma citado, o Estado Novo extingue o “Império Colonial Português”, composto pela metrópole e pelas colónias, e cria as “Províncias Ultramarinas.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

A aprovação do Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, em 20 de Maio de 1954, divide as populações em três grupos: indígenas, assimilados e brancos. Este documento seria publicado em Agosto.

O PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, foi fundado por Amílcar Cabral em 18 de Setembro de 1959. Nos anos seguintes outros partidos ou movimentos seriam fundados: em 1958, UPG – União Popular da Guiné; em 1959, UDC – União Democrática Cabo Verdiana e MLGCV – Movimento de Libertação da Guiné e Ilhas de Cabo Verde; em 1961, MLG – Movimento de Libertação da Guiné; em 1962, UNGP – União doa Naturais da Guiné Portuguesa. Em 1962, a maioria destes partidos fundiram-se, dando origem FLING – Frente de Libertação para a Independência da Guiné.

Em 3 de Agosto de 1959, uma greve dos descarregadores indígenas do porto abala Bissau. Coordenada pela União dos Trabalhadores da Guiné, organização clandestina de natureza político-sindical, termina com a morte de cerca de cinquenta grevistas e com mais de cem feridos, ficando conhecida como o massacre de Pidjiguiti. Outra versão é de que o que aconteceu foi uma reivindicação laboral dos estivadores da Casa Gouveia e não como diz a propaganda do PAIGC. [Mário Dias, residente e militar na Guiné (Correio da Manhã / Revista, 20 de Janeiro de 2013 e post do blogue Iª série Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias) de 15 Fevereiro 2006].

Guiné > Bissau > 1959 > Alguns dos 1ºs Cabos Milicianos do 1º Curso de Sargentos Milicianos, realizado na província portuguesa da Guiné, em que participaram juntos, pela primeira vez, europeus e guineenses.
De cócoras, a partir da esquerda: Domingos Ramos; um outro cujo nome não me lembro mas que também foi para a guerrilha; Laurentino Pedro Gomes. De pé: não me recordo o nome mas também foi para a guerrilha; Garcia, filho do administrador Garcia, muito conhecido e estimado em Bissau; mais um de cujo nome não me recordo; eu, [Mário Dias]; e mais outro guerrilheiro. Como se pode concluir, o recrutamento de 1959 do CIC [Centro de Instrução de Civilizados] , foi um autêntico alfobre [de quadros] para o PAIGC. 
Foto e legenda: © Mário Dias (2006). Direitos reservados.

(Continua)
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 25 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11003: Efemérides (118): Data da Operação Irã (José Martins)

Guiné 63/74 - P11013: Memória dos lugares (208): Buruntuma, memorial da CART 1742 (1968/69) (Eduardo Campos)

Buruntuma, 2010 > Memorial da CART 1742 (1968/69) 
Foto: © Eduardo Campos (2013). Todos os direitos reservados


1. Mensagem do nosso Eduardo Campos, ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74, com data de 24 de Janeiro de 2013:

Caro Luís:
Acabei de ver e ler, o lP10992 da CART 1742, que esteve em Buruntuma, onde aparece uma foto com o marco da passagem da companhia por Buruntuma.

Tirei uma foto em 2010 onde é visível ainda algumas legendas no referido marco.
Como o malta da Cart 1742 deverá gostar de saber que algo que eles deixaram há cerca de 45 anos ainda está bem "vivo", aqui vai ela, que farás naturalmente o que muito bem entenderes.

Um abraço
Eduardo Campos
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 26 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11006: Memória dos lugares (207): Ponte Malã Dalassi, ou melhor Ponte Caium, e outras imagens do leste, Piche e Buruntuma (Alberto Nascimento, ex-sold cond auto, CCAÇ 84, 1961/63)

Guiné 63/74 - P11012: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (24): 25.º episódio: Memórias avulsas (6): Cabeça cá tem juízo

1. O nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), em mensagem do dia 21 de Janeiro de 2013, enviou-nos mais esta história para publicar na sua série "Os melhores 40 meses da minha vida".


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

GUINÉ 65/67 - MEMÓRIAS AVULSAS (6)

CABEÇA CÁ TEM JUÍZO

23 de Julho de 1966 e o campeonato mundial de futebol a disputar-se lá para as englandes.

Pára tudo, que é dia de Portugal jogar.

Chegámos a estar a perder por 3 a Ó mas depois lá demos a volta à coisa e acabámos por ganhar a uns tipos que antes tinham dado tareia, na guerra, aos américas e só por isso se atreveram a pensar que faziam o mesmo cá c'os Eusébios... Torres... Zés Augustos... Hilários e outros muita bons.

Uma das duas grandes penalidades convertidas por Eusébio, que marcou 4 golos nesta vitória de Portugal sobre a Coreia do Norte por 5 a 3. O quinto golo foi marcado pelo saudoso, bom gigante, Torres. (Legenda de CV)
Foto: Com a devida vénia a citizengrave.blospot.com

Já uns CIAosos, que tinham vindo recentemente a Bissau, sabiam de tal impossibilidade e só cá estiveram com o intuito de aprender e perceber, como é que, sendo nós aqui, pr'ái uns 20 mil, conseguíamos estar a vencer, quando eles lá nos Vietnames e com um milhão de profissionais bem armados, estavam em quase completo colapso.

Depois dum lauto almoço comemorativo duma boa notícia recebida há pouco e para quem não saiba elucido desde já que todos os almoços sempre foram e serão para mim, de comemoração, só que estes ainda mais saborosos me pareceram e ai nanas... que a dieta Kapatrêziana do feijão com dobrada, era já passado... e dizia eu... fui assistir ouvindo o relato talqualmente.

Enquanto isso ia emborcando uns whyskais digestivos, tantos quantos os golos da partida, conforme a mim mesmo prometera e promessas para mim, ou se cumprem ou não se fazem, nem mesmo que com isso prejudiquemos a saúde.

Por culpa dessa futebolada aconteceu a loucura total.

Conto-vos, pois então: Acabada a partida começaram a ver-se garrafas pelo ar e até aí tudo normal, só que depois caíram no chão e... sabe-se lá do porquê.

Resultado: aquela Praça do Império, ficou uma verdadeira fábrica de vidro estilhaçado e disperso pelo chão.

"Monumento ao Esforço da Raça. Praça do Império"... Bilhete postal, nº 109, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa")

E então... era uma vez... uma cidade a entrar no pandemónio... vieram os pára-quedistas cuja luta exclusiva era a de fazerem de Polícia Militar (nessa altura, porque mais tarde foram também combatentes)... a balbúrdia piorou já que ninguém os "amava" dada a sua estapafúrdica e autoritária poses... aparecem os fuzos a tentar pôr mais desordem na ordem... e assim SIM, finalmente dá-se o caos.

Foi o bom e o bonito, também colaborei assim como todos os do Exército que por ali estavam em merecido descanso, e festejámos agora aliados à Marinha, descascando no inimigo comum, (os páras) que tão mal nos maltratavam com a prepotência costumada. Para mim escolhi os mais altos, aplicando-lhes o conceito aprendido no Judo que diz, que quanto maiores são, maior é a queda.

Gozei à brava, creiam, com tanta castanha que distribuí e com algumas que recebi não nego, mas "djubi", quem vai à guerra dá e leva.

Assanhada esteve a peleja durante horas, quando alguém, merdosamente decidiu interromper e deu ordens aos seus homens para que regressassem de imediato a Brá, o que fizeram bastante sovados e estropiados, uns sem cassetetes e outros sem os capacetes e pobres de nós que como de costume fomos os prejudicados, quando assim nos retiraram aquele pequeno prazer porradal que estávamos usufruindo caceteando de borla.

E eu? ...pois acabei a noite no Hospital Militar onde graças à minha nunca desmentida valentia, levei seis pontos na tola e de tal forma que ainda hoje lá está o sinal e nesse sítio nunca mais nasceu cabelo.

(continua)
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 20 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10970: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (23): 24.º episódio: Memórias avulsas (5): "Salazar é qui na manda"

Guiné 63/74 - P11011: Efemérides (119): Diário de George Freire, ex-comandante da 4ª CCAÇ (Bedanda, 1962/63): o início da guerra no sul do CTIG (jan / mar 1963)...Recordando topónimos que nos são familiares: Cabedu, Caboxanque, Cacine, Cadique, Cafal, Cafine, Catió, Chugué, Jemberém, Mejo, Salancaur...



Guiné > Região de Quínara (parte sul) e Região de Tombali > Sítios referidos por George Freire no seu dário (1/3 a 23/3/1963), e onde a sua 4ª CCAÇ, colocada em Bedanda, ou outras unidades do exército (como a CCAÇ 273, por ex.) , estiveram em ação, logo no início da guerra...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)

1. Ainda a propósito dos 50 anos do início da guerra no TO da Guiné - a 23 de janeiro de 1963, segundo os nossos historiógrafos (mas também os da Guiné-Bissau) - achamos oportuno reproduzir, aqui, mais uma vez, o diário do cap inf Jorge Freire (,hoje cidadão americano, George Freire), que comandou a 4ª CCAÇ, e que esteve, já em cenário de guerra, em Bedanda, desde novembro de 1962 até ao fim da sua rendição individual em maio de 1963 (*)...

É impressionante como um só companhia podia, na época, operar em quase todo o sul da Guiné, compreendendo parte da região de Quínara  e a região de Tombali, o celeiro da Guiné... Todos estes topónimos são-nos familiares, para muitos de nós: Bedanda, Cabedu, Caboxanque, Cacine, Cadique, Cafal, Cafine, Catió, Chugué, Jemberem, Mejo, Salancaur... Ainda não se falava de Guileje nem de Gadamael...Repare-se que há tabancas que vão ser logo de imediato abandonadas (caso de Iemberém, cuja população fula é transferida pelo exército pata Bedanda), Da leitura do diário depreende-se que houve um rápido alinhamento da população local, com os fulas a mostarem-se leais às autoridades portuguesas e os balantas (e outros: beafadas, nalus...) a ficarem do lado do PAIGC... Houve seguramente terror e contraterror nestas ações de ambos os lados. Mas repare-se que os prisioneiros feitos pela 4ª CCAÇ são entregues ao batalhão (o George Freire não o identifica,  claramente, não sei se era o BCAÇ 236 ou o BCAÇ 356). Por outro lado, um dos alvos da ação da guerrilha são as casas comerciais, a Ultramarina, a Gouveia... A produção de arroz vai decrescer drasticamente nos anos seguintes. A importação de arroz mais do que triplica de 1962 (c. 9 mil toneladas) para 1964 (c. 30 mil toneladas). A Guiné nunca mais será a mais a mesma, depois do ataque de Tite, em 23 de janeiro de 1963. (LG)



O meu Diário da Guiné, por George Freire (EUA)

Como história, transcrevo partes de um diário que encontrei no meio de papelada antiga numa gaveta da minha secretária. A primeira entrada no diário foi no dia 31 de Janeiro de 1963 e a última, no dia 28 de Maio do mesmo ano.

31/1/63:

Ataque de terroristas aos Fulas de Jemberém. Mataram o chefe da tabanca e outros 6 Fulas.

2/2/63:

Acção em Boche Falace pelas minhas forças de Jemberém. Um grupo de terroristas balantas em fuga deixou grande quantidade de arroz cozido (!).

6/2/63:

O nosso destacamento em Salancaur foi atacado às 00:30. Tivemos baixas: um furriel e um soldado foram mortos do nosso lado e vários terroristas foram abatidos. Nesta mesma noite, também atacaram o nosso destacamento em Cacine, mas felizmente não houve baixas a assinalar.

8/2/63:

Fui a Bissau tratar de vários assuntos da Companhia [4ª CCaç].

9/2/63:

Volta de Bissau. Manga de trabalho em atraso devido as acções dos últimos dias. Recebemos informação de que vários terroristas passaram ao largo, vindos de Catió para a zona de Cacine. As instalações da Ultramarina foram assaltadas e o encarregado europeu foi morto.

10/2/63:

Lista de material extraviado em combate: 1 capacete em Chugué, 1 espingarda Mauser e1 pistola-metralhadora em Jemberém.

Esta madrugada as instalações da Gouveia em Salancaur foram atacadas. Os terroristas levaram cerca de 10 toneladas de arroz e outros géneros de comida.

11/2/63:

Efectuámos acções em Jemberém, Salancaur e Cadique. Vários elementos terroristas que tinham tomado parte no assalto aos Fulas de Jemberém foram aprisionados e enviados para a sede do Batalhão.

12/2/63:

Um alfaiate mandinga, Mamude Djassi, que tinha sido aprisionado em Chacual pelos terroristas e que passou vários dias num dos seus acampamentos, conseguiu fugir e apresentou-se ao nosso destacamento do Chugué. Foi transportado para o nosso quartel em Bedanda. Enviei um rádio para o Batalhão para que este Mandinga possa ser aproveitado como guia na acção que está a ser preparada pelo Batalhão.

13/2/63:

Enviei um pelotão para Salancaur para proteger o embarque de arroz da Ultramarina e da Gouveia.

14/2/63:

Patrulhamento feito em Jemberém e Cadique. Nesta última povoação tivemos contacto com terroristas Balantas que puseram alguma resistência mas acabaram por fugir. Três foram abatidos.

15/2/63:

O nosso quartel em Bedanda foi visitado por 3 directores da CUF, procurando informações do que se está a passar na região. Nessa mesma altura, terroristas rebentaram um pontão na estrada de Catió junto de Timbo. Houve também grande tiroteio em Chugué e algumas explosões na estrada próxima da área. Os 3 directores ficaram bem informados do que se está a passar...

16/2/63:

Chegou o Pelotão de acompanhamento da Companhia 273. Uma patrulha das nossas forças do Chugué foi atacada por um grupo armado de pistolas-metralhadoras. Não sofremos baixas mas 2 terroristas foram abatidos.

Regressou à base o Pelotão destacado em Salancaur. Foi rendida por novas forças a Secção que se encontrava destacada em Jemberém.

17/2/63:

Continuaram a chegar mais elementos da companhia 273.

18/2/63:

Reconhecimentos feitos a Salancaur, Jemberém e Cadique. Aprisionámos alguns dos elementos que tinham atacado o nosso destacamento de Salancaur.

22/2/63:

Fomos visitados aqui em Bedanda pelo Comandante Militar e pelo Major Mira Dores, durante a altura em que tínhamos começado uma acção no mato de (Nhairom?), com 2 pelotões da CCaç 273 e 1 Pelotão da minha Companhia.

23/2/63:

Regresso da acção. Pobres resultados. Foram encontrados vários acampamentos terroristas, abandonados mas com indícios de terem sido ocupados recentemente. Foi rendida a secção de Jemberém.

25/2/63:

Reconhecimento feito em Salancaur e Mejo. O Capitão Delfino, comandante da Companhia que substituiu a CCaç 74, visitou-nos, para discutirmos colaboração.

26/2/63:

Outra visita pelo Comandante Militar e o Comandante da Força Aérea, para discussão sobre a colaboração da FA na próxima operação que iremos executar. Pormenores foram discutidos em detalhe.

27/2/63:

O Capitão Relvas veio da sede do batalhão visitar-nos em Bedanda. Aparentemente, o comandante do Batalhão está chateado por não ter sido consultado nos detalhes de apoio pela FA. e tomou a decisão de fazer a operação sem esse apoio. (Incompreensível!).

A acção começará esta noite a partir das 00:04. A acção terminou pelas 15:00 do dia 28/2/63. Os resultados que poderiam ter sido bastante satisfatórios, foram praticamente nulos, pois vários grupos de terroristas conseguiram, (devido a configuração e extensão do terreno de acção), fugir e dispersar. Se a FA tivesse colaborado os resultados teriam sido tremendos, pois o número de terroristas que conseguiram infiltrar-se entre as nossos forças foi considerável. (Esta foi a opinião de todos os comandantes de pelotão directamente envolvidos na acção. Na área onde a minha companhia actuou, notamos exactamente os mesmos resultados).

É evidente que os terroristas foram avisados da operação a tempo de poderem debandar. Nada me admira, pois temos um número considerável de soldados nativos, incluindo Balantas...


1/3/63:

Hoje pela 09:30 e mais tarde pelas 14:30, pessoal do pelotão do Cabedú sofreu emboscadas respectivamente entre Cafal e Cafine e no cruzamento de Cabante. Na segunda emboscada sofremos um morto e um ferido. Uma viatura Chaimite foi destruída na primeira emboscada. Seguiram dois pelotões reforçados para os locais das emboscadas.

Em Impungueda uma patrulha da CCaç 859 travou contacto com os terroristas e feriu alguns e os outros conseguiram fugir.

2/3/63:

Durante parte do dia de ontem e durante todo o dia de hoje as nossas forças percorreram todo o terreno nas zonas das emboscadas. Encontraram vestígios dos atacantes, fizeram um prisioneiro que tinha tomado parte numa das emboscadas, mas nada mais. O soldado ferido seguiu de avião para Bissau e o morto foi enterrado no cemitério de Bedanda.

O prisioneiro foi interrogado mas poucas informações conseguimos. Foi enviado para o Batalhão para ser interrogado.

3/3/63:

O Comandante Militar veio cá hoje de avião com o segundo Comandante do Batalhão 356. Depois de informados dos acontecimentos dos últimos dias, seguiram para Catió.

4/3/63:

Recebemos informação do batalhão de um possível ataque planeado pelos terroristas a Caboxanque e Jemberém. Enviei dois pelotões para Jemberém e Cadique, ponto de onde, segundo a informação, os terroristas se estavam a organizar para os ataques. Em Caboxanque executámos acções por um pelotão da minha companhia e outro da CCaç 273.

6/3/63:

Fizemos um reconhecimento à zona de Jemberém. O alferes Gonçalves encarregou-se de falar aos chefes Fulas de Jemberém e discutir a possível mudança das suas tabancas para Bedanda. Há toda a vantagem dessas mudanças para incrementar a protecção da população Fula. Poderemos também formar aqui e em Bedanda um pelotão de uns 40 Fulas, o que nos poderá ajudar substancialmente na segurança da área e aliviar as nossas forças. Os chefes Fulas aceitaram a nossa oferta de braços abertos.

7/3/63:

Começámos o transporte da população Fula de Jemberém. Usámos 10 viaturas neste movimento. Calculamos que serão necessárias 3 mais viagens semelhantes.

8/3/63:

Continuação do transporte dos Fulas. Seguiram dois pelotões da CCaç 273 para a região de Salancur.

9/3/63:

Continuação do transporte dos Fulas. Os pelotões da CCaç 273 continuaram a operar na região de Salancur.

Elementos Fulas de Jemberém conseguiram aprisionar um nativo que sabiam estava ligado ao movimento terrorista. Quando este nativo (Balanta) foi interrogado aqui na companhia, deu-nos a informação de que elementos terroristas estão no mato de Boche Falace a prepararem um ataque àquela povoação. Enviámos um pelotão da CCaç 273 para a área.

Recebemos também informação, por elementos do Chugué, que um grupo de terroristas bem armado estava concentrado do outro lado da fronteira com a Guiné Francesa, perto da zona de Banta-Sida.

Mais informações recebidas do pelotão de Jemberém: cerca de 300 elementos terroristas estavam a preparar um ataque à nossa companhia em Bedanda na madrugada de amanhã.

Dei ordens para que todo o nosso pessoal, (estávamos um pouco desfalcados pois tínhamos 2 pelotões em operações longe de Bedanda), estar em alerta em posições defensivas, já há muito preparadas para eventualidades semelhantes. Foi uma longa noite de nervos, mas o ataque nunca se deu.

10 e 11/3/63:

Acabámos o transporte dos Fulas de Jemberém para Bedanda, contudo ainda teremos que transportar abastecimentos e víveres que ainda lá ficaram, em especial uma grande quantidade de arroz. Os Fulas fizeram um outro prisioneiro que, após interrogado, nos deu boas informações sobre o grupo terrorista que tem actuado na zona de Boche Falace: nomes de comandantes, armamentos e locais aproximados do grupo. Este prisioneiro foi enviado para o batalhão.

13/3/63:

Recebemos novas informações sobre um outro possível ataque ao nosso aquartelamento no dia 16 ou 17.
O Benfica venceu o Dukla de Praga para a taça dos campeões europeus. Ouvimos o relato no rádio.

15/3/63:

Chegou um pelotão da CCaç 417 que seguirá para Caboxanque. Enviei uma grande coluna de 10 viaturas para Jemberém para trazer o resto dos víveres pertencentes aos Fulas.

16/3/63:

O pelotão da CCaç 417 seguiu para Caboxanque para render o Pelotão 859.

18/3/63:

Chegou o Pelotão 859 que seguirá para Bafatá. A CCaç 273 partiu para Jemberém em operações, não se sabendo por quantos dias.

19/3/63:

Visita do major Pina para discutir os pormenores do movimento dos pelotões 859, 870 e 871 para Bafatá. Eu irei a comandar a coluna e voltarei para Bedanda de avião.

20/3/63:

O alferes Mendes seguiu com um pelotão para o Chugué dentro do novo plano de ordenamento dos dispositivos.

22/3/63:

Cabedú enviou uma mensagem informando que os terroristas estavam a planear uma emboscada às viaturas da CCaç 273 que se tinham deslocado para a região de Darsalame. Enviei imediatamente um rádio para o capitão Gaspar com todos os detalhes da informação.

23/3/63:

Chegou outro pelotão da CCaç 417. Seguirá amanhã para Cabedú para render o Pelotão 871, que virá para Bedanda e depois para Bafatá na minha coluna.

[.-..] O meu diário, cobrindo os acontecimentos que se passaram entre a minha partida para Bafatá com a coluna, a minha vinda de retorno a Bedanda e as semanas até ao dia 18 de Maio, extraviou-se, infelizmente.

Lembro-me de alguns detalhes de possíveis ataques a Bedanda que, felizmente, nunca se concretizaram. Nós estávamos muito bem preparados, com todo o terreno à volta do aquartelamento (cerca de uns 150 metros), completamente limpo de arvoredo e vegetação.

Tínhamos os morteiros de 60 todos treinados nas áreas prováveis de ataque, além de explosivos enterrados e comandados à distância. Bem no fundo, eu estava com esperança de que os terroristas tentassem um ataque, pois seriam totalmente aniquilados, mas nunca aconteceu, possivelmente porque eles sabiam que tal acção seria muito difícil e arriscada.

No dia 18 de Maio, o capitão Nelson (meu colega de curso) veio render-me. Durante os 4 dias seguintes fiz a entrega da 4ª CCaç ao Nelson e no dia 21 de Maio segui de avião para Bissau.

Ai estive à espera de transporte e finalmente no dia 27 de Maio parti de volta a Portugal no navio da CUF “Ana Mafalda”.


Tenho ainda mais algumas histórias para contar, (entre os primeiros dias de Abril, até a altura em que fui rendido, 20 de Maio de 1963).

Um abraço,
George Matias Freire

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Notas do editor:

(*) vd. postes de:

24 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10996: Efemérides (117): O início da guerra no CTIG há 50 anos: Nova Lamego, Bissau, Bedanda... O paraíso... perdido (set 62/mai 63): filme de George Freire, ex-cap inf QP, a viver nos EUA há meio século (Virgínio Briote / Luís Graça)
29 de dezembro de 2008 >  Guiné 63/74 - P3681: Tabanca Grande (106): George Freire, ex-Comandante da 4ª CCaç (Fulacunda, Bissau, N. Lamego, Bedanda, 1961/63)

(**) Último poste da série > 25 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11003: Efemérides (118): Data da Operação Irã (José Martins)

Guiné 63/74 - P11010: Parabéns a você (528): Mário Serra de Oliveira, ex-1.º Cabo Escriturário (BA 12) (Guiné, 1967/68)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10987: Parabéns a você (527): Augusto Silva Santos, ex-Fur Mil da CCAÇ 3306 (Guiné, 1971/73), Francisco Godinho (Barão do K3), ex-Fur Mil da CCAÇ 2753 (Guiné, 1970/72) e José Albino, ex-Fur Mil do Pel Mort 2117 e BAC 1 (Guiné, 1969/71)

sábado, 26 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11009: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (3): De Varela a Guileje

1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, da nossa grã-tabanqueira Anabela Pires,  nascida em Moçambique, técnica superior de serviço social no Ministério da Agricultura, reformada, amiga dos nossos grã-tabanqueiros Jero e Alice Carneiro... Em 2012, esteve na Guiné-Bissau cerca de três meses (, de meados de janeiro a meados de abril). Devido ao golpe de Estado de 12 de abril , acabou por sair da Guiné.-Bissau, por razões de segurança. Passou um mês no Senegal. Regressou a Portugal. Vive neste momento na Índia, em Auroville. Em Iemberém, Parque Nacional do Cantanhez,  região de Tombali, esteve a trabalhar como voluntária no projeto do Ecoturismo, da AD - Acção para o Desenvolvimento.  Chegou em Iemberém no dia 17/1/2012. E ficou  hospedada nas instalações locais da AD, a ONGD que é dirigida pelo nosso amigo Pepito (*)


2. Diário de Iemberém, por Anabela Pires [, que escreve de acordo com a antiga ortografia] > Parte III


22 de janeiro de 2012 (continuação)

Estiveram cá a passar o fim-de-semana 9 jovens portugueses, 7 dos quais professores, mas na vinda tiveram um acidente e acabaram por vir só em 2 carros. Assim, não puderam dar boleia à Cadi. Bom, talvez também seja perigoso dar boleia pois em caso de acidente pode-se arranjar um grave problema. E problemas já eles tiveram na vinda com uma moto em contramão que se enfaixou de frente. Na mota vinha um homem e uma mulher grávida que ficaram feridos e tiverem que ir para Bissau.

Foi a primeira vez que estes jovens vieram a Iemberém, ficaram nos bungalows, comeram no restaurante da Satu e saíram para passear com o Zeca (guia turístico instrutor). Hoje às 5.30 da manhã saíram para irem ver chimpanzés e conseguiram ver três.

Uma das jovens era professora de matemática e colega da Cátia, amiga da Mariana, de Coimbra, do Aikido. Não a conheço mas mandei-lhe de presente uma cestinha feita aqui pelos Balantas (uma das etnias existente nesta zona da Guiné).

Regressando à chegada a Bissau…. No dia 14 de Janeiro, às 7 horas da manhã, depois de me ter deitado às 4 horas, fui com o Pepito, a Isabel e o Cláudio para Varela, no norte do país, na fronteira com o Senegal. O Cláudio é um italiano que trabalha num projecto de cooperação com a AD. É geógrafo e o seu trabalho tem uma grande incidência em Iemberém. Já vem à Guiné há 10 anos. Agora foi para Itália mas volta em Março com outros colegas italianos ligados ao projecto. Estarão alguns dias em Iemberém mas também irão trabalhar no norte, na zona de S. Domingos.

Logo à saída de Bissau, na estrada, o Pepito foi comprar aquilo a que aqui se chama “couscous”. São uns bolinhos feitos de arroz pilado, levemente açucarados, com a forma de um pequeno queque. Uma dúzia deles dentro dum saco de plástico preto de má qualidade e lá os fomos comendo pelo caminho. Achei-os bem saborosos e imaginei a maioria dos meus amigos portugueses a comerem aqueles bolinhos, feitos por uma mulher agachada na estrada! Aí a ASAE! Bem, ninguém ficou doente e eu aproveito para aumentar as minhas resistências a alguma suposta falta de higiene.

O Pepito e a Isabel têm uma casa de férias em Varela e estão a fazer uma nova com horta, mesmo no meio da floresta. Penso que Varela deve ter a melhor praia da Guiné, de areia branca e muito fina. Assim, fomos tomar banho de mar no Sábado à tarde e no Domingo de manhã. A água devia estar aí a 23º ou 24º, considerada fria aqui em África. Nesta zona, uma das etnias são os Flupes, a etnia do coração do Pepito, e que pescam de zagaia! Quem me dera ter tal habilidade! [, a Anabela levou canas de pesca para Iemberém!]

Neste primeiro dia fiz logo coisas que me tinham dito em Portugal para não fazer: lavei sempre os dentes com água da torneira (e assim continuo pois não me fez mal algum!) e atravessei um pequeno riacho descalça.

Na casa de Varela quem cozinha é uma jovem também chamada Satu, que cozinha igualmente muito bem e tem ar de ser bem inteligente. O seu irmão Moamed é o empregado de casa, que segundo o seu próprio pai deu uma pancada com a cabeça em pequeno e ficou afetado! Só se lhe pode pedir uma coisa de cada vez pois se pedirmos duas não faz nenhuma. Não tinha ouvido a voz ao Moamed e por isso não imaginei que falasse português. Comecei a falar com a Satu e espantei-me do seu bom português! E descobri que o Moamed também falava bem português. Então expliquei por que tinha vindo para a Guiné, disse que ficaria 6 meses e que depois voltaria ou não, caso me adaptasse e o Pepito gostasse do meu trabalho.

Moamed: “Vai voltar!”

Eu: “Não sei, não depende só de mim, também depende do Pepito gostar ou não do meu trabalho.”

Moamed: “Vai gostar!”

Eu: “Ah, não sei!”

Moamed: “Sim, vai gostar. Como a senhora fala na mesa, Pepito vai gostar!”

Fiquei de boca aberta com a sua observação e percebi que da conversa à mesa nada lhe tinha escapado! O Pepito e a Isabel explicaram-me depois que o Moamed é extraordinariamente curioso e que, se por acaso, eles estão ao computador, ele não sai dali. Quer ver tudo, sobretudo o que pode ser para ele algo de novo. Felizmente a tal pancada na cabeça não o afectou completamente!

Antes de chegarmos a Varela parámos em Ingóre, zona onde a AD também intervém. Fomos ver o infantário que está a ser construído pela população e para o qual a AD contribui com os materiais. Conheci o Eugénio, engenheiro agrónomo guineense formado no ISA [, Instituto Superior de Agronomia,] em Lisboa e a Ermelinda, também técnica da AD. Parámos em S. Domingos, em Suzana, onde o Pepito e a Isabel foram contactando outras pessoas ligadas ao trabalho da AD. Fizemos 170 km de Bissau a Varela, 120 dos quais em estrada alcatroada e os restantes em terra batida.

No Domingo, depois do almoço, fizemos a viagem de regresso. Nos primeiros quilómetros devemos ter parado uma dúzia de vezes. As crianças da zona conhecem o carro do Pepito e saem a correr em direcção à estrada – mesmo quando estão a guardar vacas – a gritar “Pepito, Pepito, Pepito!”. Ele pára o carro e eles pedem “caneta”! Então ele pergunta-lhes em que classe andam e de acordo com a que frequentam questiona-os sobre a tabuada. Quando acertam dá-lhes uma caneta, se não acertam manda-os estudar. Dá-lhes às vezes segunda hipótese, às vezes até uma terceira mas se não acertam nenhuma não têm direito à caneta. Ele já me tinha contado este jogo quando esteve em Portugal mas vê-lo ao vivo foi uma delícia! E assim, aqueles primeiros quilómetros demoraram uma eternidade. Quando chegámos a Bissau já tinham terminado as cerimónias fúnebres do Presidente da República [, Malam Bacai Sanhá, 1947-2012] e a cidade estava calma.

Adicionar legenda
Na segunda-feira, dia 16, de manhã, fui com a Isabel às compras a Bissau. Começamos por ir tomar um pequeno-almoço especial – pão de Deus, com manteiga e fiambre, sumo de papaia e depois uma bica. Muito bom, mas custou, para as duas, cerca de 8 €. Em Bissau encontra-se quase tudo à venda mas os produtos importados são caros.

Dia 17, 3ª feira, vim então para o Sul, às 6 da manhã. Devemos ter feito cerca de 150 km em estrada alcatroada e depois começou a estrada de terra batida. Parámos em Quebo onde o Pepito comeu um pão (cacete) com a margarina de cozinha aqui usada mas eu preferi comer pão seco.

Passámos em Farosadjuma, onde a Fatu, que será também minha formanda, tem três bungalows e energia solar. Parámos em Guileje, onde existiu um quartel português. Um dos antigos edifícios (foram todos destruídos após a retirada da tropa portuguesa e por sua ordem) foi reconstruído e serve de habitação e escritório aos técnicos locais da AD – O Domingos e a Maimona. O exterior da entrada do edifico está todo coberto de garrafas de cerveja enterradas pelo gargalo – um piso curioso feito pelos soldados portugueses e que evita a lama à porta de casa no tempo das chuvas. Depois visitei a antiga capela, também já reconstruída pela AD, com um pequeno altar, uma cruz, uma Nossa Senhora de Fátima, oferecida por antigos combatentes portugueses, e à entrada uma antiga pedra gravada pelos nossos soldados. De seguida fui ao memorial de Guileje, outro edificio reconstruído, onde estão memórias dos combatentes portugueses e do PAIGC. Uma homenagem a todos os que tiverem de fazer a guerra.

É um sítio de reconciliação e não pude deixar de me sentir emocionada. Onde se fez a guerra há 40 anos faz-se hoje a paz. Gostei especialmente da frase de Amílcar Cabral colocada à entrada “A cultura é um elemento essencial da história de um povo”. A AD vai agora começar a reconstrução de outro edifício do antigo quartel. A Fundação Mário Soares contribui financeiramente, e penso que não só, neste projecto. No Memorial existe uma detalhada maquete do antigo quartel. No exterior está um antigo Unimog português e uma arma anti-aérea que era do PAIGC.

Chegámos finalmente a Iemberém, onde era previsto almoçarmos.

(Continua)

[Fotos: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados]

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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10988: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (2): A adaptação

Guiné 63/74 - P11008: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (43): General Spínola e a política "Por uma Guiné melhor"

1. Mensagem do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé com data de 10 de Dezembro de 2012:

Caros amigos Luís e Carlos Vinhal,
Desejando que vos encontre em óptimas condições de saúde e boa disposição física e mental, junto envio mais um texto que, após leitura e correcção do português, poderão publicar se assim o entenderem.

Com um abraço fraterno,
Cherno Baldé


MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO

43 - GENERAL SPINOLA E A POLITICA “POR UMA GUINÉ MELHOR”
(NAS PALAVRAS DE ALIU SAMBA OU SAMBA KONDJAM)

O que a seguir se apresenta é um texto narrativo resultante de recordações sobre as palavras de Aliu Samba ou Samba Kondjam(1) e um testemunho pouco fiável de uma criança “rafeira” de quartel, curiosa e intrometida em forma de uma reflexão retrospectiva sobre a política “por uma Guiné melhor” que, na minha opinião, se não atingiu o seu objectivo maior, terá contribuído de certa forma, para a mudança das mentalidades, modelando a especificidade da colonização portuguesa na Guiné.

Assim, iniciamos com algumas questões que, esperamos, alguém mais adulto, melhor informado e mais fiável, nos ajudará a responder:

1- Qual seria a perspectiva do General Spínola para a solução do caso da Guiné “portuguesa” durante a guerra colonial que opunha o exército português, envolvido em três frentes de guerra subversiva, e a guerrilha nacionalista conduzida por Amílcar Cabral por intermédio do PAIGC?

2- Alguma coisa teria falhado nos planos do General para levar ao reconhecimento da autodeterminação e independência total da Guiné-Bissau, ocorrido em 10 de Setembro de 1974, ou teria sido uma consequência lógica da sua visão para esta província ultramarina, em particular, e da política colonial portuguesa em geral, como saída para o conflito armado que ameaçava os alicerces do império colonial português? Sim ou não, é bem possível que estas e outras questões nunca venham a ter respostas satisfatórias que possam desvendar os segredos do mais velho e enigmático Chefe da guerra colonial ou guerra do Ultramar português que, com a condução da política “por uma Guiné melhor”, tinha conseguido conquistar a confiança de uma parte significativa da população da Guiné, dita portuguesa.

Na Guiné-Bissau independente, nos meses que se seguiram ao 25ABRIL74, pairou no ar um sentimento ou esperança de que o General Spínola voltaria para resgatar a Guiné das mãos dos independentistas que os militares do exército português na altura, encurralados nos centros urbanos e entrincheirados em alguns quartéis fortificados do interior, como gostava de dizer o PAIGC, na ansiedade de um rápido regresso a metrópole, tinham entregue sem quaisquer condições prévias. Ninguém sabia ao certo como seria feito o resgate nem para quando estava isso previsto e, se estava previsto.


LEMBRANDO OS HERÓIS DE SANCORLA

Mas, como não há nada sobre a terra que dure para sempre, o boato que não se confirmou nos meses que se seguiram, acabou por se diluir na corrente dos rumores que iam surgindo, para de seguida se extinguir lentamente como as nuvens desaparecem após a chuva, acompanhando a implantação e consolidação do PAIGC, concomitante a eliminação física de centenas de elementos dos ex-comandos, milícias e soldados nativos do exército português, assim como elementos das chefias tradicionais consideradas, potencialmente, perigosas na fase mais crítica da transição e concentração do poder nas mãos do partido estado.

Estas notas servem também para lembrar e honrar a memória dos nossos pais, tios e irmãos, vítimas da repressão feroz e da exclusão politica e social que se abateu sobre os que estiveram, de forma abnegada e valorosa ao lado e ao serviço de certo Portugal e em nome de certa causa em que acreditavam, seguindo os trilhos de homens de coragem que nunca olharam para trás, filhos dignos de Sancorla como Guelá Baldé, Bubacar Fanca, Sedjali Cumbael, Mâma Djamarã, Alanso Candé, Bodo Djau(1) e muitos outros, nascidos nas terras de Ghâlen Soncô e de Buran-Djamé Baldé, onde as mulheres e mães para calarem o choro das crianças que traziam nas costas, simplesmente lhes diziam: “Cala meu filho, o teu pai vai mandar-te para os Comandos e, se não puderes ser comando, por livre arbítrio dos brancos, então serás o keledjaurâ(2) da nossa aldeia contra os homens do mato”.

O que quer que tenha acontecido durante os golpes e contragolpes em Portugal, após o 25ABRIL, na Guiné a expectativa de um hipotético regresso do General, durante muito tempo, foi uma esperança secretamente alimentada e guardada, pelo menos, no regulado de Sancorla que, com a independência do território tinha tudo a perder e nada a ganhar diante das rivalidades étnicas e contas antigas a ajustar com os seus vizinhos e rebeldes mandingas do Oio e Cola-Caresse que tinham apostado no cavalo certo na altura certa, investindo tudo na guerra contra o colonialismo sim, mas também no sentido de recuperar a glória e a coroa perdidas durante as guerras pela posse das terras do reino de Gabú, um século atrás.

Cherno Baldé conversando com "Homens Grandes" de Fajonquito
Foto: © Cherno Baldé (2013). Todos os direitos reservados


SPÍNOLA CONTRA OS IRAS DE BANDIM

Se esta esperança acabou por desaparecer na cabeça de alguns Guineenses, como foi dito mais acima e como seria lógico pensar em tais circunstâncias, parece que nem todos tinham deixado voar as ilusões sobre esta eventualidade e isto seria confirmado com as discretas visitas a terra de Dona Maria, no inicio dos anos 80, de algumas personalidades religiosas locais com a ajuda de emigrantes, os quais se teriam avistado com Spínola.

Ao certo, não se pode dizer que tivessem feito a viagem somente com esta finalidade, tendo em conta o secretismo que envolvia as deslocações, mas a verdade é que, o tema sobre o qual mais se ouviu falar, após o regresso, tinha a ver com as notícias sobre o velho General, “amigo” dos Guinéus, que, aparentemente, estaria vivo e de boa saúde, acrescentando, no entanto, que já era um homem com ar cansado, que falava muito pouco e que, embora se lembrasse de todas as pessoas com as quais se tinha privado enquanto Governador, parecia estar distante da realidade actual da Guiné, da esperança e dos sonhos de uma hipotética comunidade luso-africana que, em tempos, ajudara a acalentar em alguns espíritos e/ou círculos mais próximos. Afinal, sempre os irãs de Bandim tinham conseguido os seus intentos.

O que foi dito até aqui serve o propósito de poder apresentar a ideia, partilhada com muitos, de que não era crível que depois de ter convencido os seus oficiais superiores e a testa de ferro do regime de Lisboa do “bien-fondé” da politica por ele conduzida na Guiné, desde que chegara aquela província em 1968 (?) e, depois de tanto trabalho e recursos investidos nos esforços para conquistar a confiança de populações nativas completamente a deriva e confrontadas com uma escolha difícil, o “Caco Baldé”(3) baixasse os braços, deixando a província, cuja população literalmente o idolatrava, a mercê dos seus ex-inimigos e antigos adversários.

É sabido que o contexto internacional bem como a situação real no plano da guerra, num continente em plena mutação politica, não lhe era nada favorável, mas não era menos verdade que os grandes homens sempre se distinguiram na história, por feitos em que muitas vezes a evidência dos factos não lhe era, de todo, favorável. E a evidência demonstrara que, a politica “por uma Guiné melhor” sendo uma empreitada que, em muitos aspectos, parecia muito acertada na época, era ao mesmo tempo, de difícil aplicação pratica, tratando-se de um acto que mesmo não alterando em nada o colonialismo, na sua essência, contrariava muitos dos comportamentos e preceitos coloniais habituais mais em voga e que pareciam justificar a própria colonização em si, ao veicular a noção de uma pretensa superioridade racial, baseada na origem e cor da pele, o que era insuportável e humilhante aos olhos dos “quase portugueses” ou assimilados. Esta era a verdadeira razão da guerra e tudo o resto viria por arrasto. Nós íamos compreender isto mais tarde, após a independência.

Mas, uma coisa era querer e outra, bem diferente, poder mudar velhas ideias embutidas na cabeça das pessoas durante séculos, num país, também ele atrasado e governado por uma elite dominada por ideias fascistas. Assim, a mudança das mentalidades, se não era impossível de todo, no mínimo, era uma tarefa muito complicada. Mas, o General provou que não era dos que desistiam com facilidade, embora tivesse dez anos de atraso em relação ao pacto neocolonial referendado e aparentemente ganho por De Gaule nos territórios vizinhos da AOF.

O acaso da história quis que, também em Fajonquito, fôssemos testemunhas desta evidente teimosia e pudéssemos assim sentir, ao lado da nossa população “indígena”, os efeitos de um acto de justiça colonial de tempos novos que, muitos anos depois, e favorecido pelo fracasso da nossa gloriosa independência que custou sangue, suor e lágrimas, segundo os cânones do nosso partido estado e o desencanto patriótico que se seguiu, contribuíram para transformá-lo, finalmente, num acto sublime de elevado valor histórico e contributo importante para a mudança das mentalidades, marcando assim, de forma indelével, a sua passagem pelas terras da Guiné, não na cabeça dos eternos “colons”, mas no espírito do povo simples, eternos “indígenas” de uma nação multiétnica e plurirracial sem rumo.


O CAPITÃO CARVALHO

Este acaso aconteceu em finais de 69 ou princípios de 70, não posso precisar, e teria eu na altura cerca de 10/11 anos de idade e havia poucos meses que tinha mudado com os meus pais de Cambajú para Fajonquito. Aqui, não nos deixavam entrar no interior do quartel, mas a atracção que causava em nós era tal que não conseguíamos ficar longe dos arames farpados. Para facilitar as coisas o meu pai trabalhava no mesmo edifício comercial que albergava, também, nas suas traseiras, a residência do Capitão e comandante da companhia, assim como a messe dos oficiais e sargentos.

Depois de algumas horas de aulas de manhã e com o pretexto de ficar a ajudar o meu pai, conseguia esquivar-me dos trabalhos de campo e passar grande parte do tempo a espreitar o movimento da tropa dentro do quartel, usando o espaço da loja e a presença do meu pai como refúgio sempre que um ou outro elemento mais zeloso quisesse importunar-me. Gostava, sobretudo, de acompanhar o vaivém do Capitão no seu pequeno Jeep de campanha donde sempre descia saltitando ao lado antes de este se imobilizar por completo. Eram imagens que me fascinavam.

Em Cambajú, onde estava estacionado um pelotão da mesma companhia, não existia este fosso de separação entre brancos e pretos, militares e civis e por isso, convivíamos de perto com a tropa portuguesa e com as milícias, inclusive já tivera a oportunidade de esfregar as minhas mãos na pele branca e gorda ou agarrar nos cabelos hirsutos das mãos e braços do nosso amigo, o Furriel Libural (Liberal?), que frequentava assiduamente a nossa casa, não sabendo ao certo o que o atraía mais, se as simpáticas palavras do meu pai sempre cordial e respeitoso para com as autoridades, fossem elas civis ou militares, que o obrigava a tirar o chapéu da cabeça quando as cumprimentava e num excelente português nos apresentava dizendo “minha filho” quando queria dizer “meu filho”, ou eram as minhas primas-irmãs com os seus sorrisos de dentes de marfim, nádegas bambaleantes e seios redondos brilhando em céu aberto.

Em nossa casa toda a gente gostava do Furriel Liberal com seu ar bonacheirão que, muitas vezes, trazia consigo uma terrina cheia de comida do quartel para a meninada. Bem, para ser sincero, nem toda a gente apreciava as suas investidas dentro da nossa morança, arvorando os seus “bumdias e buatardes”, mesmo trazendo comida. E a primeira pessoa a manifestá-lo fora a minha avó paterna, Eguê, que se insurgia contra a intrusão do branco e, quando isso acontecia, amaldiçoando o destino que não quisera que tivesse morrido mais cedo, dizia sempre num tom de profunda e incontida amargura: “Áh Allâ..., e tinha que viver para presenciar isto...!?” Nunca soubemos, ao certo, o que ela queria dizer com “isto”, se era o atrevimento do olhar directo e fulminante com que despia os seus interlocutores, em particular as bajudas, se era a maneira diferente como ele falava, lembrando o som gutural de um pombo apaixonado ou a aparente depravação dos gestos e abraços, as vezes, desmesurados do Furriel e dos seus companheiros da tropa. O que valia mesmo é que ninguém se preocupava com as palavras da avó Eguê que vivia agarrada ao passado, passando a maior parte do tempo a falar sozinha com pessoas imaginárias, insistindo em trazer de volta os ecos de uma vida que já não existia. “Uoúh…, a velhice é mesmo uma merda!” Arrematava ela, encolhendo os ombros, diante dos risos e da indiferença geral, antes de se refugiar dentro da sua casa escura e com um estranho cheiro a merda.

A tropa portuguesa e as nossas mulheres
Foto: © Cherno Baldé (2013). Todos os direitos reservados

Em Fajonquito era diferente e, pela primeira vez, via um Capitão assim de perto, o comandante dos brancos em pessoa. Muitas vezes, quando ele descia do seu Jeep aproximava-me, discretamente, esperando dele um olhar, um sorriso ou um gesto de amizade que nunca aconteciam. Por isso, não me lembro da cor dos seus olhos, escondidos debaixo de umas sobrancelhas fartas, que fugiam do meu olhar, mas lembro-me, mesmo que vagamente, do seu rosto sempre hermético e impenetrável como que querendo dizer-me que não tinha tempo para crianças intrometidas.

O seu nome era Capitão Carvalho, estatura baixa, andar pausado, pés firmes no chão, sentidos obscuros e como que carregados de uma missão impossível. Foi a sua companhia (CCAC 2435) que, de facto, construiu o aquartelamento de Fajonquito em 1969, com o reordenamento da aldeia e construção de um dispositivo de defesa que dizia aos inoportunos visitantes nocturnos:
- “Olha, estamos aqui deste lado, para vos receber com metralha!”.

Estes dispersaram-se indo para os lados de Oio e Joladu e nunca mais voltaram.

Ainda na metrópole, antes do embarque, que se esperava fosse tudo menos a Guiné, a divisa que tinham arranjado para a companhia, assim do jeito “pessoal manga-di-ronco”, era qualquer coisa que dizia assim: “Os tigres, juntos venceremos” e por cima destas palavras via-se a cabeça de um tigre ameaçador, mostrando seus dentes aguçados. Outra companhia que se lhe seguiu as pegadas usava outro lema do tipo: “Deixós poisar”. Não percebíamos nada desta linguagem de caçadores, no entanto, o nosso avô materno, caçador profissional que participara na guerra contra os Canhabaques em 1935 e que conhecia todos os animais da floresta, nos dissera com ar muito sério: “Com os tigres não se brinca”. Mas, em Fajonquito e lá para o fim da comissão, estando mais velhos e realistas tinham alterado a mesma divisa para: “Os tigres, juntos resistiremos” e a outra companhia que lhes seguirá nas peugadas dirá mais tarde a todos os que a queriam ouvir: “Deixós-estar”.


Bajuda guineense, anos 60


O CAPITÃO, SPÍNOLA E O DJINNE DJUNCORE

Devo esclarecer que, de todos os membros da família, o nosso avô materno, era o mais bem informado sobre os aspectos bons da presença portuguesa e com ele mantinha um relacionamento íntimo e confidencial, tanto assim que seria dele a ideia magistral de infiltra-se dentro do quartel com a missão bem definida de colectar uns pequenos pacotinhos de cor verde escura que eram distribuídos à tropa como ração de combate e que mais não eram senão o popular e vulgarmente conhecido caldo de galinha. A tropa não usava aqueles pacotinhos os quais, invariavelmente, deitava no caixote do lixo juntamente com os comprimidos a que se juntavam, também, e que, por minha conta, passei a coleccionar para tratar da saúde contra o vírus da fome.

A missão foi bem-sucedida porque juntava o útil ao agradável. O útil era os pacotinhos de caldo de carne que o velho caçador, especialista na arte de conserva e consumo de carnes secas, cego e sentado na sua varanda, tinha descoberto dentro do quartel e com o qual passou a melhorar, substancialmente, os ingredientes e o gosto do seu intragável prato de farinha de milho preto. O agradável para mim era a possibilidade de poder ludibriar as sentinelas, deambular impunemente dentro do quartel, enfrentando o perigo das botas da tropa, sempre prontas para afinar pontapés certeiros no cu dos pobres Jubis e, quando calhava, um pedaço de pão com um saboroso chouriço de carnes vermelhas vindo de uma alma caridosa. Para sobremesa serviam as cartelas de comprimidos das rações de combate, doces por fora, amargos por dentro, como o coração dos nossos políticos.

Mas, vamos deixar de lado o meu avô para lembrar que, um dos actos mais temerários, para além das suas frequentes saídas para as matas do Oio e Cola/Caresse por que ficou conhecido o Capitão Carvalho era o rebentamento de granadas. Sim, granadas lançadas a poucos metros de distância. Levantava-se numa bela manhã e de repente, como quem cumpria um ritual funesto, ouvia-se um ”Booom” enorme dentro do quartel e a seguir, no mesmo instante em que o cheiro irritante de pólvora invadia o espaço do refeitório e da messe dos oficiais, viam o Capitão a sair do interior de uma gigantesca bola de fumo e poeira, no seu passo pausado e firme de militar, vestido com o seu rigoroso e invariável camuflado. Nunca conseguimos saber que tipo de granadas usava nem descobrir o prazer que este oficial sentia nesses exercícios macabros de lembrar a todos que estávamos em tempo de guerra e de morte.

No meio dos nativos, muitos acreditavam que ele era invulnerável aos estilhaços das granadas. Na opinião de muitos, ele era detentor de um “baki-tcham” ou seja “mesinha” contra balas, para outros seria um protegido do próprio Djuncoré, o rei dos “Djinnés” que habitava o poilão luminoso da bolanha de Sunkudjumá, no prolongamento do rio Canjambari. Como sempre acontece em situações de guerra, era difícil separar o trigo do joio, o mito da realidade. O certo, porém, é que com conivência ou sem ela, o Capitão impunha, a seu belo prazer, a sua lei e as suas ordens na quadrícula a seu mando, exceptuando, claro, o território a oeste que o inimigo ia conquistando pouco a pouco alargando o corredor de Sitatô. E, quem se alia ao poder dos “Djinnés” mais cedo ou mais tarde terá que pagar as contas, diziam os mais velhos e entendidos na matéria. Seria este o caso do Capitão?

Naquele dia, estava no perímetro habitual, entretido a apanhar pequenas pedrinhas na estrada para as brincadeiras habituais quando, de repente, começa um movimento de vaivém da tropa que ocupa o local para uma improvisada parada militar. Da pista de aviação, onde aterrou um ou dois helicópteros, chega um veículo que se imobiliza junto a parada, de onde descem algumas pessoas, dentre as quais um velho oficial em farda de camuflado, corpo ligeiramente dobrado a frente, qual imbondeiro fustigado pelos ventos tropicais, uma bengala na mão direita. Disseram-nos depois que era o General Spínola.

Jolmete > O Gen Spínola falando à tropa
Foto: © Manuel Carvalho (2013). Todos os direitos reservados

O que aconteceu a seguir foi rápido e indescritível, não me lembro de ter ouvido o som da corneta, não houve discursos para a ocasião e os militares da parada, provavelmente, teriam executado os habituais gestos teatrais que culminavam no “apresentar armááá!”, prática marcial que o General não vira ou não tivera tempo de corresponder e, dirigindo-se ao Capitão perfilado a sua frente, ter-lhe-ia assestado uma violenta bofetada para depois puxar dos seus ombros as patentes que este orgulhosamente ostentava. E, naquele mesmo instante e no mesmo veículo, voltaram para a pista, levando consigo o Capitão Carvalho que, talvez pela primeira vez, na sua vida de oficial, viajava nas traseiras de um Unimog e, pior ainda, sem os seus lustrosos galões de comando. Mais tarde juntar-se-iam outros elementos do poder local para um desterro de muitos anos. Quando os helicópteros levantaram voo, ouviu-se um convulsivo choro da tropa metropolitana que assim demonstrava, aos olhos da população, os seus sentimentos de grande estima e de apego ao seu comandante de companhia.

Nunca antes, na minha vida, tinha assistido a uma cena tão comovente protagonizada por homens brancos e, como estavam de luto e não tinham nenhuma vontade de comer o guisado de carne de vaca que os esforçados cozinheiros nativos tinham preparado, um grupo de rafeiros famintos foi lá dar uma mãozinha, enchendo cada um a sua marmita bem a medida.

Por uma Guiné melhor, ninguém podia fazer mais e melhor que este “Show-off” público, em nome da justiça e da dignidade dos Guinéus, indiferentemente da cor da pele, da classe social ou do nível da patente militar. Os indígenas tinham ficado confusos e boquiabertos, pois desde os tempos de Mussa Molo que ninguém tinha visto um Capitão do exército português e branco a sofrer uma tão humilhante afronta ao seu estatuto de oficial superior por causa de alegados atropelos aos direitos humanos do “gentio” rebelde e num território em guerra.

Os discursos vieram depois com a entrada em cena de Issufo Sandem, dos nossos vizinhos mandingas e ferreiro bem conhecido por sua eloquência verbal. Saindo do nada, gesticulando freneticamente as mãos e fazendo jus a sua cidadania, num bem aprimorado português, explicava para a curiosa multidão que entretanto se tinha juntado no local, sobre as actividades e os métodos usados pelo Capitão nas sessões de tortura dos presos e que, por conseguinte, ficaria mui célebre:
- “O Capiton pega num gaijo, mete dentro de um bidon d´iagu, cabeças pra baixu e cús pra cima, dipois, com barriga grandi como prenhadas, tira i deita na tchon, piza barrigas com botas de tropa e iagu sair na bocas i na cus”(4).

Ta percebido?

De seguida, o grupo dos prisioneiros, que durante a visita do General tinha sido escondido no interior da tabanca, encabeçados por Tchamá ou Intchamá que, pela primeira vez, eram alvo de alguma atenção e envergando roupas mais ou menos decentes e sem o cheiro nauseabundo que lhes era característico, foram apresentados um a um como se fosse a primeira vez que eram vistos, quando na realidade, todos os dias e durante toda a fase da construção do aquartelamento, tinham sido utilizados como mão-de-obra nos trabalhos de escavação dos abrigos, valas, valetas e ainda na limpeza de toda a área que circundava o quartel e para onde estavam apontadas as metralhadoras que defendiam a aldeia.

Claro que aos olhos da população local, estrategicamente guiada e manipulada, tratava-se de “turras”, catalogados como IN e gente do mato que aterrorizava, matava e pilhava as nossas aldeias e, por isso, simplesmente, não podiam ter qualquer direito de existir e merecer a menor consideração e como tal eram simplesmente invisíveis. Era isto a realidade crua de uma guerra onde cada um tinha que escolher um dos lados, estivesse certo ou errado.

Voltando ao episódio de 69/70 com o Capitão, é claro que não vamos aqui afirmar, sem cairmos no risco de um grande equivoco, que aquilo que aconteceu teria sido o mau desfecho de um sinistro contrato satânico, como pensava o Aliu Samba e os restantes indígenas da aldeia no delírio das suas mentes animistas, mas não deixa de provocar certa perplexidade o facto de que, depois deste fatídico acontecimento de mau agouro, não houve nenhum outro Capitão que tivesse cumprido a sua missão até ao fim sem problemas, nesse subsector.

O primeiro a chegar, o Cap. Figueiredo (1970/72), teve um fim trágico a escassos meses do fim da sua comissão, quando estava a trabalhar no gabinete que o próprio tinha construído no local, onde dois anos antes o Cap. Carvalho tinha perdido os seus galões. O segundo, o Cap. Patrocínio (1972), com seis meses apenas, seria convocado junto a sede do Batalhão, em Bafatá, para receber uma “porrada” que o arredaria, definitivamente, da sua companhia, obrigando-nos a assistir a mais uma cena de choros e ranger de dentes dos seus desamparados rapazes.

O último, bem, o último tinha sido o Cap. Pedreiro Martins (Junho de 1974), a guerra já tinha chegado ao fim e de mais a mais, para uma companhia que tinha participado no trabalho titanesco de furar o cerco de Guidage e tinha depois passado algum tempo no inferno de Gadamael, os irãs, provavelmente, teriam concordado em poupá-los um pouco, deixando-os cumprir com pompa e circunstância a (des)honra que representou para Portugal e os seus aliados fulas de Sancorla, a entrega final do aquartelamento de Fajonquito aos “maquizards” do PAIGC para que assim se cumprisse a profecia de Cabral e pudéssemos, finalmente, passar de “uma Guiné melhor” com roupagem e estilo neocolonial para “uma Guiné bem pior” revolucionária, conforme estava superiormente predestinado.

Mas, na opinião de Aliu Samba e dos seus conterrâneos, a situação era bem mais complexa que isso e, estavam convencidos que a extinção da luz do poilão luminoso do lago Djuncoré, significava o desaparecimento do rei dos Djinnés, no preciso momento em que o PAIGC teria penetrado no coração sagrado do recinto dos poilões de Canhámina, capital de Sancorla, marcando assim o fim do regulado e de uma dinastia.

- Viva PAIGC!... Viva!!!
- Viva Titina Silá!... Viva!!!
- Abaixo a FLING!... Abaixo!!!
- Abaixo imperialismo!... Abaixo!!!
- Viva PAIGC!... Viva!!!
- Viva Osvaldo Vieira!... Viva!!!
- Abaixo oportunistas!... Abaixo!!!
- Abaixo o Colonialismo!... Abaixo!!!
- Viva Amílcar Cabral!... Viva!!!
- Vivam os Heróis da luta!... Viva!!!
- Abaixo barrigas de meia!... Abaixo!!!
- Abaixo Neocolonialismo!... Abaixo!!!

Aplausos camaradas aplausos, enquanto o pano desliza, pouco a pouco, para cobrir o triste cenário do palco quotidiano da alegria das nossas vidas.

Bissau, 21 de Janeiro de 2013.
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)
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NOTAS: 

(1) - Guelá Baldé – Alf. Comandante do pelotão de milícias de Cambaju, morto em combate em 71 (não há unanimidade sobre a sua patente, muita gente, incluindo familiares, afirma que já tinha sido promovido a Capitão de milícias, antes da sua morte. No cômputo geral, havia no regulado de Sancorla mais de 5 Alferes/Tenentes e 1 Capitão, todos de 2.ª linha, no comando de pelotões de milícias (Sare-Uale, Sumbundo, Cambaju, Suna e Sare-Djamara) que a realidade do conflito tinha colocado na 1.ª linha da guerra, todos eles príncipes de Sancorla); - Carlos Bubacar Djau (Bubacar Fanca) - Alf. Comando, 2.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; - José Manuel Sedjali Embalo (Sedjali Cumbael) -2.º Sargento Comando, 1.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; - Mamadu Baldé (Mama Djamara) - Alf. Comando, 2.ª Companhia, falecido em Portugal nos anos 90; - Alanso Candé – 2.ª Companhia de Comandos; - Bodo Djau – Grupo de tropas especiais de Marcelino da Mata.

(2) - Guerreiro, herói e mártir.

(3) - “Caco Baldé” tem origens no meio e língua fulas, é uma alcunha bem conseguida e duplamente interessante. Caco, khaco ou haco, originalmente, quer dizer cor castanha (a cor das folhas secas), na língua fula, e servia inicialmente para designar a cor da farda das autoridades administrativas e/ou da tropa colonial. Mais tarde, para simplificar, este termo seria simplesmente utilizado para designar, de forma disfarçada e caricatural, as autoridades coloniais ou seus representantes. O apelido Baldé seria lindamente encaixado em acréscimo, certamente, seguindo a lógica da brincadeira muito habitual entre grupos que se consideram primos por afinidade (sanguínea ou territorial) - “Sanencuia”.
Por exemplo, os Djaló são primos dos Baldé por afinidade sanguínea, da mesma forma que o grupo fula, na sua generalidade, é primo do grupo etnolinguístico mandinga que abrange Saracolés, Soninqués, Bambaras etc., por afinidade territorial.
Também é bastante lógico se tivermos em conta que a maior parte dos chefes tradicionais fulas (régulos) e colaboradores das autoridades coloniais, no chão fula, ou pertenciam a esta linhagem ou tinham este apelido, de modo que é uma homenagem e, ao mesmo tempo, uma caricatura dirigida a linhagem dos Baldé, na minha opinião bem conseguida, por um primo, resultante da brincadeira entre grupos de afinidade, usando a figura da maior autoridade portuguesa, de então, no território da Guiné.
Não tenho a certeza e trata-se de uma conjectura da minha parte como pista para uma pesquisa mais aprofundada.

(4) - “O Capitão pega num gajo, mete dentro de um bidão cheio d’agua, cabeça para baixo e cu pra cima. Depois, com a barriga cheia e grande como uma mulher grávida, retira-o e deita-o no chão pisando a barriga com as botas de tropa, fazendo sair água na boca e no ânus”.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 13 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10796: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (42): Quem roubou o nosso canhão?